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A VOLTA DE DEUS Sergio Paulo Rouanet Folha de São Paulo, Caderno Mais, 19.05.2002 Não chega a ser uma novidade que estamos assistindo desde algum tempo a um certo "reencantamento do mundo", isto é, a uma inversão daquele processo que Max Weber considerava típico da modernidade e que tínhamos nos habituado a ver como definitivo: a secularização. Essa tendência era exemplificada com a voga do "new age", com o esoterismo, com o culto das pirâmides de cristal, com o I-Ching, com o tarô, com o retorno dos anjos e dos duendes e até, mais recentemente, com best-sellers, convertidos em sucessos de bilheteria, sobre meninos bruxos e anéis mágicos. Os atentados de 11 de setembro de 2001 em parte trouxeram novos e terríveis exemplos para engrossarem essa lista. O fanatismo fundamentalista em todos os campos, e não somente no islâmico, foi visto com razão como uma nova prova dos perigos do novo clima ideológico. Mas em parte, também, os atentados trouxeram uma mudança de perspectiva. Até agora a reespiritualização se concentrava na faixa mais excêntrica da mentalidade moderna, nas seitas orientais, nos grupos pentescostais, nos rituais satânicos. As religiões oficiais continuavam em queda livre. Quanto mais moderna a igreja, quanto mais racionais as suas doutrinas, menos entusiasmo ela parecia despertar no grande público. Quanto aos intelectuais, não havia hostilidade, como na época áurea do anticlericalismo do século 19: era pior que hostilidade, era indiferença. Sim, o ateísmo parecia a última palavra da maturidade intelectual, e a alternativa a isso era a religiosidade lunática. Um tema atual Pois bem, se os atentados de setembro acentuaram a aversão da opinião pública ocidental ao fundamentalismo, tem-se a impressão de que, em compensação, aumentaram a receptividade para a atitude religiosa como tal. Não se pode mais dizer o que um famoso jornalista do século 19 alegou ao recusar a publicação de um artigo sobre a religião: "Deus não é um tema atual". Surgiu um novo estado de espírito, que não é nem anti-religioso, como no Iluminismo e no século 19, nem apologético, como na vaga neotomista do período de entreguerras (Maritain) ou na trilha de Jean Guitton ou Teilhard de Chardin, com suas tentativas de reconciliar a ciência e a fé. Em nenhum momento o secularismo moderno é posto em xeque, mas a idéia de sua incompatibilidade de princípio com a religião entra em declínio. Os primeiros sintomas do que poderíamos chamar, com algum sensacionalismo, a volta de Deus, antecederam de pouco os atentados e talvez tenham servido de sismógrafos dos novos tempos. Entre os textos mais interessantes que se publicaram a respeito há alguns anos está um livro _"A Religião" (no Brasil, pela ed. Estação Liberdade)_, contendo as contribuições apresentadas em Capri, em 1994, por um grupo de filósofos, entre os quais Jacques Derrida e Gianni Vattimo. O primeiro contribuiu com um texto em que mostra a relação entre a fé e o saber, e o segundo, com um ensaio em que escreve que o chamado "retorno do religioso" é um aspecto essencial de toda experiência religiosa. Em 1996, apareceu um livro particularmente representativo do novo horizonte intelectual, "O Homem-Deus ou o Sentido da Vida" (ed. Grasset et Fasquelle, França), de Luc Ferry. É certo, diz o autor, que a modernidade acarretou uma "perda de sentido", mas ela pode ser compensada graças aos recursos fornecidos pela própria modernidade. A modernidade, com efeito, significa uma humanização do divino, a ascensão irreversível do secularismo. Foi um

A VOLTA DE DEUS

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  • A VOLTA DE DEUS

    Sergio Paulo Rouanet

    Folha de So Paulo, Caderno Mais, 19.05.2002

    No chega a ser uma novidade que estamos assistindo desde algum tempo a um certo "reencantamento do mundo", isto , a uma inverso daquele processo que Max Weber considerava tpico da modernidade e que tnhamos nos habituado a ver como definitivo: a secularizao. Essa tendncia era exemplificada com a voga do "new age", com o esoterismo, com o culto das pirmides de cristal, com o I-Ching, com o tar, com o retorno dos anjos e dos duendes e at, mais recentemente, com best-sellers, convertidos em sucessos de bilheteria, sobre meninos bruxos e anis mgicos.

