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Revemat: R. Eletr. de Edu. Matem. eISSN 1981-1322. Florianópolis, v. 07, n. 1, p.118-138, 2012. 118 http://dx.doi.org/10.5007/1981-1322.2012v7n1p118 Abordagem cognitiva de problemas de geometria em termos de congruência 1 Raymond Duval Professor Emérito da Université du Littoral Côte d’Opale/França Tradução: Méricles Thadeu Moretti PPGECT/MTM/UFSC [email protected] Resumo As atividades de construção de figura foram desenvolvidas com base em um duplo objetivo: reintroduzir as figuras após a reforma iconoclástica das matemáticas modernas, que havia proibido de ver para compreender, e justificar didaticamente a necessidade de um vocabulário preciso para descrever, raciocinar e demonstrar. Mas, ver uma figura em geometria é uma atividade cognitiva mais complexa do que o simples reconhecimento daquilo que uma imagem mostra. Isto depende do papel que a figura tem na atividade matemática. Neste artigo, serão evidenciadas três maneiras diferentes de ver as figuras segundo o seu papel: a apreensão perceptiva, a apreensão operatória e a apreensão discursiva. Elas são totalmente independentes umas das outras. A apreensão perceptiva é o reconhecimento visual imediato da forma. Preconizar-se-á o motivo pelo qual este reconhecimento impõe a não modificação apenas para certas formas, ao contrário de uma dada figura onde é possível ocorrer alguma mudança. A utilização de figuras para encontrar a solução de um problema exige, ao contrário, que se possa transformar uma figura em outra. O presente trabalho mostra que diferentes tipos de operações visuais dão às figuras potencialidades heurísticas. A apreensão discursiva depende das hipóteses que a figura representa. Ela implica uma utilização de um vocabulário que é a condensação das definições. A separação destas três apreensões é fundamental para analisar a atividade geométrica e as dificuldades dos alunos. Por um lado, a resolução de problemas exige que os alunos possam passar de um tipo a outro de apreensão. Por outro lado, a dificuldade dos problemas propostos depende dos fenômenos de congruência entre os enunciados e a apreensão operatória, assim como entre os enunciados e a apreensão discursiva. Résumé Les tâches de construction de figure ont été développées dans un double objectif. Réintroduire les figures après la réforme iconoclaste des mathématiques modernes qui avait interdit de voir pour comprendre, et justifier didactiquement la nécessité d’un vocabulaire mathématique précis pour décrire, raisonner et prouver. Mais voir une figure en géométrie est une activité cognitive plus complexe que la simple reconnaissance de ce que montre une image. Cela dépend du rôle qu’elle doit joue dans l’activité géométrique. Dans cet article nous mettrons en évidence trois manières différentes de voir les figures selon le rôle de la figure: l’appréhension perceptive, 1 Este texto é uma tradução do artigo: DUVAL, R. Approche cognitive des problèmes de geométrie en termes de congruence. Annales de Didactique et de Sciences Cognitives, v.1, p. 57-74, IREM de Strasbourg, 1988. Algumas adaptações de forma no texto original foram produzidas para adequar as normas da ABNT além do resumo reformulado e algumas precisões acrescentadas pelo autor.

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    http://dx.doi.org/10.5007/1981-1322.2012v7n1p118

    Abordagem cognitiva de problemas de geometria

    em termos de congruncia1

    Raymond Duval

    Professor Emrito da Universit du Littoral Cte dOpale/Frana

    Traduo: Mricles Thadeu Moretti

    PPGECT/MTM/UFSC

    [email protected]

    Resumo

    As atividades de construo de figura foram desenvolvidas com base em um duplo objetivo: reintroduzir as figuras aps a reforma iconoclstica das matemticas modernas, que havia proibido de ver para compreender, e justificar didaticamente a necessidade de um vocabulrio preciso para descrever, raciocinar e demonstrar. Mas, ver uma figura em geometria uma atividade cognitiva mais complexa do que o simples reconhecimento daquilo que uma imagem mostra. Isto depende do papel que a figura tem na atividade matemtica. Neste artigo, sero evidenciadas trs maneiras diferentes de ver as figuras segundo o seu papel: a apreenso perceptiva, a apreenso operatria e a apreenso discursiva. Elas so totalmente independentes umas das outras. A apreenso perceptiva o reconhecimento visual imediato da forma. Preconizar-se- o motivo pelo qual este reconhecimento impe a no modificao apenas para certas formas, ao contrrio de uma dada figura onde possvel ocorrer alguma mudana. A utilizao de figuras para encontrar a soluo de um problema exige, ao contrrio, que se possa transformar uma figura em outra. O presente trabalho mostra que diferentes tipos de operaes visuais do s figuras potencialidades heursticas. A apreenso discursiva depende das hipteses que a figura representa. Ela implica uma utilizao de um vocabulrio que a condensao das definies. A separao destas trs apreenses fundamental para analisar a atividade geomtrica e as dificuldades dos alunos. Por um lado, a resoluo de problemas exige que os alunos possam passar de um tipo a outro de apreenso. Por outro lado, a dificuldade dos problemas propostos depende dos fenmenos de congruncia entre os enunciados e a apreenso operatria, assim como entre os enunciados e a apreenso discursiva.

