Afranio Mendes Catani_bourdieu_um estudo da noção de campo

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    Actas dos ateliers do V Congresso Portugus de SociologiaSociedades Contemporneas: Reflexividade e Aco

    Atelier: Educao e Apendizagens

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    Pierre Bourdieu: Um estudo da noo de campoe de suas apropriaes brasileiras nas produes educacionais

    Afrnio Mendes Catani1

    Ao propor o estudo da noo de campo na obra de Pierre Bourdieu, bem como dasformas de apropriao e de incorporao de suas proposies nos estudos do campo educacionalbrasileiro, pretendo refletir sobre a presena, as configuraes e o papel desempenhado peloconceito na explicao do mundo social tal como o autor o arquitetou. Explicitarei ascaractersticas das apropriaes realizadas do pensamento de Bourdieu no Brasil, mediante aanlise dos textos nos quais h referncias ao autor, incorporao de conceitos e/ou assimilaodo seu modo de trabalho.

    Uma incurso analtica pela obra de Bourdieu em busca da origem, transformaes epermanncia do conceito pode ser de grande utilidade aos estudiosos que procuram valer-se do

    mesmo em suas pesquisas na rea de cincias humanas ao explicitar as especificidades e oalcance da noo de campo. Quando me refiro noo de apropriao de Bourdieu, me refiro multiplicidade de formas de recepo e os modos peculiares de inveno na leitura que se fez doautor. O sentido do termo apropriao parte do esquema conceitual de Roger Chartier paraexplicitar os processos de produo de sentido que configuraram a leitura como criao,matizando a compreenso das vrias interpretaes feitas entre ns. Chartier refere-se aoconceito sustentando que a apropriao tal como a entendemos visa a uma histria socialdos usos e interpretaes referidos a suas determinaes fundamentais e inscritos nas prticasespecficas que os produzem. Dar, assim, ateno s condies e aos processos que,concretamente, conduzem as operaes de construo do sentido (na relao de leitura e nosoutros casos tambm), reconhecer, contra a antiga histria intelectual, que nem as intelignciasnem as idias so desencarnadas e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadascomo invariantes, sejam filosficas ou fenomenolgicas, esto por se construir nadescontinuidade das trajetrias histricas (1998: 74).

    Bourdieu no se afasta dessa interpretao quando examina as relaes mantidas pelosindivduos com as prticas culturais ao dialogar com Chartier (Bourdieu e Chartier, 1985)acerca da questo da leitura ou do consumo cultural. Mencione-se, ainda, seu texto Que eshacer hablar a un autor? A propsito de Michel Foucault (1997): para entender a recepo[de um autor] deve-se entender as foras da no recepo, a recusa em saber. () Sartre, emuma nota deA crtica da razo dialtica disse, a propsito de suas leituras juvenis de Marx (queno se lia na universidade): eu compreendia tudo e no compreendia nada. Quer dizer que huma compreenso, um fazer como se se compreendera, uma falta de compreenso fundada emresistncias profundas.

    Pierre Bourdieu (1930-2002), filho de um modesto funcionrio dos correios da regiodo Barn (Pirineus Atlnticos), estudou como aluno interno, no Liceu de Pau (1941-1947). Emseguida, vai para Paris, sendo aluno no Liceu Louis-le-Grand e, depois, na Faculdade de Letrasde Paris e na prestigiosa cole Normale Suprieure, em 1951, o ncleo de recrutamento eformao da elite intelectual francesa de ento. Concluiu a ENS aos 25 anos, beneficiando-se doeficiente sistema pblico de ensino francs, consolidado ao longo da III Repblica (1870-1940).Sua carreira foi rpida, iniciando-se como professor de filosofia no Liceu de Moulins (1954-1955), fez o servio militar na Arglia (1955-1958) e ficou mais dois anos no pas, comoprofessor assistente na Faculdade de Letras de Argel (1958-1960). Sua carreira posterior foi aseguinte: professor na Faculdade de Letras de Lille (1961-1964) e, a partir de 1964, diretor deestudos na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, tornando-se diretor do Centre deSociologie de lducation et de la Culture (Paris). Em 1975 criou a revista Actes de la

    1 (Faculdade de Educao Universidade de So Paulo, Brasil)

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    Recherche en Sciences Sociales e, em 1981, tornou-se titular da Cadeira de Sociologia doCollge de France, aps ter competido com Raymond Boudon e Alain Touraine. Sergio Miceli(1999) escreveu que Bourdieu reiterou obsessivamente ao longo de sua obra os ganhosheursticos dessa experincia cruzada entre o desenraizamento de um universo familiar e afamiliarizao com um universo estrangeiro.

