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Livro sobre o percurso do mestre Stobbaerts no mundo das artes marciais.
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aiki doa p r o c u r a d a u n i d a d e
g e o r g e s s t o b b a e r t s
aiki doa p r o c u r a d a u n i d a d e
g e o r g e s s t o b b a e r t s
Shité:
Aité:
Georges Stobbaerts
Stéphan Goffin
Eric Begin
João de Almeida
José António Filho
Pedro Pinto
Manuel Guerreiro
Tradução:
Ilustração da capa:
Desenhos e Caligrafia:
Aguarela final:
Fotografias:
Projecto gráfico:
Coordenação de Produção:
Impressão:
Fátima Patriarca
Miguel Raposo
Georges Stobbaerts
Autor chinês
Paulo Andrade
Alexandra Paulino
Vera Bettencourt
Triacção - Publicidade, Arqui-
tectura e Promoções, Lda.
Guide, Artes Gráficas, Lda.
AIKIDO, A PROCURA DA UNIDADE
© Georges Stobbaerts, 2001
Edição com o apoio de:
Ten Chi International
1ª Edição — Julho de 2001
Lisboa — Portugal
Depósito Legal 167140/01
ISBN 972-95475-2-1
2
P re fá c i o 5
In t rodução 11
I O Gue r r e i r o 15
I I O Medo 17
I I I O A ik i Do — o ge s to do i n s t an te 19
I V O Kamae — Mig i Kamae 23
V Aborda r a p r á t i c a do A i k i Do 25
V I Para um ens ino mai s avançado. O Zen 33
V I I Ken Zen Ch i 3 5
V I I I Ac t i vo - Pa s s i vo 39
I X Ko Kyu 45
X A re sp i r a ção e a s ua u t i l i z a ção 47
X I Concen t r a ção 55
X I I A Ene rg i a C r i ado ra 61
X I I I Sen t i r 6 5
X I V No co ra ção da Té cn i c a 69
.1 I r im i Nage
.2 Ten Ch i Nage
X V Temos nó s ouv ido s ? 7 3
X V I O fu tu ro é da s c r i an ça s 7 5
X V I I A fo rma do mov imen to . Ma s qua l ? 8 1
X V I I I Os t r ê s mov imen to s 89
X I X A domes t i c a ção do Bú fa lo 95
XX Os e s c r i t o s do pa s s ado . O Budo 105
. 1 Takuan
. 2 Miyamoto Musa sh i
. 3 A a r t e de D ing
. 4 Hi s tó r i a ch ine sa da d ina s t i a Song
X X I O Mes t r e , a r t e s ão s em ob j e c to 117
G lo s s á r i o 121
B ib l i og ra f i a 129 3
índice
pág . pág .
Agradeço aos meus mestres e alunos que, em grande núme-
ro, quiseram interessar-se pelos meus projectos desde o ínicio da mi-
nha vinda para Portugal. Os seus encorajamentos, sugestões e cha-
madas de atenção permitiram que esta obra pudesse aprofundar o
ensina-mento e a Via do Budo.
Pela realização deste livro, e a esse título, quero agradecer
mais particularmente à Fátima Patriarca pelos seus preciosos conse-
lhos, sem nunca se poupar a esforços, dirigindo com competência a
tradução do livro, ao Jorge Trigo de Sousa pelas suas críticas esclare-
cidas, à Ana Oliveira e ao Miguel Raposo por me terem encorajado
na elaboração deste livro.
Georges Stobbaerts
4
I
Vistos de longe, o Oriente, o Budismo, o Yoga, o Zen, con-
têm valores e propõem experiências que lembram o Cristianismo, na-
quilo em que, precisamente, este é acusado de ter falhado: acompa-
nhar a evolução espiritual do homem.
Cristianismo também visto de longe, no tempo; o homem su-
posto ter de evoluir, como já terá evoluído, de animal para antropói-
de, de antropóide para ser primitivo ou selvagem, de selvagem para
bárbaro e civilizado, de civilizado para... para quê?
Expectativa sentida agora como vã, vazia de valores e de ob-
jectivos, mal-estar da civilização, diria Freud.
Mas as civilizações também se definem por aquilo que rejei-
tam, que odeiam, temem ou mesmo abominam. E o mesmo nas pes-
soas e nos grupos sociais, onde o comportamento é, em grande par-
te, determinado pela rejeição de valores considerados alheios, opos-
tos, rejeitáveis. Valores que mais são considerados como contravalo-
res, originados por entes malfazejos e geradores do pecado e da sub-
versão, conforme estejam em causa questões religiosas ou políticas.
Esta atitude, do culto da rejeição, melhora aparentemente a
coesão de civilizações, igrejas, ideologias políticas, ou simplesmente
de associações, clubes ou famílias; no seu incitamento à desconfian-
ça do outro, permite a recusa concreta e real do universalismo.
O exotismo é ainda um culto da rejeição. Não se procura a
compreensão de outros seres, reconhecendo neles semelhantes; pro-
cura-se, com superioridade, um teatro travesti ou um circo, diverti-
mento cómico inócuo ou jogo infantil.
Estes, digamos, contravalores, encerram porém aspectos que
contrariam a almejada coesão: exercem fascínio! Fascínio pelo des-
conhecido, pelo diferente, curiosidades que levam à exogamia inte-
lectual e afectiva. Como do homem para a mulher oculta, da mulher
para o homem esperado, do urbano perante o deserto ou do pro-
vinciano perante a cidade.
p
5
p r e f á c i o
Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o outro
a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos sobre
nós mesmos, como somos o primeiro a atacar.
in “Introdução”
e nos Estados Unidos.