    Rsum Les tches de construction de figure ont t dveloppes dans un double objectif. Rintroduire les figures aprs la rforme iconoclaste des mathmatiques modernes qui avait interdit de voir pour comprendre, et justifier didactiquement la ncessit dun vocabulaire mathmatique prcis pour dcrire, raisonner et prouver. Mais voir une figure en gomtrie est une activit cognitive plus complexe que la simple reconnaissance de ce que montre une image. Cela dpend du rle quelle doit joue dans lactivit gomtrique. Dans cet article nous mettrons en vidence trois manires diffrentes de voir les figures selon le rle de la figure: lapprhension perceptive,

    1 Este texto uma traduo do artigo: DUVAL, R. Approche cognitive des problmes de geomtrie en termes de

    congruence. Annales de Didactique et de Sciences Cognitives, v.1, p. 57-74, IREM de Strasbourg, 1988. Algumas adaptaes de forma no texto original foram produzidas para adequar as normas da ABNT alm do resumo reformulado e algumas precises acrescentadas pelo autor.

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    lapprhension opratoire et lapprhension discursive. Elles sont totalement indpendantes lune de lautre. Lapprhension perceptive est la reconnaissance visuelle immdiate de formes. Nous indiquerons pourquoi cette reconnaissance impose seulement certaines formes qui ne peuvent tre changes en dautres cependant possibles dans une figure donne. Lutilisation de figures pour trouver la solution dun problme exige au contraire que lon puisse transformer une figure donne en une autre. Nous montrerons les diffrents types doprations purement visuelles qui donnent aux figures leur potentialit heuristique. Lapprhension discursive dpend dhypothses qui dterminent ce que la figure reprsente. Elle implique lutilisation dun vocabulaire qui est la condensation de dfinitions. La sparation de ces trois types dapprhension est fondamentale pour analyser lactivit gomtrique et les difficults des lves. Dune part la rsolution de problmes exige que les lves puissent sauter dun type dapprhension lautre. Dautre part la difficult des problmes donns dpend des phnomnes de congruence et de non congruence entre les noncs et lapprhension opratoire comme entre les noncs et lapprhension discursive.

    Abstract

    Tasks of figure construction were developed for two purposes. Reintroduce the figures after the iconoclastic reform of modern mathematics, which had forbidden from seeing figures for understanding, and didactically justify the need for an accurate mathematical vocabulary to describe, to deduce and to prove. But seeing a figure in geometry is a cognitive activity more complex than recognizing what an image shows. It depends on the role it should play in the geometric activity. In this paper we highlight three different ways to see figures according to the role of the figure: perceptual apprehension, operative apprehension and discursive apprehension. They are completely independent from each other. Perceptual apprehension is the instantaneous visual recognition of shapes. We indicate why this recognition emphasizes only some shapes, which cannot be switched to others however possible in a given figure. Using figures to find out how to solve a problem requires on the contrary that we can transform any given figure into another. We show that different kinds of operations purely visual give heuristic potentialities to figures. Discursive apprehension depends on hypotheses that set what the given figure represents. It involves using a vocabulary, which is the condensation of definitions. The separation of these three kinds of apprehension is crucial for analyzing any geometric activity and difficulties in geometry learning. On the one hand problem solving requires students to be able to jump from one kind of apprehension to another. On the other hand, the difficulty of problems given to students depends on phenomena of congruence and non-congruence the perceptive apprehension, the operative apprehension and the discursive apprehension of figures.

    1. Introduo

    Os problemas em geometria apresentam grande originalidade em relao a muitos outros problemas em matemtica que podem ser propostos aos alunos:

    - por um lado, a sua resoluo exige uma forma de raciocnio que implica referncia a uma axiomtica local, mas que se desenvolve no registro da lngua natural. Esta forma de raciocnio conduz o desenvolvimento de um tipo de discurso que funciona por substituio, como se tratasse de uma lngua formalizada, ainda que situado em um registro em que o discurso construdo de modo natural por associao e por acumulao. Ora, nestes dois modos de funcionamento, a coerncia no repousa sobre as mesmas regras de organizao do discurso. Os problemas de geometria exigem, deste modo, uma forma de expresso que no repousa na oposio geralmente feita entre a lngua natural e as lnguas formalizadas. R. Thom j havia chamado a ateno para esta caracterstica da geometria: ela um intermedirio natural e talvez insubstituvel entre a lngua usual e a lngua formalizada. (THOM, 1972, p. 232).

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    - por outro lado, a heurstica de problemas de geometria refere-se a um registro de representaes espaciais que originam formas de interpretaes autnomas. Entre estas interpretaes distinguiremos: as apreenses perceptiva, operatria, discursiva e sequencial das figuras. A apreenso sequencial explicitamente solicitada em atividades de construo ou em atividades de descrio, tendo por objetivo a reproduo de uma dada figura.

    As orientaes didticas destes ltimos anos concederam certa importncia a estas atividades, na esperana de melhor preparar os alunos para a forma de desenvolvimento do raciocnio que os problemas em geometria exigem. Em compensao, as trs primeiras formas de apreenso nem sempre so claramente distinguidas. Elas mesmas so confundidas quando se afirma que as figuras constituem um dado subjacente intuitivo ou um suporte intuio no percurso da pesquisa. (THOM, p. 228) e (BESSOT, p. 35).

    Portanto, a resoluo de problemas em geometria e a entrada nesta forma de desenvolvimento do raciocnio que esta resoluo exige, depende da conscientizao da distino, quer dizer,

    da conscientizao da oposio entre as trs primeiras formas de apreenso das figuras. No entanto, isto constitui no mais do que um aspecto do modo de raciocinar geomtrico. Existe outro aspecto que diz respeito ao estatuto de intermedirio natural do modo de raciocinar em geometria: raciocnio que no funciona como a argumentao do pensamento natural, se bem que utiliza os recursos da linguagem natural. Ento, uma anlise das funes cognitivas subjacentes s atividades de demonstrao em geometria aparece realmente necessria para orientar o ensino. Nas pginas que seguem, ser

    apresentada no mais do que uma primeira abordagem.