    Quando se candidatou ao Collge, em 1981 j era um autor, possuindo obraconsidervel: escrevera perto de uma centena de artigos em revistas acadmicas, muitos outrosna grande imprensa e, ainda, 18 livros2. Merece destaque a meno de que Bourdieu, professorem plena guerra da Arglia (onde viveu por 5 anos), interessa-se pela situao da agriculturalocal: na passagem de um sistema tradicional ao capitalismo moderno, o campesinato encontra-se em plena transformao. um perodo bastante profcuo para Bourdieu, no qual escrever:Sociologia da Arglia (1958); Os argelinos (1962); Le Dracinement(1964); Trabalho etrabalhadores na Arglia (1963). Neste ltimo livro, Bourdieu vai desenvolver um dosconceitos-chave de sua teoria, o habitus. No artigo sobre o Celibato e a condio camponesa(1962) revela o mecanismo sutil que transforma as modalidades de reproduo social ebiolgica. E a anlise dos arranjos familiares que fazem do casamento uma forma desobrevivncia no sistema de relaes sociais e econmicas. O interesse desse artigo est tambmna comparao que ele efetua entre esse sistema de arranjos familiares na Kabilia (Arglia) eno Barn, sua regio natal. Como em vrias conferncias ou textos, Bourdieu considera que elese torna verdadeiramente socilogo e etnlogo pela experincia argelina. At em sua ltima aulano Colgio de Frana, ele evocar fatos ou idias que nasceram nessa poca e que marcaramtoda sua teoria (Vasconcellos, 2002: 79).

    Em sua volta Frana, torna-se assistente na Universidade de Lille e eleito professorna atual cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, iniciando intenso perodo de trabalhocom Jean-Claude Passeron. Ambos eram filsofos e tornaram-se socilogos como alunos deRaymond Aron. E ambos pem em dvida uma das idias mais tenazes da ideologia republicana:a igualdade de oportunidades e a importncia do sistema escolar para garantir igualdade social atodos. o prprio fundamento da sociedade meritocrtica que eles criticam e o sistema de

    ensino considerado como a ponta de lana dessa ideologia (Vasconcellos, 2002: 79). Issoaparece em Les Hritiers (1964), na coleo Le sens commun, que passa a dirigir e que responsvel pelo aparecimento de vrios autores estrangeiros ou franceses que se tornaroconhecidos no domnio das cincias sociais. Ainda nesse livro, se chama a ateno (e se trabalhade maneira criativa) para o conceito de capital cultural (diplomas, nvel de conhecimento geral,boas maneiras, posturas) utilizado para se distinguir do capital econmico e do capital social(rede de relaes sociais).

    Viro em seguida textos que exploram a relao entre ensino e cultura, inspirando umasrie de publicaes sobre as funes sociais das prticas culturais (Vasconcellos, 2002: 80).So eles: Un art moyen, essai sur les usages sociaux de la photographie (1965, com LucBoltanski, Robert Castel, Jean-Claude Chamboredon), LAmour de lart, Les muses darteuropens et leur public (1966, com Alain Darbel e Dominique Schnapper) 3. A idia de unir

    esses dois universos educao e cultura a origem da criao do Centro de Sociologia daEducao e da Cultura (1968), onde ele trabalhara at 1981, quando entra no Colgio deFrana (Vasconcellos, 2002: 80). Com Jean-Claude Passeron e Jean-Claude ChamboredonescreveLe Mtier de Sociologue. Ainda com Passeron, publicouA reproduo: elementos parauma teoria do sistema de ensino (1970). Contrariamente idia mais divulgada que faz daescola um reflexo e um instrumento da reproduo social, a obra da Reproduo tentadesenvolver a noo da violncia simblica (...). Atravs do uso [desse conceito] ele tentadesvendar o mecanismo que faz com que os indivduos vejam como natural as representaesou as idias sociais dominantes. A violncia simblica desenvolvida pelas instituies e pelos

