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AFF #1 Abstinência

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Patrick tem dificuldades para lidar com alguns fantasmas.

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A Fortaleza Frontal  

#1  

Abstinência

L. J. Trainor

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Entre na Fortaleza Frontal ✶  

As rodas de cada ano passam, mas nenhuma fica para trás. O

tempo pode ser tão fértil quanto cruel, transformando nossas

identidades e, com sorte, fazendo felizes os nossos passos por

esta Terra. Deixamos objetivos para trás, ou caminhos, ou até

pessoas, mas a parte mais dolorosa de se abdicar são nossos

sonhos.

Cada vez em que me dizem que tenho de levar uma rotina

“normal”, endireitar a vida e tirar a cabeça das nuvens, mais

sinto que é preciso me agarrar ao que me dá motivos para existir.

Escrever é esse suspiro de liberdade e... Humanidade.

Esse trabalho é uma tentativa, em nome de mim e das

pessoas que posso representar, de abrir espaço para a história

que quero que exista, tanto na literatura quanto nas mentes de

todo mundo que possa ser alcançado.

Entre de mãos abertas e queixo erguido.

E obrigada por ler e participar disto!

Sobre esta edição ▼  

Primeiro número do AFF sendo lançado dia 18 de dezembro

de 2015. Há exatos quatro anos eu saía do armário e minha vida

mudaria para sempre.

A Fortaleza Frontal é a primeira história que publico, e por

isto esse dia se torna ainda mais importante para mim.

Muito obrigado aos amigos e namorado que ajudaram

bastante, apoiando, lendo as edições iniciais e me aconselhando

em toda a organização. Vocês são incríveis!

L.

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Contato ✉  

A distribuição virtual desta edição é gratuita e todos os

direitos de autoria estão registrados e mantidos.

A reprodução de parte ou todo este conteúdo é condicionada à

permissão do autor.

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contribuições midiáticas ou financeiras podem ser enviadas

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suas magias e ajuda a Fortaleza a continuar de pé.

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AFF #1 Abstinência

São Paulo capital, janeiro de 2014.

Todo mundo tem uma luz em torno de si, por onde transborda o que existe

por dentro. Mas, naquele dia, eu queria não ser capaz de enxergar.

Ouvi o barulho de cortinas sendo abertas, com seus grampos de metal se

arrastando pelo teto, e logo uma claridade enorme encobriu meus olhos. Um vulto

veio em minha direção, embaçado contra a luz, logo contornando a cama e se

jogando atrás de mim, ao canto.

Meu primeiro reflexo ao acordar foi encobrir meu peito no edredom, depois

coçando os olhos e me virando na cama, olhando para ele, que mexia no celular.

Apesar da cara de preguiça, sorrir ao vê-lo foi algo automático.

Aquela foi, por acaso, nossa primeira noite juntos. E por acaso também foi

como ela aconteceu, depois de um jantar onde perdemos a hora, passamos do

horário de funcionamento do metrô e então ele me chamou para dormir em sua

casa, até então sem nenhuma outra intenção.

Eric era um garoto legal, e que havia me feito bem desde que nos

conhecemos havia alguns meses, mesmo ele sendo tão novo - e também meu

calouro na faculdade. Às vezes eu tinha de ir com calma. Mas aquela noite acabou

acontecendo e, por bem ou por mal, fui o primeiro cara com quem ele teve algo.

Eu provavelmente olhava para ele com alguma expressão boba, tentando

sutilmente não tornar aquela situação estranha. Só que ele, não tirando os olhos da

tela do celular, não ajudava muito.

- Hey. - Chamei.

De nada adiantou. Pensei tê-lo visto olhar de canto de olho bem

rapidamente, mas eu nunca teria certeza.

Forcei a vista, levando toda a concentração possível à aura dele, para que eu

pudesse ver com mais clareza. Vi todo aquele vermelho sobre ele, com algo

turbulento demais passando por sua mente.

- Eric... - Tentei de novo, estendendo a mão mais próxima até o braço dele, e

então ele recuou um pouco para o canto da cama, afastando-se de mim ainda

mais.

Seus dedos começaram a se forçar sobre a tela, e minha preocupação a tomar

uma proporção bem mais grave. Levei a mão mais distante sobre ele, de certo

modo tentando o abraçar, e ele reagiu, empurrando meu braço.

Acabei insistindo por reflexo e estresse, enquanto decidia questionar. - O que

há de errado, cara?

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Ainda assim, ele me afastou com o braço, empurrando-me para o lado com

apenas um grunhido de esforço. Então largou o celular sobre o colchão, usou uma

mão para me pressionar na cama e disparou a outra mão fechada contra mim.

O soco atingiu o travesseiro, passando de raspão pela minha orelha, com

força a ponto de o estrado da cama estalar e fazer um barulho bem alto. Eric parou

bem em cima de mim, com suas pernas prendendo as minhas, a mão do soco a

tremer e seus olhos carregados de uma raiva bem nítida. Sua aura se erguia em

vermelho acima dele, incendiando-o.

Sentindo sua mão bem ao meu lado enquanto minha orelha queimava pelo

golpe, eu estava muito assustado. Havia raiva em sua mente e olhar, e eu podia

prová-la por inteiro, com sua aura inflamada me sussurrando tudo o que ele

sentia... Confessando o quanto seria tudo mais fácil se eu não existisse.

- Eu não posso fazer isso... - Ele falou, com a voz engasgando.

- O quê, Eric? - Logo perguntei, sem entender nada daquela situação. - O que

aconteceu, afinal?

Seus dentes se apertavam e ele não tinha certeza se me olhava diretamente,

mas a raiva parecia o permitir fazer isto sem muito remorso.

- Você, cara... Você me forçou a ir longe demais.

Eu não podia acreditar no que estava acontecendo.

- Ahn!? - Foi a única reação que consegui ter.

E não pareceu melhorar nada. A expressão em seu rosto só se fechava mais,

e se fecharam também suas mãos, estremecidas, no lençol.

- Eu fui ingênuo demais, não é? - Continuou a falar. - Você se aproveitou

disso e me convenceu de que eu era gay usando essas suas bruxarias... Nada disso

deveria ter acontecido, cara.

Já quase gritava quando terminou. - Você se aproveitou de mim!

De repente algumas batidas surgiram na porta do quarto, com uma voz

feminina a chamar: - Eric... Está tudo bem aí, meu filho?

Entrei em choque ao ouvir tudo aquilo. Toda a nitidez da minha visão se

perdeu quando meus olhos se molharam, ainda que eu tentasse me segurar e

encontrar algum sentido naquela situação toda... Alguma coisa que resolvesse

aquilo tudo. Nunca havia usado magia para convencer ninguém a nada, de

maneira alguma. Eu era um mero entusiasta pagão, escondido nas sombras, com

medo de que o mundo soubesse que eu enxergava coisas.

Nunca o havia forçado a nada, sempre deixando que ele tomasse o primeiro

passo em tudo... Mesmo naquela noite, quem antes avançou o sinal foi ele. Não

fazia sentido que eu o houvesse forçado.

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Mas até onde eu tinha o direito de decidir se as emoções dele eram justas ou

não? Ele sentia raiva de mim... Uma raiva que chegava a parecer ódio e que,

através da sua aura, invadia-me por inteiro, queimava, e me fazia odiar a mim

mesmo.

Eu só... gostava dele. E se, mesmo sem perceber, por algum descuido

qualquer, meu desejo de ficar ao lado dele o houvesse obrigado a algo, então eu era

mesmo um monstro.

Encarando seu olhar tão nervoso em cima de mim, queria responder a ele e

me justificar, mas nada realmente parecia justo.

- Eu... - Tentei. - Desculpe-me...

- Vai embora, cara... - Eric disse, rangindo os dentes em raiva e desgosto, já

mal conseguindo olhar para mim. - Só vai embora.

Uma lágrima quente escorreu pelo meu rosto, e então tudo estava perdido.

Levantei, coloquei minha camiseta de volta e reabotoei a calça. Movia-me

depressa, tremendo demais, prestes a perder o controle. Parecia tentar fugir de

mim mesmo.

Eric se deitou de novo sobre a cama, escondendo a cabeça contra o

travesseiro. Sua mãe ainda chamava e batia à porta.

Joguei meu casaco sobre mim e saí do quarto o quanto antes. Passei pela mãe

dele, que perguntou sobre estarmos bem ou algo do tipo, sem que eu conseguisse

ouvir naquele momento. Pedi desculpas a ela, murmurando e não deixando de

andar. Ela não sabia de nada e eu não queria trazer mais caos à vida daquele garoto

do que já, aparentemente, havia trazido.

Chegando à porta da sala, não pensei duas vezes antes de mover uma mão em

direção à maçaneta e destravá-la por dentro com minha mente. Ele queria magia?

Então ele teria magia.

Daniel, meu irmão, esperava ao lado de fora, e veio até mim assim que saí do

apartamento, parecendo muito preocupado. - O que aconteceu? Senti você

chorando lá dentro, mas não consegui entrar.

Ele, além de ser meu irmão gêmeo, era um fantasma, conectado a mim a

todo momento. Por dentro, eu estava banhado em uma sensação de abandono,

frustração, raiva e desespero, e Daniel podia sentir isto tudo.

Tentei chamar o elevador, que estava muitos andares abaixo, então mudei de

ideia depressa e parti pelas escadas. Aceitava qualquer caminho que me tirasse

dali o mais rápido possível.

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Daniel me acompanhava, atravessando uma ou outra pessoa que passasse

por nós, sendo que só eu poderia enxergá-lo ali. Sua voz, além de preocupada, ia

ficando também irritada.

- Cara, fala comigo. O que foi que aquele infeliz fez com você?

Eu tentava conter toda a tempestade dentro de mim, para evitar que acabasse

desabando em frente a qualquer outra pessoa que pudesse me fazer mal. Fechei o

rosto numa expressão séria. Naquele estado era difícil confiar que qualquer um,

exceto meu irmão, não fosse apenas me deixar pior.

Ainda assim, as gotas da tormenta me vazavam pelos olhos,

silenciosamente. Afinal o rapaz de quem eu gostava havia acabado de esfregar a

verdade neles: eu era um monstro. Eu, minha natureza, minha mente, todas as

auras que eu via e qualquer outra bizarrice que partisse de mim... Nada de bom

viria de nós.

Pude responder a Daniel apenas com um olhar melancólico. Deixei que ele

visse o restante por si mesmo em minha mente. Abri meus pensamentos a ele e

deixei que concluísse sozinho.

Enquanto isso, eu caminhava o mais rápido que podia, deixando o prédio e

subindo a rua até o metrô. Não reparava em nada à minha volta, nem sentia

qualquer outra coisa além de tudo o que já havia para ser sentido na minha mente

naqueles momentos. Levaria muito tempo até digerir tudo aquilo.

Daniel se perdeu no mar de emoções que entreguei a ele, e não consegui

sentí-lo por perto enquanto isso, provavelmente por ele mergulhar na minha

mente em si. Entrei no metrô, esbarrei em algumas pessoas, e não tive qualquer

remorso nem dei atenção a elas. Ninguém mais parecia importar.

Lá dentro, andando pela plataforma e tentando me afastar de todos, eu quis

gritar, sem que isto fosse ajudar. Olhava para as cores em toda aquela gente e cada

uma delas parecia se tingir de cinza, encobrindo meus olhos, e então o próprio

mundo já era cinza e sem sentido também. Meu grito não valeria de nada ali.

Até que Daniel surgisse outra vez, vindo atrás de mim.

- Hey! - Ele chamou, falando bem alto. - Calma aí, cara! A sua frequência

está caindo muito rápido. É perigoso! É melhor ligar para o tio vir nos buscar!

Olhei em sua direção, vendo que ele parecia assustado com algo. Havia

também uma intensa ventania batendo contra seu corpo fantasmagórico. Mas

sustos ou medo não faziam sentido então para mim. Eu já não sentia nada.

Minha visão estava completamente acinzentada, e cada pequena luz naquele

mundo parecia forte demais. As emoções se ofuscaram diante daquilo. Poderia

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ser mais fácil eu somente fechar os olhos e me render à escuridão. Sim, poderia

ser.