    Os atentados de 11 de setembro de 2001 em parte trouxeram novos e terrveis exemplos para engrossarem essa lista. O fanatismo fundamentalista em todos os campos, e no somente no islmico, foi visto com razo como uma nova prova dos perigos do novo clima ideolgico. Mas em parte, tambm, os atentados trouxeram uma mudana de perspectiva. At agora a reespiritualizao se concentrava na faixa mais excntrica da mentalidade moderna, nas seitas orientais, nos grupos pentescostais, nos rituais satnicos. As religies oficiais continuavam em queda livre. Quanto mais moderna a igreja, quanto mais racionais as suas doutrinas, menos entusiasmo ela parecia despertar no grande pblico.

    Quanto aos intelectuais, no havia hostilidade, como na poca urea do anticlericalismo do sculo 19: era pior que hostilidade, era indiferena. Sim, o atesmo parecia a ltima palavra da maturidade intelectual, e a alternativa a isso era a religiosidade luntica.

    Um tema atual

    Pois bem, se os atentados de setembro acentuaram a averso da opinio pblica ocidental ao fundamentalismo, tem-se a impresso de que, em compensao, aumentaram a receptividade para a atitude religiosa como tal. No se pode mais dizer o que um famoso jornalista do sculo 19 alegou ao recusar a publicao de um artigo sobre a religio: "Deus no um tema atual". Surgiu um novo estado de esprito, que no nem anti-religioso, como no Iluminismo e no sculo 19, nem apologtico, como na vaga neotomista do perodo de entreguerras (Maritain) ou na trilha de Jean Guitton ou Teilhard de Chardin, com suas tentativas de reconciliar a cincia e a f.

    Em nenhum momento o secularismo moderno posto em xeque, mas a idia de sua incompatibilidade de princpio com a religio entra em declnio.

    Os primeiros sintomas do que poderamos chamar, com algum sensacionalismo, a volta de Deus, antecederam de pouco os atentados e talvez tenham servido de sismgrafos dos novos tempos.

    Entre os textos mais interessantes que se publicaram a respeito h alguns anos est um livro _"A Religio" (no Brasil, pela ed. Estao Liberdade)_, contendo as contribuies apresentadas em Capri, em 1994, por um grupo de filsofos, entre os quais Jacques Derrida e Gianni Vattimo. O primeiro contribuiu com um texto em que mostra a relao entre a f e o saber, e o segundo, com um ensaio em que escreve que o chamado "retorno do religioso" um aspecto essencial de toda experincia religiosa.

    Em 1996, apareceu um livro particularmente representativo do novo horizonte intelectual, "O Homem-Deus ou o Sentido da Vida" (ed. Grasset et Fasquelle, Frana), de Luc Ferry. certo, diz o autor, que a modernidade acarretou uma "perda de sentido", mas ela pode ser compensada graas aos recursos fornecidos pela prpria modernidade. A modernidade, com efeito, significa uma humanizao do divino, a ascenso irreversvel do secularismo. Foi um

  • extraordinrio progresso para o esprito humano, porque permitiu ao homem, enfim, pensar por si mesmo. Mas a modernidade tambm comporta um movimento oposto, que Ferry chama de divinizao do humano. A humanizao do divino implica o fim das transcendncias "verticais", autoritrias, situadas fora e acima do sujeito. Nesse sentido, a modernidade o reino da imanncia.

    Mas possvel, tambm, nas entranhas da imanncia, pensar algo que a transborda, um estar-fora-dela, um extravasamento em direo a transcendncias "horizontais", livremente consentidas, puramente humanas. a divinizao do humano. A fora motriz da transcendncia horizontal o amor, que leva os sujeitos a ultrapassarem sua interioridade mondica para alcanarem o Outro. Ora, a modernidade que permite o advento desse amor.

    Baseando-se nas anlises de Philippe Aris, Ferry afirma que o amor sentimental, conjugal e parental no existia em pocas pr-modernas, em que o desejo fsico reinava sem partilha e a famlia era uma entidade predominantemente patrimonial. A modernidade engendrou uma forma especfica de amor. O amor moderno no deve ser pensado como Eros, pois este pressupe a falta do objeto amado e se extingue com a gratificao do desejo, e sim como "philia", no sentido de Aristteles, como uma afeio que exige, ao contrrio, a presena viva e constante do ser amado. A "philia", por sua vez, remete a outro tipo de amor, o gape cristo, sentimento que nos liga mesmo aos que nos so indiferentes, mesmo aos nossos inimigos, e tem como horizonte virtual a humanidade inteira.