    2 A trajetria intelectual de Bourdieu est sendo exposta a partir dos seguintes textos: Miceli (1999);

    Vasconcellos (2002); Catani (2002); Catani, Catani, Pereira (2001; 2001).3 Em 1965, em co-autoria com Passeron e Monique de Saint-Martin, publicou Rapport Pdagogique etcommunication.

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    agentes que as animam e sobre a qual se apia o exerccio da autoridade (Vasconcellos, 2002:80).

    Em 1979, com La Distinction: critique social du jugementBourdieu tenta construir acorrespondncia entre prticas culturais e classes sociais, bem como ao princpio que legitima ahierarquia a implcita. Entretanto, desde o incio da dcada, seus esforos se concentraram na

    elaborao de uma teoria da sociologia da ao. Esquisse dune thorie de la pratique, prcdde trois tudes dethnologie kabyle (1972) prenncio deLe sens pratique (1980), nova versode sua teoria sobre a economia das prticas, procurando situar a sociologia em relao correnteobjetivista simbolizada pela etnologia de Claude Lvi-Strauss e s correntes subjetivistasrepresentadas pela fenomenologia de Jean-Paul Sartre (Vasconcellos, 2002: 82). No incio dosanos 70 aparecem seus primeiros escritos envolvendo explicitamente o conceito de campo social so exemplos os artigos Le march des biens savants (1971), Especificidade do campocientfico e as condies sociais do progresso da razo (1975), Le champ scientifique (1976)etc.

    A partir dos anos 80 vamos encontr-lo s voltas com livros que constituem umainiciao sua obra: Questions de Sociologie (1980), Choses Dites (1987),Rponses (1992) e

    Raisons Pratiques (1994). Tambm estuda campos especficos, como o da sociolingstica,consolidado em Ce que parler veut dire (1982) (Vasconcellos, 2002: 83). Trabalha, igualmente,sobre o campo universitrio, o do jornalismo e o literrio. EmHomo Academicus (1984) estudaos professores universitrios, mostrando os conflitos existentes, passando para uma anlise dasgrandes escolas francesas, justamente as que preparam os funcionrios de elite, os que vo sedirigir esfera do poder verLa Noblesse dtat. Grandes coles et esprit de corps (1989). Em1992 divulga outro livro magistral, Les Rgles de lart(1992), com o subttulo Gnese eestrutura do campo literrio.

    O incio dos anos 90, na Frana, foi marcado pelo agravamento da crise econmica, doemprego e pela emergncia do fenmeno da excluso social. Bourdieu e colaboradorespublicaro volume que procura abarcar essa situao (A Misria do Mundo, 1993). Acentua-se,ento, um processo de engajamento poltico que iniciou-se, talvez, em 1981 onde, junto com

    Michel Foucault, lana um apelo a favor do sindicato polons Solidarnosc. As greves denovembro e dezembro de 1995 fazem de Bourdieu um dos principais defensores dasreivindicaes e animador do Movimento Social recm-criado. O slogan esquerda, todos!contribui para fazer de Bourdieu um smbolo da esquerda da esquerda, um movimento crticoda esquerda liberal que investe o poder (Vasconcellos, p. 85). Em 08/04/1988, no artigo Pourune gauche de gauche, critica a troika neo-liberal Blair-Jospin-Schrder. Cria uma coleo delivros, Les raison dagir, com a finalidade de alimentar os debates sociais e ideolgicos. Seulivro Sobre a televiso (1996) sucesso de vendas na Frana e em uma dezena de pases. Omesmo acontece com Contrafogos: tticas para enfrentar a invaso neo-liberal (1998). Publica,ainda, Les structures sociales de lconomie (2000), Contre-feux 2 (2001), outros livros comreflexes de cursos e intervenes polticas, o magistral Mditations Pascaliennes (1997), emque faz um balano geral de sua obra, e A dominao masculina (1998), significativa e