Não consegui pensar sobre isto, atingido nas costas pelo vento frio, embora

coberto em meu moletom. Virei àquela direção e avistei uma mulher isolada, de

cabelos volumosos, coberta em um manto escuro, parada diante da borda da

plataforma. Dela, como um tornado, vinha todo aquele vento, com ela prestes a se

atirar nos trilhos.

Logo que a vi, caminhei em sua direção. Ninguém parecia notar sua presença

ou sentir a ventania exceto Daniel e eu. Todas as outras pessoas se tornaram

borrões irreconhecíveis, perdidos no cinza do mundo. Tudo o que eu podia sentir

vinha daquela mulher: uma série de emoções entristecidas atiradas ao vento.

Fui até ela, resistindo ao vento que tentava me fazer desistir e assim permitir

que ela desse fim ao seu sofrimento. Daniel, desesperado, tentou me seguir, mas o

vento parecia ainda mais forte para ele.

Consegui chegar perto o bastante para que ela notasse minha presença e

olhasse para mim com um profundo desolamento, em transe. Aquilo me fez

sentir minha própria dor outra vez. Só que não era disso que eu precisava.

Ergui uma mão para aquela mulher e toquei seu ombro. Era a sua dor que eu

queria naquele momento. Abri minha mente e coração. Deixei que suas emoções

me contassem tudo... Nós estávamos então na mesma frequência.

Assim eu pude ver tudo: ela e seu marido dormindo à noite, havia algum

tempo... Barulhos surgindo no andar de baixo... Vozes assustadas no escuro...

Uma sombra surgindo no quarto... Uma correria... Seu marido desaparecendo... E

desde então nenhum sinal dele.

Com minha mão em seu ombro, senti tudo em seu lugar, transferindo suas

emoções para mim até que elas se tornassem uma lágrima em mim mesmo. Toda

aquela dor, distinta da minha, fez com que eu esquecesse até minha existência por

alguns instantes, como se me dopasse.

E mentalmente, enquanto isto, eu dizia a ela: - Deixe o vento levar a dor

junto... Ao menos por hoje, não desista... Pinte, escreva, compre algumas flores.

Ao menos por hoje... Você é forte. Ele sabe disso... Você foi forte com ele, e foi

forte por todo esse tempo, até hoje... Ele vai precisar de você quando voltar.

Seu olhar cinza e vazio me encarava paralisado. Ela respirava fundo e

devagar, ouvindo aquilo tudo, permitindo que ao menos naquele momento a dor

fosse embora.

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E assim, sorrindo para ela enquanto as lágrimas secavam em minha mão e

rosto, encerrei: - Nós todos ficamos mais fortes por quem amamos... Vai ficar

tudo bem. Eu prometo.

A mulher fechou seus olhos e respirou fundo. A imagem se iluminou,

tornando o cinza em um branco que quase cegava, e por fim a ventania e o nosso

tremor pararam.

Olhando outra vez para mim, ela sorriu timidamente. Ambos sabíamos que a

dor voltaria de novo e de novo enquanto sua vida não se resolvesse. Mas, por pelo

menos mais um dia, ela continuaria sendo forte.

Recuei minha mão de volta, notando que minha visão ganhava cores outra

vez. Então a mulher me deu um curto abraço e partiu, andando devagar rumo à

saída da estação, passando ao lado de Daniel, que a observava com cuidado.

Alguns instantes depois ela já não se lembraria de que aquilo tudo aconteceu, mas

isto não era mesmo preciso. Ela continuar a resistir já me fazia sorrir, não

importando o quanto ainda, no fundo, doesse.

Notei de repente o barulho do metrô, que parou ao meu lado em seguida.

Embarquei sem pressa, havendo mais ninguém na porta junto de mim, e escondi

com o capuz as manchas de lágrimas no meu rosto.

Daniel então entrou correndo no vagão, atravessando-o até parar junto de

mim e me dar um abraço forte. Mentalmente, prometemos um ao outro que

ficaria tudo bem. E percebi em fim que as auras de todos já eram nítidas outra vez,

colorindo meu mundo.

Hoje, um ano depois.

Da janela do avião, os olhos de Lívia brilhavam em azul e cinza enquanto ela

notava que haviam chegado. Com o céu nublado de um dia de sereno, São Paulo

não poderia recebê-las de maneira mais honesta.

- Frio... Já quase me sinto em casa! - Ela disse, observando todo o aspecto

acinzentado da cidade.

- Pode reduzir o ar condicionado se quiser... - Luara, sentada na poltrona ao

lado com um livro em mãos, completou, sem reparar na janela.

- Nossa, nem preciso. - Lívia, virando-se para ela e apertando o olhar,

respondeu. - A frieza já estacionou por aqui...

Lívia estava então um pouco inclinada, torcendo também seus lábios em

desaforo, com um riso disfarçado por ali.

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A outra moça, libertando um sorriso, largou uma mão com o livro aberto

sobre seu colo. - Isso soa como uma oportunidade para alguém esquentar esse

coração gelado... - Disse ela, desencostando de sua poltrona, deixando suas costas

se esticarem e os cachos negros lhe caírem sobre os ombros.

Lívia não tentou reagir. Às vezes Luara fazia aquela voz de ressaca que era

difícil de resistir.

Beijou o nariz empinado de Lívia, e então sua boca.

Nenhuma frieza fazia sentido enquanto elas se derretiam por dentro.

- Ansiosa? - Luara então questionou, estendendo um braço sobre sua noiva,

abraçando-se as duas.

- Você está? - Perguntou Lívia, falando baixinho, encolhida junto dela.

- Um pouco.

- Eu também... - Lívia ergueu o rosto um pouco, procurando seu cheiro. -

Essa sensação nunca vai embora, não é? Em todo canto aonde a gente vai, eu

sempre me sinto uma garotinha fazendo as mudanças.

- Quem sabe você ainda é uma garotinha. - Luara respondeu prontamente,

fazendo uma voz diferente enquanto olhava para o nada.

Lívia torceu as sobrancelhas, encarando-a em silêncio. Às vezes Luara

simplesmente se perdia mesmo. - Isso foi alguma referência?

- Claro! - Luara falou, rápido e de repente, logo abrindo sua mochila de colo e

mostrando uma meia dúzia de livros ali de dentro. - Brasileiros têm alguns

cantores fantásticos, e uma cultura nativa interessante também. - Mostrou então

o livro que estava lendo, sobre história indígena.

A garota loira começou a rir então, de um jeito tímido e sem graça. Quando

Luara se empolgava assim, ela não sabia como reagir. Queria apenas abraçá-la e

assistir todo aquele ânimo tomar forma.

Encolheu-se de novo sobre o peito de Luara e, com palavras bem baixas e

sinceras, ela disse, perto de seu coração: - Vai ser incrível aqui.

Luara não respondeu, pois não era preciso. Apenas a abraçou de volta e lhe

afagou os fios loiros.

Notou então um casal sentado na outra fileira do avião, encarando as duas

com uma expressão exagerada de desgosto, sem remorso, como se esperasse que

seus rostos fizessem-nas se afastar.

Forçando um sorriso, Luara ergueu uma mão a eles, com o dedo do meio

esticado, e em dois instantes o casal se virou para outro lado.

Então fez questão de responder: - É, vai ser bem divertido...

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No lado de fora do avião, um pequeno objeto preto, de forma indefinida,

cruzava os céus em direção ao solo.

Em alguma estação do metrô de São Paulo.

Akemi já andava depressa mas, se dependesse da sua alegria, estaria

flutuando. Em sua mão, enquanto isso, uma mensagem em seu celular:

“Adivinha quem acaba de se formar.”

Ela e seu metro e meio de altura passavam por entre outras pessoas e lhes

pegavam de surpresa, movendo-se mais rápido do que qualquer um esperaria e

encontrando caminho. O que ela tinha, na prática, era pressa de chegar em casa e

começar a dormir o sono atrasado que a faculdade lhe custou. Mas nem dormir

por um dia inteiro seria, de longe, o bastante.

Quando descia a escada rolante até a plataforma de embarque, cortava

caminho à esquerda até ser impedida por um homem ali parado ao lado de um

outro, bloqueando a passagem.

- Com licença, por favor? - Akemi lhe disse, depois de olhar por alguns

instantes e não conseguir encontrar outra alternativa. Ele estava vestido em trajes

sociais, com uma postura séria e polida, e ela não queria ter de dirigir sua voz a ele.

Mas a única resposta que teve foi uma curta olhada para trás e uma torcida de

lábios, sem palavras e sem se mover do lugar.

Perplexa, não soube como reagir àquilo, mas respirar fundo sempre ajudava.

Atrás dela, no lado esquerdo da escada, outras pessoas que tinham pressa também

pararam. Sem tentar evitar ou mesmo perceber que fazia isto, ela se pôs a olhar

fixamente para o homem, vendo o quão interessante seria que ele perdesse toda

aquela postura.

Então, sem demora, o fim da escada chegou e ele, desatento, tropeçou e

cambaleou alguns passos, quase indo ao chão. O senhor que o acompanhava parou

para ajudar, junto do segurança que estava por perto e foi correndo até ali. Com

um metrô já parado na plataforma, Akemi apenas contornou a situação, contendo

um sorriso, e entrou em um vagão.

Foi quando viu a resposta à sua mensagem. “É sério!?”, perguntava Pâmela,

no outro lado, voltando para o quarto. “Parabéns!”

“É sim! Obrigada!”, Akemi continuou, sentada em um banco isolado daquele

vagão esvaziado. “Você está em casa?”

Como moravam juntas, o que ela mais queria era companhia para

comemorar, e também saber se havia almoço pronto.

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AFF #1 Abstinência

“Na casa do Greg”, Pâmela respondeu, tentando não se mostrar sem graça,

pois sabia que Akemi e ele não se davam muito bem.

E, de fato, no outro lado da conversa Akemi respirava fundo ao ler aquilo. O

que conseguiu pensar em responder foi “E está tudo bem?”

“Sim...” foi a resposta de Pâmela, que se incomodava com o tom da pergunta.

Mas Akemi queria seu bem, e ela sabia disto. Então era melhor mudar de assunto.

“Tudo certo para hoje à noite?”

“Acho que sim. Vou tentar confirmar com todo mundo.”

“Já tentou falar com o Patrick? Ele não me responde desde ontem.”

“Ainda não...” Akemi torceu os lábios, roendo uma unha. “Tenta ligar para

ele.”

“Ok, vou tentar”, Pâmela falou, deitada sobre a cama.

Ouvia o som do chuveiro se formar como chuva, para então ser interrompido

por um toque de celular. Era o de Greg, como ela percebeu, deixado no criado

mudo ao lado da cama.

- Greg, seu celular está tocando! - Ela gritou para ele, que tomava banho.

E logo ele respondeu, perdido: - O quê?

Sem paciência para aquela música irritante por muito tempo, levou uma mão

ao celular, que então parou de tocar. Na tela, restava uma mensagem: “Oi, amor!

Hoje às dez, não é?”

Confusa, Pâmela leu aquilo umas cinco vezes para tentar entender. Relutou

em abrir a mensagem, e chegou a pensar em abrir o contato e ver de quem se

tratava, mas nada parecia correto. Só o que ela tinha era um nome, Dora.

- Você atendeu? - Gregory perguntou, ainda dentro do banheiro, logo que o

som do chuveiro parou.

- Não... - Pâmela lhe disse, deixando o celular onde estava e tentando

respirar direito até controlar sua voz outra vez e falar num tom habitual. - Parou

de tocar.

Greg não falou mais nada, e o celular continuou onde estava. A dúvida, por

outro lado, aos poucos fazia Pam sair de seu eixo.

Dentro de um táxi no centro da cidade.

“Que bom que está tudo certo”, dizia a mensagem no celular de Luara.

“Sim”, ela respondeu, sem notar todos os prédios antigos que Lívia observava

pela janela. “O vôo foi tranquilo e já estamos indo para a pensão.”

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No outro lado da conversa estava Robin, na Zona Sul da cidade, digitando

enquanto se livrava de alguns papéis esquecidos em seu quarto.