    2. Apreenso perceptiva de formas e interpretao figural de uma situao geomtrica

    No importa qual figura desenhada no contexto de uma atividade matemtica, ela objeto de duas atitudes geralmente contrrias: uma imediata e automtica, a apreenso perceptiva de formas; e outra controlada, que torna possvel a aprendizagem, a interpretao discursiva dos elementos figurais. Estas duas atitudes encontram-se, geralmente, em conflito, porque a

    figura mostra objetos que se destacam independentemente do enunciado, assim como os objetos nomeados no enunciado das hipteses no so necessariamente aqueles que aparecem espontaneamente. O problema das figuras geomtricas est inteiramente ligado

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    diferena entre a apreenso perceptiva e uma interpretao necessariamente comandada pelas hipteses.

    2.1. Uma lei de tratamento que rege a organizao perceptiva das figuras

    Uma figura uma organizao de elementos de um campo perceptivo, no homogneo, que constitui um objeto que se destaca deste campo. Segundo a sua dimenso, estes elementos podem ser pontos, traos ou zonas. Os pontos e os traos caracterizam-se, respectivamente, pelo aspecto discreto e contnuo. As zonas caracterizam-se pela sua forma, quer dizer, pelo seu contorno: um trao fechado ou uma sequncia de pontos suficientes para destacar uma zona de um campo homogneo. Restringindo ao caso em que os elementos figurais so traos, a organizao perceptiva de uma figura segue a lei do fechamento e da continuidade: quando diferentes traos formam um contorno simples e fechado, eles se destacam como uma figura sobre um fundo:

    Figura 1 exemplos de diferentes organizaes perceptivas de figuras

    As trs figuras (Figura 1a, 1b e 1c) acima aparecem prioritariamente como:

    - em (1a), a superposio de duas formas, um quadrado e um retngulo;

    - em (1b), uma montagem de duas formas idnticas em que lados de cada uma se tocam;

    - em (1c), a repartio de uma forma, um retngulo, em duas partes.

    Esta lei de fechamento ou de continuidade tem uma grande importncia em figuras habitualmente usadas pelos alunos. Por um lado, ela provoca certa resistncia ao esquecimento, devido a forma em que aparece, em proveito dos traos organizados em uma

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    forma percebida (ou somente de certos traos). Por outro lado, ela exclui organizaes mais simples e impede, desta maneira, de ver outras formas. A diferena entre a interpretao discursiva de uma figura exigida por uma situao geomtrica e a apreenso perceptiva, encontra sua origem, em grande parte, nas leis de organizao perceptiva.

    2.2. Dois exemplos de primazia exclusiva da apreenso discursiva

    2.2.1. Considerando as trs figuras seguintes:

    A Figura 2a aparece como um simples tringulo inscrito em outro tringulo, ou como um

    pequeno tringulo colocado sobre um tringulo maior. A Figura 2b lembra dois paralelogramos que se dobram (sob certas condies que sero descritas mais adiante), ou um livro aberto visto de soslaio. A Figura 2c aparece como uma superposio de bandas ou como um feixe de retas paralelas.

    Consideremos os enunciados seguintes:

    Enunciado 1

    A'C' e AC so paralelas; A'B' e AB so paralelas; BC e BC so paralelas; Provar que A meio geomtrico de C'B'.

    Enunciado 2

    ACBC e ABCB so paralelogramos. Provar que A meio geomtrico de CB.

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    Pode-se elaborar problemas diferentes que combinem os enunciados com essas trs figuras. Para as figuras, possvel ainda introduzir uma outra variao visual e matematicamente no significativa, variao na orientao vertical em relao ao suporte material da folha de papel. Nas figuras acima, o vrtice de A das configuraes parece estar acima e a base abaixo. Assim, possvel vir-los de modo que elas paream estar colocadas sobre o vrtice. A mesma mudana pode ser feita tambm com o paralelogramo com o lado BC como a base da figura.

    Algumas combinaes entre figura e enunciados foram propostas a trs grupos de alunos do troisime2 (14 ou 15 anos de idade) com a inteno de permitir um tratamento estatstico pela anlise fatorial de correspondncia. A Figura 2a foi proposta a dois desses grupos de alunos em um problema com o Enunciado 1. Anteriormente a esta questo, o mesmo havia sido colocado com a Figura 2b e o Enunciado 2: neste caso, a apreenso perceptiva da figura mostrava os objetos que esto designados no enunciado, quer dizer, os paralelogramos. Mas, para um desses grupos de alunos, a Figura 2a no possua a mesma orientao dada no problema precedente. Isto acrescentava, portanto, uma ligeira no congruncia visual a no congruncia semntica.

    Para o Enunciado 1, a Figura 2c a figura semanticamente mais congruente, pois menciona retas paralelas e a figura tambm mostra retas paralelas.

    A passagem da apresentao semanticamente congruente do problema (Figura 2b e Enunciado 2), para a apresentao no semanticamente congruente (Figura 2a e Enunciado 1), provocou uma queda muita clara na taxa de acertos (DUPUIS, DUVAL, PLUVINAGE, 1978, p. 75 - 78):

    - de 42% a 18%, quando a Figura 2b tinha a mesma orientao vertical que a Figura 2a;

    - de 34% a 11%, quando a Figura 2b no tinha a mesma orientao vertical que a Figura 2a.

    Em outras palavras, mais da metade do nmero de alunos da turma que acertaram o problema com a verso semanticamente congruente no reconheciam mais o problema apresentado em uma verso semanticamente no congruente.