    polmica contribuio temtica de gnero.As apropriaes de sua obra no Brasil na rea da educao foram peculiares: Bourdieutransformou-se num pedagogo ou num filsofo educacional cuja pedagogia devia ser rejeitadaem nome dum humanismo otimista que era justamente o que ele estava criticando (Silva, 1996:229). Sua obra acabou aprisionada nas dicotomias que ele tanto combateu: enclausurou-se a suasociologia na dicotomia reproduo versus transformao, dicotomia que na poca fez enormesucesso no campo educacional ver Silva (1996) e Catani, Catani, Pereira (2001; 2002).

    Embora se possa dizer que, durante anos, a leitura de Bourdieu no Brasil concentrou-seemA reproduo, convm lembrar que a partir de meados da dcada de 80 os estudos que nelese apiam e dele se apropriam passam a revelar maior familiaridade com sua obra, incorporandooutros ttulos e contribuies do socilogo e de seu grupo reunido em torno de seminrios depesquisas e da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Exemplar dessa nova

    disposio de trabalho o texto de Maria Alice Nogueira, A escolha do estabelecimento de

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    ensino pelas famlias: a ao discreta da riqueza cultural (Revista Brasileira de Educao, n 7,p.42-56, jan-abr, 1998).

    Em perspectiva distinta, destacam-se, alm de Silva (1996), dois outros trabalhos desseautor: A dialtica da interioridade e da exterioridade em Bernstein e Bourdieu (Teoria eEducao, n 5, p.133-148, 1992) e Retomando as teorias da reproduo (Teoria e Educao,

    n 1, p.155-179, 1990). Entretanto, se a presena ou a utilizao do conceito de campo nodomnio das humanidades e, em especial, da produo educacional tm sido recorrentes,nem sempre tm sido acompanhadas de uma incurso mais demorada pela obra de Bourdieu. Aidia das mltiplas possibilidades de recurso ao autor (e ao conceito de campo) enseja aconcretizao de anlises bastante diversificadas, tal como foi ressaltado a propsito dostrabalhos que venho desenvolvendo.

    Convm sublinhar que uma das especificidades da reflexo aqui delineada consiste noesforo de acompanhar detidamente, no interior da obra de Bourdieu e na arquitetura dos seusestudos empricos, a construo e as configuraes assumidas pelo conceito de campo.Diferentemente de outros trabalhos realizados, examinarei o papel e os usos de uma noonuclear no pensamento e na proposio da sociologia do autor, explorando seu potencialanaltico para o conhecimento de espaos tais como o campo educacional. Outra especificidadevem a ser o detalhamento das apropriaes do pensamento de Bourdieu no campo educacionalbrasileiro por meio da anlise de livros, artigos, teses e dissertaes que utilizaram o autor comoreferncia para suas investigaes.

    Ao menos trs aspectos centrais necessitam ser estudados para a compreenso doarcabouo epistemolgico do trabalho sociolgico de Bourdieu: o conceito de prtica (ou oconhecimento praxiolgico) e as noes de habitus e de campo. Carlos Benedito Martins (2002:176) escreve que em face da posio que os agentes ocupam () [no espao as sociedadesaltamente diferenciadas], das vises que constrem sobre ele, das formas como seautoclassificam e classificam socialmente os outros agentes, pode-se compreender, em boamedida, a lgica da pluralidade de suas prticas, como as culturais (freqentao de museus,preferncias literrias, musicais etc), econmicas (forte ou fraca propenso poupana etc),

    estratgias educativas etc., sobretudo quando associadas a um sistema de disposio produzido eutilizado por determinado grupo ou classe social. a essa concepo de espao social que Bourdieu vai sobrepor a noo de campo,