No Ocidente pós-colonial desenvolvem-se movimentos uni-
versalistas, a que poderíamos chamar neo-humanistas. Esquece-se fa-
cilmente o passado, ou dele nunca se teve conhecimento, considera-
-se louvável tratar por igual todas as raças, todos os povos, classes e
valores. É o chão que facilita a transformação de qualquer valor ou
qualquer novidade em desporto, competição, espectáculo, seita reli-
giosa ou produto comercial.
Isto do lado material.
Do lado espiritual, o quase desaparecimento da espiritualida-
de num Ocidente cada vez mais rico, mais atemorizado, mais infeliz,
à deriva moral e afectiva.
II
Mas vejamos outros aspectos.
As artes marciais japonesas fazem parte duma cultura não oci-
dental mas não são japonesas de origem. Como o Mestre Stobbaerts
tem feito notar, a componente e origem chinesas e mesmo indiana
do Budo são decisivas para o seu desenvolvimento no Japão.
E o que é o Japão actual? Um sincretismo de Oriente antigo
e do Ocidente recente, resultado do enxerto do industrialismo oci-
dental no tronco japonês. A própria evolução do Budo, após a aber-
tura do Japão ao exterior, na segunda metade do século XIX, é con-
dicionada pela reacção aos valores e ideias ocidentais, que começam
a entrar, acompanhando a indústria, a técnica e o comércio.
As reformas do Mestre Jigoro Kano, criando o Judo a partir do
Jiu Jitsu, e do Mestre Funakochi, criador do Karaté moderno, são dis-
so exemplo. O extraordinário desenvolvimento do Kendo, integrado
no sistema de ensino desde a mais tenra idade, obrigatório para crian-
O homem move-se, quando pode e quando o deixam, na di-
recção do que pode ser o perigo e o abismo; nunca se sabe o que se
perde, ou se se perde alguma coisa, ignorando o proibido.
Mas abismo, qual abismo?
O perigo foi o Ocidente para o Islão, para os Chineses, para
os Japoneses, e os mesmos para o Ocidente; em nome desses “ini-
migos” cometeram-se não poucas barbaridades.
Onde é que existe, objectivamente, o perigo e a perdição?
Em grande parte é apenas um temor mental e afectivo, sem
raízes reais, fruto do desconhecimento, da desinformação, facilitado
pelas carências morais e físicas.
O Japão vem a propósito e a calhar como um bom exemplo.
Isolou-se durante mais de duas centenas de anos, considerou os es-
trangeiros como inferiores e bárbaros. No xintoísmo não há lugar pa-
ra os outros povos, salvo raras excepções, é uma religião para os ja-
poneses, tal como o judaísmo, também salvo raras excepções, é uma
religião para os judeus. Ao contrário do Budismo, do Cristianismo e,
de certa maneira, do Islamismo, que se consideram religiões univer-
sais.
Como é então possível, ou mesmo desejável, a prática de ar-
tes japonesas no Ocidente? Que significado pode ter a absorção du-
ma cultura milenária, de nós afastada e pouco conhecida, que até há
poucos anos se considerava superior e não passível de ser transmiti-
da a outros povos?
Diferentes circunstâncias movimentaram o Budo, Artes Marciais
Japonesas, para fora do Japão, dispersando-o por quase todo o mun-
do. Por um lado, o fascínio e a curiosidade por práticas, ainda miste-
riosas e envoltas numa aura de eficiência sem limites. Por outro lado,
o Japão, com intenções várias, intensificou essa divulgação na Europa
p
6
ças e adolescentes, é fruto duma deliberada reforma governamental.
São reacções contra a ginástica e o desporto ocidentais... de
que o Japão mais tarde se torna campeão em muitas modalidades!
Reacção também contra o poderio militar da Europa e dos
Estados Unidos, de que o Japão iria conhecer as funestas conse-
quências. Reacção contra as invasões ideológicas: cristianismo, de-
mocracia, e contra a entrada de produtos que se propunham alterar
o quotidiano japonês. O próprio xintoísmo, religião de japoneses pa-
ra japoneses, conhece uma reforma profunda e uma restauração sem
precedentes.
O impacto do Ocidente no Japão é então ainda maior que
quando dos “descobrimentos”: estudo exaustivo da perspectiva re-
nascentista europeia, absorção apressada da ciência e tecnologia oci-
dentais, revolução industrial tardia mas rápida, construção de navios
de grande porte e de aviões, introdução do cinema, curiosidade pe-
la literatura ocidental.
III
O Budo Japonês começa a ser conhecido e praticado na Europa
no início do século XX. Mas são praticantes isolados, não prolifera,
poucas escolas datam dessa altura. Em larga escala, só se desenvol-
ve na Europa e na América depois da segunda guerra mundial, in-
fluen-ciado pelos contactos em massa que este conflito provoca. O
exército americano iniciou treinos de Jiu Jitsu ainda nos anos qua-
renta, para melhor preparar os soldados para as longas batalhas do
Pacífico.
A pouco e pouco, são os guarda-costas, os polícias, os agen-
tes especiais, os arruaceiros, que vão usando cada vez mais o Karaté
e o Judo em substituição do Boxe e da Greco Romana. Durante a
guerra colonial dos anos 60/70 as nossas tropas aprenderam noções
elemen-tares de Jiu Jitsu, incluindo projecções, quedas enroladas e
placadas e “atemi”.
Nos jogos de 1964, o Judo já é um desporto olímpico. E lo-
go a seguir começam a ser criadas federações mundiais de diversas
artes marciais.
A partir dos anos 70, os filmes de “artes marciais”, leia-se
“porrada”, proliferam, primeiro chineses e mais tarde americanos, su-
cedâneo, em parte, dos filmes de capa e espada e dos western. Os
heróis modernos já não sabem Boxe ou Greco Romana, sabem Karaté,
Jiu Jitsu ou Aikido.
