A Vontade Livre Em Nietzsche

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    1/311

    1

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Ana Marta Lobosque

    A vontade livre em Nietzsche

    Belo Horizonte

    FAFICH/UFMG

    2010

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    2/311

    2

    Ana Marta Lobosque

    A vontade livre em Nietzsche

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao emFilosofia da Universidade de Minas Gerais, comoparte dos requisitos para a obteno do ttulo deDoutor em Filosofia

    Linha de pesquisa: Histria da Filosofia

    Orientador: Professor Oswaldo Giacoia Jr -UNICAMP

    Co-orientador: Professor Rodrigo Duarte - UFMG

    Belo Horizonte

    FAFICH/UFMG

    2010

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    3/311

    3

    FICHA CATALOGFICA

    100 Lobosque, Ana MartaL799v A vontade livre em Nietzsche [manuscrito] / Ana Marta Lobosque Oliveira.

    2010 2010.

    306 f.

    Orientador: Oswaldo Giacoia Jr.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas Gerais,

    Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    .

    1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. 2. Filosofia Teses.3. Filosofia Histria Teses. 4. Livre arbtrio e determinismo Teses. I.Giacoia Jnior, Oswaldo, 1954- II. Universidade Federal de MinasGerais.Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    4/311

    4

    Tese intitulada A vontade livre em Nietzsche, de autoria da doutoranda

    Ana Marta Lobosque, examinada pela banca constituda pelos seguintes

    professores:

    Professor Dr Oswaldo Giacoia Jr - UNICAMP Orientador

    Professor Dr Rodrigo Antnio de Paiva Duarte - UFMG- Co-orientador

    Professor Dr Fernando Eduardo de Barros Rey Puente - UFMG

    Professor Dr Olmpio Jos Pimenta Neto - UFOP

    Professor Dr Rogrio Antnio Lopes - UFMG

    Professor Dr Miguel Angel de Barranechea - UNIRIO

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    5/311

    5

    Agradecimentos

    Agradeo ao meu orientador, Professor Oswaldo Giacoia Jr, pelo generoso acolhimento.

    Aos Professores Rogrio Lopes e Olmpio Pimenta, e aos demais colegas do Grupo de

    Estudos de Nietzsche da UFMG, pela frtil interlocuo.

    A Ram Mandil, pela delicadeza da escuta.

    Aos companheiros do movimento antimanicomial, pelas questes sempre vivas.

    Aos colegas da Escola de Sade Pblica de Minas Gerais, pelo apoio.

    Aos meus familiares e amigos, pelo carinho e solidariedade.

    A Clelinha, pela presena amorosa. A Duda, pelo calor da companhia.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    6/311

    6

    ....a maioria dos filsofos e eruditos...imagina toda

    necessidade como aflio, como penoso ter-de-

    seguir e ser-coagido, e o pensar mesmo tm como

    algo lento, hesitante, quase uma fadiga ... _ mas no

    como algo leve, divino e intimamente aparentado

    dana e exuberncia! Pensar e levar a srio...

    para eles isso o mesmo. Os artistas talvez tenham

    um faro mais sutil nesse ponto: eles, que sabem

    muito bem que justamente quando nada mais

    realizaram de arbitrrio, e sim tudo necessrio,

    atinge o apogeu sua sensao de liberdade, sutileza e

    pleno poder, de colocar, dispor e modelar

    criativamente _ em suma, que s ento necessidade e

    livre arbtrio se tornam unidos neles (ABM, 213).

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    7/311

    7

    Resumo

    A tese sustenta que Nietzsche, por um lado, realiza uma severa crtica da doutrina daliberdade da vontade na tradio filosfica, e, por outro, apresenta uma concepo

    prpria de vontade livre. Considerando o contexto mais amplo da crtica vontade de

    verdade e da investigao genealgica da moral empreendida pelo filsofo,

    examinaremos as passagens de sua obra que criticam especificamente esse conceito,

    remetendo-nos a alguns dos autores que o constituem ao longo da histria da filosofia,

    quais sejam, Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e Schopenhauer. A seguir,

    investiga-se at que ponto Nietzsche interroga e promove a possibilidade de dar umanova acepo vontade livre.

    Palavras-chave: filosofia; histria da filosofia; liberdade da vontade, vontade livre, livre

    arbtrio

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    8/311

    8

    Abstract

    The thesis contends that Nietzsche, on the one hand, severely criticizes the doctrine

    of freedom of will in the philosophical tradition, and, on the other hand, presents his

    own conception of free will. In light of the broader context of the criticism to the actual

    will and of the genealogical investigation of moral made by this philosopher, we will

    examine the passages of his work which specifically criticize this concept, while

    making reference to some authors during the course of the history of philosophy,

    namely, Plato, Aristotle, Saint Augustine, Kant and Schopenhauer. Next, we will

    investigate to what extent Nietzsche questions and promotes the possibility of giving a

    new meaning to free will.

    Key-words: philosophy; history of philosophy; free will, freedom of will

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    9/311

    9

    Rsume

    La thse soutient que Nietzsche, dans un premier temps, ralise une svre critique

    quant la doctrine de la libert de la volont dans la tradition philosophique, puis, dansun second temps, prsente une conception propre de volont libre. En considrant le

    contexte le plus ample de la critique de volont de vrit et d'investigation gnalogique

    de la moral entreprise par le philosophe, nous y examinerons les passages de son oeuvre

    qui critiquent particulirement ce concept, pour cela nous nous rfrerons certains des

    auteurs qui l'ont constitu au cours de l'histoire de la philosophie, tels que : Platon,

    Aristote, Saint Augustin, Kant et Schopenhauer. Par la suite, nous tudierons jusqu'

    quel point Nietzsche interroge et promeut la possibilit de donner un nouveau sens auconcept de volont libre.

    Mots-cls:philosophie, l'histoire de la philosophie, volont libre, libert de la volont

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    10/311

    10

    Abreviaturas

    Obras de Nietzsche:

    A = Aurora

    ABM = Alm do bem e do mal

    AC = O anticristo

    AS = O andarilho e sua sombra

    CE I = Primeira considerao extempornea _ David Strauss, o apstolo e o escritor

    CE II = Segunda considerao extempornea _Da utilidade e dos inconvenientes da histriapara a vida

    CE III = Terceira considerao extempornea _ Schopenhauer como educador

    CE IV = Quarta considerao extempornea _ Wagner em Bayreuth

    CI = Crepsculo dos dolos

    CW = O caso Wagner

    EH = Ecce homo

    FTG = A filosofia na poca trgica dos gregos

    GC = A gaia cincia

    GM = Genealogia da moral

    HDH = Humano, demasiadamente humano

    HDH II= Humano, demasiadamente humano II

    OSD = Opinies e sentenas diversas

    NT = O nascimento da tragdia

    Z = Assim falava Zaratustra

    Outras obras:

    CRPr = Crtica da razo prtica, de Kant

    FMC = Fundamentao da metafsica dos costumes, de Kant

    G = Grgias, de Plato

    LA = O livre arbtrio, de Santo Agostinho

    ELA = Ensaio sobre o livre arbtrio, de Schopenhauer

    EN = tica a Nicmaco, de Aristteles

    MRV = O mundo como vontade e representao, de Schopenhauer

    R = A repblica, de Plato

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    11/311

    11

    Sumrio

    Introduop.14

    Parte I: Alguns marcos da doutrina da liberdade da vontade: Plato,

    Aristteles, Agostinho, Kant e Schopenhauer p.27

    Captulo 1: Plato e Aristteles: uma tica anterior vontade p.31

    1.1 A ao moral entre os antigos gregos p.31

    1.2 Plato: conduta moral e discurso verdadeiro p.35

    1.2.1 Saber e justia emA Repblica p.37

    1.2.2 Ordem das coisas e ordem do discurso no Grgias p.40

    1.2.3 Castigo e recompensa p.421.2.4 Ningum erra de propsito? p.45

    1.3 A fundamentao da responsabilidade em Aristteles p.47

    1.3.1 Algumas questes datica a Nicmaco p.47

    1.3.2 A prefigurao da vontade em Aristteles p.56

    Captulo 2: A vontade a partir do cristianismo p.60

    2.1 A vontade em Santo Agostinho p.60

    2.1.1 Alguns precursores da filosofia da vontade p.60

    2.1.2 A discusso de OLivre arbtrio p.622.1.2.1 A vontade culpvel como causa do mal p.63

    2.1.2.2 Deus, o bem e a verdade imutvel p.65

    2.1.2.3 Necessidade e liberdade p.71

    2.1.2.4 O pecado original p.74

    2.1.3 A filosofia de Agostinho na histria da vontade p.76

    2.2 A autonomia da vontade em Kant p.79

    2.2.1 De Agostinho a Kant: a formalizao do conceito de vontade p.79

    2.2.2 A filosofia prtica kantiana: alguns aspectos p.81

    2.2.2.1 A universalidade da lei moral p.83

    2.2.2.2 A autonomia da vontade e a liberdade p.85

    2.2.2.3 A causalidade pela liberdade: mundo sensvel x mundo inteligvel p.87

    2.2.2.4 Os postulados da razo prtica p.90

    2.3 A vontade em Schopenhauer p.92

    2.3.1 O conhecimento desinteressado p.92

    2.3.2 A liberdade inteligvel p.95

    2.3.3 A auto-negao da vontade p.99

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    12/311

    12

    2.4 Aps Schopenhauer: uma crtica positivista liberdade da vontade p.102

    Parte II: Vontade de verdade como determinao da moral p.105

    Captulo 3: Da sabedoria trgica filosofia histrica p.108

    3.1 Nietzsche e o sculo da cincia p.108

    3.2 O percurso do jovem Nietzsche: uma primeira verso da tarefa p.111

    3.3 Considerao terica x considerao trgica do mundo. p.114

    3. 3.1 O otimismo da lgica p.114

    3. 3.2 O nascimento da tragdia: uma forma singular p.118

    3.4 O tema do conhecimento em outras obras da juventude p.121

    3.5 Novas reflexes sobre o conhecimento p.124

    3.5.1 Uma nova dieta p.124

    3.5.2 Cinciax metafsica p.1263.6 O conhecimento como paixo p.129

    Captulo 4: Por uma gaia cincia p.133

    4.1 Somente enquanto criadores p.133

    4.2 Crticas finalidade p.136

    4.3 A selvagem sabedoria: vontade de verdade como vontade de poder p.140

    4.4 Ainda devotos p.142

    4.5 Texto e interpretaes p.144

    4.6 Vontade de verdade e ideal asctico p.1504.7 Feminina p.154

    Parte III: A concepo nietzscheana de vontade livre p.156

    Captulo 5: A crtica doutrina da liberdade da vontade p.160

    5.1 Primeiras crticas liberdade da vontade p.160

    5.1.1 Alguns aspectos da investigao moral em Humano, demasiadamente

    humano p.160

    5.1.2 As referncias crticas doutrina da liberdade da vontade p.1635.2 Novas formulaes crticas liberdade da vontade p.170

    5.2.1 O jogo dos impulsos p.170

    5.2.2 As sedues da linguagem p.172

    5.2.3 A crtica vontade una e causal p.177

    5.3 ltimas crticas liberdade da vontade p.180

    Captulo 6: Culpa e castigo p184

    6.1 Danar acorrentado p.184

    6.2 Origem e finalidadex vontade de poder p.187

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    13/311

    13

    6.3 A experincia humana da dor: em busca de um sentido p.190

    6.4 O direito e a justia: um instvel equilbrio p.195

    6.5 O castigo p.200

    6.6 Culpa e m conscincia p.205

    6.7 Um outro ideal? p.209

    Captulo 7: O homem da vontade livre p.212

    7.1 A vontade livre como caracterstica do homem nietzschiano p.212

    7.2 Desvios de si, retornos a si p.216

    7.3 Nietzsche face ao homem de Schopenhauer p.221

    7.4 Primeira formulao do esprito livre p.225

    7.4.1 Os atributos do esprito livre p.225

    8.4.2 A filosofia trgica como empreendimento artstico p.2738.5 O eterno retorno em Assim falava Zaratustra p.276

    8.5.1 Perturbaes de Zaratustra p.277

    8.5.2 O cativeiro da vontade p.279

    8.5.3 O enunciado do eterno retorno p.282

    8.5.4 Rodeios de Zaratustra p.284

    8.5.5 De volta solido p.285

    8.5.6 Enfim, a prova p.286

    8.6 O eterno retorno na filosofia trgica: um lugar parte p.289

    Consideraes finais p.294

    Referncias bibliogrficas p.302

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    14/311

    14

    Introduo

    A crtica liberdade da vontadexo homem da vontade livre

    Ao abordar a concepo de vontade livre em Nietzsche, uma aparente ambivalncia

    se destaca.

    Por um lado, sua obra empreende uma severa crtica desse conceito tal como

    formulado na tradio filosfica. Tal crtica decisiva para o projeto nietzscheano de

    uma genealogia da moralidade, tanto pela recusa da idia de uma ordenao tica douniverso na qual viria fundar-se a moral, como pelo desmascaramento da noo de

    vontade livre ou livre arbtrio, que visa fundamentar a responsabilizao, logo a culpa,

    como uma operao da moral, particularmente da moral crist1.

    Por outro lado, o ideal do homem livre e responsvel ocupa um importante lugar na

    filosofia de Nietzsche. Podemos v-lo em suas menes aos espritos livres, de

    Humano, demasiadamente humano Gaia cincia, ao alm-do-homem deZaratustra,

    aos filsofos do futuro deAlm do bem e do mal, ao homem capaz de prometer daGenealogia. Nietzsche sempre associa a todos eles uma vontade poderosa, uma vontade

    livre que se auto-determina, por determinar os valores que a regem; da mesma forma,

    sublinha a amplido de sua responsabilidade.

    A vontade que fende rochas, inalterada e sempre igual a si mesma, o que h de

    invulnervel em Zaratustra. Um excesso de livre arbtrio, a disposio para grandes

    responsabilidades e a amplido da vontade (ABM, 44) so atributos dos filsofos do

    futuro em Alm do bem e do mal. Na Genealogia da moral, o fruto mais maduro da

    rvore plantada pela moralidade de costume o homem da vontade prpria, duradoura

    e independente... no qual se torna instinto dominante o conhecimento do privilgio da

    responsabilidade (GM, II, 2).

    Ainda, Nietzsche inclui-se a si mesmo nessa linhagem, como mostra o frequente uso

    do pronome ns, ou mesmo eu, anteposto s diferentes figuras do seu ideal. A

    1 Neste trabalho, utilizaremos como sinnimos as expresses liberdade da vontade, vontade livre e livrearbtrio.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    15/311

    15

    vontade livre e a responsabilidade, segundo a auto-determinao de uma lei, no s so

    afirmadas com relao a elas, como so questes que se colocam para Nietzsche, no

    cumprimento da tarefa que julga encontrar em sua filosofia.

    Por conseguinte, as menes feitas pelo filsofo ao homem da vontade livre, assimcomo aquelas ao cultivo de si e sua prpria tarefa, apontam para alguns elementos que

    nos permitem repensar esse conceito sob uma outra perspectiva, na qual se apresenta

    no sem contradies e dificuldades, mas nem por isso tendo importncia menor.

    Considerando o contexto mais amplo da investigao genealgica da moral

    empreendida por Nietzsche, examinaremos as passagens de sua obra que criticam

    especificamente esse conceito, remetendo-nos a alguns dos autores que o constituem ao

    longo da histria da filosofia, quais sejam, Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e

    Schopenhauer. Pretende-se, igualmente, pesquisar como, e at que ponto, o filsofo

    interroga, e por vezes promove, a possibilidade de dar uma nova acepo vontade

    livre.

    A vontade como doadora de sentido

    Investigando a crtica nietzschiana liberdade da vontade, procuraremos tambm

    explicitar sua concepo de uma vontade livre enquanto doadora de sentido.

    A concepo de vontade livre em Nietzsche parece-nos relacionar-se constante

    busca, em sua filosofia, de criao de um sentido para o homem. O filsofo repudia as

    formas de pensamento para as quais as coisas devem continuar sendo tal como so para

    tornar-se o que devem ser: denuncia enfaticamente o conformismo inerente nas

    interpretaes do mundo que tornam intil ou absurda a ao humana. Portanto, acriao ativa de um sentido, relacionada quela de novos valores, permeia toda sua obra.

    Podemos v-lo claramente desde o incio: quer se trate do otimismo fcil do filisteu

    que tudo deseja adaptar satisfao plcida de sua prpria estreiteza, na Primeira

    Extempornea, quer da existncia irnica que leva o homem histrico a eximir-se de

    qualquer ao, na Segunda, o filsofo denuncia as diferentes formas de passividade e

    conformismo, definindo o valor do conhecimento conforme propicie ou no um agir

    transformador; na Quarta, louva Wagner por no extrair da histria e da filosofia os

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    16/311

    16

    efeitos sedativos que fazem desistir da ao.Na nova inflexo de seu pensamento em

    Humano, demasiadamente humano, a concepo de ao ou empreendimento modifica-

    se em relao etapa anterior, desvinculando-se de uma vertente militante de

    transformao social atravs da arte; agora, a prpria cincia, aplicada investigao

    dos fenmenos morais, chamada a oferecer critrios para um desenvolvimento

    consciente da humanidade, assim como a propiciar as grandes construes humanas

    antes fundadas pela metafsica. H de modificar-se ainda quando, apontando a

    incapacidade da cincia para oferecer uma meta, uma paixo, uma vontade prprias da

    grande f (GM III, 23), convoca uma vontade capaz de expressar um ideal contrrio ao

    ideal asctico.

    A afirmao de uma lei que o indivduo deve dar a si mesmo, erigindo um ideal quelhe seja prprio, se faz presente desde o incio da obra de Nietzsche, em oposio a

    qualquer pretensa validade geral da lei moral. Atravs de termos diversos, utilizados de

    forma mais ou menos equivalente _ conquista de si, posse de si, amor de si, cultivo de

    si, cuidado de si _ o filsofo sustenta uma singular forma de auto-domnio, ascese, auto-

    disciplina, pelo exerccio de uma vontade livre e doadora de sentido.

    Apesar de sua rejeio a toda concepo finalstica, Nietzsche no aceita a entrega ao

    acaso bruto, que excluiria qualquer possibilidade de um sentido a criar. Nas palavras de

    Zaratustra, apenas a vontade pode redimir o homem do absurdo do acaso. Trata-se de

    ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade

    humana...para pr fim a este pavoroso domnio do acaso e do absurdo que at hoje se

    chamou histria (ABM, 203). Contudo, isso se deve fazer sem o recurso a propsitos

    previamente estabelecidos na essncia das coisas, que necessitam ser salvas de sua

    escravido finalidade, sem permanecer, todavia, aprisionadas na mecnica

    absurdidade de todo acontecer (GM, II, 12). Nem teleologia metafsica, nemdeterminismo mecanicista: para no incorrer nem em uma nem em outra dessas visadas,

    Nietzsche far intervir o amor fati e o pensamento do eterno retorno. A afirmao

    suprema de todas as coisas no implica, todavia, numa posio passiva ou resignada

    diante delas, como nos mostra o carter essencialmente combativo da obra nietzscheana.

    Deve exercer-se aqui a vontade livre qual Nietzsche se refere, no sem colocar-nos

    uma srie de problemas e questes: muitas das dificuldades e dos riscos que se

    entrecruzam em seu pensamento e em sua prpria vida no seriam inerentes difciltentativa de sustentar esta afirmao?

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    17/311

    17

    Linhas gerais do desenvolvimento do trabalho

    Para situar a importncia e o peso da doutrina da liberdade da vontade na tradio

    filosfica, examinaremos, na primeira parte do trabalho, alguns escritos dos autores

    acima mencionados, abordando, em Plato, uma reflexo tica que prescinde doconceito de vontade, e, em Aristteles, novas questes que prefiguram a necessidade do

    conceito; veremos a seguir seu nascimento em Agostinho, sob a gide do pensamento

    cristo, sua formalizao em Kant, e o desenvolvimento prprio que lhe d

    Schopenhauer.

    No primeiro captulo, trataremos da reflexo tica anterior ao conceito de vontade.

    Em Plato, a liberdade de escolha se realiza na vida moral atravs da vida intelectual: a

    virtude ou excelncia de cada coisa consiste em determinar-se conforme ordem que

    lhe prpria, reproduzindo em si mesma a racionalidade de uma ordem universal.

    Assim, a escolha moral deriva da cognio; aponta-se uma lei a ser conhecida pela

    razo, enquanto ordem, necessidade e hierarquia de um mundo inteligvel, que o mundo

    sensvel imita e obedece. Em Aristteles, a ao humana no pode ser objeto de

    conhecimento no mesmo sentido em que o um fenmeno csmico ou um

    procedimento tcnico: a forma universal da lei nem sempre permite considerar

    adequadamente os casos particulares, cabendo ao raciocnio moral uma regularidade

    diferente e menor do que aquela do conhecimento terico. Na ausncia de um conceito

    de vontade, e prefigurando-o, todavia, a tica a Nicmano busca fundamentar a

    responsabilidade moral atravs da distino entre o voluntrio e o involuntrio, da

    introduo da noo deproaresis, ou deliberao, e de desejo raciocinativo, que no

    s desejo, nem s razo.

    Ser a partir do cristianismo, contudo, que se elabora o conceito de vontade. No

    segundo captulo, indicaremos em Santo Agostinho um importante marco da suaformulao, segundo a qual o mal se origina da vontade culpvel. Pertence vontade a

    escolha entre os bens que h de amar: quando escolhe os bens temporais, o homem no

    faz uso de sua vontade livre para o fim pelo qual ela lhe foi concedida. O movimento de

    averso aos bens eternos do qual procede o pecado no oriundo de Deus nem natural

    ao homem: sendo voluntrio, est posto sob o seu poder, justificando-se assim o castigo.