    2 N. T. A srie troisime (9 ano) corresponde a ltima srie do ensino fundamental no Brasil.

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    2.2.2. O segundo exemplo, ao contrrio, um caso no qual h congruncia semntica entre a figura e o enunciado, mas esta congruncia que privilegia a apreenso discursiva, quase impe um tratamento matemtico do problema, em detrimento de outros tratamentos possveis. Balacheff (1982) props a seguinte questo:

    Quantos retngulos tm nesta figura?

    Na apresentao, ele observa que: a resoluo deste problema depende essencialmente das concepes que se tem dos objetos demonstrar e da anlise feita da figura (sublinhado pelo autor).

    Em relao a esta figura, os retngulos podem ser considerados como elementos de uma pavimentao, como interseo de duas bandas, como um conjunto de quatro pontos ou como um conjunto de segmentos. Balacheff constata:

    De fato, o primeiro tipo de soluo que domina as observaes clnicas que ns fizemos, tanto antes quanto durante a experincia. Provavelmente, porque esta soluo corresponde a uma abordagem perceptiva da figura... (BALACHEFF, 1982, p. 280, 281).

    A escolha deste tipo de soluo era de todo previsvel: a lei de fechamento e de continuidade impunha a apreenso perceptiva de um grande retngulo repartido em retngulos menores. Alm disso, a formulao da questo reforava esta apreenso perceptiva da figura.

    Esses dois exemplos mostram que uma figura guarda uma estrutura perceptiva autnoma: os objetos que aparecem podem, deste modo, ser diferentes dos tipos de objetos que a situao exige ver. Lembram, tambm, que os alunos se apegam, na grande maioria, apreenso perceptiva: estes no se do conta de que uma figura deve ser olhada no mais do que

    atravs ou em funo das propriedades, ou das condies formuladas como hipteses. Isto pode ser observado pelas suas atitudes diante de um problema: eles leem o enunciado, constroem a figura e, em seguida, concentram-se na figura sem retornar ao enunciado. Este esquecimento ou abandono do enunciado marca a ausncia da atitude que chamamos de interpretao discursiva da figura. por isso que os problemas que so acessveis a estes

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    alunos so aqueles cujos enunciados so semanticamente congruentes figura construda ou a construir. No entanto, isto no mais do que uma condio necessria. A congruncia semntica abre ou fecha a porta de entrada na resoluo de um problema; ela no suficiente para a sua busca. Para elucidar este aspecto mais essencial, preciso considerar no mais a apreenso perceptiva da figura, mas a sua apreenso operatria.

    3. Apreenso operatria das figuras e heurstica

    Toda figura pode ser modificada de muitas formas. Podemos dividi-la em partes que sejam como vrias subfiguras, inclu-la em outra figura de modo que ela se torne uma subfigura: esta modificao uma modificao mereolgica, ela se faz em funo da relao parte e todo. Pode-se tambm aument-la, diminu-la ou deform-la: esta modificao uma modificao tica, ela transforma uma figura em outra, chamada sua imagem. Esta transformao, que realizada atravs de um jogo de lentes e espelhos, pode conservar a forma inicial ou alter-la. Pode-se, enfim, desloc-la ou rotacion-la em relao s referncias do campo onde ela se destaca: esta modificao uma modificao posicional de orientao e do lugar da figura dentro do seu ambiente (em geral o plano fronto paralelo). Cada uma dessas modificaes realizvel graficamente ou mentalmente. Mas, diferentemente da construo geomtrica, o modo escolhido para a modificao da figura neutro: ele no muda a apreenso, nem mesmo a anlise que pode ser feita. Em compensao, dependendo do

    tipo de modificao escolhida, podem surgir possibilidades de tratamento sem relao uns com os outros. Repartir uma figura em subfiguras permite, por exemplo, evidenciar a igualdade de reas, ao passo que, o fato de considerar uma figura como o aumento de outra permite ver um centro de homotetia.

    A apreenso operatria de figuras uma apreenso centrada nas modificaes possveis de uma figura inicial e nas reorganizaes possveis destas modificaes. Para cada tipo de modificao, so diversas as operaes possveis (ver a Tabela 1 a seguir). A produtividade heurstica de uma figura, em um problema de geometria, est ligada a existncia da congruncia entre uma destas operaes e um dos tratamentos matemticos possveis para o problema proposto.

    Se for possvel sempre associar uma figura a uma situao geomtrica descrita, as figuras no tm necessariamente, em cada situao, uma produtividade heurstica. Isto se d por razes muito distintas:

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    - a primeira, sobre a qual no discutiremos aqui, a no-congruncia entre o tratamento matemtico e a apreenso operatria. Quase todos os problemas que usam propriedades de homotetia apresentam esta dificuldade. De fato, a apreenso operatria apropriada neste tipo de problema seria aquela ligada s modificaes ticas: duas figuras congruentes podem parecer uma menor do que a outra segundo o sistema de referncia escolhido e, inversamente, duas figuras de grandezas diferentes podem apresentar-se como duas figuras congruentes, quando colocadas a uma distncia diferente do centro de viso. (COREN, PORAC, WARD, p. 250, 254). Neste caso, a apreenso operatria se faz segundo a dimenso de profundidade, exatamente como quando olhamos uma fotografia. No entanto, as resolues matemticas de problemas de homotetia, exigem que nos limitemos s operaes no plano, como por exemplo as translaes, alm de que se faa abstrao da perspectiva segundo a dimenso de profundidade. Em compensao, na construo do centro de homotetia, a operao operatria permite antecipar e organizar, sem os percalos prprios de um tratamento matemtico. No de se espantar, ento, que a construo de um centro de homotetia por duas figuras seja uma atividade trivial, enquanto problemas que exigem mais do que um reconhecimento ou uma construo mostram-se difceis. Os obstculos encontrados por alunos na utilizao de transformaes em geometria plana so consequncias da no congruncia entre o tratamento matemtico do problema e a apreenso operatria da figura. (BURGAUD, p. 52, 53).