    articulada s de habitus e de prtica. O habitus entendido como um sistema de disposiesdurveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto ,como princpio que gera e estrutura as prticas e as representaes que podem ser objetivamenteregulamentadas e reguladas sem que por isso sejam o produto de obedincia de regras,objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeo consciente destefim ou do domnio das operaes para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamenteorquestradas sem serem o produto da ao organizadora de um maestro (P. Bourdieu. Le sens

    pratique. Genve, Droz, 1972, p.175). J emA Reproduo (1970), Bourdieu e Passeron haviamretido a idia escolstica de habitus enquanto um sistema de disposies durveis. Sua

    existncia resulta de um longo processo de aprendizado, sendo produto da relao dos agentessociais com diversas modalidades de estruturas sociais. Em A fora do sentido (1974: XLVII),Sergio Miceli escreve que o habitus constitui a matriz que d conta da srie de estruturaes ereestruturaes por que passam as diversas modalidades de experincias diacronicamentedeterminadas dos agentes. Nesse sentido, assim como as primeiras experincias dos atoressociais vividas no ambiente familiar (isto , o habitus adquirido nas relaes familiares) socondio primordial para a estruturao das experincias escolares, o habitus transformado pelaao escolar constitui o princpio de estruturao de todas as experincias ulteriores, incluindodesde a recepo das mensagens produzidas pela indstria cultural at as experinciasprofissionais.

    Bourdieu, ao criticar o objetivismo e o conhecimento fenomenolgico, formula outromodo de conhecimento, inicialmente denominado praxiolgico, cujo objetivo articular

    dialeticamente estrutura social e ator social. Martins (2002: 172), analisando Esquisse dunethorie de la pratique, escreve que Bourdieu vai afirmar que o conhecimento praxiolgico tem

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    como objeto no somente o sistema de relaes objetivas, mas tambm as relaes dialticasentre essas estruturas e as disposies durveis dos agentes, nas quais elas se atualizam. Comisso busca ressaltar o duplo processo de interiorizao da exterioridade e de exteriorizao dainterioridade.

    A prtica entendida como o produto de uma relao dialtica entre uma situao e

    um habitus (P. Bourdieu. Esquisse dune thorie de la pratique, p.178). Bourdieu chama desituao categoria que, progressivamente, ir receber a denominao de campo. Essa noo,esclarece Carlos Benedito Martins, comeou a ser elaborada por volta dos anos 1960 econstitui, de certa forma, o resultado da convergncia entre reflexes desenvolvidas emseminrios de pesquisa sobre a sociologia da arte por ele dirigidos na cole Normale Suprieuree uma releitura do captulo sobre sociologia da religio de Economia e Sociedade, de MaxWeber. Seus trabalhos orientam-se a partir de ento para a anlise de diferentes campos,principalmente os situados na esfera da vida simblica (campo da moda, das instituies deensino, da literatura, do esporte, da filosofia, dos intelectuais etc.). A abordagem dos camposseria inseparvel da anlise da gnese das estruturas mentais dos atores que neles participam, asquais de certa forma constituem produto da interiorizao dessas estruturas objetivas. Um deseus primeiros trabalhos em que aparece esse conceito Champ intellectuel et projet crateur.

    Les Temps Modernes, n 246, 1966, p.865-906. Quanto gnese do conceito, ver Choses dites,p.33) (Martins, 2002: 176).

    Distanciando-se das polaridades tradicionais (objetivismo/subjetivismo), Bourdieuargumenta que o objeto da cincia social no repousa nem no primado do indivduo nem naestrutura, mas na relao recproca entre os sistemas de percepo, apreciao e ao, ou seja,os habitus, e as diferentes estruturas constitutivas do mundo social e das prticas, ou seja, osdiferentes campos (Martins, 2002: 176). Bourdieu substitui a noo de sociedade pela decampo, pois entende que uma sociedade diferenciada no se encontra plenamente integrada porfunes sistmicas mas, ao contrrio, constituda por um conjunto de microcosmos sociaisdotados de autonomia relativa, com lgicas e necessidades prprias, especficas, com interessese disputas irredutveis ao funcionamento de outros campos.