    Muito depois, quando a cincia moderna j ter elaborado a noo de leis da

    natureza, extraindo suas consequncias no plano do conhecimento cientfico, Kant irafirmar a determinao da vontade por uma lei moral, que no se distingue de uma lei

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    18/311

    18

    natural quanto forma. Designando a vontade como razo prtica, pretende para ela

    uma racionalidade prpria, cujo rigor de verdade, todavia, em nada inferior quele da

    razo terica; a lei moral universal dada pela vontade a si mesma, no exerccio de sua

    autonomia, segundo uma causalidade pela liberdade prpria ao noumenon.

    Schopenhauer, embora dando ao intelecto uma funo instrumental em relao ao

    querer, concebe, a ttulo de exceo, uma forma pura de conhecimento, intuitivo e no

    abstrato, que dela se liberta, numa auto-negao da vontade acessvel a raros homens,

    como os artistas, os gnios e os santos. Desatrelando a liberdade inteligvel da lei moral

    kantiana, desloca o seu acento do mbito do operare, onde no se pode encontr-la,

    dado o rigoroso determinismo em que se insere toda ao, para aquele do essere, onde

    se encontra como fundamento da responsabilidade moral.

    A segunda e a terceira partes do trabalho abordaro a filosofia de Nietzsche, quanto

    aos aspectos relacionados ao nosso tema.

    Dada a estreita ligao apreendida pelo filsofo entre a vontade de verdade e a

    moral, com repercusses importantes em sua crtica liberdade da vontade,

    abordaremos este aspecto na segunda parte. Nietzsche questiona a concepo de uma

    ordem racional da natureza, dotada de propsitos e finalidades, pela qual se identifica o

    bom ao verdadeiro, numa fundamentao da moral que conduz responsabilizao

    daquele que a transgride. Contrariamente, afirma a ausncia de leis, propsitos e

    finalidades no universo _ e tambm de qualquer relao intrnseca entre uma suposta

    ordem universal e a constituio racional do nosso intelecto.

    Segundo o filsofo, o discurso verdadeiro, em sua suposta objetividade, constri-se

    em ltima anlise a partir de valoraes morais, envolvendo jogos de fora e

    reconfiguraes de poder. A fundamentao da moral, da qual ocupou-se sempre a

    filosofia, no passa da forma erudita da f na moral dominante, que busca autorizar-se

    pelo estabelecimento de seus laos com a verdade. Contudo, o verdadeiro e o falso no

    so critrios neutros e isentos a partir do qual se possa avaliar os valores morais; a

    prpria identificao do verdadeiro ao bem j representa uma operao da prpria

    moral.

    No terceiro captulo deste trabalho, veremos como Nietzsche se afasta de sua

    concepo inicial de sabedoria trgica para aproximar-se do que ento denomina como

    filosofia cientfica ou histrica. Para tal, sero examinadas suas reflexes em O

    Nascimento da tragdia e nas obras da juventude, segundo as quais a considerao

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    19/311

    19

    terica do mundo ou o sentido histrico do homem moderno produzem efeitos

    esterilizantes para a cultura, cuja vitalidade requer as foras supra-histricas da religio

    e da arte. A seguir, acompanharemos as novas posies expressas pela primeira vez em

    Humano, demasiadamente humano: a cincia, opondo-se metafsica e tendo a dvida

    por aliada, deve oferecer critrios para o progresso do homem. Entrementes, em toda

    sua obra, a partirde Verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche faz ver que

    coisas, substncia, identidade, durao, so apenas categorias do nosso

    aparelho cognitivo, produzidas num dado momento de sua evoluo: no s no

    corresponde a elas nada de real em si, como no so, tampouco, propriedades

    necessrias e universais da razo humana.

    No quarto captulo, veremos como Nietzsche, dando continuidade a essaproblematizao na Gaia cincia, apresenta o conferir nome e valor como constitutivos

    do que chamamos de realidade, ressaltando de forma crescente o carter

    necessariamente ficcional do conhecimento. A introduo da doutrina da vontade de

    poder, emAssim falava Zaratustra, mostra a ancoragem de toda vontade de verdade em

    valores; na Genealogia da moral, a vontade de verdade prpria nossa cultura

    remetida a valoraes inerentes ao ideal asctico.

    Na terceira parte, trataremos especificamente da posio nietzscheana relativa

    vontade livre, estreitamente relacionada s questes examinadas at agora. Essa posio

    consiste, a nosso ver, numa crtica radical doutrina da liberdade da vontade tal como

    se constitui na tradio filosfica, por um lado; por outro, na afirmao de uma vontade

    livre e criadora, que se pretende desvinculada dessa tradio.

    No quinto captulo, abordaremos essa crtica, tal como se expressa a partir de

    Humano, demasiadamente humano. Ali, o filsofo atribui ao conhecimento cientfico a

    valiosa contribuio que nos permite o acesso doutrina da total irresponsabilidade,

    restituindo ao devir a inocncia maculada pela interpretao culpabilizante que dele

    fazemos. Nos escritos subseqentes, a problematizao da liberdade da vontade ser

    situada no mbito daquela que se faz s noes da soberania da conscincia e do sujeito

    como unidade ltima e irredutvel da qual a vontade uma faculdade una e causal _

    noes que nos so inculcadas, segundo Nietzsche, pelas sedues da linguagem.

    No sexto captulo, examinaremos a genealogia do castigo e da culpa, na qual, pelaconsiderao da doutrina do livre enquanto produto da moral do ressentimento, ganha

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    20/311

    20

    relevo maior a crtica que lhe faz Nietzsche. Ser tambm abordada a concepo

    nietzscheana segundo a qual encontra-se um elemento tirnico e arbitrrio em toda

    ordem social, e, por conseguinte, tambm nas mais elevadas produes humanas.

    Procuraremos mostrar, por outro lado, como sustenta Nietzsche a ideia de umavontade livre.

    Essa afirmao esbarra em dificuldades, ao procurar re-significar certos termos e

    expresses fortemente marcados pela tradio filosfica. Embora refutando a dualidade

    entre mundo sensvel e inteligvel, o filsofo usa num outro sentido o termo ideal,

    sobrecarregado por ela; repudiando o pessimismo romntico de sua juventude, preserva

    todavia a palavra pessimismo, acrescentando-lhe o adjetivo dionisaco ou trgico; ao

    buscar a criao de sentidos e a transvalorao dos valores, retoma a expresso vontade

    livre, cujas razes metafsico-psicolgicas vem justamente denunciar.

    Enfrentando tais dificuldades, quanto mais avana Nietzsche na crtica doutrina da

    liberdade da vontade, tanto mais a vontade livre e forte, capaz de criar valores, torna-se

    atributo comum e essencial s figuras do esprito livre, do alm-do-homem, do filsofo

    do futuro, do indivduo soberano, como veremos no stimo captulo. No se trata da

    vontade como causalidade livre, tal como se consolida no mbito da tradicionaloposio liberdade x necessidade, e sim daquela que , pelo contrrio, resultante de uma

    certa ordem ou arranjo da vida pulsional sob a qual a conscincia no tem qualquer

    controle ou poder. Por outro lado, a desagregao da vontade, refletindo uma anarquia

    instintiva igualmente rebelde ao domnio consciente, diagnosticada como a doena

    moderna.

    A essa doena vincula-se o pessimismo romntico, que Nietzsche pretende ter

    superado rumo a um pessimismo trgico atravs da doutrina do eterno retorno, comoveremos no oitavo captulo. A equivalncia entre querer, criar e estabelecer valores

    manifesta a concepo nietzschiana da vontade livre: redentora do acaso, aquela que

    deve aprender a querer para trs a fim de libertar-se de todo ressentimento. O

    pensamento do eterno retorno, portanto, visa superar a antiga oposio entre

    necessidade e liberdade: a vontade livre , paradoxalmente, aquela que quer tudo aquilo

    que , foi e ser.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    21/311

    21

    Nietzsche e a elaborao de sua obra

    Para levar adiante a investigao proposta, segundo as linhas acima delineadas,

    preciso levar em conta certas caractersticas prprias elaborao da obra nietzscheana.

    A elaborao e a exposio da filosofia de Nietzsche se fazem de formasingularmente alheia s exigncias acadmicas. Chamam a ateno as raras menes s

    fontes a partir das quais desenvolve esta ou aquela ideia; a passagem de um tema a outro

    de forma aparentemente aleatria; a vasta gama de questes abordadas, por vezes to

    dspares entre si, e sob ngulos to diversos; as contradies consigo mesmo em alguns

    trechos, as repeties em outros. Certas passagens, em O Nascimento da tragdia e na

    Genealogia da moral, por exemplo, chegam a parecer muito simplesmente inventadas:

    ainda que a pesquisa ulterior possa encontrar suas fontes, Nietzsche no apenas no nosinforma a partir de quais dados ou elementos as formulou, como tambm desenvolve

    suas idias a partir delas como se sua procedncia estivesse firmemente estabelecida aos

    seus prprios olhos e aos do leitor. Ao referir-se aos grandes filsofos, no explicita at

    que ponto conhece suas obras: se este conhecimento por vezes se evidencia no prprio

    comentrio nietzschiano, e tambm comprovado pelas pesquisas, como o caso de

    Schopenhauer e Plato, temos tambm o curioso exemplo de Kant, autor que Nietzsche

    menciona, comenta e critica com extrema desenvoltura, embora no se saiba ainda se, eat que ponto, o leu em primeira mo.

    Guardando relao com essa liberdade tomada por Nietzsche diante das regras da

    produo acadmica, a trajetria de sua vida, como se sabe, afasta-o cada vez mais de

    qualquer vnculo institucional. O afastamento de Wagner e de Schopenhauer, cujas

    idias o acompanharam em suas primeiras incurses filosficas, seguido por dez anos

    de vida errante, durante os quais elabora suas obras mais importantes, at a nova e

    radical ruptura representada por seu colapso mental. Em todo esse perodo, seu trabalho

    filosfico desobriga-se de prestar contas a qualquer instncia institucional, realizando-se

    ao longo de uma vida de crescente isolamento e profunda solido, sem ptria, profisso,

    ou outras formas de identidade socialmente reconhecidas. Esse afastamento, descrito

    por ele como um retorno a si, h de culminar tanto na produo de uma obra

    inegavelmente prpria, quanto no fora de si da experincia da loucura.

    Curiosamente, essa obra que se enquadra to pouco em critrios institucionalmente

    reconhecidos vem sendo objeto de inmeras pesquisas, que se debruam sobre abiografia do autor, estudam minuciosamente suas anotaes, pesquisam suas leituras e

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    22/311

    22

    interesses filosficos e cientficos, examinam a origem de seus principais conceitos,

    dentro da mais acurada tradio acadmica. Esse esquadrinhamento leva em conta no

    s a obra publicada, ou os textos destinados publicao, mas tambm o profuso

    material dos fragmentos pstumos.