Por outro lado, o Japão adopta o sistema político e económi-
co do ocidente: parlamentos democraticamente eleitos, liberalização
económica, novas formas de gestão de empresas, separação de po-
de-res. Desenvolve o gosto pelo golfe, pelo futebol e outros despor-
tos, tornando-se exímio e mesmo campeão em alguns, o seu cinema
torna--se numa das principais cinematografias mundiais, em quanti-
dade e em qualidade.
As civilizações, como os povos, são assim o resultado do que
vai ficando das trocas que as cruzam.
As supostas genuinidades, particularismos, identidades, são
agora abaladas, como sempre. Mas hoje mais rapidamente, com os
novos meios de comunicação. Fica, porém, uma atitude mental e uma
assunção exterior de determinadas características herdadas, resulta-
do de quem não quer aceitar que muito mudou.
Os anos 50 assistem a um grande desenvolvimento do Yoga
e do Budismo Zen, nos Estados Unidos e na Europa. Figuras tão opos-
tas como Gandhi e Mao Tse Tung exercem grande fascínio. O maoís-
mo alastra na Europa, espécie de ricochete da acção dos ocidentais
p
7
ou mesmo anular esse ímpeto de recusa. Saber lutar sem destruir é
então uma grande conquista, repetida através da vida e dos séculos.
Saber ver no outro um igual, com os mesmos direitos, é ou-
tra grande conquista. Saber lutar como que jogando a vida, parar
quando necessário, diluir o eu até ao mínimo sem perder a identida-
de, são já passos duma evolução posterior, que muitos não arriscam
por a conside-rar perigosa. Arriscando, os gestos de luta e de morte
poderão assumir--se em gestos de compreensão, de amizade, de amor
no sentido lato.
Contrariando Mário de Sá Carneiro, posso ser o “eu” e o “ou-
tro”, num caminho não fácil mas promissor, com menos “tédio” do
que o do genial poeta a quem faltou o golpe de asa para ir mais além...
As artes marciais podem ensinar a disciplina do corpo e da
mente, eventualmente dois aspectos da mesma realidade, que per-
mite sentir-se parte do mundo sem nele se diluir, parte da sociedade
sem ficar anónimo, amigo ou amante sem deixar de contrariar.
Não há amor sem luta. No fluxo que circula entre seres todo
o ciclo tem altos e baixos, empatias e aversões, júbilos e sofrimentos.
Parar a meio do ciclo é catastrófico, repeti-lo infinitamente vai for-
mando a espiral que, assente na memória, temperada pela sensibili-
dade e empurrada pela coragem, se aproxima da plenitude que é o
gosto de repetir e rever, como num “kata” pessoal.
Perder o medo, um primeiro passo. Para continuar até pres-
sentir o prazer de se sentir dependente na independência. Aqui a uto-
pia não é apenas uma inatingível meta, é também um método, uma
atitude, uma relação, que ao assumir o poder ser, desvenda uma in-
suspeita (ou não) realidade, um conhecimento jorrante e permanen-
te dessa mesma realidade, na qual o próprio se inclui, agora com ou-
tros olhos, outros ouvidos, outras sensibilidades.
Para crer é preciso... crer!
Este livro ajuda, e um mestre também.
Marx e Lenine.
O Aikido é introduzido em Portugal por Mestre Georges
Stobbaerts, que acaba por se fixar no nosso país.
Funda o Dojo Budokan de Portugal e mais tarde o Dojo Ten
Chi, Honbu do Ten Chi Ryu, escola de artes marciais reconhecida pe-
la Dai Nippon Butoku Kai, de quem o Mestre é representante em
Portugal.
Patrocina e ensina diversas disciplinas Budo, bem como Yoga
e Zen, e cria o Tenchi Tessen, arte que embora baseada na tradição
do Japão bem pode ser considerada portuguesa.
No Japão ficaram palavras, gastronomia e costumes portu-
gueses.
IV
Shri Aurobindo, Yogi de formação oriental e ocidental, con-
si-dera que o pensamento e a filosofia da Grécia e Índia antigas eram
semelhantes e só divergiram a partir de Sócrates.
Assim as civilizações terão tido troncos comuns, mais tarde
divergentes, influenciaram-se, mutuamente ou não: acusaram-se por
vezes de serem subalternizadas ou destruídas por outras, com razão
ou não. Criaram mitos para explicar as suas origens divinas e exem-
plares, por contraste com as “outras” e os “outros”, com más ori-
gens ou mesmo sem origens.
O homem cresce e desenvolve-se em grande parte em luta
contra o exterior, sempre adverso, que o limita na sua infantil ambi-
ção de ser o único e o senhor do Universo. Ambição sempre frustra-
da pelos outros, que já cá estavam ou que vão chegando e importu-
nando.
É sinónimo de ser adulto e de ser civilizado o saber moderar
p
8
9
S e t e a m a r r a s à T é c n i c a , p e r d e s a V i a .
10
É na disponibilidade que a experiência do vazio se constrói.
O estudo em comum das Artes do Movimento faz parte da
utopia da escola Ten Chi International.
Aspiramos a que os problemas filosóficos, científicos e cultu-
rais, que este estudo em particular coloca, bem como os que ulte-
riormente venham a surgir, sejam tratados no espírito da mais ampla
tolerância. Tomámos igualmente consciência, no plano pedagógico,
da importância de definir a particularidade do nosso ensino.
Este estudo sobre o Aiki Do é uma fonte de documentação
que irá sendo publicada sob a égide de Ten Chi International.
A secção Aiki Do de Ten Chi International criará ”um colégio”
destinado à análise, aprofundamento e acompanhamento da peda-
gogia da escola.
Um das características-chave do Aiki Do é a que faz dele uma
Via. No que se refere ao alimento espiritual, cabe a cada um lançar
as sementes à terra, fazê-las crescer e colher os seus frutos.