Num momento ou noutro passava uma mão pelo cabelo já bagunçado. Sem

mais ninguém no quarto, era um ótimo momento para o cabelo tomar a forma que

quisesse e respirasse um pouco. E todo mundo precisava disso.

“Uns amigos marcaram um bar para mais tarde”, Robin continuou. “Quais

são os planos de vocês para mais tarde? Querem ir?”

Com a visão cansada e uma expressão de desânimo, Luara respondeu: “Ah,

acho melhor não... Eu estou bem cansada da viagem. Mas a gente se vê em breve!”

E Robin se despediu então, desejando boas-vindas a elas.

Ao se virar em direção à janela, Luara viu que a atenção de Lívia continuava

lá fora. - Acho que alguém gostou da arquitetura daqui.

- Ãh, oi? - Lívia se pegou de surpresa, mas continuou a observar. - Na

verdade eu gostei mesmo é das pessoas daqui... Repara um pouco.

Luara o fez, estendendo-se junto da loira e a abraçando. - É... É como uma

convenção de culturas.

Continuaram ali se distraindo pelo caminho. Mas, abraçadas, elas sentiam

estar no lugar certo.

Enquanto isso, Robin se jogava na cama ao lado do computador, com

algumas fotos recém tiradas na tela. Ainda tinha o celular em mãos.

“Pronto para mais tarde?”, enviou para Bosco, o namorado.

“Errrm... Não...”, ele disse, sentado em uma varanda. “É só mais tarde.

Relaxa.”

Robin torceu os olhos ao ler. Continuava a olhar também para as fotos no

computador. “Ah, qual é. Você sempre se atrasa.”

“Você sempre chega cedo, também”, Bosco respondeu, rindo, enquanto o

caderno à sua frente, cheio de letras perdidas, sem lógica aparente, parecia

prender sua atenção.

Os dreads amarrados em sua nuca assoviavam ao vento que por eles passava.

Até que de repente o garoto teve uma ideia, começou a desenhá-la, e o vento se

acalmou.

Por outro lado, calma era algo que estava faltando na casa de Robin quando

algumas vozes altas surgiam do andar de baixo. Colocou seus fones, mesmo sem

música a tocar, antes de responder: “Acho que eu só queria já não estar aqui...” Foi

quando ele lhe disse um simples “Corre para cá então!” e lhe tirou um sorriso.

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E nesse momento, o desenho em seu caderno estava também completo,

formado por todas as letras que ele tinha no começo. Sorriu por último, vendo o

resultado, e aproveitou para dar uma tragada no cigarro.

No apartamento de Gregory.

Saiu do banheiro com uma toalha enrolada à cintura, exibindo todo o porte

físico. Era um homem bem encorpado - ao mesmo tempo gordo e musculoso -, e

não precisava perder a oportunidade de mostrar isto para Pam.

Então a viu deitada, com o rosto encolhido junto ao travesseiro.

- O que aconteceu?

Pâmela se mexeu um pouco e o encarou, ainda sem largar o travesseiro. -

Nada... Acho que só bateu uma energia ruim mesmo.

- Hmm, quer gastar essa energia toda? - Ele então sugeriu, desamarrando a

toalha e a deixando cair junto de si sobre a cama, para se jogar sobre Pâmela.

Parecendo assustada e incomodada, a moça tomou o celular e se esquivou,

jogando-se para fora da cama. - Preciso ligar para um amigo.

Greg parou, congelado, encarando-a. - Agora?

- Sim... - Foi só como ela respondeu, evitando começar a falar muito, indo

depressa para a varanda do quarto.

Discou o número, mas a ligação não se completou.

Pâmela desligou os sons do mundo à sua volta, buscando desligar, ao menos

por um momento, todas as aparentes besteiras que ela dizia a si mesma. Era

melhor se focar em Patrick por enquanto.

Mas a ligação continuava não se completando.

- Onde você está, criatura?

Em casa.

Um prólogo da loucura... Seria um bom nome para isto aqui.

Cores, algo que já tive aos montes. Mas, ali, naquele banheiro, diluindo as

cápsulas em um pequeno frasco com água, não precisava mais delas. Meu reflexo

no espelho embaçado era apenas um monte de cinzas e respingos.

A cada nova aura que eu enxergava em alguém, mais uma cor tatuada nos

meus olhos e, junto dela, mais um instrumento na ópera da minha mente. Seus

gostos, seus gêneros, seus jeitos, caminhos e rejeitos. Eu, como uma abelha,

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AFF #1 Abstinência

colhia gotas de cada uma de suas tintas, e guardava todas na minha pele. Mas eu

não aguentava mais.

Perdido entre tantas cores e papéis, eu poderia ser qualquer um. Bastava

pintar meu rosto noutra cor antes do combate. Só que, na verdade, não havia um

papel para mim mesmo neste mundo. Eu não existia.

Fechei o frasco e comecei a agitar. Às vezes tudo de que um humano precisa é

se deixar derramar um pouco.

Uma gota e toda dor se faria em graça.

Só que eu não era um humano muito normal, sentindo as auras de todos ao

meu redor, desde pequeno, e me perdendo em suas cores. Às vezes essa

humanidade chegava a ser algo bastante questionável. Humano nenhum tinha

direito de ver o que eu via.

Eu reconhecia as cores diante de mim, mudava as minhas de acordo, e assim

mudava junto minha personalidade e meu ser por inteiro, instantaneamente, sem

que qualquer um sequer soubesse como eu realmente era por baixo da tinta.

Ninguém nunca soube. Ninguém nunca viu o quadro original.

Quando encarava o líquido cinzento no frasco, notei que um humano normal

usaria drogas para entrar em viagens coloridas, enquanto eu só buscava um jeito

de fazer aquelas cores todas se apagarem.

Duas gotas e se cancelariam toda magia e toda ameaça.

E então encarava à minha volta, na aura de cada ser, um potencial mágico e

incrível que pareciam ignorar. E eu usava este potencial para tornar mágico a

mim mesmo. Ummago, assim meu irmão me chamava, criando encantos a partir

dos cantos alheios enquanto nós dois caçávamos fantasmas pela cidade.

Três gotas e nós seríamos enfim humanos.

Não se tratavam sempre de fantasmas do tipo “espíritos desencarnados de

gente do passado”, mas principalmente dos fantasmas que assombravam as

mentes de cada um, limitando-os, corrompendo suas auras e as tornando em

cinzas. Eles tinham de ser enfrentados, e eu poderia dar uma forcinha - ou uma

magia - a mais.

Levei o frasco até a sala e me despejei, já sem forças, sobre o sofá. Encarei o

líquido acinzentado. Às vezes tudo de que um “humano” precisa é deixar os

fantasmas irem embora.

Logo então, tomei o celular do bolso e liguei a câmera em minha direção,

enquadrando não mais do que meu rosto.

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AFF #1 Abstinência

- Tentativa número vinte e seis. - Eu disse, para então equilibrar o celular de

pé sobre a mesa da sala, ainda com a câmera ligada apontando para mim, e me

entreguei de novo ao sofá, enfim beijando o frasco. Lá fora, chovia.

Quatro gotas e ficaria tudo bem.

Uma. Talvez eu pudesse deixar meu corpo e visitar os sonhos do garoto por

quem estava meio caidinho, aproveitando enquanto não dava tudo errado mais

uma vez.

Duas. Meu irmão certa vez me disse que tomar aquele remédio cinza era

como injetar fantasmas em mim mesmo.

Três. Ele não estava por perto, assim como todas as outras cores já haviam

desaparecido. O líquido cinza escorria depressa.

Quatro. O único nome que restava era... Patrick.

Quando nós nos drogamos, mesmo com remédios aceitos socialmente e

vendidos em farmácia, os corpos entram num processo de consumir a droga,

diluindo-a devagar até que nada reste e tudo pareça intocado, como uma maré

atingindo as rochas.

Quando se experimenta a loucura, é ela que avança, consome o organismo, a

mente, e tudo, até que algo transtornado e transformado reste. Não resta maré. Há

somente uma tempestade, arrebatando por todos os lados e irrigando a mente.

E com o líquido na minha garganta, eu então corria em direção aos raios.

Primeira fase. Ainda na sala.

A luz da sala piscou por algumas vezes, com o grave ruído de lâmpadas se

queimando. A cada queda de energia, mais a pressão em meus olhos aumentava,

apertando-os por trás, tentando os arrancar para que eu enxergasse a verdade.

Minha visão perdia cada uma das cores e ficava cinza por inteiro. Fechei meus

olhos, com um breve medo de encarar aquilo que acontecia.

Estalidos surgiam de dentro das paredes, com toda a fiação do apartamento

se estourando. E então vieram os sons dos gatilhos a se destravar bem perto dos

meus ouvidos. Eu seria estourado também. Talvez eu fosse apenas um daqueles

fios. Meu corpo continuava derramado sobre o sofá. Estava dopado pelo cinza, e

cinza havia se tornado todo aquele lugar também. Eu já era parte dali.

Em meio aos estalos e outros barulhos, uma fumaça começava a ficar visível

na sala, estremecendo meus sentidos aos poucos. Meu celular, de repente,

tombou de lado sobre a mesa e causou mais um estalo.

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AFF #1 Abstinência

As armas de fogo flutuavam à minha volta, surgindo no ar esfumaçado,

enquanto as figuras que as seguravam ainda apareciam e ganhavam forma.

Talvez eu pudesse controlar aquelas armas e as esvaziar antes que eles

chegassem, afinal eu me havia me tornado parte daquele cinza, como um

fantasma.

Não havia azul ou vermelho. Apenas cinza claro ou escuro. Ao se tornar um

fantasma, escolhas não são mais tão relevantes.

E então, tomando forma a partir daqueles gases cinzentos pelo ar, aqueles

fantasmas estavam enfim ali - com seus trajes meio militares e meio destruídos,

como se houvessem saído da guerra e ido direto para minha casa. Suas mãos

mantinham as armas ao alto, bem apontadas contra mim, sem relutância ou

tremor algum, afinal nenhum deles respirava já havia algum tempo.

Minha testa latejava um pouco, com parte de minha mente me alertando de

que aquilo tudo era apenas uma alucinação do remédio... O primeiro estágio da

loucura.

E um sorriso macabro veio ao meu rosto, sendo assim. A loucura é mesmo

libertadora, autorizando qualquer emoção que, no pacato e medíocre estado que

chamam de sanidade, não nos permitiríamos sentir. Se eu enfim assumisse

minha loucura, então as auras, e a magia, e os fantasmas... Tudo seria justificado.

- E é por isto mesmo que você sempre acaba voltando para cá... – Disse uma

sombra entrando pela porta da minha sala, com um chapéu e um ego que quase

não cabiam ali, além de um batom vermelho bem colocado. – Continua preso à

mesma sanidade de sempre, olha só.

Eu ri baixo, chacoalhando meus ombros sem jeito algum, já perdendo o

controle sobre meu corpo. Mas respondi ainda assim. – Eu, são? Não é o que

aquela gente me diz lá fora...

- Só gente sã se importa tanto assim em ficar justificando tudo.

E então torceu um lado dos lábios finos e ergueu uma mão no ar em

desprezo, dando de ombros, devorando minha falta de respostas.

Já o conhecia de outras noites drogadas. Um fantasma um tanto andrógino,

de rosto graciosamente exausto, com uma estranha fixação por mim, surgindo

sempre que eu tomasse aquele remédio e me largasse sem forças em algum

canto. Graças a isso, eu tentava não temer suas intenções enquanto ele se sentava à

minha frente, puxando uma cadeira da mesa, cruzando suas pernas ao alto sobre

um dos braços do sofá. Eu desconhecia seu nome, ainda assim.

Nenhum dos outros fantasmas moveu um centímetro de seus vultos

enquanto isso, parecendo ter alguma subordinação a ele.

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Page 22: AFF #1 Abstinência

AFF #1 Abstinência

- Você volta de novo e de novo a esse drama de se sentir diferente, e então

acaba fazendo a mesma coisa que qualquer outro humano: arranjando um jeito de

fugir da realidade. Que graça. Já podemos o considerar humano outra vez e

terminar essa história?