    Deve-se ainda considerar a problemtica histria da edio das obras de Nietzsche,

    desde as deformaes que sua irm imps ao texto, at o estabelecimento da edio

    crtica de Colli e Montinari, passando por diversas vicissitudes. H tambm as

    diferentes apropriaes ideolgicas de seu pensamento, que o situam como um pilar do

    nazismo, numa extremidade, ou como um filsofo da suspeita reivindicado pela

    extrema-esquerda, numa outra. Enfim, so inmeras as questes suscitadas pelo

    estabelecimento do texto nietzschiano e pelas interpretaes diversas, e mesmo opostas,que este texto suscita.

    Como o prprio Nietzsche diz de si um tanto ironicamente, tambm ele foi um

    erudito. Seria difcil supor que este destacado aluno da Escola de Schulpforta, estudioso

    da Antiguidade greco-romana, depois estudante de filologia cujos trabalhos

    impressionavam seu exigente professor Ritschl, convocado para professor na

    Universidade de Basilia sem necessitar cumprir o requisito do doutorado _ seria difcil,

    repetimos, supor que no conhecesse nem soubesse aplicar corretamente as regras

    acadmicas; esta seria uma exigncia mais fcil de cumprir do que outras, bem mais

    severas, que imps a si mesmo. Tampouco parece plausvel que Nietzsche, ao

    abandonar certos cnones de redao e pesquisa, visasse a liberdade de um pensamento

    sem amarras, cuja impossibilidade ele prprio reconhece, ao afirmar que tudo o que nos

    parece livre nasce de uma longa e exigente coero.

    O abandono desse tipo de trabalho teria sido uma escolha claramente consciente de

    Nietzsche? Diferentemente, pode-se pensar que este caminho foi tomado por

    imposies do prprio pensamento, tal como experimentado por ele. Aqui, no nos

    referimos ao pensamento de Nietzsche, no sentido de que o autor guardaria uma

    relao de propriedade ou domnio com aquilo que pensa; e sim a uma forma de

    exerccio do pensamento que atravs dele vem luz, exigindo, para seu surgimento,

    uma forma peculiar de trabalho e expresso.

    Segundo Nietzsche, no filsofo absolutamente nada impessoal (ABM, 6).Contudo, em que sentido entender aqui o pessoal? Por exemplo, no que concerne

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    23/311

    23

    questo da autoria: Nietzsche considera certas descobertas filosficas como

    autenticamente suas. O seu refere-se a quem? Ao Nietzsche sujeito consciente de si,

    que julga encontrar-se em relao de pertinncia ou posse do seu prprio pensamento,

    como algo que emana do seu Eu, conferindo-lhe mrito e direito a reconhecimento? Ou

    a um Nietzsche constitudo enquanto combinao singular, ao mesmo tempo casual e

    necessria, de clulas, instintos, histrias, experincias, gostos, etc, inacessveis

    enquanto tais conscincia de si? De onde provm a reivindicao da singularidade?

    Do Nietzsche que necessariamente a deforma, quando apresenta-se a si mesmo como

    autor dessa ou daquela descoberta, ou do nico Nietzsche de fato singular, portanto

    apto a descobrir algo novo, que no se encontra disposio do primeiro, e

    necessariamente lhe escapa? Um pensamento no vem quando eu quero, mas quando

    ele quer, diz Nietzsche (ABM, 17); falseamos a realidade ao supor o sujeito eu como

    condio do predicado penso, ao considerar, segundo o hbito gramatical, que pensar

    uma atividade, e toda atividade requer um agente. Somos convidados, pois, difcil

    operao de conceber esta singularidade pessoal que se expressa numa filosofia,

    devendo apresentar-se, entretanto, de forma totalmente independente do Eu.

    Um outro trao caracterstico da elaborao nietzscheana, relacionado ao anterior,

    consiste na forma pela qual concebe e emprega a linguagem. a metafsica dalinguagem, identificada por Nietzsche razo, que nos faz ver em toda parte agentes e

    atos, supondo o Eu como substncia e a vontade como causa, e assim possibilitando a

    culpabilizao do homem que caracteriza a moral do ressentimento. As categorias

    mesmas de unidade, identidade, durao, substncia, causa, ser, so erros resultantes de

    um preconceito da razo que tem a linguagem como advogada. Mais ainda, a direo

    inconsciente das mesmas funes gramaticais leva os sistemas filosficos

    linguisticamente aparentados entre si a interpretar o mundo de maneira semelhante,

    excluindo outras possibilidades de interpretao. No seria muito diferente o filosofar

    no mbito lingustico ural-altaico, onde se desenvolve mais precariamente a noo de

    sujeito? _ pergunta-se Nietzsche (ABM, 20).

    A condio de homem do conhecimento, tal como a vive o filsofo, leva-o a buscar e

    transmitir algo de nico e singular, numa intransigente exigncia de originalidade. Ora,

    o singular, o nico, o prprio, o particular, o incomparvel com qualquer outra coisa

    justamente aquilo que, em sua prpria concepo, a linguagem no pode transmitir. Oque h de singular no indivduo no coincide nunca com a conscincia que tem de si, ou

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    24/311

    24

    seja, com o seu Eu: a conscincia, atravs da linguagem, necessita transformar em

    comum, logo comunicvel, tudo aquilo que no o . Se a conscincia se desenvolve

    apenas sob a presso da necessidade de comunicao, como uma rede de ligao entre

    as pessoas a desenvolver-se lado a lado com a linguagem, tudo aquilo que se torna

    consciente perde seu carter incomparavelmente individual e singular, para traduzir-se

    numa perspectiva gregria que o empobrece. Assim, o pensamento consciente, tendo a

    linguagem como forma obrigatria, nada poderia transmitir de raro, elevado, invulgar

    (GC, 354).

    Essa desfigurao do nico , segundo o filsofo, um erro necessrio ao

    desenvolvimento da razo. No se trata, pois, de corrigi-lo. Como ento, transmitir a

    experincia estritamente singular do pensamento, se a linguagem necessariamente atrai? Essa questo parece-nos tanto mais significativa dadas as menes feitas por

    Nietzsche a vivncias de estados psquicos elevados e raros que afetam intensamente o

    corpo _ veja-se, por exemplo, como Zaratustra tomado por pesadelos e prostraes em

    seu embate com o pensamento do eterno retorno. Tais vivncias, ao mesmo tempo em

    que desafiam qualquer traduo, impelem incessantemente sua busca.

    Nietzsche busca persuadir-nos, justamente atravs da linguagem, de que no se deve

    tom-la ao p da letra; ou, noutras palavras, quer acautelar-nos, atravs dela prpria,

    contra o seu temvel poder de persuaso. No se pode acreditar nela, ensina-nos, sem

    incorporar tambm uma srie de crenas errneas que traz consigo. Contudo,

    acrescentamos, tampouco se pode atribuir-lhe a capacidade de explicar-nos clara e

    objetivamente em que consistiriam os erros que transmite, visando elimin-los dessa

    maneira. Pode-se, talvez, exibindo a sua tessitura, fazer aparecer tanto as leis que a

    constituem quanto as burlas possveis para contorn-las, quando nos probem avanar

    em certos territrios; as estereotipias que nela insistem, e as metforas que as subjugam;finalmente, pode-se verificar seu estilhaamento pelo desafio radical feito aos seus

    limites. Algo dessa ordem, a nosso ver, se passa na obra de Nietzsche: uma tentativa de

    driblar a linguagem atravs de sua prpria fora, para fazer aparecer, em sua

    enunciao, aquilo que no pode ser dito como enunciado.

    Nietzsche e sua tarefa

    A relao vital mantida por Nietzsche com aquilo a que denomina sua tarefaexpressa-se tanto na forma pela qual ordena em torno dela a prpria vida, como pelas

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    25/311

    25

    referncias que lhe faz ao longo de sua obra . Essa ligao com a prpria tarefa e a

    concepo que dela se faz parecem-nos de grande importncia enquanto afirmao da

    vontade, relacionando-se sempre a algo da ordem de um retorno a si e de um cultivo

    de si.

    No Prlogo de Humano, demasiadamente humano, Nietzsche define a grande

    liberao que acredita ter realizado a partir desse livro como algo que se inicia por

    primeira erupo de vontade e fora de auto-determinao, uma vontade de livre

    vontade. No Prlogo de Humano, demasiadamente humano II, refere-se ao encontro

    do caminho para si mesmo como sendo o encontro de sua tarefa. Que ele se inclua,

    desde o incio de sua obra, entre os espritos mais seletos, devendo portanto cumprir

    as exigncias a estes colocadas; que trate da transformao do esprito livre tomandocomo exemplo e paradigma a sua prpria transformao; que atribua a si mesmo uma

    tarefa de extrema responsabilidade; que tenha, enfim, experimentado consigo mesmo a

    prpria filosofia _ estes so aspectos a ser considerados no tratamento filosfico que d

    tanto negao da liberdade da vontade como afirmao da vontade livre.

    EmAurora, a ideia de realizao essencial assim descrita por Nietzsche: Tudo

    o que se faz, fazer na tranquila f de que beneficiar de algum modo aquilo que em ns

    est vindo a ser!...Nada sabemos de como sucede, aguardamos e procuramos estar

    prontos. Ao mesmo tempo, um puro e purificador sentimento de profunda

    irresponsabilidade nos domina, quase como o de um espectador diante da cortina

    fechada _ aquilo cresce, aquilo vem luz: no temos como determinar nem seu valor,

    nem sua hora...Seja o aguardado um pensamento, um ato _ com toda realizao

    essencial no temos outro vnculo seno o da gravidez, e deveramos lanar ao vento a

    presunosa conversa de querer e fazer (A, 552).

    No final de sua obra, Nietzsche descreve a prpria tarefa como uma atividadeinconsciente, que no se faz a partir de uma meta previamente conhecida. um trabalho

    que se exerce sobre si mesmo e sobre a prpria vida, um amor de si, um cultivo de

    si no sentido de tornar-se aquilo que se . Contudo, para que algum se torne o que ,

    o pressuposto de que no suspeite sequer remotamente o que . A idia

    organizadora cresce na profundeza, enquanto a conscincia, identificada superfcie,

    est limpa de grandes imperativos: a ideia domina e ordena, preparando tudo aquilo que

    se faz necessrio tarefa, antes de revelar qualquer coisa sobre a tarefa mesma, ou seja,sobre fim, meta, sentido (EH,Por que sou to inteligente, 9).

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    26/311

    26

    Essas passagens, dentre outras, ressaltam a dimenso da espera, da entrega, da

    aposta, no que concerne tarefa, como afirmao da vontade. No se trata de uma

    experincia passiva: a atividade intensa, porm se d numa esfera sobre a qual o Eu

    no exerce qualquer domnio. A vontade no vontade de algo, nem obedece razo.

    Sua determinao no diz respeito a um objeto visado, e sim consiste nessa escolha de

    um caminho que no se sabe at onde leva; recusando-se a idia de inteno, a meta e o

    sentido s podem revelar-se depois.