Os critérios definidos e a descrição das etapas da progressão
deste estudo permitirão interpelar o praticante de uma maneira ob-
jectiva e imparcial. Apesar das dificuldades e dos obstáculos que a
prática levanta, carrearemos, lenta mas seguramente, elementos úteis
para a construção de um Budo que desejamos sereno.
Se, por falta de experiência, a nossa utopia a alguns parece
incerta, menos incerta se tornará na exacta medida do progresso que
cada um fizer. Impregnada de realismo humano e de esperança, ela
não se funda na demissão do Eu em proveito exclusivo das regras eco-
nómicas, antes se baseia na manifestação do Eu profundo e na igual-
dade intrínseca do Eu. Um Eu virgem, de onde sejam afastadas as ne-
fastas influências da violência, que é frequentemente o sintoma ac-
tual das Artes Marciais.
O espírito da prática deve estar imbuído de bondade, de to-
lerância e do espírito ”Do”, praticado por excelência na liberdade, is-
to é, no amor, numa procura do impecável. No mais íntimo de cada
homem, ferve uma torrente de bondade, calor e amor.
i
11
i n t r o d u ç ã o
As Leis Universais não pertencem
mais ao Oriente do que ao Ocidente.
O Sopro é de Todos...
Ai
significa
harmonia
Ki
energia,
respiração
Do
via,
caminho
universal. Evitando a mecanização do gesto, será mais fácil estabele-
cer uma ponte com o pensamento oriental. Uma autêntica Via pode
abrir-se, graças à realização da prática do Aiki Do.
Se se partir de um busca séria, liberta de um ego rei, a técni-
ca será um meio de fazer convergir em nós a nossa ”verdadeira na-
tureza interior”.
Uma única força pode provocar esta metamorfose: o amor.
É ele que dá a força, o entusiasmo, o interesse, sem o qual todo o es-
forço se dissolve em veleidade decepcionante.
Para viver esta abertura sobre o universo, que é uma expe-
riência, é preciso saber harmonizar o seu espírito com o seu projecto.
O Aiki Do não é o saber fazer de um acrobata susceptível de aperfei-
çoar a sua técnica. O Aiki Do põe em causa o praticante em todas as
suas virtualidades, explora todos os aspectos da sua personalidade.
O aikidoca2 deve combinar, simultaneamente, o equilíbrio cor-
poral do dançarino, a vigilância e a competência do guerreiro, a pre-
cisão do gesto do pintor, o rigor do médico ou do arquitecto, a pre-
sença de um grande homem do teatro, a visão interior do poeta e a
concentração de um yogi...!
Trata-se de um projecto ambicioso, mas estes são os primei-
ros passos para o questionamento da prática.
Tudo faremos para que este projecto signifique um pôr à pro-
va dos seus protagonistas, mas dentro de um clima de tolerância. Esta
prática consciente compromete muito mais do que o poderia fazer
por si só um arsenal técnico. Ela põe em acção o ser humano na sua
totalidade. Ela postula por princípio que nós temos em nós mesmos
todas as virtualidades que nos permitem ser os melhores portadores
da nossa arte e que nos é possível fazê-las emergir desde que encon-
tremos as vias de acesso ao nosso ser profundo.
Ao deixarmos esta torrente libertar-se, há quem pense que o
outro a vai utilizar contra si. Nessa altura, não só nos encerramos so-
bre nós mesmos, como somos os primeiros a atacar. Cada um vira as
costas à sua verdade. É preciso não esquecer que as Artes do
Movimento participam na obra de educação individual, colectiva e
permanente, sem a qual nenhuma evolução é possível e duradoura.
A Arte do Movimento, tal como a música, não visa apenas a procu-
ra da forma, ela é também comunicação, linguagem.
Esta linguagem pode ser imediatamente acessível à sensi-bi-
lidade, mas a partir do momento em que se intelectualiza, ela preci-
sa, como qualquer linguagem, de ser ensinada...
A raiz do verbo inglês to teach vem do gótico taiku, que
quer dizer signo (ainda hoje, a palavra token é utilizada neste senti-
do). A missão do ensino é observar aquilo que passa despercebido
aos demais. Ele é o intérprete dos signos1.
Os conselhos que dou para seguir um caminho como o ”nos-
so” estão longe de constituir um método. Representam antes a preo-
cu-pação de uma clarificação da escola. O meu propósito não é for-
necer uma visão exaustiva dos problemas do Aiki Do. Conheço de-
masiado bem a realidade do ensino para admitir que se possa apren-
der através de um livro. Aquilo que é vivo, sempre novo num ensino
oral, torna--se facilmente dogmático quando o fixamos por escrito.
Corre-se, aliás, o risco de nos darmos por satisfeitos com uma com-
preensão puramente intelectual, quando a única coisa que conta é a
experiência vivida. Identificando e distinguindo o essencial do aces-
sório, gostaria de contribuir para uma reflexão sobre a maneira de en-
sinar os programas técnicos (para as passagens dos graus).
Vivido do interior graças a uma experiência individual, o Aiki
Do renova o seu carácter fundamental e encontra a sua expressão
i
12
Graças à possibilidade que temos de conhecer a nossa pró-
pria realidade física e psíquica, a prática propõe o desenvolvimento
de um estado interior criativo.
Esta abordagem é essencialmente uma Via de despertar e de
conhecimento do Eu, uma procura do movimento que vai do interior
para o exterior, do centro para a periferia e que reúne todas as nos-
sas energias desordenadas ou dispersas numa única corrente de for-
ça (Ai Ki). Está fora de questão procurar para além de si uma técnica
exterior, feita de sistemas e de meios arbitrários. Trata-se antes de re-
velar as nossas potencialidades adormecidas ou ignoradas a fim de
descobrir a expressão que nos é própria.