Aquela situação era estranha, quase já sem sentir minha pele e encarando

uma porção de balas miradas para mim, mas não conseguia evitar sorrir. Pessoas

de personalidade me faziam feliz, mesmo que tal pessoa fosse um fantasma, ou

mesmo que ela nem existisse de verdade.

Com um leve engasgo na garganta e o líquido fazendo efeito, grunhi de leve

ao tentar responder.

- Sabe, eu entrei na montanha russa para ver se os loops me faziam sentir

voar, não para só esperar pelo fim... - Dizia a ele, sorrindo e estendendo meus

braços pelo encosto do sofá. - Eu sou um mago, não um fantasma.

- E fala como se isto realmente fosse bom. - Ele retrucou bem rápido. - Que

embaraçoso fingir que continua em posição de poder...

Então ele se inclinou na cadeira em direção a mim. Pensei estar alucinando

mais ainda quando vi seu rosto ficar mais fino, e por isto pisquei meus olhos

algumas vezes, forçando-os, sem que adiantasse. Ele estava mudando de forma.

- Até quando você vai mentir para si mesmo? - Continuou.

Minha mente negava o que ele dizia, ao mesmo tempo em que me perguntava

sobre aquilo. Sem me dar conta, eu já duvidava de mim mesmo.

E sequer consegui responder. A sua transformação estava começando a me

assustar, ainda mais com ele colocando suas mãos ao meu redor no sofá e

impedindo que eu saísse.

- Vai mesmo continuar a se fingir forte toda vez em que alguém confrontar

você, Patrick? E fingir que continua no controle de tudo?

Quando meus olhos já não conseguiam relutar em observar, reconheci o que

aqueles traços estavam formando. Arfei, franzindo os olhos, recuando no sofá e

duvidando do que via.

O fantasma se tornou Eric, meu último romance.

E, de repente, lançou uma mão contra mim, dando um soco no sofá, bem ao

lado do meu rosto, enquanto gritava:

- Até quando vai fingir que não está sozinho no mundo? Tudo o que você faz é

controlar todo mundo!

Já havia perdido todo o meu ar, mas continuei a encarar as profundezas

daqueles olhos cinzas. Acreditei que, lá no fundo, tivesse encontrado a imagem do

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AFF #1 Abstinência

meu abandono e solidão, um silêncio frio onde ele e o mundo continuariam a me

julgar e odiar para sempre.

A raiva do seu grito me assustava mais do que todos aqueles fantasmas

armados contra mim.

- Mesmo que eu acabe sozinho... - Comecei a dizer, com uma voz rouca e

amedrontada. - Mesmo que nunca supere você... Eu lentamente... Supero... Cada

um de vocês...

Ao comando de uma mão minha, alguns dos fantasmas na sala mudaram de

posição e de alvo, apontando uns para os outros, com alguns mirando o líder.

E eu encerrei: - Você nunca vai saber quem eu sou de verdade.

Então vieram todos os disparos ao mesmo tempo, e uma escuridão tomou

conta da minha visão. Não conseguia mais sentir a presença dos fantasmas e,

pouco a pouco, já não sentia mais nada, sozinho de verdade.

Até surgir uma voz em meio ao escuro, e uma mão a segurar a minha... A

sua.

No centro da cidade, nos corredores da pensão.

- E mora muita gente aqui? - Lívia perguntou ao rapaz que as acompanhava

pelo corredor. Sua mala com rodinhas fazia um ruído estridente e contínuo

naquele piso de madeira antiga.

- Nem tanta. - Ele disse, com um tom acidentalmente desengonçado na sua

voz. - Apesar de a casa ser grande, a maioria dos hóspedes são turistas gatinhas

querendo só se divertir um pouco... Sabe como é, não é?

Apesar de confusa por um momento, ela forçou um sorriso sem graça.

- Claro...

Luara vinha logo atrás e não era obrigada a disfarçar seu incômodo, embora

tenha ficado em silêncio. Sua expressão se fechou numa tempestade até que

chegassem ao quarto.

- Os números de serviço estão sobre a cômoda. - O rapaz falou, depois de

colocadas as malas dentro do quarto, e em seguida estendeu uma mão com um

papel para Lívia. - E esse aqui é o meu, caso tenham frio à noite.

A garota aceitou o papel, ainda mais desconfortável. Nele havia também o

nome do rapaz, Jorge, que logo se despediu com uma piscadela.

Batendo a porta sem quase perceber, Lívia, com nojo, largou o papel no ar.

Mas Luara, torcendo os lábios e vindo em sua direção, foi mais rápida,

movendo uma mão no ar e puxando o papel, flutuando, até si.

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AFF #1 Abstinência

- Isso vai mesmo ser útil mais tarde.

A namorada a encarou, confusa, também se aproximando e a questionando

com o olhar. E quando lançou seus braços ao redor de Luara, teve uma resposta

em forma de sorriso.

Lívia também sorriu, por fim, e não precisou dizer o que a fome já avisava.

E então abraçadas, seus corpos se ofuscaram e num instante mudaram de

aparência, tomando formas masculinas, com as mesmas alturas e outros traços

semelhantes.

Os estilos dos cabelos e das roupas permaneceram, assim como suas

personalidades e o que os mantinha abraçados, não importando se seus nomes

eram Lívia e Luara ou... Liffs e Luffs, seus nomes habituais.

Beijaram-se sem pressa, ouvindo o sereno que começava a cantar lá fora.

Segunda fase. Na escuridão da minha mente.

Você fala, mas eu não o encaro. Seguro firmes suas mãos, caminhando de

costas pelo corredor escuro... Conheço bem o caminho, e não quero deixar de

encarar você enquanto andamos.

Quero apenas ver sua boca e seus olhos, mas quase não consigo, ao tentar

enxergar por entre suas cores. Olho pelos confusos cantos do seu sorriso, ouvindo

você me contar sobre seu dia.

Não o conhecia até duas semanas atrás, mas então já o conheço há tanto

tempo, com cada uma destas cores me contando tudo a seu respeito, deixando

seus lábios e denunciando suas loucuras e desenvolturas, encobrindo suas

bochechas, pescoço e deslizando por inteiro.

Você deixa de ser inteiro e passa a ser real. As cores repreenchem seus

vazios, suas texturas e todo o pulso do seu sangue, banhando seu cabelo num

reflexo dançante, ciano, verde, laranja, púrpura...

Os fios de cabelo, a voz, o sorriso, seus passos, expirações e tudo vira cor. O

corredor se torna um salão estrelado, índigo, campo de qualquer tinta com que

você queira se pintar. Elas me apresentam diversas outras versões de você,

coloridas em outros tons e caminhos, refletidas nos espelhos nas paredes,

infinitas. Eu alucino.

Suas angústias se agarram aos meus joelhos, como também me sinto

acariciado pelos seus desejos. E suas loucuras. E um garoto igual a você,

vermelho, mas com não mais de oito anos, passa correndo ao nosso lado, rindo de

mim com sua crueldade inocente. Era você criança, eu acreditei.

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Page 25: AFF #1 Abstinência

AFF #1 Abstinência

E seus segredos já não são nada demais, e ao mesmo tempo são tudo o que eu

tenho de melhor para conhecer. E as suas palavras percorrem seu corpo, enquanto

acompanho tudo com os olhos e a pele arrepiada.

Um abraço seu me ilumina naquele caminho, antes tão escuro em cada uma

das tantas vezes que o atravessei sozinho. Aquele corredor é familiar, mesmo que

eu mal consiga me perguntar onde era, ou o que nos trouxe até ali.

Sem o soltar, deixo os espelhos à nossa volta explodirem, caindo ao chão, e

cada versão nossa caminhar entre nós, com cada cor criando vida e forma,

erguendo-se das tintas derramadas pelo chão. As paredes então caem como um

todo e, no salão que se escondia detrás delas, nossas cores dançam ao nosso redor,

numa harmonia muito particular que eu só conheceria junto de você.

Você me olha confuso enquanto seu eu rosa acena para mim. Pergunta-se

por que eu conversaria tanto contigo, tão curioso sobre seus olhares mais

nebulosos, enquanto já são todos os meus eus a conversar com todos os vocês.

Pergunta-se por que me importo, enquanto me deixo afundar em cada

maravilhosa parte daquilo que compõe e desenha você, tão único e fantástico

dentro de seu próprio mundo colorido onde me deixo perder.

Toco seu rosto com cuidado, com as costas de alguns dedos, deixando suas

cores se escorrerem também por mim.

Você acaba de entrar no corredor comigo, e eu já lhe vejo por completo,

rodopiando, estremecendo e fazendo seus pares com cada uma das peças da

minha mente. O corredor já é um salão, a música continua, e eu não quero deixar

este lugar. Eu vejo, encantado, o que há dentro de você. Mas tenho de deixar que

cada uma daquelas cores aceite comigo dançar também.

Disse a mim mesmo, uma vez, que queria ver o garoto que vive por trás da

aura. Mas então entendo que, na verdade, ela é o que realmente habita dentro de

você.

A resposta estava ali o tempo todo: eu gosto da sua aura.

Sem pressa, sem tempo, sem medo. Apenas como ela dança e pulsa,

erguendo suas asas sobre este lugar, prestes a me relembrar como se faz para

voar.

"Segura firme", eu penso.

Mas tudo o que consigo é sorrir. E quando você sorri, sua aurora me devora.

Terceira fase. Em uma escuridão ainda mais profunda.

Então o salão se tornou uma balada e minha mente já não parece dançar

sincronizada ao corpo, e o cabelo, bagunçado sobre o rosto, parece nunca ter visto

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Page 26: AFF #1 Abstinência

AFF #1 Abstinência

um pente. As cores, tomando formas humanas cada vez mais distintas, dançam

ainda ao meu redor, não mais aos pares, enquanto meus braços se erguem no ar

como se puxassem alguém para junto de mim.

Mas eu não sei quando havia partido, nem quem foi que esteve ali antes.

Quase me envergonho, inquieto, ansioso, recuando os braços com medo,

tremendo na dança onde por fim eu resto sozinho. E então sei que não há motivo

para me envergonhar, nem me julgar ou justificar, já que, dentro desta escuridão,

apenas as minhas próprias cores podem me ver.

A cada movimento surge um novo vulto de cor ao meu redor, alimentando as

auras que comigo dançam. A cada jogada dos meus cabelos surge mais um sorriso

entre elas. Eu preciso deixar acontecer, ao menos neste momento. Já não

pertenço a mim mesmo, e me entrego às vontades de cada uma delas.

Movo os pés pela pista, muitas vezes apenas deslizando, sem querer me

soltar do chão e sair flutuando sem rumo. Os joelhos e quadril cedem e recuam

com uma gravidade ingênua, ritmada, entregue às batidas das músicas e dos

corações à minha volta. Levo os braços até atrás da nuca e os deixo repousar ali,

onde os fios se agarram como serpentes aos pulsos, enquanto uma garota púrpura

se aproxima, dança comigo e me mantem em movimento.

Noto que meus gestos já não dominam as cores como antes, mas que elas

dançam livremente, cada uma a seu jeito. Creio que elas precisem disso... E

talvez eu também precise, sem poder algum para conter ou esconder, livre para

mover cada dedo meu sem o risco de trazer uma tempestade e livre para gritar

sem evocar uma legião de pássaros.

O peito se move afora e adentro, não a fim de respirar, mas de perder o

fôlego. Os braços rodopiam ao redor, ritmando, traçando símbolos mágicos e

doentes no céu. O corpo desliza apenas pela música e não mais porque eu o sinta.

Este corpo já não parece ser meu. Mas minha mente existe ainda, vestida na

mesma pele de sempre, meio pálida, meio amorenada. A luz que me ilumina não

bronzeia minha pele, e sim a tatua por inteiro, jogando minhas tintas pelo chão

desta pista, derramando minha mente em forma de cor.