    Ferry chama de "humanismo transcendental" essa perspectiva que parte da imanncia moderna para chegar a uma transcendncia cujas condies de possibilidade so dadas pela prpria modernidade. Humanismo, porque no mais possvel recuar para posies pr-modernas, em que o homem ocupava um lugar secundrio com relao ao divino.

    Mas humanismo transcendental, porque instaurador de valores que excedem uma definio puramente imanentista do humano. O homem no o produto cego de uma rede de causalidades que se do sua revelia, e por isso que essa imanncia se abre para a liberdade e para a esperana.

    Mas com isso se pe a questo das relaes entre o humanismo transcendental e a religio crist. Esse homem divinizado que a reflexo imanente encontra no fim do seu percurso no um Prometeu que roubou o fogo do Olimpo nem um Lcifer que usurpou o trono de Deus, e sim, muito cristmente, um ser capaz de amor e de caridade, que quer completar a "philia" com o gape e estender a todo o gnero humano o amor que ele tem pelos seus prximos.

    Ferry no recua diante dessas implicaes religiosas. Como o cristianismo, o novo humanismo sustenta a existncia de valores transcendentais a partir do amor; acha que esses valores no podem sempre ser explicados pela razo; acredita que esses valores so religiosos no sentido etimolgico de "religare", de criarem um vnculo entre todos os homens; afirma que eles constituem um domnio que deve ser visto como sagrado; e pensa que eles fundam um vnculo com a eternidade e com a imortalidade, porque so valores pelos quais vale a pena lutar e morrer, e portanto se situam alm da vida terrena.

    Religio a posteriori

    Somente, no se trata de uma religio a priori, que vem antes do humano para dar-lhe uma legitimidade, mas a posteriori, pois descoberta pelo homem no interior da imanncia. Ela no est na origem, mas no fim. No est numa tradio, a montante da conscincia, mas a jusante, como algo a ser construdo e pensado. No mais possvel aceitar a religio crist em sua forma, que a da heteronomia, baseada num magistrio ex cathedra, inadmissvel desde que a modernidade fundou a liberdade da razo.

    Mas convm medit-la em seu contedo, enquanto mensagem de amor. As relaes sociais da poca no permitiram concretizar esse contedo, mas, emancipado de sua forma pelo advento

  • dos novos tempos, ele pode finalmente se realizar, como consequncia paradoxal daquela mesma modernidade que aparentemente deveria t-lo esvaziado. Desse modo, torna-se de novo possvel pensar a questo do sentido, porque o humanismo transcendental, lidando com princpios e valores ltimos, pode responder a perguntas que no esto ao alcance do mero saber emprico.

    O livro de Ferry foi um precursor importante do novo "Zeitgeist", mas foi depois dos atentados que esse esprito adquiriu contornos mais ntidos.

    Impossvel mencionar todas as publicaes ps-setembro de 2001 que tm se ocupado com a religio, mas trs delas merecem destaque especial.

    O discurso de Jrgen Habermas ao receber o Prmio da Paz na Feira do Livro de Frankfurt, em outubro de 2001 (publicado no Mais! de 6/1/2002) foi dos mais significativos. Seu modelo remoto talvez seja "A Religio dentro dos Limites da Simples Razo", de Kant, em que o filsofo tentara traduzir em termos morais, segundo categorias puramente seculares, os principais conceitos do cristianismo, como o mal, o pecado e a expiao. Habermas no faz pura e simplesmente o elogio do laicismo, como seria de esperar num socilogo de origens marxistas, mas fala numa sociedade ps-secular, em que no h nenhum sinal do desaparecimento da religio, apesar de todas as presses secularizadoras.

    Sem dvida, a religio precisa aprender a conviver com outras igrejas, tem que aceitar a autoridade da cincia e deve aceitar as regras do jogo democrtico, que obrigam o Estado a seguir os ditames de uma moral profana. Alm disso, os crentes devem "traduzir" suas convices religiosas numa linguagem leiga, se quiserem que seus argumentos sejam debatidos no espao pblico. o que ocorre, por exemplo, quando catlicos e protestantes articulam sua viso religiosa sobre a sacralidade do embrio na linguagem secular dos direitos humanos. Mas o processo de aprendizado no pode ser uma rua de mo nica. Os no-crentes devem tambm fazer um esforo de aproximao, tornando-se sensveis aos potenciais semnticos da tradio religiosa, que muitas vezes se perdem quando transpostos na linguagem profana.