    Contudo, no singular relato autobiogrfico representado porEcce Homo, onde se

    entrelaam to estreitamente a vida e a obra de Nietzsche, uma desmesura se expressa

    tanto na auto-exaltao feita por ele da prpria obra, quanto na imensido da

    responsabilidade que se atribui, atribuindo prpria tarefa um alcance-histrico-universal.

    Embora afirme sustentar com leveza esta responsabilidade, como se fosse um jogo,

    Nietzsche vive nesse ano de 1988 uma etapa febril de produo dos seus ltimos

    escritos, que incluem o Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, o Anticristo, o

    Crepsculo dos dolos e o prprio Ecce homo. Todos eles possuem um tom exaltado,

    uma virulncia, uma obstinada repetio de afirmaes j feitas em obras anteriores, que

    adquirem uma intensidade e mesmo um excesso bem caractersticos no ltimo texto,

    antecedendo bem de perto a irrupo do colapso mental de Nietzsche, em janeiro de

    1889.

    EmEcce homo, fazendo certas afirmaes que espantam ou mesmo chocam o leitor,

    o filsofo no nos parece buscar calculadamente estes efeitos, usando da proteo de

    uma das muitas mscaras s quais ele prprio admite recorrer. Podemos perguntar-nos,

    pelo contrrio, se no incorre no risco de colar a mscara pele, que acaba por rasgar-

    se, afinal. A fico do Eu, to agudamente denunciada por Nietzsche, parece agora

    apoderar-se do seu texto.

    A linguagem contorna, atravessa, interroga, provoca limites que enfim se quebram _

    at dissolver-se enfim no sem-sentido que desde o incio a solapava. Chegando, em

    certas passagens de Ecce homo, muito perto do delrio, o verbo se rasga, enfim: dos

    bilhetes da loucura, um ltimo aceno, distante e incompreensvel, nos interpela ainda.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    27/311

    27

    Parte I

    Alguns marcos da doutrina da liberdade da vontade: Plato,

    Aristteles, Agostinho, Kant e Schopenhauer

    Para compreender os fundamentos e o alcance da crtica de Nietzsche doutrina da

    liberdade da vontade, este trabalho se remete a cinco filsofos que nos situam na sua

    evoluo: Plato, Aristteles, Santo Agostinho, Kant e Schopenhauer. Da sua obra,destacamos alguns textos como foco de nossa anlise: A Repblica e o Grgias, de

    Plato; a tica a Nicmaco, de Aristteles; O Livre arbtrio, de Santo Agostinho; a

    Fundamentao da Metafsica dos costumes e a Crtica da Razo Prtica, de Kant; O

    Mundo como vontade e representao e o Ensaio sobre o livre arbtrio, de

    Schopenhauer.

    No pretendemos abordar as inmeras questes e controvrsias suscitadas, seja pela

    obra desses filsofos como um todo, seja pela interpretao daqueles seus escritos aquiconsiderados. No tampouco nosso objetivo empreender uma histria do conceito de

    vontade livre, trabalho j realizado alhures. No poderamos, ademais, reconstituir os

    passos da elaborao filosfica realizados entre cada um desses autores. Busca-se aqui,

    atravs da leitura cuidadosa dos textos elencados, todos eles de inegvel importncia na

    tradio filosfica em geral e na reflexo sobre a ao humana em particular, destacar

    os aspectos que nos conduzem doutrina da liberdade da vontade, fundamentando a

    responsabilidade moral do homem.

    Cumpre ressaltar que este um trabalho prvio ao cumprimento da tarefa a que se

    prope a tese, qual seja, o exame da concepo nietzscheana de vontade livre.

    Nietzsche se refere com grande frequncia a trs dos autores aqui abordados, quais

    sejam, Plato, Kant e Schopenhauer, aos quais contrape explicitamente construes da

    sua prpria filosofia. Diferentemente, so poucas as referncias a Aristteles na obra

    publicada _ as principais delas, alis, relativas s concepes da Potica sobre a

    tragdia, e no tica. Santo Agostinho, por sua vez, praticamente no mencionado

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    28/311

    28

    por ele. Contudo, nessa primeira parte, procuramos examinar textos e autores em si

    mesmos, levando em conta no as posies nietzscheanas a seu respeito, e sim a sua

    importncia na constituio da doutrina da liberdade da vontade, contra a qual se

    insurgir Nietzsche.

    O conceito de vontade, ausente no pensamento dos antigos gregos, criado e

    consolidado pela filosofia a partir do cristianismo. Uma importante contribuio que

    nos traz o exame dos textos citados consiste em verificar como esse conceito,

    inicialmente ausente da reflexo moral, torna-se posteriormente necessrio para a

    fundamentao da responsabilidade e a justificao do castigo.

    Entre os antigos gregos, antes da filosofia socrtico-platnica, encontra-se uma

    concepo racionalista da ao humana, segundo a qual a perda da liberdade de escolha

    ocorre quando se age sob a influncia do erro2. A ao se explica pela interao entre

    foras racionais e irracionais, sem necessidade da mediao de uma vontade da qual

    dependeria diretamente, constituindo o objeto do julgamento da conduta. Tal concepo

    relaciona-se correspondncia precocemente buscada pelos gregos entre a mente

    humana e o cosmos, ambos dotados da mesma ordem racional.

    Plato, atravs da distino entre mundo sensvel e inteligvel, encontra no segundo aordem e a perfeio imutveis que oferecem referncias estveis para a conduta

    humana. EmARepblica, a simetria que faz corresponder as trs partes da alma s trs

    classes da cidade e aos trs tipos de constituies reproduz uma hierarquia na ordem do

    ser que deve sustentar a cidade ideal; o bem supremo define o valor das regras que a

    regem, conferindo existncia ao mundo, e dando ao intelecto a razo que lhe permite

    conhec-lo. No Grgias, a ordem do ser, referncia para a justia, deve refletir-se no

    discurso verdadeiro. A responsabilidade e o castigo, benfico para aquele que o recebe,

    fundamentam-se na justia fundada por uma ordem universal, cujo desconhecimento

    leva ao erro3. Nessa tica, que refere essencialmente a virtude ao conhecimento correto,

    2 essa a interpretao dos comentadores com os quais trabalhamos, como Dihle, Vet, Reale, dentreoutros.3A propsito de A Repblica e do Grgias, como de outros escritos aos quais nos referimos nesta

    primeira parte do trabalho, a interpretao pode ser matizada e complementada por outros escritos domesmo autor, ou por leituras diferentes de outros comentadores, tendo em vista o conjunto da obra. Paraos nossos fins, entretanto, basta-nos situar concepes que podem ser encontradas em cada um dos textosconsiderados.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    29/311

    29

    e o vcio ignorncia, no h lugar para o conceito de vontade.

    A fundamentao da responsabilidade do homem o esforo empreendido por

    Aristteles na tica a Nicmaco, levando em considerao vrios aspectos ainda no

    abordados na reflexo filosfica anterior. A compulso sob a qual uma ao pode serrealizada e a ignorncia de certas circunstncias que lhes so particulares por parte do

    agente so examinadas enquanto fatores que matizam a responsabilidade. A distino

    entre o voluntrio e o involuntrio mostra-se insuficiente para a atribuio de louvor ou

    censura ao, tornando-se necessrio o conceito de deliberao _ a proaresis _ que

    deve anteceder a escolha. A distino entre conhecimento terico e inteligncia prtica

    permite romper com a identificao anterior entre o conhecimento da verdade e a ao

    correta.

    Dessa forma, a tica a Nicmaco prefigura o nascimento do conceito de vontade,

    que permanece todavia ausente dos textos antigos. A vontade, inerente a um

    conhecimento moral previamente adquirido, que precede a percepo intelectual do alvo

    da ao, distinguindo-se tanto do instinto quanto da escolha intelectual do seu objeto,

    surgir no pensamento cristo.

    A partir de uma concepo j presente no Antigo Testamento e secundada por Paulo,segundo a qual a virtude reside na obedincia vontade divina, por um ato de f que

    independe do conhecimento, Agostinho aporta uma contribuio decisiva para o

    conceito de vontade. O mal, pertencendo ao no ser, inexiste na criao divina; apenas a

    m vontade do homem, a partir do pecado original, o introduz no universo, perturbando

    uma harmonia que o castigo, como sinal de justia, vem restabelecer. Entretanto, se

    voluntrio, e portanto culpvel, o movimento pelo qual a vontade se afasta de Deus, ela

    no tem como retornar por si mesma ao caminho correto, podendo faz-lo apenas por

    Sua graa.

    Em Kant, encontra-se a formalizao mais rigorosa do conceito de vontade. A

    concepo de uma vontade autnoma, livremente submetida lei moral, enquanto

    forma de uma legislao universal, desatrela a determinao da vontade por qualquer

    objeto que lhe seja exterior, seja sensvel, seja racional. O imperativo categrico, vlido

    para todos de idntica maneira, enuncia racionalmente a regra das aes humanas.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    30/311

    30

    Em Schopenhauer, a vontade, em seu empuxo cego e irracional, j no se identifica

    com a razo prtica; contudo, mantm-se a distino kantiana entre carter sensvel e

    inteligvel, de tal modo que a liberdade, ausente no mbito do agir, pode ser resgatada

    naquele do ser, justificando assim responsabilizao e castigo. A aniquilao da

    vontade, tornada possvel pela compaixo, torna-se a nica sada tica possvel para o

    homem.

    A crtica nietzschiana doutrina da liberdade da vontade, endereando-se

    diretamente ou no a estes autores, nos remete a todos eles, pelo papel que tiveram na

    construo do conceito.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    31/311

    31

    Captulo 1

    Plato e Aristteles: uma tica anterior vontade

    Neste captulo, aps um breve esboo da concepo do ato moral anterior filosofia

    socrtico-platnica, abordaremos alguns aspectos da reflexo tica em Plato, que

    prescinde da categoria da vontade, e em Aristteles, que a prefigura.

    1.1 A ao moral entre os antigos gregos

    A categoria da vontade, tal como a entendemos hoje, assim como nossas noes de

    livre escolha, responsabilidade e inteno, no tem lugar na antiguidade grega. Esse

    conceito, que denota volio, independentemente de sua origem na cognio ou na

    emoo, no encontra no vocabulrio dos antigos gregos nenhuma palavra que lhe

    corresponda, sustenta Dihle (1982). Vernant (1999), indicando na acepo moderna de

    vontade a ideia do sujeito humano como centro de deciso e causa produtora de todos os

    atos que dele emanam, faz ver que no podemos atribuir retrospectivamente aos gregos

    esta noo. A vontade, diz Vet (2005), uma noo que os fundadores da filosofia

    antiga ignoram, s recebendo posio central num pensamento determinado pela

    religio crist.