Ao fim de cada passo, a luz colorida mostra minha silhueta entre os lasers,

como uma película cinematográfica das mais antigas. O que resta de mim é

apenas o que a luz mostrar, corrompido e fragmentado como ela bem quiser me

pintar. Ela toma meu lugar, e isto é inquietantemente confortável.

Abro minha boca ao alto, expondo minhas presas, tão afiadas quanto os cacos

de espelhos que flutuam ao alto das nossas cabeças. Tanto nas presas quanto nos

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AFF #1 Abstinência

espelhos, as luzes se refletem no meio deste salão. Entre estas paredes pretas,

meu nevoeiro de cores continua a se espalhar.

Não há caixas de som, banda, cantores ou MCs. A música vem de dentro.

Assim como a névoa e todos que nela dançam junto a mim.

Mas vem também de dentro uma dor súbita no meio do peito e, depois dela, o

vazio. A música continua, batendo sobre minha pele e vibrando nela, sem que eu

mais a sinta aqui dentro de verdade. As vozes passam a cantar no lado de fora.

Quando fico zonzo e cambaleio entre meus passos, curvando-me um pouco

sobre o chão, ouço a música partindo da tinta ali derramada, vibrando como caixas

de som, ganhando vida. Ouço diferentes vozes vindo de cada uma destas cores,

unindo-se, dando forma a algo ainda maior... A minha própria voz.

Levo uma mão ao peito, tocando a tinta que há nele, escorrendo por meus

dedos em várias cores. Minha visão fica mais e mais embaçada, mas o brilho

nunca foi tão intenso. Sinto uma fenda no peito esquerdo, um rombo, de onde na

verdade havia vindo toda esta poça de tinta...

E então o que estava derramado sobre o chão era eu mesmo.

De volta.

Senti aquele corpo bater sobre a madeira do chão, sem arranhões ou

violações, inteiro, espatifado apenas por dentro.

A partir do momento em que sinto sua dor, poderia o chamar de meu corpo

outra vez?

Creio que não, pois também era capaz de sentir as dores das pessoas à minha

volta, e nem por isto elas a mim pertenciam.

Mas, desta vez, só havia eu sobre o piso da sala, sem qualquer coisa a sentir...

E eu não queria mais. Aquela história de se responsabilizar pelo que se cativa era

besteira, pois havia coisas demais que me cativassem no mundo, e muitas delas

acabavam por apenas viciar sem se responsabilizar por mim de verdade.

Era um pouco tarde para me importar. Acima de mim a sombra do

ventilador girava devagar, e abaixo o chão já estava gelado. Não sabia quanto

tempo havia passado, mas pelo escuro na janela notei que havia anoitecido.

Mil vultos ocupavam minha visão e eu nem enxergava nem me movia muito.

Estava só de calça, atirado ao chão da sala escura, começando a ficar com frio. E,

quando notei que estava sentindo frio, comecei a tremer sem controle, de pele

arrepiada, não pelo frio, mas pelo medo.

Mas nem frio e nem medo: eu não queria voltar a sentir nada. E o que senti

em seguida foi, então, o desespero.

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AFF #1 Abstinência

Empurrei meu tronco para o lado, procurando o frasco, com meus lábios já

secos. Uma corrente elétrica parecia torturar meu corpo inteiro a cada segundo de

realidade que se passava, pregando-me à gravidade e me marcando com fogo

naquele inferno.

Bati uma mão sobre a madeira, sem conseguir ventriloquar meus dedos

direito naquele corpo dopado e desobediente. Ouvi um estalido agudo e baixinho

perto de mim, no chão, de algo em que eu haveria batido. Fechei a mão sobre

aquilo e se tratava mesmo do frasco de que eu precisava.

Vislumbrando o líquido acinzentado dentro do vidro, enxerguei ali meu botão

de pânico, minha saída de emergência da realidade, e me senti sorrir de um jeito

doente e ingênuo, que mal poderia perceber no momento, mas me apavoro ao

lembrar do que quase me tornei ali.

Quatro gotas eram o que me separava da tranquilidade... Quatro gotas e iria

ficar tudo bem.

Até que as trevas do teto se derramaram sobre mim. Um corvo, meu irmão,

atravessando o teto como um fantasma, pousando sobre meu peito, batendo suas

asas sobre meu rosto como se me estapeasse com aquelas penas, crocitando mais

alto do que minha loucura, como sempre fez.

- Chega, Patrick. - Ele disse a mim, mentalmente, enquanto eu ainda me

remexia no chão, tentando lutar sem mal controlar meu corpo.

Quando o reconheci, tentei levar os braços contra ele, abraçando-o para então

o afastar, sem sequer considerar largar o frasco enquanto isso.

- Eu já fiz isso antes... - Respondi, rangendo os dentes com o rosto ensopado.

- Me deixe ir, cara. Não quero continuar aqui!

- Você já resistiu antes, e por motivos bem mais graves.

Ao responder, por entre suas penas surgiu uma fumaça negra e, da nuvem

que se formou em torno dele, Daniel retomou sua forma humana, idêntica a mim,

mas com um casaco preto e uma cicatriz vertical sob o olho esquerdo. Estendeu as

mãos sobre meus braços e prendeu suas pernas nas minhas, segurando-me sem

dificuldade.

- Só por hoje... por favor... - Implorei.

Evitei encarar seus olhos, bem mais escuros que os meus, mas ele continuou

ali, com suas garras me forçando a respirar e me trazendo de volta ao que os

humanos chamam de mundo real. Num movimento rápido, tirou o frasco entre

meus dedos e o atirou sobre o sofá mais distante. Como eu havia parado no chão,

afinal, pensei.

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AFF #1 Abstinência

- Calmantes são bem-vindos, no máximo, para ajudar em projeções astrais.

Sem fugas da realidade. - Falou ele, num tom grave e duro, mas ainda fraterno. -

Se uma hora quiser mesmo fugir, a gente pode passar o dia largados no sofá,

assistindo séries. Ok?

Eu me tornei incapaz de reagir, e existir dessa forma causava ainda mais dor.

Fechei os olhos e encarei o silêncio que eu teria de quebrar. - Ok.

Senti meus ossos secarem por dentro e o poder em meu sangue desaparecer.

Continuava fraco, mas já não sentia também a dor.

Meu irmão me abraçou e ergueu do chão, enquanto o som da sua respiração

me lembrava também de respirar devagar, até que ele me encostou ao sofá.

- Você precisa de uma pizza... Com pimenta extra para ajudar a acordar.

Quando foi buscar na cozinha ao lado, reparei em todo o suor no meu rosto.

Dava-me a mais cruel sensação de que, enquanto eu batia cabelo no lado negro da

mente, voando pela inconsciência, aquele corpo havia continuado a reagir e

transpirar, suportando-me e mantendo um tronco onde eu poderia pousar ao

voltar.

Eu havia falhado em me desprender daquela carne.

Suspirei e olhei pela janela, conseguindo notar uma estrela já se pontuando

na escuridão. Ao menos as noites do mundo humano eram mais confortáveis do

que no mundo fantasma.

Larguei os pulsos sobre o chão e o pescoço para trás, apoiando a nuca sobre o

sofá, observando o ventilador, que ainda girava sem se importar com onde eu

estivesse, assim como o mundo lá fora.

- Aqui. - Daniel chamou, já me entregando uma fatia de pizza num papel.

Estendi um mão para pegar.

- Aaai! - Eu reclamei alto, depois de meus dedos queimarem com o calor da

massa, num impulso já colocando a pizza sobre minha calça para deixá-la esfriar.

- Mão de bruxa não queima... Lembra o que a vó dizia. - Daniel me lembrou,

sentando à minha frente com o mesmo sorriso de canto com que nossa avó havia

dito aquilo há muito tempo. - É isso que você ganha ao tentar exagerar nesses

remédios... Fraqueza.

Olhei para a pizza outra vez, e também para o reflexo da vermelhidão nos

meus dedos. - Humanidade, eu diria... - Voltei o olhar ao Daniel de novo. - Talvez

seja isto que eu queira encontrar.

Ele torceu os lábios, empurrando-os para frente com desprezo e suspirando.

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- Humanidade? Sério que vai dizer isto para mim? - Seu casaco preto

estremeceu e num instante sua sombra flutuou para cima do sofá, onde ele veio

para bem perto dos meus ouvidos. - Não ser humano é tão mais interessante...

- Ser um fantasma não o torna menos humano. - Defendi, sem o encarar,

enfim mordendo a pizza. Nesse momento percebi que estava faminto.

- Muito menos a sua empatia. - Ele me disse, rindo baixo, com aquele tom

agudo sibilando vitória, enquanto se recostava ao sofá. - O que o tornaria mais

humano do que sua sensibilidade às outras pessoas?

Mastiguei devagar enquanto engolia aquela pergunta a seco.

E ele continuou:

- Não quer me contar o que deixou você desse jeito?

Observei o vazio da sala à minha frente, pensando. Minhas costas se

relaxaram um pouco sobre o tecido do sofá, com minha respiração mais

compassada, quando então um trovão subiu por mim, escalando minhas costas

até meu pescoço.

De relance, notei que meu celular estava ainda de pé sobre a mesa, e talvez,

com sorte, ainda estivesse filmando.

Naquele mesmo lugar.

Havia rolado cerca de duas horas antes, quando minha mais recente

paixoniteia embora eu a deixava no metrô. Desilusões ocorrem com qualquer um,

mas chamar os meus conflitos afetivos de ilusões caberia bem melhor.

Logo que deixei a estação, o sereno - o mesmo de quando eu havia ido buscar

o garoto ali - voltou para me acompanhar até minha casa, junto de uma nuvem

inteira de dúvidas.

Honestidade é uma escolha perigosa. Tentando manter minhas cartas sobre

a mesa, e sem saber lidar muito bem com a sensação de gostar de alguém, acabei

dizendo a ele certas coisas sem pensar. “Eu gosto da sua aura”, lembro de ter dito a

ele ao final.

Absorver informação tão rápido através das auras ao meu redor havia se

tornado um risco a toda a minha convivência social, venenoso em cada um de

meus relacionamentos anteriores. Quando eu me permitisse, poderia vislumbrar

boa parte do universo particular de alguém sem muito esforço, com apenas

algumas palavras ouvidas, um riso, uma jogada de cabelo.

E assim, em questão de pouquíssimo tempo, era capaz de me perder dentre

as maravilhas da mente de alguém. Não por pressa ou precipitação, mas por

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AFF #1 Abstinência

intensidade, porque o tempo corria em minha mente. Cada contato humano era,

para mim, uma explosão de informação. E isto poderia parecer fantástico a

princípio, contudo destruía minha noção de tempo.

Para mim, tudo sempre aconteceu muito rápido. Perturbações psicológicas e

místicas logo quando bebê, relacionamentos curtos, puberdade precoce, assim

como minha morte que também não tardaria. Minha vida, tão intensa, acabaria se

encurtando. Afeto, para mim, poderia surgir com apenas dois olhares, sem que eu

já sequer achasse isto estranho.

Aquela era a minha realidade - enlouquecida, inquieta e arrebatadora.

E aprendi, do jeito difícil, que não poderia esperar que alguém

compreendesse, ou muito menos que fizesse parte de toda esta loucura. Hoje em

dia crianças aprendem desde cedo a não convidar os demônios a entrar. Muito se

foge dos riscos, depressa demais para que qualquer adrenalina mostre o que é

sentir algo de verdade.

E eu era um risco evidente, mexendo com o cordão do olho esquerdo de

Hórus entre meus dedos, observando todas as cores daqueles que passavam por

mim na calçada.

Descobria segredos e malícias rápido demais... E me encantava rápido

demais. Talvez fosse meu maior defeito enquanto mago: passava mais tempo

sendo encantado do que encantando outros. Mas o dom havia me fadado a isto.

Duas semanas de conversa bastaram para que o universo daquele garoto já

fizesse parte de mim, fazendo-me desejar mais, com uma inquietação quase

dolorosa. Sabia que haveria de esperar, pois duas semanas não teriam sido o

bastante sequer para que ele reconhecesse a cor dos meus olhos, e muito menos

para aceitar valsar com as cores da minha alma.