A abordagem consciente desta prática requer uma disponi-
bilidade e a aplicação de energias para as quais raramente estamos
preparados e das quais dependem tanto a qualidade dos resultados
como o tempo necessário para os alcançar. Não é pois supérfluo fa-
zer inflectir os nossos prognósticos interiores através de uma reflexão
prévia, a fim de conciliar o nosso espírito com esta nova maneira de
proceder (e isto é tão válido para uma pessoa como para o dojo3).
1. Sybil Mohol Nagi, Introduction to the pedagogical sketchbook of Paul Klee, 1925.
2. Um aikidoca é alguém que possui vários anos de experiência.
3. Local onde se pratica uma Via (Cerimónia do Chá, Caligrafia, Aiki Do…)
i
13
Sei Katsu - A Vida
14
A imobilização no Budo: quem imobiliza, não se imobiliza. O olhar: a distância na vigilância.
A aprendizagem e o desenvolvimento da vida interior cruza-
ram--se frequentemente com a formação dos guerreiros e dos caça-
dores (no tempo em que os homens se batiam, de igual para igual,
com os animais ferozes).
O caminho do guerreiro e o do contemplativo parecem ser, à
primeira vista, completamente opostos. Mas um olhar mais atento
pode verificar que existe um ponto comum: um e outro vivem em es-
tado de alerta. Algo pode surgir do exterior para o combatente e al-
go do interior para o que medita e a ambos convém não falhar o que
pode advir. A vigilância do guerreiro faz dele alguém que está sem-
pre de atalaia, a do caçador alguém que ronda e persegue, e a do
contemplativo alguém que permanece desperto. Para estes homens,
destinados a viver na vigilância da atenção, o seu pior inimigo é ”o
medo”. Tudo começa, assim, pela aprendizagem deste confronto com
o terror, a angústia, a dúvida...
Na formação de um verdadeiro Mestre do Budo, tudo come-
ça também pelo encetar de um diálogo interior e pelo pôr termo à
representação de um mundo ilusório.
O objectivo desta aprendizagem é o domínio da junção da-
quelas atitudes. Este domínio permite transformar a visão do mundo
e a visão que se tem de si mesmo, para, enfim, dar os primeiros pas-
sos na Via ”que tem coração”.
Atravessar os obstáculos para lhes compreender a essência
permite encontrar a chave de todas as junções perceptivas e fazer a
experiência da realidade. Só uma preparação rigorosa pode dar hi-
póteses... A Via não pertence aos fracos. Os Mestres de Artes do Budo
ou do Zen são duros para com os seus discípulos. Mas alguns dos ca-
minhos que se consideram um ”Do” têm uma convicção comum:
”A formação espiritual não consiste em espalhar planos in-
clinados por todo o lado para fazer subir lesmas4.”
Com efeito, se o caminho é difícil, também é um ”caminho
de doçura”, o que não impede o vigor.
I
15
I o g u e r r e i r o
Existe a meditação Zen ou Dhyana que permite enfrentar o
inimigo interior e tomar consciência dos seus próprios demónios que
poderíamos designar em japonês por Makyo5. É um trilho cheio de
luz no qual pode abrir-se o Satori!
A Arte do Aiki Do, ligada a esta procura interior, pode de-
mons-trar, à sua maneira, o que pode ser um ”homem”.
4. Maurice Cocagnac, Le Zen, Mesnil-sur-l´Estrée, Plon/Mame, 1996, p. 134. MauriceCocagnac é dominicano e docente no Seminário sobre “Civilização Indiana eSânscrito” na Ecole des Hautes Etudes, Paris.
5. O termo Makyo vem de Ma, Akuma, que significa “diabo”, e de Kyo que signifi-ca “fenómeno, mundo dos objectos”. Ele corresponde, aproximadamente, a “fenómenos psíquicos”, ao conjunto de sensações e de fenómenos ilusórios (de-signadamente alucinações tanto visuais, como olfactivas; ou ainda de carácter pro-fético), que podem manifestar-se durante o Zazen. Medonhos ou atraentes, estesfenómenos não têm em si nada de “diabólico”, desde que o praticante os deixepassar e prossiga infatigavelmente o seu exercício. Para o Zen, Makyo é, em senti-do mais geral, o mundo da “consciência vulgar”. A verdadeira natureza dos fenó-menos só pode ser apreendida através de uma profunda iluminação. V. Dic-tionnai-re de la sagesse orientale, Paris, Robert Laffont, Bouquins, 1989, p. 346.
I
16
O um é o todo e o todo é um.
A primeira necessidade que se impõe a um praticante dese-
joso de mudar a sua abordagem é vencer o medo de ser posto em
causa, sobretudo por aquele que atingiu um grau (Dan).
É desagradável, por vezes, renunciar a um modo de pensar e
de agir alimentado por anos de hábito. Aquele que tomou a decisão
de tal renúncia agarra-se, conscientemente ou não, à sua construção
anterior, resistindo ao que pensa ser um desmantelamento. Para além
de uma pequena mudança da ”técnica” ou de algumas abordagens
novas, o medo domina-o. É justamente superando esta barreira e re-
considerando honestamente os diferentes comportamentos do espí-
rito e do corpo que se forjarão a intenção e o desejo de trabalho mais
decididos.
Para adquirir uma percepção das coisas tal como elas são é
preciso evitar estar permanentemente na defensiva, intelectualizan-
do perante as dificuldades, refutando ou argumentando. Quando en-
frentamos os obstáculos, o medo desaparece para dar lugar à urgência
de os resolver de imediato. Esconder-se ou fugir mais ou menos cons-
cientemente da realidade corresponde a agravar o mal que furtiva-
mente continua a atormentar-nos.
Tomar consciência do erro é o melhor trampolim para alguém
se agarrar, de forma duradoura, a uma busca do verdadeiro. O co-
nhecimento de uma verdade supõe, de algum modo, o erro prévio.