    Para situar a histria do conceito de vontade, Dihle ressalta a distino entre as

    cosmologias grega e judaica. A primeira encontra uma ordem racional na mente humana

    e no universo, que se deve conhecer para agir em conformidade com ela. Na segunda,

    Deus faz o que quer; criando a partir do nada, apenas por Sua benevolncia que

    estabelece leis. Assim, no Antigo Testamento, a obedincia, pressuposio da sabedoria,

    no deriva da cognio; no se trata de concordar intelectualmente com as intenes de

    Jav, alis inacessveis aos homens, e sim de valorizar o ato de aceitao, dele fazendo

    depender os padres de conduta moral.4 Conhecimento e sabedoria pressupem um ato

    4Certamente, observa Dihle (1982), j em Sfocles e Herdoto encontra-se a ideia de um limite imposto

    pelos deuses ao homem, que deve estar atento para a prpria ignorncia e imperfeio; contudo, enquanto

    ali o homem nunca sabe exatamente o que deve fazer, no Antigo Testamento as ordens de Jav so claras,ainda que possam parecer inexplicveis. Tambm na tragdia grega se manifestava a inescrutabilidadedos desgnios divinos; a desobedincia a eles, porm, decorria de uma cegueira intelectual, enquanto na

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    32/311

    32

    inicial de obedincia, que no pode ser atribudo especificamente ao intelecto ou a

    emoo, no qual Dihle encontra alguns elementos do conceito de vontade

    posteriormente elaborado na filosofia crist. Enquanto os gregos no dispem de uma

    palavra para este conceito, j no Antigo Testamento, embora no se encontre uma

    terminologia fixa, algumas palavras, em certo contexto, significariam claramente uma

    vontade livre: o homem tido como capaz de dirigir e formar a prpria vontade,

    reagindo responsavelmente vontade de Deus.

    Diferentemente, a busca de uma legalidade na natureza que deve orientar a conduta

    humana uma importante e antiga caracterstica do pensamento grego. Segundo Jaeger

    (2001), um elemento essencial deste pensamento consiste na apreenso de uma lei

    intrnseca s coisas mesmas, dela fazendo derivar as normas para a vida individual esocial. Para os gregos, observa Dihle, todas as coisas transcorrem segundo regras

    eternas, que o homem pode conhecer enquanto portador da mesma razo que ordena o

    universo.

    Esse racionalismo, ainda segundo Dihle, manifesta-se tambm nas mais remotas

    explicaes da ao humana entre os gregos. J em Homero, muito antes da distino

    entre corpo e alma, decisiva uma primeira distino, aquela entre foras racionais e

    irracionais. O impulso para a ao pode ser guiado pelo intelecto, ou mobilizado

    espontaneamente; neste ltimo caso, porm, a ao trar maus resultados se o intelecto

    no intervir a tempo, fazendo valer os padres morais vigentes. O comportamento

    humano explica-se, pois, pela distino entre foras racionais e irracionais e a interao

    entre elas. A ao deriva do intelecto ou da emoo, no havendo necessidade de uma

    vontade da qual dependeria diretamente, qual seria fundamentalmente referido todo

    juzo de uma conduta. Trata-se, segundo o autor, de uma tica essencialmente

    intelectualista5.tradio judaica no importa se a inteno humana vem da emoo ou da razo, e sim se est ou no deacordo com a vontade divina.

    5 A concepo da tica intelectualista dos gregos, sustentada por Dihle (1982), matizada em outrasinterpretaes. Mondolfo (1953) cita autores que discordam da contraposio absoluta entre oobjetivismo grego e o subjetivismo cristo, situando do lado do primeiro o intelectualismo, do lado dosegundo o voluntarismo. Para esse autor, Joel e Farrington encontram um certo subjetivismo j nafilosofia pr-socrtica. Segundo Hegel, Scrates faria um convite interioridade, ao situar,contrariamente moralidade anterior, a medida do justo e do tico na conscincia moral. Tambm Jaegerdestaca a distino entre o humano objetivo, enquanto sociedade e leis, e o humano subjetivo, enquantoeu interior, que se introduz com Scrates e os sofistas. Mandolfo cita ainda Brhier, para o qual no h

    mudana de orientao filosfica introduzida pelo cristianismo nascente, sendo freqentes no mundogrego antigo a necessidade de vida interior, a conscincia do pecado e a prtica do exame de conscincia.Por outro lado, observa Mondolfo, quando se caracterizam os moralistas antigos pela reduo da norma

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    33/311

    33

    Entre os gregos, certas ideias ou aes inexplicveis dos homens so remetidas

    interveno divina na conduta humana. A principal forma de interveno divina a ate,

    provocando no homem uma loucura parcial e temporria, a harmatia, que o leva a agir

    erroneamente Segundo Dodds (1988), trata-se de um erro inexplicvel que afeta a

    compreenso do agente. Dihle faz ver que, em Homero, mesmo quando a motivao da

    ao muda pela interveno dos deuses, esta tem por objeto os atos de cognio e

    deliberao.

    A atribuio da origem do erro a uma potncia externa no pretende significar, ao

    menos inicialmente, um castigo por uma culpa: na Ilada, a ate que perturba a

    compreenso de Agamenon no o pune por algum ato culpvel anterior. Entretanto, ele

    no isento da responsabilidade pelas faltas cometidas sob o imprio da ate. Dodds citacomo exemplo suas palavras ao referir-se ao agravo feito a Ulisses: No fui eu que

    causei este ato, mas Zeus, o destino, as Ernias colocaram uma ate selvagem na minha

    compreenso. Contudo, embora alegando no ter sido ele prprio a causa de sua ao,

    nem por isso deixa de oferecer reparaes ao adversrio.

    Ainda segundo Dodds, com a crescente moralizao da cultura grega, a atepassaa

    ser interpretada como castigo ou instrumento da ira divina, resultando da justa

    indignao dos deuses diante da arrogncia dos homens. As Ernias, outrora os agentes

    pessoais atravs dos quais se realizaria a moira ou destino como o quinho de algum,

    entendido como o que tem de ser, como obrigao ou necessidade, tornam-se, a partir

    de squilo, agentes da vingana e do castigo. A concepo orfista de uma alma imortal

    que se reencarna sucessivas vezes explica mais satisfatoriamente a justia divina: no h

    uma alma inocente, os sofrimentos humanos so auto-impostos.

    O valor tico da justia, na leitura de Jaeger (2001), cresce ao longo da civilizao

    grega, ao mesmo tempo em que aumenta a nfase sobre a responsabilidade do homem.

    Certamente, os deuses eram aliados ou adversrios imprevisveis, cujas aes no

    derivavam de uma regra justa, e sim de seu prprio capricho, como faz Atenas ao

    enlouquecer jax. Contudo, observa Dihle, os gregos buscam precocemente uma

    tica conformidade com a natureza universal, no se deve esquecer que a mesma ideia apresenta-se emvrias formas na filosofia moderna: em sistemas materialistas, como Hobbes, pantestas, como Spinoza,espiritualistas, como Leibniz, ou evolucionistas, como Spencer; mesmo nas doutrinas religiosas efilosficas da predestinao, como em Santo Agostinho, pode-se reconhecer uma submisso do sujeito

    tico e de seu arbtrio a um poder transcendente.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    34/311

    34

    regularidade e uma confiabilidade da regra divina sobre o mundo, como se v quando

    Homero explica as peripcias da guerra de Troia como resultantes do plano de Zeus.

    Hesodo, no final do sculo VIII, foi o primeiro a fazer de Zeus um deus que regulava o

    mundo conforme a justia. Esse princpio de regulao cresce em valor na Jnia do

    sculo VI, com o surgimento do Estado jurdico, ao qual se liga intimamente, por sua

    vez, o nascimento da filosofia. Slon, como Hesodo, concebe claramente a idia de

    uma legalidade intrnseca ordem social, justamente na poca em que os filsofos

    jnicos comeam a buscar uma lei estvel do devir eterno da natureza. Os poetas lricos

    enfatizam a noo de limite, ou justa medida, considerada por Reale (1994) como a

    conotao mais peculiar do esprito grego. Por conseguinte, observa Dihle, quando a

    filosofia volta-se para os problemas morais e sociais no sculo V, procura encontrar

    padres de conduta moral que sejam to confiveis quanto as regras da ordem csmica

    Entrementes, a nfase na responsabilidade do homem apresenta-se na Odissia,

    observa Jaeger, quando Zeus censura os mortais por atriburem aos deuses todos os

    males dos quais eles prprios so os autores. Mais tarde, Slon, atribuindo culpa dos

    homens boa parte daquilo que os heris homricos colocavam ainda na mo dos deuses,

    traz como idia poltica fundamental o problema da participao do homem em seu

    prprio destino. Em Anaximandro, desenvolve-se a ideia de uma legalidade intrnsecada natureza, no no sentido moderno de lei natural, mas enquanto justificao da ordem

    do mundo: o conceito de causa, atia, fundamental para este novo pensamento, coincide

    originariamente com o de culpa, representando, assim como os conceitos de cosmos e

    dike, uma transposio da ordem jurdica para o acontecer natural.

    Do ponto de vista jurdico, enquanto a estrita solidariedade familiar entre os antigos

    gregos favorecia a admisso da culpa herdada, o crescimento dos direitos individuais

    leva a lei a reconhecer que o homem s responsvel por seus prprios atos. J nosculo V, o culpado, ou harmaton, torna-se o adikon, ou seja, aquele que, de forma

    deliberada e sem coao cometeu um delito. No marco da elaborao de um novo

    pensamento jurdico, a tragdia tica, segundo Vernant (1999), revelaria a inquietao

    suscitada pela condio do homem enquanto agente, atravs do conflito das novas idias

    com uma tradio religiosa e moral da qual j se distinguem, sem todavia se destacarem

    completamente dela. Contudo, mesmo no drama tico, sustenta Dihle, em que a anlise

    psicolgica encontra-se altamente desenvolvida, prevalece esta explicao do

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    35/311

    35

    comportamento humano em termos de interao entre foras racionais e irracionais, que

    podem reforar-se ou invalidar-se mutuamente, sem lugar para o conceito de vontade.

    As tragdias de Eurpides, em suas relaes com o movimento sofista, expressariam

    uma nova etapa desse percurso, refletindo as novas inquietaes de sua poca. Aharmonia entre as leis csmicas e as leis morais parece desfazer-se, abalando a crena

    na justia. A crise da aristocracia e dos valores tradicionais, o enfraquecimento da

    coeso da cidade e da disciplina social, as viagens que possibilitam as comparaes

    entre diferentes povos e suas leis contribuem para a introduo do relativismo na

    reflexo moral. Os critrios morais representados pelos costumes j no so suficientes

    para orientar a ao; aquilo que parecia eternamente vlido j no o . A norma jurdica,

    convencional e arbitrria, ope-se lei da natureza.

    Esse relativismo se manifesta em Protgoras, ao considerar o homem como medida

    de todas as coisas, negando valores morais absolutos. Para Grgias, no h verdade

    absoluta a ser encontrada, de modo que a palavra pode prescindir do verdadeiro para

    exercer seu poder de persuaso. A problematizao feita pelos sofistas, ao contrapor lei

    humana e lei natural, assume feies at mesmo opostas, observa Reale _ por exemplo

    em Hpias, que defende a igualdade dos homens, e Clicles, que sustenta o direito dos

    mais fortes. Na ausncia de uma referncia estvel para a conduta moral, a palavra

    adquire um poder ilimitado, pois duas idias contrrias podem encontrar argumentos

    igualmente fortes.