Só que, numa tentativa de ser honesto com ele em nome de sua confiança,

confessei a ele meu pecado de conhecer demais cada pessoa, principalmente

quando me chamasse a atenção, e isto o incluía. Contei a ele que foi graças à sua

aura que eu estava curioso para o conhecer.

Eu não iria tentar nada por aquele dia, pois era cedo demais. Eu não estava

apaixonado, mas encantado pelas suas cores. E se esses sentimentos não fossem

correspondidos, tudo bem, afinal para pessoas normais esse tipo de atração por

auras nem deveria existir mesmo.

Não havia como dançarmos juntos se cada um seguisse um compasso

particular. Não há dança sem alinhamento.

E por isto tudo, restava-me aguardar pelo desconhecido. Só estávamos nos

conhecendo, mas eu já sentia a perda. Por medo, por insegurança, por raiva, eu me

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AFF #1 Abstinência

encantar por alguém nunca daria certo. Eu já o via, no futuro, dizendo que eu o

havia enfeitiçado, e então eu não conseguiria enxergar mais nada outra vez.

Talvez eu já o houvesse assustado e nem precisasse mais me importar com

meus olhos, de toda forma. Fechei-os sob o sereno, desejando que sereno também

fosse meu coração.

Diante de tantas cores, às vezes era necessário que eu não usasse meus olhos

para conseguir enxergar de verdade. Elas estavam cobrindo minha mente cada

vez mais com suas inseguranças - desta vez as minhas próprias cores, já

dessincronizadas, em estado de guerra, debatendo minhas virtudes contra as

paredes do meu crânio.

Elas insistiam que havia ainda algo a fazer, que poderia recuperar minhas

esperanças de, um dia, ter um relacionamento saudável, que não surgisse

simplesmente por um olhar meu.

- Toda atração surge de um olhar, Patrick. - Disse-me o senhor azul-celeste

que caminhava ao meu lado, sem que eu o houvesse notado até então. - Você faz

isto mais rápido, mas sem desvirtuar coisa alguma.

Ele ali, sorrindo, era como um reflexo colorido, translúcido, projetado da

minha própria aura, assim como os arco-íris nascem das gotas sob a luz solar.

Lembrei que o garoto pelo qual estava tendo aquela queda era também

azul-celeste, e com isto respondi: - Só queria saber enxergar na mesma

frequência de outras pessoas...

- Hmm... mas são frequências demais. - Ele rebateu. - Cada humano tem a

sua própria. Você pode aprender as de outros, mas jamais será o único diferente.

Todos são únicos.

- Certo... - Respondi, com um tom acidental de resmungo, mais para mim

mesmo do que para o senhor. - Quero aprender a frequência dele, então.

Mas a racionalidade não dura muito em minha mente. Já com sereno sob

meus olhos, pontuei que me apaixonar nunca havia dado certo antes, e que talvez

não houvesse mesmo motivo para dar certo alguma vez. Alguém ter um dom

como o meu já era um erro por si só.

O que me doía não era causado por aquele garoto em específico, mas por

todas as implicações que notei que as auras possuíam sobre minha vida. Dentre

elas, afetar todas as minhas relações para com outras pessoas, levando-as a um

nível astral, onde mal poderiam ser compreendidas às vezes.

Antes de ir embora, ele disse, com um sorriso carinhoso, compreender e

respeitar o que eu sentia, prometendo voltar depois, quando pudesse. Mas eu

25

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AFF #1 Abstinência

sentia cada resposta mesmo antes que fosse dita. Ele até pareceu lidar bem, só que

eu, por dentro, já me desesperava. Estava tudo prestes a dar errado de novo.

Minha existência era injusta para com a humanidade. Eu sabia demais e

merecia queimar, sendo banido para algum mundo onde aquelas cores que eu via

fizessem algum sentido.

Quando chegasse em casa, era para lá que eu tentaria fugir de mim.

De volta outra vez.

Encarava o reflexo no espelho embaçado enquanto terminava de contar a

Daniel o que me me levou até o chão da sala - ou ao menos até o sofá, que era até

onde eu mesmo me lembrava. Ao colocar minhas fraquezas diante de mim, as

pequenas falhas na imagem se revelavam. Mas eu não conseguia distinguir o que

havia de errado no espelho ou em mim, assim como era difícil delimitar que

sentimentos exatamente vinham de mim ou do mundo.

Temi, de algum modo, perder minha identidade nesse contexto, tal qual já

havia temido antes, pois poderia acabar me esquecendo de que parte daquele

universo de informações era eu mesmo. Eu arfava, com o rosto molhado,

expressões minguadas e olheiras crescentes. A pele brilhava sob a luz com um

tom um pouco mórbido, repleto de uma piedade que eu não queria sentir por mim

mesmo.

Um sorriso se moldou em meu rosto, contrapondo crueldade àquela piedade

que eu não queria ter por mim mesmo. E então Daniel saiu do espelho, vindo em

minha direção como uma neblina humanóide, parando ao meu lado, encostado à

parede.

- Você pode até sentir tudo, Trick... - Ele começou a dizer, após tudo o que eu

havia contado. - Mas nem por isto pode controlar tudo, inclusive a si mesmo.

Olhei diretamente para ele, disposto a saber aonde queria chegar. Ele

continuou:

- E pode ser duro encarar dessa forma... Mas é melhor mesmo não estar sob

seu controle, porque você já coloca peso demais sobre si. - Terminou o

pensamento tocando minhas costas, tensas e retesadas, como se asas estivessem

prestes a nascer dali, depois de tão sufocadas pelo mundo. - O peso do mundo não

é seu. Você pode deixar que ele se exploda um pouco ao invés de tentar aguentar

sempre... Ao menos assim o peso vai ser menor.

Em um instante notei que, naquela situação, minha aparente vulnerabilidade

muito me tirava do sério, e que brevemente desejei ser capaz de fazer ainda mais

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AFF #1 Abstinência

do que já fazia. Contudo, o que eu possuía já me apavorava. Eu estava vulnerável

ao lado de dentro e ao que eu mesmo sentisse.

E nesse paradoxo em que me percebi que estava, o caos me invadiu, e o

tormento causado pelo meu dom se juntou à insegurança dos meus

relacionamentos passados para gerar uma dor incerta, uma ansiedade,

antecipando minha futura derrota por puro medo do passado. Uma dor tão real

quanto a paz quimicamente causada pelos calmantes.

Continuava a lavar o rosto quando percebi que a própria vulnerabilidade era

capaz de me ajudar a retomar o controle sobre mim mesmo. Talvez essa

vulnerabilidade fosse a prova de que houvesse ainda humanidade em mim.

Notei então meu irmão a sorrir ao meu lado, encarando o espelho junto de

mim enquanto me ouvia pensar. Por um momento me perguntei o que os reflexos

mostrariam a um fantasma. Mas nós éramos gêmeos e, na Terra, eu seria sua

imagem e seus sentimentos.

Eu sorri. E a solidão se foi, nem que fosse apenas por aquele momento.

- Você está ansioso e com medo do que há pela frente... - Daniel disse, com

seus braços cruzados. - E não há problema algum nisso. Não saber o futuro só

torna você mais humano, do jeito que você quer.

Então estendeu uma mão até o espelho, abrindo uma porta dele e pegando

um batom preto lá de dentro, logo o tirando da capa. Eu acompanhava tudo pelo

reflexo enquanto ele, ainda sorrindo com profundidade, fez do batom um pincel e

desenhou no espelho um largo sorriso preto.

Encarei a imagem, com o sorriso se encaixando bem sobre meus lábios,

fazendo-me um herói, talvez mesmo que um pouco fantasmagórico.

- Agora vamos. Eles estão esperando. - Daniel disse.

E então o meu sorriso não era apenas um desenho no espelho.

Minutos depois.

Estávamos sobre nosso prédio, na Rua Augusta, observando as estrelas

acima e abaixo dos nossos olhares.

Por entre as luzes de São Paulo, a iluminação urbana dividia espaço com a luz

de cada indivíduo ali, correndo e tremulando por todos os lados, com uma

diversidade incrível de cores, que superaria, de longe, a solidão de se observar

uma aurora.

Eu encontrava suas cores entre todas as ruas e edifícios, deixando minha

mente fluir por cada uma delas. Não me atentava ao que sentiam, tocando-os de

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AFF #1 Abstinência

leve com as pontas dos meus pensamentos para apenas provar um pouco do que

realmente eram, num nível mais particular que qualquer sentimento.

Infelizmente, aquele mundo em que vivíamos trazia uma porção de

experiências nocivas e violentas, limitando as reais identidades de quem por ele

passasse, tornando cinzentas suas auras - e me condenando à loucura por as

enxergar.

Só que, naquele momento, vislumbrando apenas o lado maravilhoso das

mentes humanas e encarando a tempestade de cores com que preenchiam a

cidade, nenhuma loucura realmente importava. Sabia apenas que era preciso ter

cuidado para não deixar que o que me cativava se tornasse meu cativeiro.

Daniel estava ao meu lado, observando comigo aquelas dezenas de pessoas

que desciam a Augusta rumo a bares, baladas ou qualquer diversão. Enquanto

isso, um vasto manto de estrelas, escondidas detrás daquelas nuvens espessas,

cobria nossas mentes. Cada uma delas podia me recordar de alguma aura

fascinante que já houvesse passado por mim.

Lembrei-me de mais cedo nesse dia, enquanto descia aquela rua ao voltar

para casa, quase me perdendo do caminho e da sanidade, quando vi na rua um

senhor ao canto da calçada, de roupas bem surradas, pintando pequenos quadros

para tentar os vender.

Parei para assistir enquanto ele desenhava. Seus traços azulados me

apaziguaram um pouco naquele momento, tirando de mim um sorriso repentino.

Os feixes de cores rugiam sobre o papel e davam algum sentido a todo aquele

pesar no meu peito. Mas sua tinta azul estava se esgotando, e com ela também

meu fôlego.

Sem muito nos bolsos, comprei para ele um novo frasco de tinta azulada, no

mesmo tom do céu, retribuído com um sorriso confuso por parte do senhor. Não

consegui dizer nada a ele no momento, mas gostaria que ele continuasse a colorir

a vida enquanto fosse possível, não importando o quão cinza o céu se tornasse.

Abençoei-o com a boa sorte que eu ainda tivesse.

Creio que aquele senhor tenha então se tornado uma das estrelas do meu céu.

- Aff. - Daniel falou, olhando para a rua lá embaixo, trazendo minha atenção

de volta. - Essa galera bebe como fosse a melhor coisa de se estar vivo.

Quase ri do que ele disse, mas olhei para aquelas pessoas outra vez, rápido o

bastante para discordar.

- Ou talvez nem todas estejam tão vivas assim... - Respondi a ele, apontando

para algumas delas e o deixando ver.

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AFF #1 Abstinência

Em meio a toda aquela gente bem arrumada e estilosa não caminhavam

apenas humanos. Alguns deles levavam também, junto de si, agarrados aos seus

dedos ou pendurados em seus ombros, os fantasmas de seus passados

inacabados.

Uma jovem recém adulta tentava ignorar os pais que a tentavam manter

sempre em casa, desligando o celular enquanto o guardava na bolsa. Um garoto

todo vestido em cinza esperava que a fumaça do cigarro levasse para longe as

lembranças daquele seu amor perdido. Uma moça num vestido evitava pensar na

filha que passava o fim de semana com seu ex-marido descontrolado. Uma outra

pessoa não queria pensar no seu cachorro adoecido há poucos dias...

Nenhum deles conseguia enxergar a dor alheia, nem sequer queria olhar na

direção do próprio tormento. Estavam ali para se distrair e divertir e, enquanto

fosse possível, tentavam manter seus fantasmas longe, presos em algum lugar

abandonado de suas mentes.

Só que eles estavam ali, caminhando invisíveis entre eles, observando cada

um de seus passos até que, com um mero erro, pudessem se manifestar outra vez

e devorar seus pensamentos. E não agiam com malícia ou qualquer noção do que

estavam fazendo. Apenas seguiam, por instinto, aqueles que poderiam os

alimentar.