    Bernard Lahire, em Reproduo ou prolongamento crticos?, extrai os elementosfundamentais e relativamente invariantes da definio do campo (Lahire, 2002: 47-48):

    -Um campo um microcosmo includo no macrocosmo constitudo pelo espao social(nacional) global.

    -Cada campo possui regras do jogo e desafios especficos irredutveis s regras do jogoou aos desafios dos outros campos (o que faz correr um matemtico e a maneiracomo corre nada tem a ver com o que faz correr e a maneira como corre umindustrial ou um grande costureiro).

    -Um campo um sistema ou um espao estruturado de posies.-Esse espao um espao de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as diversas

    posies.

    -As lutas do-se em torno da apropriao de um capital especfico do campo (omonoplio do capital especfico legtimo) e/ou da redefinio daquele capital.-O capital desigualmente distribudo dentro do campo e existem, portanto, dominantes

    e dominados.-A distribuio desigual do capital determina a estrutura do campo, que , portanto,

    definida pelo estado de uma relao de fora histrica entre as foras (agentes,instituies) em presena no campo.

    -As estratgias dos agentes entendem-se se as relacionarmos com suas posies nocampo.

    -Entre as estratgias invariantes, pode-se ressaltar a oposio entre as estratgias deconservao e as estratgias de subverso (o estado da relao de fora existente). Asprimeiras so mais freqentemente as dos dominantes e as segundas, as dos dominados

    (e, entre estes, mais particularmente, dos ltimos a chegar). Essa oposio pode tomara forma de um conflito entre antigos e modernos, ortodoxos e heterodoxos

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    -Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo tm pelo menos interesse em

    que o campo exista e, portanto, mantm uma cumplicidade objetiva para alm daslutas que os opem.

    -Logo, os interesses sociais so sempre especficos de cada campo e no se reduzem aointeresse de tipo econmico.

    -A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposies incorporadas) prpriodo campo (por exemplo o habitus da filologia ou o habitus do pugilismo). Apenas quemtiver incorporado o habitus prprio do campo tem condio de jogar o jogo e deacreditar n(a importncia d)esse jogo.

    -Cada agente do campo caracterizado por sua trajetria social, seu habitus e suaposio no campo.

    -Um campo possui uma autonomia relativa: as lutas que nele ocorrem tm uma lgicainterna, mas o seu resultado nas lutas (econmicas, sociais, polticas...) externas aocampo pesa fortemente sobre a questo das relaes de fora internas.

    EmLa Noblesse dtat(1989: 376), inscrevia-se na tradio de reflexes sociolgicas eantropolgicas, atravs da teoria dos campos, sobre a diferenciao histrica das atividades oudas funes sociais e sobre a diviso social do trabalho. De Spencer a Elias, passando por Marx,Durkheim e Weber, este tema nunca deixa, de fato, de aparecer nos escritos tericos do mundosocial (Lahire, 2002: 48). Entretanto, no demais salientar que o presente projeto examinartambm as crticas dirigidas sociologia de Bourdieu, com a finalidade de concretizar premissacientfica bsica, qual seja, a de que o respeito cientfico verdadeiro para com um autor, paracom sua obra, exige discusso e avaliao rigorosas e constantes. O prprio Bourdieu (Choses

    Dites, 1987: 63-64) comenta que, a partir de sua relao com Weber, possvel pensar com umpensador contra esse pensador. Por exemplo, eu constru a noo de campocontra Weber e aomesmo tempo com Weber, refletindo sobre a anlise que ele prope da relao entre padre,profeta e feiticeiro. Dizer que se pode pensar ao mesmo tempo com e contra um pensadorsignifica contradizer radicalmente a lgica classificatria com a qual se costuma pensar (...) a

    relao com as idias do passado. A favor de Marx como dizia Althusser, ou contra Marx. Achoque possvel pensar em Marx contra Marx ou com Durkheim contra Durkheim, e tambm, claro, com Marx e Durkheim contra Weber e vice-versa. assim que funciona a cincia. Nessesentido, em tom polmico, acrescenta que ser ou no ser marxista, por exemplo, umaalternativa religiosa e de modo algum cientfica. Em termos de religio, ou se muulmano ouno se , ou se faz a profisso de f, a chahada, ou no se faz. A frase de Sartre segundo a qualo marxismo a filosofia insupervel do nosso tempo, com certeza no a mais inteligente deum homem de resto muito inteligente. Talvez haja filosofias insuperveis, mas no h cinciainsupervel. Por definio, a cincia feita para ser superada. E Marx reivindicou bastante ottulo de cientista para que a nica homenagem a lhe ser feita seja a de se usar o que ele fez e oque outros fizeram com o que ele havia feito para superar o que ele acreditou fazer (grifosmeus).