E o ser verdadeiramente sensível utiliza este erro em vez de perante
ele sucumbir. Nenhum defeito, nenhuma barreira aparentemente in-
transponível tem para ele valor de limite definitivo. Ele está em cons-
tante devir.
Mas este olhar sobre nós mesmos e sobre os nossos erros de-
ve sobretudo exercer-se no presente e não em relação a ideias ou a
uma erudição acumulada...
Um espírito sobrecarregado de passado está sempre em so-
frimento. Só a observação lúcida, franca e honesta do instante pre-
sente permite colocar-se na disposição de aprender. O espírito deve
II
17
II o m e d o
também estar liberto da rede de opiniões e de juízos de valor que o
mantêm num estado estático.
É preciso voltar a ser criança. Com o espírito puro, pode-se
de repente mudar de mentalidade, pode-se de súbito estar ”pronto”
quando o ontem deixou de pesar, quando o que se crê saber foi es-
quecido.
Se não somos amantes do belo e do verdadeiro, se não nos
sentimos atraídos para o ”alto”, se não temos curiosidade por todas
as manifestações da vida, que razão nos leva a comprometermo-nos
numa Via de ”questionamento” que só o amor justifica? Aquele que
não se põe ao serviço dos esplendores da natureza que nele dorme
na esperança de ser despertado, por que se haveria de lançar na Via
(Do) que apenas lhe traria, por aquele facto, desilusões?
O prazer é a motivação mais construtiva na conquista da Arte
do Movimento. Está completamente fora de causa encarar a nossa
prática como um dever. Não é possível educar o corpo e tornar os
seus membros ágeis se nenhum prazer resultar dessa actividade. Para
repetir incansavelmente um dado gesto em diferentes ritmos, é pre-
ciso que uma verdadeira paixão alimente a paciência. É preciso que
uma carga afectiva em contínua renovação — a do dojo é também a
do ambiente do curso — incite sempre a uma maior finura e subtile-
za.
Uma riqueza interior só se pode exprimir na Arte do Movimento
através de uma via corporal livre, sem constrangimentos, que não en-
trave nenhum gesto e dê uma total liberdade de acção.
II
18
O sopro é uma palavra à beira do silêncio.
O movimento do Aiki Do permite traduzir a ”beleza” da mes-
ma maneira que o movimento do pintor ou o do escultor. É, de cer-
ta forma, a eloquência do praticante. Ele desenha a linguagem que
assimilou, liberta uma Energia. Quando ele se encontra ajustado ao
seu projecto, a intervenção dá forma à expressão. Mas se um movi-
mento é ”violento”, esta mania tornar-se-á num obstáculo.
É raro um movimento falhar por causa da sua dificuldade. Ele
falha sobretudo ou porque não assimilámos a sensação que lhe cor-
responde, ou porque ele não está adaptado à realidade da ”forma de
ataque”. Os nossos desajeitamentos, manifestem-se eles em torno
da correcção ou da leveza, decorrem frequentemente da nossa igno-
rância quanto ao movimento correcto, da nossa impaciência, ou ain-
da do nosso mau equilíbrio corporal.
Um movimento com êxito deve combinar três critérios:
1. Responder à intenção que o guiava, o que implica um
perfeito conhecimento da forma de ataque e a atitude interior.
2. Estar em perfeita conformidade com a fisiologia do
praticante, fazendo agir os órgãos adequados: a aprendizagem do
gesto consiste em libertar um funcionamento natural e não em im-
por de fora um movimento ou uma atitude, por sedutora que seja.
Uma tal procura só pode ser fundada num total respeito do corpo.
3. O movimento deve procurar sempre realizar uma eco-
nomia de meios, isto é, accionar o menor número de elementos pos-
sível a fim de obter um determinado resultado. O movimento correcto
é pontual, não pode ceder nem aos automatismos, nem às precipi-
tações da mente que parasitam a acção.
Para cada forma de ataque existe um gesto exacto que res-
ponde de forma harmoniosa a todas estas exigências. Aquele que do-
mina cada um dos seus gestos, consciente do espaço no qual eles se
inscrevem e da estabilidade dos pontos de apoio que lhes conferem
a precisão desejada, esse poderá praticar com facilidade e à-vontade,
sem trair as suas intenções.
III
19
III o a i k i d o — o g e s t o d o i n s t a n t e
ta, o praticante pode responder melhor à questão ”que fazer” em vez
de se inquietar com o ”como vou eu fazer”. O problema não é, por
exemplo, ”como é que eu vou fazer funcionar o meu punho a fim de
conseguir um Ni Kyo7?”, mas sim ”que espécie de Energia, Ura ou
Omote, devo usar?” ou então ”qual o encadeamento que, de uma
maneira fluida, traduzirá melhor a alegria que dimana desta passa-
gem?”
Quando todos os gestos foram examinados lucidamente, cria-
se uma acção global que integra cada pequeno movimento exacto,
que activa antes de mais a energia interna, da qual decorre uma im-
pressão de facilidade e de evidência.
O que é verdade para o equilíbrio é-o igualmente para o mo-
vi-mento: um gesto não tem existência separada do todo e a inde-
pendên-cia das diferentes partes do nosso corpo é devida à sua soli-
dariedade. A evocação de uma ligação possível entre os movimentos
ou entre as partes do braço, por exemplo, faz com que os professo-
res de ”Budo” insistam na sua muito legítima obsessão relativamen-
te à ”rigidez”. ”O teu punho está rígido, não te preocupes com o teu
braço, deixa-o tranquilo, descontrai os teus ombros” é o erro tipo,
nascido do desconhecimento da Arte do Movimento. (Um parêntese
útil, a este respeito: o punho não é rígido, a não ser que se aperte a
pega ou caso a mão não esteja no eixo do braço. O punho, em si mes-
mo, é perfeitamente flexível. Basta sabê-lo utilizar).