    Esse poder da palavra enquanto capaz de afirmar coisas opostas acaba por esvazi-la,

    porquanto nenhum fundamento garante a sua verdade. O antigo conceito de direito

    perde sua autoridade moral. A simples obedincia lei torna-se insuficiente, tornando-

    se necessria uma nova fundamentao da moralidade, empreendida pela filosofia

    socrtico-platnica.

    1.2 Plato: conduta moral e discurso verdadeiro

    Pretende-se abordar aqui dois aspectos do pensamento platnico, em sua reflexo

    sobre a justia. Um deles diz respeito equao que identifica conhecimento e virtude,

    segundo a qual a conduta justa deve orientar-se pela mesma razo da ordem universalque se reflete e reproduz na razo humana. O outro concerne importncia teraputica

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    36/311

    36

    atribuda ao castigo, reforada pela noo de imortalidade da alma e de uma vida aps a

    morte do corpo. Inicialmente, contudo, vejamos a relao, no pensamento platnico,

    entre conduta moral e discurso verdadeiro.

    Ao problematizar a universalidade da lei, os sofistas o fizeram solapando a palavraem sua capacidade de trazer inequivocamente luz o verdadeiro. Assim, a nova

    filosofia exige um resgate da linguagem que venha salv-la da ambigidade e do vazio:

    sendo nica e incontroversa, a verdade deve poder expressar-se atravs do discurso

    correto.6

    J na Apologia, se os saberes questionados por Scrates so falsos, porque no

    conseguem apresentar seus prprios fundamentos, sendo instintivos ou espontneos, e

    no racionais. Exigindo que o saber se prove sob a forma de uma argumentao

    claramente expressa, Scrates ironiza os artifcios dos discursos tpicos do tribunal,

    capazes de convencer seus ouvintes das maiores falcias, privilegiando a forma simples

    do discurso como a mais adequada para expressar a verdade.

    Enquanto a dialtica busca definir as regras do discurso verdadeiro, que favorecem

    as aquisies da inteligncia, o corpo, sobretudo noFdon, apontado como obstculo

    neste caminho: buscando a satisfao, ainda quando no coincide com o bem, sucumbefacilmente ao engano. Formula-se ali pela primeira vez a distino entre duas classes de

    realidade _ uma visvel e outra invisvel _ da qual correlata a distino corpo e alma.

    Da primeira, fazem parte as ideias imateriais s quais temos acesso pela inteligncia,

    como aquelas da igualdade, da beleza, da bondade; da segunda, as coisas percebidas

    pelos sentidos, como homens, cavalos, roupas, etc, que se modificam incessantemente.

    A inteligibilidade, a simplicidade, a identidade consigo mesmo, so as caractersticas do

    mundo inteligvel. A imortalidade da alma, afirmada logo a seguir, relaciona-se

    estreitamente ao estabelecimento da distino entre as duas espcies de realidade

    (Fdon, 78-79).

    Uma caracterstica essencial do verdadeiro a sua imutabilidade, que impede o

    engano. As ideias no so simples pensamentos ou representaes, mas entidades ou

    substncias: representam o verdadeiro ser, a essncia e o modelo das coisas. Como

    existem em si e por si, o belo e o verdadeiro no o so apenas relativamente a um

    6

    A legalidade do universo, orientadora da conduta, que deve agora ser estabelecida atravs de umaracionalidade mais rigorosa, exige para tal, segundo Chatelt (1965), um discurso integralmente

    justificado.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    37/311

    37

    sujeito particular, mas para todos; tampouco so arrastadas pelo devir, que enfeia o

    belo, e sim imutveis7.

    A relao dessa diviso entre sensvel e o inteligvel relaciona-se no s com a

    possibilidade de conhecer uma ordem verdadeira do universo, da qual participa a alma

    imortal, mas tambm visa estabelecer sua relao com o bem. Ainda no Fdon, a

    contradio de Anaxgoras criticada: dizendo ser o esprito a causa de todos os seres,

    substitui todavia sua ao pelo ter, a gua, o ar, enfim por uma causalidade mecnica e

    material, no explicando, conforme esperara Scrates, a causa e a necessidade das

    coisas segundo o melhor, numa ordem estabelecida pela inteligncia (Fdon, 97).8A

    virtude, portanto, nessa perspectiva, significa no apenas a forma racional de conduta,

    mas um reconhecimento do significado final do universo.9

    Examinaremos a seguir, em A Repblica e no Grgias, a concepo de uma

    legalidade natural e de uma justia determinadas pelo bem como referncia para a ao

    humana, e a necessidade de estabelecer os critrios de um discurso verdadeiro para ter

    acesso a ela.

    1.2.1. Saber e justia emA Repblica

    EmA Repblica, segundo Trasmaco, a justia a convenincia dos mais fortes; a

    lei, longe de seguir um modelo natural, construda segundo os interesses de quem

    governa, possuindo, portanto, a fora de faz-la valer. Logo, o que o mais fraco receia

    no o mal que seria representado pela prtica da injustia, mas os riscos de sofrer os

    seus efeitos (R, 343). Mais adiante, Glauco e Adimanto dizem que os homens, ao

    consentir num acordo mtuo, constituindo as leis, fazem-no pelo temor de sofrer a

    injustia, e no pelo respeito prescrio de uma ordem natural que no a admitiria;

    segundo o exemplo do anel de Giges, a certeza da impunidade autoriza a ao injusta.

    (R, 359-360). A conduta determinada apenas por preocupaes e riscos relativos aos

    interesses humanos, no legitimados por nenhuma referncia a uma ordem superior que

    7Com a descoberta do supra-sensvel, diz Reale (1990), Plato busca a justificao ltima da tica num

    conhecimento do ser e do cosmos.8Nesta crtica ao mecanicismo da filosofia da natureza, incluindo Anaxgoras, que aparentemente teria

    rompido com ele, sem todavia escapar aos seus impasses, Scrates, segundo Reale, busca uma articulaoestrutural entre inteligncia e bem.9O problema do conhecimento, diz Cornford (1977), principalmente o problema de conhecer o que a

    virtude, de forma tal que o conhecimento soberano do bem e do mal deve ter por objeto critrios quesejam universal e absolutamente vlidos.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    38/311

    38

    os transcenda. Diferentemente, Scrates sustenta a ideia de uma legalidade natural que a

    cidade justa deve imitar e fazer valer.

    Tal ideia se manifesta muito especialmente na noo de funo. Um dos principais

    argumentos com os quais Scrates combate a concepo contingente da lei aquele

    segundo o qual cada coisa tem funo que lhe prpria, entendendo por tal aquilo que

    ela executa melhor do que qualquer outra, pela virtude que a caracteriza (R, 352-353). A

    ideia de que cada coisa tem uma funo que lhe prpria e para a qual foi feita, cuja

    realizao representa a sua virtude, ser estruturante da definio socrtica da justia.

    Na associao entre os homens da qual nasce a cidade, cada um faz uma parte diferente

    conforme sua natureza. A afirmao de que o governo a funo prpria da alma (R,

    353) j antecipa o paralelo entre governo da alma e governo da cidade, em torno do qual

    se desenvolve o livro. Assim como cada coisa tem uma funo, cada cidado tem seu

    ofcio, representando as trs classes que compem a cidade: os governantes, os

    guardies e os artfices. A essas trs classes, correspondem as trs partes da alma _ a

    racional, a irascvel e a concupiscente; segundo estas, ordenam-se as diferentes

    constituies. A simetria da construo deA Repblica, em que as categorias sociais da

    cidade, as partes da alma e as constituies encontram-se em analogia umas com as

    outras, traduz a ideia de um cosmos tambm pautado pela harmonia e pela ordem, que a

    vida individual e social do homem deve imitar.

    Admite-se a concepo de uma alma dividida e contraditria consigo mesma,

    portanto palco de conflitos; contudo, deve-se buscar manter a alma, assim como a

    cidade, segundo a ordem que lhe naturalmente prpria. Enquanto a sabedoria a

    virtude do governante, a coragem a do guardio, e a temperana o acordo quanto ao

    governo do melhor sobre o pior, o homem justo aquele que rene harmoniosamente os

    trs elementos em si mesmo, assim como os termos baixo, alto e intermdio numa

    proporo musical (R, 443). Ao estabelecer que cada um deve ocupar uma nica funo,enquanto a mais adequada sua natureza, sem cuidar das funes dos demais, j se

    havia estabelecido o que a justia: a posse do que pertence a cada um, e a execuo

    do que lhe compete (R, 433 ) _ acarretando, portanto, uma responsabilidade e um dever.

    Quando, ao longo do dilogo, Scrates aponta a necessidade de que os reis sejam

    filsofos, surge a questo de verificar quais so os verdadeiros filsofos, distinguindo-

    os dos falsos. Aos primeiros destina-se a cincia, que tem o ser como objeto; os

    segundos so amigos da opinio, cujo objeto participa do ser e do no ser (R, 480). Da,a longa e difcil educao que se exige para o rei-filsofo. A msica e a ginstica,

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    39/311

    39

    suficientes para os guerreiros, no lhes bastam; tais atividades no so como a cincia,

    que leva a alma do mutvel ao imutvel. Ressurge aqui a diviso entre o mundo visvel

    e inteligvel, agora comportando subdivises. O mundo visvel inclui os seres vivos,

    plantas e artefatos, objetos da f; e tambm sombras, reflexos, imagens, objetos da

    suposio. No mundo inteligvel, o raciocnio que vai das hipteses concluso, usando

    os objetos como imagens, como o caso da geometria, concerne ao entendimento;

    aquele que vai das hipteses ao princpio, sem servir-se de dados sensveis, diz respeito

    inteligncia, constituindo a dialtica, a mais alta operao do pensamento (R, 509-

    511). Assim, a realidade mesma do objeto que se estuda torna-se tanto maior quanto

    mais se avana nessa gradao; ao mesmo tempo, quanto mais real o objeto em si

    mesmo, mais se torna passvel de ser conhecido, e maior a racionalidade do

    conhecimento exigido. No cume, encontra-se a suprema ideia do bem, que est acima e

    alm da essncia: no s confere valor s virtudes e existncia aos objetos, como

    tambm ao intelecto a possibilidade de conhec-los (R, 509).

    A prolongada educao dos filsofos-governantes comea por conhecimentos

    tcnicos, ou cientficos, na acepo moderna da palavra. Estes no devem, porm, ser

    buscados por suas aplicaes prticas, e sim pelas interrogaes tericas que propiciam.