    O simblico e o diablico

    o que acontece quando o pecado se converte em culpa, e a transgresso dos mandamentos divinos transformada em violao das leis humanas. No h equivalente secular para o conceito de perdo, que envolve a anulao do sofrimento imposto aos outros, e no a mera reparao de uma injustia. O fim da idia de ressurreio torna irrealizvel aquela esperana desesperada de Walter Benjamin, ele prprio profundamente influenciado pela religio, de salvar os mortos, corrigindo, pela rememorao, todos os massacres da histria.

    Por isso Habermas a favor, sim, da secularizao, mas de uma secularizao que preserve os contedos da religio, em vez de aniquil-los. Essa forma de secularizao nos induz a distanciar-nos da f, sem nos fecharmos s suas intuies. Uma sociedade civil ps-secular, conclui Habermas, pode haurir na religio, mesmo quando dela se afasta, os recursos de sentido que se tornam cada vez mais escassos numa sociedade dominada pelo mercado.

    O segundo texto o volumoso "Deus, um Itinerrio" (ed. Odile Jacob, Frana), de Rgis Debray, publicado em novembro de 2001. Para Debray, a existncia da religio necessria para a fundao e a consolidao de qualquer comunidade. Para que haja um ns, preciso sempre um outro transcendente. Desde os hebreus at os gregos e os contemporneos, o entre si pressupe um em cima. Cada vez que essa instncia vertical desaparece, a comunidade se desagrega. O simblico (etimologicamente, a juno de elementos separados) e o diablico (em grego, o princpio da disjuno, da dissociao) se excluem. Sem o simbolismo religioso, que unifica, todos os agrupamentos humanos ficam entregues disperso, ao diablico.

  • Ao contrrio de Freud, que achava que a iluso religiosa desapareceria com o progresso da razo, Debray afirma que a iluso subjetiva correlativa da coeso objetiva. Nada disso significa que o secularismo moderno precise ser posto em questo. Mas significa que toda sociedade deve ser bidimensional, estruturada por uma dimenso positiva e por uma dimenso transcendente. Nem significa uma regresso pr-moderna, em que o saber ceda lugar crena. Significa que f e cincia no esto em concorrncia, que "no ocupam os mesmos hemisfrios do crebro", que cada uma tem sua funo prpria.

    O terceiro texto, de dezembro de 2001, foi o discurso que Richard Rorty pronunciou ao receber o prmio Mestre Eckhart. Havia um certo humor surrealista na concesso de um prmio com o nome do mstico alemo a um pensador declaradamente ateu. O agraciado no deixou de salientar esse paradoxo, mas isso no o impediu de consagrar a totalidade de sua conferncia religio. Sinal dos tempos? Talvez, porque, em vez de argumentar a favor do atesmo, Rorty referiu-se com muita simpatia a um texto de Gianni Vattimo em que ele fazia uma profisso de f catlica. Para Vattimo, o cristianismo no tem nenhuma relao com a verdade, e por isso no pode ser refutado, mas tem uma relao com o amor, nos termos do captulo 13 da primeira epstola de so Paulo aos corntios.

    No momento de tornar-se homem, Deus abriu mo, por amor, em favor dos homens, de todo o seu poder e de toda a sua autoridade. O cristianismo consiste nessa auto-alienao de Deus, e por isso a secularizao a caracterstica constitutiva da experincia religiosa autntica. O divino est justamente nessa ausncia de Deus. Rorty conclui dizendo que sua principal divergncia com Vattimo est em que para o italiano o sagrado est no passado, no ato amoroso pelo qual Deus renuncia sua dominao sobre os homens, enquanto para ele, Rorty, est numa esperana futura, num estado de coisas em que os homens fossem livres e tanto quanto possvel iguais.

    No sei se Rorty leu "A Missa de um Ateu", de Balzac, mas a concluso do seu discurso poderia ter como ttulo "A Profecia de um Ateu". Seu atesmo soa estranhamente religioso. Sua utopia se parece nos mnimos pormenores com uma utopia messinica, e, para no deixar dvida, faz questo de usar, para descrev-la, o adjetivo "sagrado".