Somos chamados a analisar gestos isoladamente, segundo o
lado direito ou esquerdo do ”Kamae”8, responsável pelas deslocações.
É necessário nunca perder de vista que cada gesto põe em jogo a to-
talidade do corpo, tanto no seu aspecto estático como dinâmico. Não
há deslocação por mínima que seja, mesmo a que é provocada ape-
nas pela articulação, que não arraste consigo a acção dos músculos
Também a aprendizagem do movimento é importante para os
que desejam eliminar definitivamente a sua insegurança e dominar o seu
medo de acção. Perante um movimento, são possíveis duas abordagens:
1. A abordagem analítica, que é uma decomposição do
movimento, uma concentração sobre o seu próprio mecanismo.
2. A abordagem espontânea, que resulta da nossa rela-
ção com o outro (Aité6). Ela é uma adaptação rápida à acção. Quando
sobre o tapete eu digo: ”reencontrar o espírito da criança” é desta
compreensão intuitiva do ”objectivo a atingir” que falo. Esta repre-
sentação imediata é aquela que permite o encadeamento rápido e
fluido dos mais variados movimentos e aquele em que o pensamen-
to deixa de poder dominar os acontecimentos.
No entanto, para restabelecer um gesto correcto, para ad-
quirir uma nova ”praxis”, o praticante adulto não pode passar sem a
aborda-gem analítica que decompõe o movimento, tal como não po-
de passar sem a sensação do movimento que deve ser analisado, vi-
sualizado, depois, sentido e ”vivido”.
A realização propriamente dita deixa, então, de ser ”pensa-
mento”. Ela passa a ser materialização daquilo que foi imaginado e
antecipado. À semelhança do karatéca que tenta prever os golpes
do adversário e colocar-se em função do acontecimento, o aikidoca
também deve antecipar o que vem (Sen no Sen), e, ao mesmo tem-
po, manter uma vigilância contínua (Zanshin).
Trata-se aqui de uma verdadeira ”ciência da antecipação” que
permite ao praticante libertar-se da consciência dos movimentos. A
imagem bem conhecida ”da centopeia que às tantas já não sabe qual
das patas avançar em primeiro lugar”, exemplificando a ausência des-
ta libertação, ensina-nos como podemos facilmente tornarmo-nos re-
féns deste tipo de ignorância. Com a atenção consciente assim liber-
III
20
mais poderosos que a sustêm e lhe dão uma liberdade de acção. De
igual modo, o fenómeno de cinestesia9 prova que toda e qualquer ac-
ção muscular referente a um lado do corpo tem repercussões idênti-
cas sobre o seu homólogo do lado oposto, o que reforça, aliás, a ideia
de uma simetria fundamental do corpo (conhecida desde há séculos
pelo Yoga).
A solidariedade dos movimentos deve-se igualmente à ori-
gem comum da Energia (Chi ou Ki10) que a todos alimenta sob for-
mas diversas. Devemos tomar consciência de uma realidade que é
particularmente esclarecedora: toda a força está concentrada num
ponto, num foco irradiante. É o nosso centro de gravidade situado
entre a terceira e a quinta vértebras lombares da coluna vertebral ou
cerca de 3 cm abaixo do umbigo (Seika Tanden11), impropriamente
traduzido por Hara/ventre.
É a partir deste ponto que surge toda a nossa Energia.
A procura de gestos correctos corresponde à busca das me-
lhores correntes de Energia, a partir deste ponto, que sejam suscep-
tíveis de fornecer às pontas dos dedos a sensibilidade e a força de que
eles precisam.
Mas o movimento nunca é unilateral, dirigido unicamente pa-
ra o exterior. Todo o gesto procede à combinação de duas forças con-
trárias, uma de expansão e outra de resistência à expansão, assumi-
das por dois grupos de músculos diferentes.
O equilíbrio geral do nosso corpo baseia-se na associação des-
tas duas dinâmicas cuja combinação assegura a perfeita harmonia
dos movimentos.
A cada força saída do nosso Centro (o ponto!) e dirigida pa-
ra o exterior corresponde uma força oposta que nos reconduz a nós
e evita a dispersão de energia. Quando o equilíbrio entre as forças
centrípetas e centrífugas se concretiza, isto é, quando o movimento
em vez de perturbar o equilíbrio estático, se integra num equilíbrio
dinâmico, os gestos podem então ser eficazes e autênticos.
Os braços, que são a própria expressão deste circuito de Energia
dirigida para a extremidade dos dedos, funcionam exactamente se-
gundo o modelo de forças opostas, de dinamismos contrários. Eles
estão em relação constante um com o outro. É preciso não esquecer
o papel dos braços, que não desempenham apenas o papel de força
pura (muscular). Eles são os transmissores de Energia. Fazer da mão ”Te
Katana”12 e do antebraço um segmento isolado é um grave erro. Nos
movimentos de Aiki Do, as mãos e os braços são sempre o resultado
manifesto das técnicas. Eles desempenham o papel de linha de trans-
missão, ligando as mãos ao corpo e levando-lhes a Energia necessá-
ria.
À esquerda como à direita, é o braço inteiro que deve inter-
vir na acção, apoiado por um dorso firme que actua como ponto de
apoio, articulado ligeiramente em torno dos ombros baixos, de um
cotovelo que transmite a Energia pela sua face exterior (meridiano do
coração13) e de um punho que o prolonga até à ponta dos dedos.
É indispensável que os músculos de apoio (em particular, os
do dorso) desempenhem o seu papel, libertando as extremidades de
toda a sobrecarga (libertando assim o Ki), dando-lhes a independên-
cia e leveza necessárias e conferindo ao braço uma flexibilidade até
então desconhecida. Os fisiologistas não conseguem entender-se
quanto às prioridades respectivas do braço e da mão nos movimen-
tos que lhes dizem igualmente respeito. Mas seja o impulso transmi-
tido do braço para a mão ou da mão para o braço, uma coisa importa
reter em todas as circunstâncias: é o braço que conduz sempre a mão
para o seu objectivo, e à mão cabe traçar do mais amplo ao mais pe-
III
21
queno de todos os movimentos.