Encarei Daniel enquanto deixava minha mente alcançar cada uma daquelas

auras lá embaixo, encontrando qualquer fantasma que se prendesse a elas. Podia

então sentir cada um deles na minha própria mente, aos poucos criando pressões

ao redor dos meus olhos e dentro do meu peito.

Mas eu sorri.

- Tem certeza, cara? - Meu irmão me perguntou, enquanto eu tentava o

convencer, pelo olhar, de que ficaria tudo bem.

Ainda parecendo inquieto, ele andou até alguns metros atrás de mim. Sorria

com dificuldade e com aquele batom preto desenhando sua boca.

Dei então um passo à frente, parando bem à beira do prédio, tentando não

olhar exatamente para baixo. Fechei os olhos. Respirei devagar.

Por fim, estendi uma mão para o lado, sinalizando para ele.

Foi quando Daniel sacou meu celular do bolso e colocou uma das minhas

músicas favoritas para tocar.

Meus pés começaram a bater no chão, ritmados ao som e por ele libertados.

Os ombros ficaram leves, e um pulso muito forte surgiu em meu peito,

repreenchido, carregado de energia a emanar.

Ouvi Daniel rir baixo em algum lugar no nevoeiro de auras.

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AFF #1 Abstinência

- Você precisava ver a cara que faz quando começa a se soltar assim...

Notei sem dificuldade um leve tom preocupado em sua voz, ainda. Mas não

houve tempo.

Foi quando um nevoeiro de luzes se ergueu à minha volta. Vultos surgiam

em meio a ele, semelhantes aos mesmos vultos que encontrei enquanto

alucinava. E meus olhos, mesmo fechados, brilharam diante destas luzes, e no

momento seguinte se fizeram também em cores... Cores das mesmas auroras que

já me devoraram, e também de todas aquelas lá embaixo, na rua.

Refiz minha dança de mais cedo naquele dia, só que, desta vez, sem me

perder no medo. Deixei meu corpo entregar toda sua força àquele momento,

libertando minhas cores para dançarem comigo, e minha aura para se estender

naquelas alturas. E às minhas se juntaram também as cores de todas as pessoas

dali.

Senti tudo de novo. Os carinhos, as responsabilidades, as loucuras, as artes,

as dores, amores, ansiedades... Por alguns momentos, senti como se dançasse

em cima do prédio com toda aquela gente.

Lá embaixo, ninguém notou nada, sem motivo algum para olhar para cima

enquanto se entretinha. Nenhuma daquelas pessoas sabia que eu existia. Mas seus

fantasmas souberam. Seus olhos cinzentos brilharam diante de toda a cor que eu

servia a eles, vulnerável, prestes a me atirar.

Eu copiava as mesmas auras que os alimentavam, reunindo todas em um

extenso e disponível nevoeiro que, para eles, era chamativo como um banquete.

Mesmo sabendo disso, continuei a dançar e me deixar aos poucos invadir por

cada sutil dor. E entreguei a todos eles força o bastante para que flutuassem bem

rápido até mim, rugindo, tremendo em instinto. Minha ansiedade tinha pressa.Às

vezes tudo de que um humano precisa é deixar os fantasmas irem embora.

E quando não quis mais suportar, lancei um pé para além da borda do prédio,

prestes a soltar meu corpo no ar.

Cada uma daquelas dezenas de fantasmas se lançou em direção a mim,

sedenta por um pouco de energia enquanto meu corpo estivesse inteiro.

Ainda a tempo, reuni um pouco da cor amarela que encontrei nas auras

daquele lugar, concentrando tudo nos meus pés, e me agachei sobre o concreto. A

vibração intensa causada entre o prédio e meus tênis me manteve preso ali

quando, voando bem sobre minha cabeça, um corvo mergulhou contra os

fantasmas.

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AFF #1 Abstinência

Espantados, porém reunidos, eles foram rapidamente atingidos por Daniel.

Os gritos dos corvos, avisando da chegada da morte, lembram aos fantasmas que

não devem mais existir ali.

Foi assim que, nos breves instantes a seguir, muitos deles se tornaram pura

fumaça, logo desaparecendo. E para ajudar, usei aquela mesma magia amarela

em uma das minhas mãos, para me segurar, enquanto usei a outra para lançar um

manto de cor roxa sobre outras porções de fantasmas, prendendo-os.

Uma leve pontada me atingiu a cabeça pelo uso muito intenso de magia, e

assim me atirei, por reflexo, para trás, deitando com força sobre o prédio

empoeirado. Na ventania entre os prédios, Daniel cuidou do restante dos

fantasmas.

Puxava minha respiração com força enquanto assistia o nevoeiro a terminar

de se espalhar, com todas aquelas cores se fazendo em fagulhas brilhantes e

voltando às suas origens.

E então o corvo pousou ao meu lado, voltando à forma humana.

- A gente está ficando bom nisso. - Falei, com um pouco de dificuldade para

respirar, mas com um sorriso acima disso.

- Em quê? - Daniel respondeu, também arfando. - Em fazer a donzela em

perigo?

Dei um soco em seu braço, e então ele se deitou também, rindo de mim.

Eu mesmo acabei sorrindo também, olhando para aquele céu nebuloso.

Sabia que, ao menos por aquela noite, as pessoas lá embaixo poderiam deixar seus

problemas para trás e tentar ser felizes.

Ainda respirava fundo quando Daniel me chamou.

- Cara... - Ele disse, também olhando para o céu. - Eu sei que você tem suas

crises existenciais por causa das auras e etc. Mas você parece feliz de verdade

quando aceita dançar com todas elas.

Inclinei meu rosto um pouco para o encarar, sem resposta. - É... Talvez. -

Foi só o que me veio à cabeça.

Mesmo que parte de mim ainda sentisse certa raiva a respeito daquilo, já que

com os meus próprios problemas eu não conseguia lidar, ignorei este

pensamento, afinal eu também tinha o direito de me divertir naquela noite.

Enfim revidando, Daniel então me deu um soco no cotovelo, sem precisar

dizer mais nada enquanto eu ria. Fechei meus olhos, sentindo o concreto molhado

sob minhas costas depois da chuva daquele dia. Sentia também a pressão sobre

meu peito, com o ar gelado me inflando devagar.

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AFF #1 Abstinência

Aquilo que meu irmão disse fez algum sentido quando, mesmo depois de me

esgotar por utilizar magia, eu me senti humano em cima daquele prédio, por

sentir que poderia ter meu lugar entre eles.

Também na Augusta, algumas quadras abaixo.

O carro de Greg parou, e Pâmela bem depressa lhe deu um beijo de

despedida. Ela continuava com aquela energia ruim desde a tarde.

- Divirta-se... - Ele lembrou, numa voz firme, com receio de tocar outra vez

no assunto, mas sem querer deixar isto transparecer.

Pâmela parou por um instante, ajeitando a bolsa em seu colo e também seu

colar folhas douradas. E foi tempo suficiente para notar que no rádio do carro, já

se apontavam quase dez horas.

- Pode deixar. - Ela falou, com um sorriso forçado que sequer tentava

convencer. - Você também.

Saltou do carro sem olhar para trás, e entrou depressa no bar, já vendo Akemi

e Caique lá dentro. Greg a encarou de dentro do carro por um momento, mas ali

não parecia um bom lugar para ficar parado.

Deu a partida, então, enquanto atrás de seu banco um pequeno objeto preto se

segurava, invisível no escuro, sutilmente começando a se mover.

Quando descemos do prédio, Daniel vinha ao meu lado, caminhando através

da multidão. Eu hora ou outra esbarrava em alguém, mas não havia como evitar.

Depois de ter tocado as mentes de muitas daquelas pessoas, creio que passei a

gostar um pouco de cada uma delas.

Não demorou até que uma das garotas que eu havia notado lá de cima, e cuja

aura dançou junto à minha, passasse por mim com um sorriso tímido ao rosto.

Eu evitei encará-la diretamente para não a deixar sem graça, mas meus

olhos acompanharam um pouco os seus passos ao meu lado, subindo a rua. Acabei

parando por um instante, e nisto ela percebeu, olhando para mim como se já me

conhecesse.

Estava admirado por a ver mais feliz, sem um fantasma agarrado às suas

costas, e pelo tamanho charme que ela começou a tentar esconder por trás da gola

do casaco. Acabei soltando uma piscadela, mas ela não deveria se lembrar de

mim... Nenhum deles deveria, mesmo.

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AFF #1 Abstinência

A garota sorria ainda mas, com ambos sem graça, cada um continuou seu

caminho. Só que, quando olhei de novo para o meu caminho, Daniel estava parado

à minha frente, com seus braços cruzados, com pessoas passando através dele e

desviando de mim.

Mais que isto, ele sorria de um jeito curioso, erguendo uma sobrancelha.

- É sério que não vai nem perguntar o nome dela? - Ele questionou.

- Hey! - Respondi mentalmente, atingido de surpresa, mas começando a rir

baixo, por sorte sem ninguém estar olhando para mim. - Você sabe que não dou

em cima de ninguém que eu tenha ajudado.

Ele riu alto, com exagero e deboche, mesmo que só eu o pudesse escutar. Eu

tentava apertar o passo outra vez, com mais trabalho para desviar das pessoas do

que ele jamais teve.

- Se for assim, não deveria nem ter piscado para ela, então... - Daniel

continuou, apenas pela provocação.

Olhei em direção a ele, apertando o olhar como se o repreendesse, mas sem

conseguir segurar o riso no fim das contas. - Depois eu é que sou o coxinha, não é?

- Ah, não vou insistir muito... - Respondeu ele, ainda rindo, flutuando logo

atrás de mim. - Mas se a gente trocasse de lugar, poderia ser divertido. Faz tempo

que eu não bico ninguém...

- Dan! - Foi só o que consegui dizer, acabando por não segurar uma

gargalhada logo depois, que eu tentava disfarçar em meio àquela multidão.

Mas não pude rir por muito tempo. Embora eu andasse bem rápido, poucos

metros depois surgiu outra figura familiar.

- Foi só uma sugestão... - Meu irmão continuou a dizer até que visse o sinal

que fiz com uma mão, para que ele esperasse.

Então parou ao meu lado enquanto ambos assistíamos um casal a se

aproximar, caminhando abraçados ao subir a rua. Uma mulher de cabelos

acastanhados, cacheados e bem volumosos, com um xale sobre seus ombros,

acompanhada de um homem de pele morena, cabelo aparado e uma marca no

nariz.

Conversavam sorrindo, abraçando um ao outro carinhosamente, e assim

passaram por nós sem sequer olhar em nossa direção. E eu observava quase

paralisado, mesmo não entendendo o porquê.

- Você conhece essas pessoas, não é? - Daniel me perguntou, parecendo um

pouco confuso.

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AFF #1 Abstinência

- Sim... - Eu respondi, voltando-me em direção ao casal que partia e

discretamente abrindo uma mão em direção a eles, para desse modo sentir suas

auras com mais rapidez, praticamente as puxando para mim.

As imagens se formaram então na minha mente: criança chorando, o

barulho no andar de baixo, uma sombra no quarto... Sim, eu conhecia aquela

mulher.

Minha voz engasgou tanto quanto meus pensamentos quando tentei falar.

- Lembra o dia em que o Eric me mandou embora? - Perguntei ao meu

irmão.

- Uhum... - Ele afirmou, não parecendo muito confortável ao ouvir o nome

daquele garoto.

- A mulher que encontrei no metrô... O marido desaparecido naquela

época... - Um sopro quente preencheu todo o meu peito enquanto eu dizia aquilo. -

São os dois ali. - Olhei diretamente para Daniel outra vez. - Eles conseguiram se

encontrar... Eles conseguiram!

Aquela paz então tomou meu corpo por inteiro. Assim como naquele dia eu

havia segurado toda a sua dor e lamento, ali eu conheci também sua felicidade,

sentindo-a como se fosse a minha própria. Eles nunca saberiam quem eu era,

mas, de um modo estranho, eles haviam se tornado parte de mim.

Apertei uma mão junto ao peito, desejando que aqueles dois pudessem

continuar felizes dali adiante.