    - a segunda razo diz respeito aos casos em que h congruncia entre a apreenso operatria e um tratamento matemtico do problema. Diferentes fatores podem estar presentes para facilitar ou, o contrrio, para ocultar a apreenso operatria da figura que conduz soluo do problema colocado. Destes fatores depende o fato de que os alunos "veem" rapidamente ou no veem a operao figural que sugere um tratamento matemtico. Indica-se, mais adiante, no exemplo de operao de reconfigurao intermediria, alguns destes fatores. Naturalmente, quando o objetivo iniciar a grande maioria dos alunos em geometria, este tipo de problema e o jogo de fatores de visibilidade devem inteiramente tomar a nossa ateno.

    A tabela 1, seguinte, d uma ideia da riqueza e da complexidade da apreenso operatria das figuras:

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    Tabela 1 tipos de apreenso operatria de figuras.

    Tipo de modificao figural

    Operaes que constituem a produtividade heurstica

    Fatores que interferem na visibilidade

    Modificaes mereolgicas

    - Reconfigurao intermediria - Mergulhamento

    - Caracterstica convexa ou no convexa das partes elementares

    Modificaes ticas

    - Superposibilidade - Anamorfose

    - Recobrimento parcial - Orientao

    Modificaes posicionais - Rotao - Translao

    - Estabilidade das referncias do campo perceptivo para o suporte

    das figuras.

    No possvel analisar, no mbito deste artigo, todo o campo de apreenso operatria. Por isso, este trabalho limita-se ao estudo da operao de reconfigurao intermediria. Elas intervm nos problemas iniciais de geometria que podem ser propostos aos alunos, cujas resolues no requerem a utilizao de um corpus de definies e de teoremas.

    3.1. A operao de reconfigurao intermediria

    Uma modificao mereolgica uma modificao que faz surgir uma forma como um todo fracionado em partes homogneas ou em partes heterogneas. Em um fracionamento homogneo, as partes obtidas tm a mesma forma que o todo: o quadriculado constitui uma modificao mereolgica a mais familiar. Em um fracionamento heterogneo, as partes obtidas no tm a mesma forma do que o todo: por exemplo, repartir um quadriltero em dois, trs ou quatro tringulos. Estas modificaes se traduzem graficamente pela adjuno de um ou mais traos figura inicial. Elas podem ser realizadas por recortes ou dobramentos.

    Figura 3: quadrilteros fracionados de diferentes maneiras

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    O interesse do fracionamento de uma figura (ou de seu exame, a partir das partes elementares que surgem) que ela origina a operao de reconfigurao intermediria. De fato, as partes elementares obtidas por fracionamento, podem ser reagrupadas em vrias subfiguras, todas pertencentes figura inicial. Esta operao permite engajar, de imediato, tratamentos, tais como, a medida de rea atravs da soma das partes elementares ou do reconhecimento da equivalncia de dois reagrupamentos intermedirios.

    3.2. Trs exemplos de resoluo por reconfigurao intermediria

    Nas trs situaes seguintes, o recurso operao de reconfigurao intermediria constitui uma abordagem natural do problema proposto.

    Situao 1 Fazer a partio de um quadrado em trs partes iguais, a partir do ponto mdio do lado AB:

    Um aluno do cinquime3 efetuou a partio do quadrado em seis bandas iguais, conforme mostra a figura a seguir:

    3 N. T. A srie cinquime (7 ano), alunos com idade com 12 ou 13 anos, corresponde ao segundo ano

    das sries finais do ensino fundamental no Brasil.

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    Em seguida, ele explicou a igualdade das reconfiguraes intermedirias (AMEC, MFE, MBFD), indicando com o dedo as partes elementares iguais entre elas, conforme mostra a numerao nesta figura. Com os mesmos nmeros so indicadas as unidades figurais que este aluno havia apontado com o dedo sobre a figura. As dificuldades comearam a aparecer quando ele teve que apresentar por escrito a soluo explicada verbalmente. (DUVAL, 1983, p. 409).

    Situao 2 O problema de Euclides: mostrar a igualdade das partes 1 e 2, qualquer que seja a posio do segmento AB.

    Este problema pode ser resolvido por supresso nos tringulos DEH e EHF de duas configuraes intermedirias no convexas:

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    ou pela supresso sucessiva de duas partes elementares iguais:

    Estes dois mtodos foram observados em alunos do CM24 (10 ou 11 anos) e da cinquime5 (12 ou 13 anos). (MESQUITA, 1989).

    Situao 3 A primeira aproximao da rea, conhecida historicamente (perodo babilnico), repousa, tambm, sobre a operao de reconfigurao intermediria. (EDWARDS, 1979):

    Calcula-se a rea do reagrupamento das partes hachuradas

    ( 2)3d(7 ) e, em seguida, efetua-se a aproximao,

    conforme mostra a sequncia de clculo seguinte:

    2)3d(7 = 222 )d

    98(d

    8163

    99d

    97

    =

    Nestes problemas, a operao de reconfigurao intermediria constitui a produtividade heurstica da figura.

    possvel reagrupar todos os problemas nos quais esta operao congruente a um tratamento matemtico possvel em uma classe de problemas diretamente acessveis aos alunos, porque no requerem de maneira explcita o emprego de alguma definio ou teorema.