    O exame dos nmeros, mostrando a mesma coisa ao mesmo tempo como unidade ecomo ilimitada em sua multiplicidade, apresenta uma contradio que leva a alma a

    indagar-se quanto unidade em si; o estudo da geometria necessrio por tratar daquilo

    que existe sempre; o da astronomia, porque os astros servem de exemplo para o estudo

    do invisvel, e assim por diante. Esse trabalho ingente constitui apenas, porm, o

    preldio da ria; esta a dialtica, definida como a apreenso da essncia de cada coisa

    apenas pela razo, at chegar ideia do bem, chegando assim ao limite do inteligvel (R,

    525-532). A concepo do filsofo-legislador fundamenta-se, portanto, em sua

    capacidade de olhar para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de

    referncia, e contemplando-a com o maior rigor possvel, para s ento promulgar leis

    aqui na terra sobre o belo, o justo, o bom. Assim, aprimora-se a concepo

    intelectualista da virtude, que faz da inteligncia a condio ltima da moralidade,

    atravs da qual se realiza o mais alto grau de inteligibilidade que comporta a nossa

    natureza.10

    1.2.2 Ordem das coisas e ordem do discurso no Grgias

    10Trata-se, segundo Robin (1947), de saber ou ignorar a relao que liga sua atividade a um ideal

    transcendente de perfeio.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    40/311

    40

    A distino do discurso falso e do discurso enganador um tema especialmente

    presente na discusso sobre a justia ao longo do Grgias, onde a noo de uma ordem

    natural que regula a justa conduta encontra, igualmente, importante lugar.

    A retrica, admite quase ingenuamente Grgias no incio do dilogo, a mais beladas artes, porque ensina a produzir a persuaso nas almas, tornando os homens capazes

    de dominar os outros (G, 453). Scrates, entretanto, distingue dois tipos de persuaso:

    aquela que produz crenas, verdadeiras ou no, e aquela que produz conhecimentos,

    necessariamente verdadeiros. O retrico produz apenas crenas: quando persuade o

    tribunal e a assembleia, a multido enfim, quanto ao justo e o injusto, ele no sabe, e na

    verdade no quer nem precisa saber nada sobre o que diz, encontrando-se a esse respeito

    na mesma situao de seus ouvintes (G, 454-457).

    A retrica, portanto, no Grgias, no considerada por Scrates uma arte, mas

    apenas um savoir-faire, para produzir prazer e satisfao. As artes produzem um bem

    estar verdadeiro, relacionado ao que bom, diferindo das prticas de lisonja e adulao,

    que produzem um bem estar aparente, ligado ao que apenas agradvel. As primeiras

    esto relacionadas a um conhecimento verdadeiro; as segundas dependem da simples

    conjetura, carecendo de razo e no tendo noo dos seus meios e causas. Enquanto o

    julgamento do corpo no permite distingui-las, assemelhando-se criana que prefere

    um cozinheiro a um mdico, a alma pode faz-lo, encontrando na razo das coisas a sua

    prpria razo (G, 463-465).

    Clicles prope distinguir entre o que belo por natureza e o que belo segundo a

    lei, afirmando que natureza e lei muitas vezes se opem. Apenas segundo a lei, feita

    pelos fracos e numerosos em defesa dos seus interesses, feio cometer injustia; para a

    natureza, o feio consiste em sofr-la, pela incapacidade de defender-se a si mesmo e a

    seus amigos. Enquanto os fracos contentam-se em ter tanto quanto os outros, e portanto

    consideram injusto que alguns tenham mais, os fortes seguem a justia da natureza, que

    lhes ordena o domnio sobre os fracos; convm-lhes a felicidade, que consiste no gozo

    de todos os bens e a satisfao de todos os apetites (G, 483-484).

    Nos diversos argumentos que Scrates contrape aos de Clicles, destacaremos

    aquele que situa a ordem como referncia para a justia, ou seja, como forma de tornar

    melhor a obra que se faz. Tal referncia j atua no prprio discurso: quando o homem

    visa o bem naquilo que diz, no fala ao acaso, mas sim fixando seus olhos sobre um

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    41/311

    41

    objetivo preciso. Tambm o pintor e o arquiteto, em suas obras, propem-se a uma

    ordem ao colocar cada coisa em seu lugar, ajustando-as entre si para obter um certo

    arranjo (G, 503-504). No caso do corpo, o estado que resulta desta ordem a boa sade.

    Quanto alma, as formas pela qual realiza a ordem que lhe prpria representam o que

    se chama de legtimo, ou de lei; dos homens que a respeitam, se diz que tm uma

    conduta ordenada, nisso consistindo a justia e a temperana (G, 504). Portanto,

    divergindo da posio de Clicles segundo a qual lei e natureza se opem, numa relao

    de poder em que ora vence a natureza, favorecendo os fortes, ora vence a lei como

    reao a ela, protegendo os fracos, a legalidade a que se refere Scrates diz respeito

    ordem intrnseca s coisas mesmas, ordem que se encontra tanto no bom discurso como

    na boa casa, no bom barco, na boa alma, representando a lei e justificando a obedincia

    que lhe devemos11.

    Ora, esta ideia de uma legalidade intrnseca ao cosmos, que pode assegurar-nos o

    acesso ao verdadeiro e sua identificao com o bem, necessita, para transmitir-se, de um

    discurso racional, diferente daquele que nos dita a simples opinio. A necessidade de

    constru-lo corresponde prpria ideia da ordem que ele deve refletir.

    Quanto forma de faz-lo, Scrates nos ensina: no os discursos longos e artificiais,

    que seduzem pelo efeito das belas frases, hipnotizando os ouvintes; e sim as perguntas erespostas empreendidas metodicamente, de tal forma que um dos interlocutores aceite

    como verdadeiro o que sustenta o outro se no se mostra capaz de estabelecer o

    contrrio. Contudo, observamos, ao longo da acirrada discusso do Grgias, apesar de

    todos os argumentos usados por Scrates, no parece ao leitor que seus oponentes saiam

    realmente convencidos. Segundo Polos, Grgias admitiu que o orador deve conhecer e

    ensinar o justo e o injusto apenas por acanhamento, no ousando confessar o contrrio

    (G, 461); para Clicles, Polos cometeu erro semelhante ao admitir que a injustia feia,

    cedendo assim ao temor de perder a considerao dos homens (G, 482). Polos e

    sobretudo Clicles algumas vezes se recusam a continuar, s o fazendo s instncias dos

    demais, e de forma propositalmente zombeteira. Parece-lhes inconcebvel o que diz

    Scrates, por irrefutveis que sejam seus argumentos: embora no convenha a Clicles

    11Assim, a ordem que d seu nome ao cosmos do mesmo tipo daquela que d sua estrutura ao trabalhodo arteso e do artista; no se trata de uma realidade que duplica outra, e sim que sua fonte, observaSchuhl (1954). No Timeu, segundo o mesmo autor, a defesa de uma idia cara aospitagricos, qual seja, a

    de que a natureza construda sobre uma armadura matemtica que compete ao sbio reencontrar, veioinspirar os mestres clssicos da cincia moderna, sobre os quais exerceu grande influncia, como o casode Galileu.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    42/311

    42

    sustentar o cinismo de suas opinies, isto no o impede de mant-las. Ou seja,

    observamos, nem sempre o discurso capaz de transmitir de forma convincente para

    todos a ordem que deveria refletir.12

    Por outro lado, se o discurso mais rigoroso no convence necessariamente quanto verdade do ser que deve transmitir, ele pode talvez cri-la, fazendo-a valer como tal. A

    cidade descrita naRepblica no se encontra em parte alguma da terra; embora possa ter

    no cu o seu modelo para que a imitemos, por hora, admite Scrates, est fundada

    unicamente em palavras. De qualquer forma, nada importa que a cidade exista em

    algum lugar, ou venha a existir, porquanto por suas normas e pelas de mais nenhuma

    outra, que ele [o homem de entendimento] pautar a sua conduta (R, 592). A fundao

    em palavras, destarte, parece um alicerce suficientemente forte para fazer existir algo deessencial: a oferta de normas imutveis que devem pautam o comportamento humano.

    1.2.3 Castigo e recompensa

    Cabe destacar, a propsito da concepo platnica de justia, o lugar conferido ao

    castigo. Considerado benfico ou teraputico para aquele que o sofre justamente, ele se

    justifica no apenas nessa vida, mas tambm naquela que aguarda a alma aps a mortedo corpo.

    Enquanto o mito do anel de Giges, naRepblica, quer mostrar que o homem injusto

    mais feliz, desde que permanea impune, e Polos, no Grgias, afirma que ele s ser

    infeliz se for castigado, Scrates sustenta, pelo contrrio, que ser menos infeliz se o for

    (G, 472-4). Sendo justo sofrer pena em virtude de uma falta, age justamente aquele que

    pune, e sofre tambm justamente quem a recebe. O homem punido com razo da aufere

    vantagem, pois sua alma liberta-se da injustia. Assim como a medicina livra o corpo dadoena, embora de maneira dolorosa, tambm o castigo livra a alma atravs da dor. No

    h infelicidade maior do que aquela trazida pela injustia para a alma daquele que a

    comete: eis por qu o tirano Arquilau, longe de ser o mais feliz dos homens por sua

    impunidade aps os crimes cometidos, como pretendem os interlocutores de Scrates,

    seria antes o mais infeliz deles (G, 476-79).

    12

    Como assinala Chatlet (1974), o discurso integralmente justificado deve corresponder a umaorganizao das essncias, de tal forma que no seja apenas uma ordem de razes, mas tambm umaordem do ser.

  • 7/29/2019 A Vontade Livre Em Nietzsche

    43/311

    43

    Deve-se sublinhar ainda o lugar ocupado pela imortalidade da alma e as punies e

    recompensas recebidas na vida aps a morte na fundamentao da exigncia de uma

    vida virtuosa. Esse lugar varia em diferentes dilogos, adquirindo importncia

    crescente. Podemos v-lo claramente na trilogia relativa condenao de Scrates, na

    Apologia; sua aceitao da sentena, no Crton; e sua morte, no Fdon. AApologia

    mostra-nos Scrates diante do tribunal, apresentando como pauta de sua conduta o

    seguimento das ordens divinas. No Crton, justifica sua aceitao da sentena pela

    obedincia s leis da cidade. Apenas no Fdon, porm que se encerra com o

    cumprimento da pena de morte, apresenta-se um Scrates cujo destemor diante da morte

    explica-se por sua convico quanto imortalidade da alma.

    Scrates afirma sua crena numa vida depois da morte, conforme reza a tradio.Contudo, a essa crena, busca somar uma demonstrao racional, atravs das provas da

    imortalidade da alma. No se pretende recapitul-las aqui. Basta lembrar que tal

    imortalidade afirmada, no Fdon, aps o estabelecimento da distino entre as duas

    classes de realidade, a invisvel e a invisvel. A importncia do cuidado da alma

    encontra aqui justificao por sua pertinncia realidade imutvel, qual se relaciona

    sua essncia imortal. EmA Repblica, a imortalidade da alma reafirmada, e mais uma

    vez empreendida a sua demonstrao. Ao faz-lo, Scrates considera j estabelecidoque a justia em si mesma a coisa melhor para a alma,