- Como você se sente? - Daniel perguntou, num tom cuidadoso e sensível,

olhando para mim.

- Não sei direito... - Admiti, com pensamentos turvos, contudo repletos de

felicidade. - É uma sensação boa... Mas acho que nunca foi tão intensa.

Eu o encarei, perplexo, como se tentasse o fazer entender o quão bom era

sentir aquilo, gesticulando sem querer. - Eu só... Estou tão feliz por ela que quase

queria agradecer por me fazer sentir isto.

Meus olhos se molharam um pouco, brilhando sob aquela iluminação da

cidade enquanto retomava meus passos.

Naquele momento, senti estar no lugar certo, e que poderia levar alguma

esperança de volta às caixinhas das mentes das pessoas.

- Eu preciso ser forte... - Disse a mim mesmo, deixando as auras de todos ao

meu redor se unirem à minha mais uma vez durante a caminhada. - Forte para

defender a minha humanidade.

Ouvi Daniel rindo bem atrás de mim, logo tomando a forma de corvo e

pousando sobre meu cabelo preto e bagunçado. E disse ele, numa voz inocente:

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AFF #1 Abstinência

- Trick... Você já é o meu irmão humano e forte.

Não soube responder outra vez, mas também não precisaria. Apenas sorri,

acelerei meus passos rumo aonde meus amigos me esperavam e naveguei pela

legião de auras ao meu redor, permitindo que elas se tornassem parte de mim e,

por fim, eu fosse a própria humanidade.

No caminho, o corvo ajeitou seu bico no meu cabelo e, fingindo coçar a

cabeça, eu lhe agradeci com um afago.

Greg, parado em um farol, pegou o celular outra vez, mas um reflexo

estranho na tela o confundiu por uns instantes. Na tela, o relógio apontava às dez

horas.

De repente um vulto surgiu, vindo do banco de trás e agarrando sua mão.

Quadras depois, chegamos ao meu bar favorito, onde entrei sem mais

demora. Não era um lugar muito grande mas, enfeitado com luzes coloridas,

quadros e tecidos por todo o teto, era aconchegante. E logo veio uma moça

andando leve e rapidamente ao lado do balcão, como se flutuasse, e ainda por

cima trazendo uma bandeja em mãos.

- Patrick! - Ela disse ao me ver, com um sorriso doce em seu rosto, e logo

beijando o meu. E continuou a falar, tão rápido quanto andava. - Ótimo que

chegou! Sente a intensidade desse lugar! Estou mesmo precisando de ajuda.

Por acaso eu também trabalhava no meu bar favorito. Aquela era Teresa,

minha amiga e colega de trabalho. E embora o bar estivesse mesmo bem lotado

naquela noite, se havia algo intenso ali era a aura azul-celeste dela.

Como sempre, o jeito inquieto e ainda assim organizado dela facilmente me

tirou um sorriso também.

- Calma que hoje é meu dia de folga. - Respondi a ela, enquanto sutilmente

procurava pelos meus outros amigos. - Mas... Olha! - Apontei para o fundo do bar.

- Eu estou com aquele pessoal. São meus amigos. Então pode deixar que daquela

mesa até o fundo eu sirvo, ok?

- Yay! Combinado. - Ela respondeu, ainda sorrindo e dando um curto salto de

comemoração, balançando o cabelo volumoso que ela prendia num rabo de

cavalo. - Obrigado, querido.

Dei a ela um abraço e um beijo na testa, e em seguida fui até meus amigos.

- Vou resolver uma coisa e já volto. - Daniel me disse, tomando forma

humana e chacoalhando meu cabelo para logo partir sem que eu nem conseguisse

pensar em questionar.

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AFF #1 Abstinência

- Ok... - Foi tudo o que pude dizer enquanto o via sair flutuando do lugar.

E, mesmo depois, continuei não tendo oportunidade de questionar, pois

estava então cercado de gente.

- Trick, onde é que você estava? - Robin perguntou numa voz firme, que já

não me espantava, pelo costume. Logo me abraçou mesmo. - Eu estava ligando

para você até agora.

Apalpei os bolsos da calça, sem encontrar meu celular. Por um breve

momento fiquei na dúvida, mas não tardei a dizer, ainda procurando: - Ah. Acho

que ficou com o Corvo...

Dei uma risada breve e constrangida, que Robin só respondeu com uma

expressão de deboche e descrença. De fato, como não podia enxergar meu irmão,

Robin pensava que ele fosse apenas loucura minha mesmo. Mas aquilo já não me

incomodava.

- Desculpe... - Eu completei. - Tive um dia difícil.

- Tudo bem. Relaxa. - Robin me respondeu. - A gente entende.

Eu sorri e dei-lhe um abraço, onde outra pessoa baixinha se juntou em

seguida. Rindo pela surpresa, vi que era Akemi, e então ouvi Bosco e Caíque

falando alto:

- Awn! Ataque de amor!

Elem vieram para cima de nós três, e Pâmela os acompanhou já rindo

também. E nos apertaram até que Robin começou a reclamar, numa mistura de

riso e grunhido: - Socorro! Amor demais! Amor demaaaais!

Não tinham a menor ideia do quanto eu precisava daquilo.

Sentei junto deles já colocando mais duas garrafas sobre a mesa. Brindamos,

e pelas próximas horas eu tentaria só deixar meus pensamentos e emoções se

aliviarem, sabendo que eu não estava sozinho. Estava seguro entre eles: eram a

maior das minhas fortalezas.

No centro, na pensão.

Quando se ouviram os toques na porta, Luara logo a atendeu, e lá estava

Jorge, com um largo sorriso ao rosto.

- Hey... Quer se juntar ao nosso jantar? - A moça disse, vestida em um

roupão, logo abrindo a porta e o convidando a entrar. Não o deixou dizer nada, e

realmente não queria que dissesse. Retribuiu o sorriso para o convencer a isso e,

sem dificuldade, ele aceitou.

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AFF #1 Abstinência

Jorge entrou, carregando consigo o jantar que elas haviam pedido por

telefone. Luara rapidamente tirou isto de suas mãos, empurrando a porta com um

pé e nela encostando para assistir ao rapaz se vislumbrar com a imagem de Lívia

deitada sobre a cama, com cara de sono e um lençol lhe cobrindo até o pescoço.

Sem desviar o olhar dela, deu alguns passos lentos em direção à cama. Ele

iria dizer algo quando Luara o impediu: - Escroto...

De repente dois objetos metálicos se lançaram de debaixo da cama até seus

pés, agarrando-o. Duas correntes de um metal esbranquiçado, que em um

instante o derrubaram e arrastaram para debaixo da cama.

- Se você se esforçasse um pouquinho para não assediar suas hóspedes, eu

poderia me esforçar um pouquinho para acabar com você mais gentilmente. -

Luara completou, assistindo ao ataque.

Houve alguma movimentação incompreensível ali, balançando a cama por

alguns momentos, sem demora. Lívia observou a cena em silêncio,

tranquilamente, erguendo-se na cama até parar sentada, e tudo o que disse em

seguida foi:

- Como você é ciumenta!

Fez que não, sarcasticamente, mas logo começou a rir e inclinou seu rosto a

olhar para sua namorada, que permanecia parada à porta. Uma mecha trançada de

seu cabelo lhe caiu sobre o ombro, e a luz acima da cama a encobria com graça.

- A gente pediu o jantar, e não paciência com garanhão abusado. - Luara

pontuou, indo enfim para a cama também e erguendo as sacolas com comida. -

Mas pelo menos o jantar chegou, olha só!

E de repente se ouviu um som grave, como um arroto, vindo de abaixo da

cama, pegando ambas de surpresa.

Inclinando-se um pouco para o lado, olhando para o tapete no chão ao lado da

cama, Lívia disse: - Saúde.

Luara, rindo, colocou as sacolas à beira da cama e se jogou ao lado de Lívia,

dando-lhe um beijo antes de comerem.

Aquilo tudo deu a elas a certeza de que aquele lugar seria produtivo.

Na Augusta.

Daniel se fez em corvo logo a seguir e, na maior de suas velocidades,

mergulhou no céu, subindo, literalmente atravessando o ar e tudo o que se

colocasse à sua frente. Queria ainda voltar para o bar depois e garantir que eu não

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Page 45: AFF #1 Abstinência

AFF #1 Abstinência

acabaria usando magia em público por acidente. Mas ao menos por enquanto eu

estava em segurança.

Foi até algumas dezenas de metros acima do bar, onde então já poderia

enxergar muitos dos edifícios da Augusta, e rodopiou nos ares até conseguir

encontrar seu alvo, para onde mirou e desceu em alta velocidade: nossa casa.

Quando você é um fantasma, sua existência flutua em um meio quase vácuo,

algo que se poderia chamar deéter, que preenche todo o universo sem se afetar por

nada do mundo material - exceto, é claro, algo que não esteja contido somente em

forma de matéria, como mentes, auras ou a magia como um todo.

Muito menos denso ou mesmo sensível que o ar, o éter não causava grande

atrito e, sendo assim, as asas do corvo conseguiam o jogar para muito mais longe a

cada batida. De modo silencioso, mas também assustador pela tamanha

velocidade, ele cruzou o céu nublado acima de toda aquela gente que se divertia.

Pousando na varanda do apartamento, fez-se em uma nuvem cinzenta,

esparramada pelo chão, de onde então surgiu ele em sua imagem humana, já

caminhando em direção à porta. Mas, tentando passar através da porta como um

pássaro desorientado, bateu a testa e quase caiu para trás.

Apareceu então, vindo pelo corredor detrás da porta, um homem pouco mais

baixo que ele, de cabelo curto e traços semelhantes, fora uma cicatriz na lateral do

nariz e suas bochechas mais cheias. Franzia suas sobrancelhas de uma forma

quase forçada, de propósito, contendo um riso. Carregava também uma tigela de

frango frito.

Destravando a porta por dentro, ele disse: - Vai devagar, Berenice.

Daniel se recompunha, tentando o encarar com seriedade, mas acabando por

torcer os lábios para conter o riso. Forçava os olhos, ainda assim, disfarçando

também a dor enquanto coçava a testa e entrava no apartamento.

- Você está legal? - Perguntou o homem com a boca cheia, nosso tio Rafa.

- Estou, acho... - Daniel falou, ainda coçando sua testa com uma mão e

gesticulando em direção à porta com a outra. - Só... Esqueci da barreira.

- Deu para perceber... - Rafael disse, um pouco constrangido mas ainda

achando graça. Então se virou de volta ao lugar de onde veio e, andando, continuou

a falar. - Venha. Vamos colocar um gelo nessa testa. Cheguei agora há pouco e

resolvi reforçar as defesas. Esses jovens trazem muito fantasma para cá às vezes.

- Sei como é. - Daniel concordou.

Rafael falava como se fosse muito mais velho do que nós, mas só tinha uns

seis ou sete anos a mais, mesma idade de amigos meus, como a Pâmela ou o

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AFF #1 Abstinência

Caíque. Quanto à barreira ali, já era uma presença habitual na nossa casa. Afinal

nosso tio também era um mago.

- Mas não precisa de gelo. - Meu irmão continuou. - Eu estou bem, juro.

Rafael riu antes de responder, já entrando na cozinha e abrindo a geladeira.

Uma música calma tocava ao fundo, de vocais femininos bem bonitos.

- Você ainda é meio humano, Dan. - Ele disse, pegando uma forma de gelo. E

continuou, com uma piscadela. - E relaxa. Não vou contar nada ao Trick.

Daniel torceu a boca enquanto pegava um dos gelos e puxava uma cadeira.

Discretamente Rafael tirava também um pote de sorvete da geladeira.

Até que meu irmão tirasse meu celular do bolso e o colocasse sobre a mesa.

Mesmo para um fantasma, era fácil notar a tensão em seu rosto. E então a

expressão de Rafael se fechou também.

- Ele tentou de novo. - Daniel disse. - E filmou tudo.

Rafael apertou os lábios e tentou soltar o ar devagar, pensando e sentindo

muito depressa, já colocando o sorvete de volta na geladeira.

Nem mesmo a morte é tão certeira quanto os maus presságios dos corvos.

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