    A reconfigurao intermediria no a nica apreenso operatria ligada s modificaes mereolgicas. H tambm o mergulhamento. Esta operao apoia-se sobre uma modificao mereolgica, inversa daquela implicada a uma reconfigurao intermediria: um tringulo, por exemplo, torna-se um pedao de um paralelogramo. A figura , de certa maneira, mergulhada e dobrada no plano. Betenelli (1984) a descreve assim: "prolonga-se o

    4 N. T. A srie CM2 (5 ano) corresponde a ltima srie das sries iniciais do ensino fundamental no

    Brasil. 5 Ver nota de rodap 3.

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    que pode ser, quer dizer, os lados das peas desenhadas, e ele apresenta esta viso operatria como uma viso mais profunda do que a simples apreenso perceptiva.

    3.2.3. Fatores que dizem respeito visibilidade da operao

    Sobre uma figura dada, a operao de reconfigurao intermediria pode ser efetuada de vrias maneiras. Diferentes fatores influem sobre o discernimento da aplicao pertinente desta operao. So distinguidos quatro deles:

    Fator 1 - O fato de que o fracionamento da figura em partes elementares seja dado inicialmente ou que ele deva ser encontrado. Assim, no primeiro exemplo, o fracionamento do quadrado em bandas iguais poderia ser indicado: no haveria, deste modo, nenhuma pesquisa prvia a ser empregada, neste caso, de operao de reconfigurao intermediria.

    Fator 2 - O reagrupamento pertinente das partes intermedirias forma uma sub-figura que convexa ou no convexa. Uma subfigura no convexa mais difcil de destacar do que uma figura uma subfigura que convexa, uma vez que a lei perceptiva da unidade de contorno no mais respeitada. (MESQUITA, 1989).

    Fator 3 - O reagrupamento pode exigir que se substitua as partes elementares auxiliares por quelas as quais o enunciado do problema faz referncia. Para mostrar, por exemplo, que a

    soma dos ngulos de um tringulo 180o, reconfigura-se os ngulos do tringulo em um ngulo plano:

    Esta reconfigurao exige a substituio das partes elementares 1' e 2', respectivamente, por 1 e 2. Mas, para haver esta substituio, preciso construir a reta paralela a um dos lados. Como se pode chegar a esta transformao do tringulo inicial dado sem que isto seja dito? necessrio substituir a expresso ngulo reto e, em seguida, um dos semiplanos de maneira que corresponda aos trs ngulos do tringulo.

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    Fator 4 - O fato de que uma parte elementar deva entrar, simultaneamente, em dois reagrupamentos intermedirios a comparar, o que chamamos de obstculo da duplicidade de objetos. (DUVAL, 1983). Este fato no pode ser desprezado no problema seguinte:

    Nesta figura, IO e JO so, respectivamente, as bissetrizes dos ngulos AOB e BOC, qual a medida do ngulo IOJ? Porqu?

    As partes elementares 2 e 3 entram simultaneamente em dois dos reagrupamentos intermedirios: IOJ e AOB para a parte elementar 2; IOJ e BOC para a parte elementar 3. Com isso, foi possvel observar em alguns alunos, a constituio de um verdadeiro obstculo: eles no podiam ver e compreender que um mesmo objeto pudesse estar, ao mesmo tempo, em dois reagrupamentos colocados como distintos, uma vez que procurava compar-los.

    O carter no convexo de um reagrupamento intermedirio, a necessidade de recorrer s partes intermedirias auxiliares ou a duplicao de uma mesma parte, so alguns dos fatores que diminuem a visibilidade da operao de reconfigurao intermediria. A ocultao que resulta da presena destes fatores traduz-se pelo fato de que se vai permanecer mais ou menos tempo sem avanar na soluo do problema. Parece que, em problemas deste tipo (problemas nos quais a operao de reconfigurao intermediria congruente com o tratamento matemtico), a diferena entre os alunos acontece, inicialmente, na resistncia ocultao da apreenso operatria e no sobre a apreenso figural. Algumas observaes parecem mostrar que o aluno que procura muito tempo sem nada ver o que empregar, no instante em que ele v, utiliza os mesmos procedimentos daquele aluno que viu e encontrou de imediato, e isto tambm rapidamente. (MESQUITA, 1989).

    importante no confundir, na anlise cognitiva de um problema em geometria, a produtividade heurstica da figura e a visibilidade das operaes ligadas a esta produtividade. A produtividade heurstica depende da congruncia entre uma operao e um tratamento matemtico possvel. Em compensao, a visibilidade da figura intrnseca aos tratamentos matemticos: o fato de perceber ou no perceber, em uma figura, a

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    reconfigurao intermediria pertinente, no significa nada quanto possibilidade de aplicar esta reconfigurao quando ela percebida. No estgio atual das observaes, parece que o principal obstculo dos problemas de geometria que apresenta congruncia entre a apreenso operatria e o tratamento matemtico possvel, est ligado visibilidade aparente aleatria em cada indivduo. Isto nos remete a um fator de atitude espacial? Parece, por um instante, difcil de avanar mais: pois todos os testes que procuram a determinao de tal fator so, essencialmente, atividades do tipo puzzle ou de representao plana de um objeto tridimensional submetido rotaes. (PELEGRINO e KAIL, 1982, p. 314 317 e 348, 349). Mesmo quando implica translaes ou rotaes, a apreenso operatria das figuras de outra natureza, uma vez que ela no se limita a uma manipulao perceptiva das formas.