    Assim, no que se refere especificamente noo de campo, lembro Lahire: a teoria doscampos mostra (...) pouco interesse para a vida fora-do-palco ou fora-do-campo dos agentes quelutam dentro de um campo (...). Ao contrrio do que as frmulas mais gerais podem levar aacreditar, nem tudo (indivduo, prtica, instituio, situao, interao...), portanto, pode serincludo em um campo (2000: 50). A partir de tais observaes pode-se, ento, reiterar parte daproposio desta discusso: trata-se de investigar o papel, as configuraes, potencialidadesinterpretativas e limites do conceito de campo tal como foi utilizado em seus trabalhosempricos.

    Quanto s formas de apropriao das proposies de Pierre Bourdieu no campoeducacional brasileiro, isso dever ocorrer atravs do levantamento e anlise sistemticos delivros, artigos, teses de doutorado e dissertaes de mestrado nos quais h referncias ao autor,incorporao de seus conceitos e/ou assimilao de sua metodologia de trabalho.

    O campo educacional brasileiro possui algumas peculiaridades. Neste, a produocientfica foi fortemente orientada para a resolver problemas, acompanhada por um af

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    prescritivo e, muitas vezes, fez passar a um segundo plano a possibilidade de se estarcompreendendo as especificidades do funcionamento do espao em que a educao seconcretiza e no qual se disputa o direito de impor o discurso legtimo acerca da mesma. Merecedestaque uma dimenso relativamente pouco explorada: a diferena entre os problemaseducacionais e os problemas sociolgicos da educao: no se trata de deixar de esperar

    conseqncias, sem que para isso as expectativas sobre as mesmas venham integrar a prpriateoria. tambm o caso de se indagar se essa marca da apropriao do pensamento de Bourdieuentre ns, nos anos 70 e parte dos 80, no constitui mesmo, e ainda hoje sob formas variadas,um dos traos principais da produo educacional, nos obrigando a indagar sobre os rumostomados por essa produo, no mbito no somente da sociologia, mas da histria, da psicologiae de estudos especialmente ligados investigao do trabalho prtico do ensino.

    Nesse sentido, a reflexo concentra-se na anlise de artigos divulgados nas principaisrevistas acadmicas brasileiras na rea educacional4, no estudo dos livros de comentaristas eanalistas que escreveram sobre Bourdieu, das teses de doutorado e das dissertaes de mestrado.O perodo de abrangncia da anlise vai de 1968 (primeira publicao de Bourdieu no Brasil)aos dias actuais

    Referncias bibliogrficas

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    Leon sur la Leon. Paris, Minuit, 1982.Les Rgles de lArt. Gense et Structure du Champ Littraire. Paris, Seuil, 1992.

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    Mditations Pascaliennes. Paris, Seuil, 1997.

    4 Um levantamento preliminar foi realizado em Catani, Catani e Pereira (2001) , onde mapeamosinicialmente apropriaes da obra do socilogo francs nos seguintes peridicos: ANDE; CadernosCEDES; Cadernos de Pesquisa; Contexto e Educao; Educao e Filosofia; Educao e Realidade;Educao e Seleo; Educao e Sociedade; Educao em Debate; Educao em Revista; Em Aberto;

    Estudos em Avaliao Educacional; Forum Educacional; Idias; Pro-Posies; Revista Brasileira de Administrao da Educao; Revista Brasileira de Educao; Revista Brasileira de EstudosPedaggicos; Revista da Faculdade de Educao; Teoria e Educao.

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