    Esse estado de esprito, que no nem religioso nem laico, mas ps-secular, na terminologia de Habermas, traduz a convico de que a secularizao irreversvel. O Estado necessariamente profano e seu papel apenas o de garantir a coexistncia das diferentes religies. Mas traduz, por outro lado, a certeza de que nenhuma sociedade pode sobreviver sem a religio, de que a maioria dos homens considera insatisfatrias as respostas dadas pela cincia s perguntas existenciais sobre a vida e a morte.

    Dar corpo ao ideal cristo

    Essa viso ps-secular no pode deixar de refletir-se num dos temas mais debatidos atualmente, a questo da chamada "sociedade do conhecimento". At um ano atrs, talvez seus tericos se recusassem a incluir a religio entre as formas de conhecimento admissveis na nova sociedade. Quase todos partiam da tese iluminista da relao contraditria entre saber e religio, pela qual a cincia exige o recuo do universo mtico-religioso e vice-versa. Hoje essa excluso no assim to automtica. No seria o caso de acolher na nova sociedade a religio racional, que aceita o princpio bsico da modernidade poltico-cultural, o respeito aos princpios seculares? Afinal, a dar crdito a Ferry, no a prpria secularizao que permite dar corpo a um ideal cristo que at ento tinha ficado irrrealizvel, o ideal da fraternidade universal? Vattimo no chega a ponto de ver no secularismo a prpria marca do divino?

    Mas preciso dar um passo alm e perguntar se a religio est condenada apenas ao papel negativo de no interferir na sociedade do conhecimento ou se ela teria tambm um papel positivo nessa sociedade. Em outras palavras, alm de no inibir o conhecimento secular, poderia ela tambm contribuir com um saber especfico, que pudesse enriquecer a sociedade

  • do conhecimento? Habermas nos permite entrever uma resposta afirmativa. Sim, a religio pode ser uma voz que vem do sagrado, de um mundo imemorial muito anterior secularizao, trazendo-nos uma mensagem de sabedoria que se perdeu em sua traduo moderna.

    Afinal, foi uma filsofa totalmente insuspeita de adeso ao judasmo religioso, Hannah Arendt, que usou categorias como promessa e perdo em seu pensamento poltico, e talvez at em sua vida particular, para justificar sua atitude com relao a Heidegger. Podemos compreender Eichmann sem usar a linguagem religiosa do mal, do satnico? Podemos levar a srio o presidente dos Estados Unidos quando ele pede desculpas, "apologizes", pela escravido, em vez de pedir perdo? Podemos abrir mo na poltica moderna das categorias de remorso e expiao? Se considerarmos que essas e outras categorias so importantes, temos que reconhecer f um papel na sociedade de conhecimento. A religio estaria contribuindo com um conhecimento prprio, com uma antiga "fronesis", diferente da mera episteme moderna, com uma "sagesse" que pode complementar a cincia sem deform-la.

    O prprio conceito de sociedade do conhecimento talvez possa ser visto como a secularizao de um dos atributos do divino, a oniscincia. Essa idia pode impelir sempre para a frente a sociedade do conhecimento, movida pela miragem de um saber absoluto. Mas o repertrio simblico da religio pode fornecer tambm um corretivo para o que essa noo tenha de desmedido. H uma autolimitao que tambm vem do sagrado, de uma religiosidade pag expressa no conceito de "hubris", orgulho insensato que expe o homem punio dos deuses, e de uma religiosidade bblica expressa na idia do pecado original, castigo hereditrio resultante da pretenso sacrlega de aceder a uma cincia reservada a Deus.

    Como impulso utpico e como conscincia dos limites, a religio tem um lugar assegurado na sociedade do conhecimento. "Com a passagem da nostalgia religiosa para a prxis social consciente", escreveu Horkheimer em 1935, "sobrevive sempre uma iluso, que pode ser refutada, mas no exorcizada... A humanidade perde a religio ao longo do seu caminho, mas ela no desaparece sem deixar vestgios. Em parte, os impulsos e desejos que a crena religiosa preservou se desprendem da frma que os tolhia e ingressam, como foras produtivas, na prtica social".

    Sergio Paulo Rouanet ensasta e professor visitante na ps-graduao em sociologia da Universidade de Braslia. autor de, entre outros, "As Razes do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seo "Brasil 503 d.C.".