    4. Apreenso discursiva de uma figura e demonstrao

    Examinando, por um lado, o problema de congruncia entre figura e enunciado e, por outro lado, entre figura e tratamento matemtico, a questo do estatuto das figuras geomtricas que no se constituem como um registro de tratamento autnomo anlogo, por exemplo, como o das representaes grficas cartesianas no foram abordadas. De fato, as propriedades pertinentes e as nicas aceitveis dependem cada vez do que dito no enunciado como hiptese. Isto implica subordinao da apreenso perceptiva apreenso discursiva e, como consequncia, uma restrio da apreenso perceptiva: uma figura geomtrica no mostra a primeira vista a partir de seu traado e de suas formas, mas a partir do que dito. Esta subordinao da apreenso perceptiva apreenso discursiva pode ser considerada como uma teorizao da representao figural: a figura geomtrica torna-se, de certa maneira, um fragmento do discurso terico. Os elementos e as propriedades que aparecem sobre a figura no tm mais do que o estatuto e a certeza das asseres correspondentes no discurso geomtrico, o qual comandado por definies, axiomas e teoremas j estabelecidos. A mesma figura, do ponto perceptivo, pode, deste modo, ser uma figura geomtrica diferente, se modificamos o enunciado das hipteses.

    A compreenso desta teorizao das figuras geomtricas, na qual sua apreenso perceptiva deve estar subordinada a sua apreenso discursiva, constitui um dos vieses de acesso demonstrao. bastante conhecido que os alunos consideram intil e, s vezes, absurdo demonstrar uma propriedade que se v sobre a figura. Da mesma maneira, muitos alunos tm dificuldade em no confundir as hipteses e o que para ser demonstrado. Menos do que um crculo vicioso, trata-se de uma instabilidade anloga quela de certas figuras que se v

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    alternativamente em cruz ou em alto relevo sem poder fixar uma interpretao. Pensa-se, geralmente, que para contornar esta resistncia ou esta instabilidade, seria necessrio propor problemas nos quais o resultado aparecesse incerto. Mas, procedendo desta forma, deixa-se subsistir o obstculo sem dar aos alunos a ocasio de tomar conscincia e de super-lo: aquele da teorizao a qual introduz, na evidncia e homogeneidade sinptica da apreenso perceptiva das figuras, uma diferenciao de natureza discursiva e axiomtica. O estatuto especfico de uma figura geomtrica permanece ainda inteiramente ignorado.

    esta apreenso discursiva das figuras que diferencia radicalmente as atividades de demonstrao das atividades de construo. E esta apreenso discursiva de outra natureza, diferente daquela que descreve o procedimento de construo que exigido dos alunos em atividades de jogo de mensagem. Em uma atividade de construo, a figura , de certa maneira, independente de todo enunciado. A apreenso perceptiva pode servir de registro de controle para julgar uma execuo aceitvel ou no da atividade. Seu estatuto no , portanto, o mesmo de uma atividade de demonstrao. certo que a execuo impe embaraos que no sempre possvel contornar por aproximaes sucessivas de um traado. Mas, estes embaraos no so nada comparveis s hipteses, porque eles so prprios a cada figura e mudam apenas em funo do registro de execuo: rgua e compasso por uma realizao sobre papel ou lista de instruo de base para realizao no computador. Por um registro de execuo dado, os embaraos prprios a uma figura no mudam: isto constitui a autonomia das figuras em relao ao discurso geomtrico. Em compensao, exatamente o contrrio que se passa com as hipteses. Uma mesma figura pode ilustrar situaes geomtricas diferentes, quer dizer, situaes nas quais as hipteses iniciais no so as mesmas.

    A formulao das instrues, que permite a um terceiro construir uma figura, ela mesma estranha a uma apreenso discursiva das figuras. Exige, sobretudo, trs coisas comuns a toda redao de um texto:

    - no dar, na medida do possvel, no mais do que uma instruo por frase;

    - evitar toda ambiguidade no enunciado de cada instruo;

    - definir um quadro de referncia autnoma, que permita uma descrio de tudo que, em uma interao, simplesmente mostrado.

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    Destas trs exigncias, a segunda naturalmente aquela que mais chama a ateno: Toda impreciso, toda anlise insuficiente das possibilidades de sentido da formulao dadas, so sancionadas ou so sancionveis para uma realizao diferente daquela esperada.

    Mas, na atividade de construo, o reconhecimento perceptivo da figura a ser reproduzida que serve de guia e de controle pela formulao das instrues, e no pelo que sucessivamente obtido como traado em funo dos instrumentos utilizados. Instrumentos, pelos quais faz-se a hiptese didtica de que eles transformam as propriedades matemticas em dificuldades fsicas e que os alunos vo reconhecer as propriedades matemticas nas dificuldades instrumentais prprios de cada instrumento.

    No plano do discurso, permanece-se no modo de descrio perceptiva simultnea da figura e das aes instrumentais. O vocabulrio matemtico no mais empregado ou, caso ele seja, feito de modo impreciso e errneo. A apreenso discursiva de uma figura, exigida em uma atividade de demonstrao, privilegia, ao contrrio, a articulao dos enunciados, seu estatuto e sua compatibilidade interna. De fato, a verdadeira representao correspondente a uma

    atividade de demonstrao em geometria, no ser uma figura, mas uma rede semntica de propriedades e objetos. relativamente representao de tal rede, que a distino do estatuto dos enunciados (hipteses, proposies a demonstrar, proposies utilizveis) e a importncia da ordem dos enunciados podem tomar todo o seu sentido para os alunos. Naturalmente, a elaborao de tais representaes complexa, e poucas tentativas foram feitas at o presente momento para desenvolver este tipo de representao. Mas, sem o recurso implcito ou explcito deste tipo de representao, no pode haver a apreenso discursiva das figuras. A apreenso discursiva de uma figura equivale a mergulhar,

    segundo as indicaes de um enunciado, uma figura geomtrica particular em uma rede semntica, que , ao mesmo tempo, mais complexa e mais estvel.

    V-se, portanto, aparecer, de um ponto de vista cognitivo, uma diferena importante entre a redao de uma lista de instrues para a construo de uma figura e a redao de uma demonstrao. Em um caso, a linearidade do discurso reflete simplesmente a sequncia dos passos sucessivos de execuo: a formulao pode ser inutilmente explcita, insuficientemente explcita ou no adaptada, ela no pode ser contraditria. Os enunciados so ordens e no so asseres. No outro caso, a linearidade do discurso no inicialmente dada, precisa ser organizada a partir de uma rede de relaes conceituais: a formulao pode, ento, no ser coerente ou explicitamente contraditria.

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    Concluses

    A existncia de uma trplice apreenso do que , do ponto de vista da representao, a mesma figura, mostra a complexidade dos problemas de geometria, aparentemente os mais simples.

    Seja ela ou no congruente ao enunciado do problema, a apreenso perceptiva das figuras podem ter um papel facilitador ou inibidor sobre a compreenso do problema colocado.

    Se ela congruente a um tratamento matemtico possvel do problema colocado, a apreenso operatria tem um papel heurstico importante na resoluo do problema.

    H, finalmente, uma apreenso discursiva das figuras: naquilo que especfico, ela provoca neutralizao da apreenso perceptiva. Quando existe congruncia entre a apreenso operatria e um tratamento matemtico possvel do problema, a apreenso discursiva pode ser negligenciada: a redao do problema toma a forma de uma demonstrao, mas do ponto de vista cognitivo, esta redao no difere de uma formulao de instrues exigidas em uma atividade do tipo de jogos de mensagens. Mas, quando no h mais congruncia semntica entre a apreenso operatria e um tratamento matemtico possvel, a apreenso discursiva torna-se necessria. Os alunos encontram-se, ento, confrontados com uma verdadeira atividade de demonstrao.

    V-se que existe, portanto, uma grande heterogeneidade cognitiva entre os problemas de geometria matematicamente muito prximos ou que solicitam os mesmos conhecimentos.

    Uma categorizao cognitiva dos problemas indispensvel no somente para poder interpretar as performances e as produes observadas sobre um problema, mas tambm para abordar aquilo que chamado uma aprendizagem da demonstrao. Parece necessrio distinguir trs nveis de problemas em geometria:

    Nvel 1: aqueles problemas para os quais h congruncia entre uma apreenso operatria da figura e um tratamento matemtico possvel. Neste nvel, uma apreenso discursiva explcita no necessria.

    Nvel 2: aqueles problemas para os quais a apreenso discursiva , ao contrrio, necessria ou porque no h congruncia ou porque ela explicitamente solicitada como justificao terica.

    Nvel 3: aqueles problemas que exigem mais do que uma apreenso discursiva, o recurso aos esquemas formais lgicos especficos tais como a demonstrao por absurdo, o dilema ou

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    raciocnio disjuntivo, a demonstrao por contraposio. (GLAESER, 1971, p. 103, 104). Naturalmente, para cada um destes nveis, outras distines devem ser levadas em conta. Mais isto diz respeito a uma classificao de problemas que ultrapassa o objetivo deste artigo. A aprendizagem da demonstrao foi projetada no ensino com problemas de Nvel 2. Sem retomar uma anlise desenvolvida por Mesquita e Rauscher (1988), este estudo contenta-se em mencionar vrias condies que aparecem para tornar os problemas de Nvel 2 mais acessveis para a maioria dos alunos:

    - uma prtica sistemtica de problemas de nvel 1;

    - tornar consciente a oposio existente entre a apreenso perceptiva e discursiva;

    - a constituio, em uma rede semntica, de todos os conhecimentos que podem estar solicitados em uma dada demonstrao. Deste ponto de vista, a representao de uma rede de propriedades constitui um registro talvez mais indispensvel que o traado ou que a construo de figura;

    - a conscientizao da diferena entre uma deduo e uma argumentao, desenvolvida no quadro da prtica natural do discurso. Porque os conectores argumentativos da lngua natural tm sentido e um emprego que no correspondem, em geral, articulao dedutiva de dois enunciados em um quadro dado de definies e axiomas.

    Tudo isto significa dizer que a atividade cognitiva de demonstrao menos simples e menos homognea do que o seu produto - a demonstrao pronta e lida por outro. Pode-se assimilar a atividade de demonstrao ao raciocnio, na medida em que para este termo designa-se a produo de argumentos, a inferncia constantemente solicitada na compreenso de qualquer que seja o discurso, ou ainda, a interpretao que permite encontrar uma mudana de registro. A atividade de demonstrao s pode surgir se for a partir de um ponto de convergncia de numerosas funes cognitivas. Favorecer o desenvolvimento de todas estas funes poder ser uma via mais rpida e mais frutuosa para o ensino, do que aquela que prope procedimentos de imitao para simular ou reproduzir uma demonstrao. Talvez no possa existir uma transio progressiva e graduada, no sentido da exigncia e da prtica da demonstrao, uma vez que sempre haver um passo a superar de uma descrio, de uma argumentao ou de uma construo para uma demonstrao. Mas, a compreenso do que uma demonstrao, est ligada conscientizao da diferena entre estas mltiplas atividades discursivas e representativas.

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