6. A tradução literal de Aité é a mão que está perante mim. Este termo é também uti-lizado, na pedagogia do Aiki Do, para designar o parceiro.
7. Ni Kyo é uma técnica de imobilização.
8. O Kamae é a posição de guarda.
9. Cinestesia é o sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros.
10. Chi ou Ki, respectivamente, do chinês e do japonês, significam, em ambos os casos,Energia.
11. Seika Tanden vem de Seika (local de nascimento, casa paterna) e de Tanden (bacia,“fontes de riqueza”, lugar de onde brota a Vida). Seika Tanden subentende a no-ção de recentragem, de equilíbrio físico e psíquico, de harmonia da potência. O ponto sobrepõe-se, sensivelmente, ao centro de gravidade.
12. Ou seja, fazer da mão Sabre.
13. Meridiano do coração, segundo a medicina tradicional chinesa.
III
22
Só o presente existe.
Penso ser útil compreender a etimologia do termo Kamae na
língua japonesa. Kamaeru significa preparar, construir, alcançar com
vigilância. No ideograma kanji há a ideia da união de uma estrutura
em madeira. Trata-se, portanto, de uma consolidação, de algo que
reconcilia diferentes elementos.
Kamae não é uma forma. É um estado de espírito que envol-
ve a Energia e a percepção.
Podemos resumir brevemente o Kamae a partir da postura
correcta em pé (Shizentai): as pernas afastadas a uma distância se-
me-lhante àquela em que se encontram os ombros. No caso de avan-
çarmos, deslizando o pé direito, que forma com o pé esquerdo um
triângulo (Sankaku-Tai) — pé esquerdo que constitui a sua base —,
estamos perante o Migi Hammi. No caso contrário, estamos perante
o Hidari Hammi. A posição de guarda em perfil é o Hammi no Kamae
do Aiki Do (em Iai Do, há formas de Kamae em que o corpo está de
frente, mas a posição de guarda fundamental do Sabre é o Migi
Hammi).
O lado esquerdo tem por natureza um carácter estático. O
movimento não está, porém, ausente: quer se trate de uma protec-
ção baixa (pontapé) ou de movimentos laterais, o lado esquerdo nun-
ca é passivo. Para encarar os gestos que lhe dizem respeito, convém
eviden-temente não perder de vista a necessidade de uma boa colo-
cação do corpo em geral e de um posicionamento apropriado dos
braços. Este raramente é satisfatório do lado esquerdo, muitas vezes
descaído, o que cria automaticamente um desequilíbrio.
É preciso portanto tonificar o lado esquerdo, endireitá-lo para
que ele transmita bem a força vinda do dorso, por intermédio do bra-
ço, até à ponta dos braços, até à ponta dos dedos. Sem braço, não há
mo-vimento eficaz, visto que não existe Energia activa. Além disso, as
possi-bilidades de expressão aumentam quando o braço esquerdo exer-
ce de baixo para cima um ”gesto de contrapeso” ao peso do braço di-
reito. Falei do lado esquerdo no caso do Migi Kamae para que os pra-
IV
23
IV o k a m a e — m i g i k a m a e
ticantes tomem consciência da globalidade dos movimentos em geral.
A imagem de todos os posicionamentos do corpo ou das
mãos, assim como das técnicas do Go Kyo, isto é, das técnicas base
do Aiki Do, e as próprias deslocações tornam-se evidentemente me-
ros gestos exteriores se eles não corresponderem a sensações preci-
sas: o gesto deve ser vivido do interior para poder ser previsto e tor-
nar-se um reflexo infalível.
Se, no caso deste Migi Kamae, o lado esquerdo representa a
espera (o aspecto ”integrado do trabalho”) — o braço aguarda ser
solicitado — em contrapartida, a mão e o braço direitos serão sem-
pre a expressão imediata de uma decisão consciente. O lado direito
será o reflexo instantâneo do nosso estado interior para criar (De Ai),
tal como o pincel exprime as visões pictóricas que habitam o pintor.
Lugar da nossa eloquência, o nosso lado direito é pois mais vulnerá-
vel às emoções que podemos sentir.
Atribuo uma grande importância ao Kamae e, bem entendi-
do, à posição do braço direito avançado, a este despertar de funções
muitas vezes adormecidas, que se revelam de uma riqueza e de uma
eficácia frequentemente inesperadas.
Digo sempre que o verdadeiro Kamae é a guarda sem guar-
da, é o estado de vigilância tranquila.
Podemos, a este título, lembrar os ensinamentos de um Mestre
Zen ao seu aluno. Depois de ter passado vários anos junto do seu
mestre, o discípulo, que se prepara para o deixar, pede-lhe uma men-
sagem. O mestre pega no seu pincel, num rolo de papel arroz e de-
senha de um só traço, o Kanji ”Atenção”. O aluno, embaraçado, pe-
de-lhe uma outra mensagem. De imediato, o mestre
retoma: ”Atenção”. Pela última vez, o discípulo renova o seu pedido.
O mestre, em silêncio, volta a desenhar: ”Atenção”…
IV
24
Ver a sua natureza no movimento.
No Aiki Do, a prática é muitas vezes entendida como um en-
carniçamento e uma soma de esforços fora do comum. Para ob-
ter ”uma Boa Técnica” são precisas horas de trabalho, à custa de uma
aprendizagem quase bárbara, que pretende dar ao praticante uma
segunda natureza...
Muitos praticantes de idade avançada vivem ainda sob este
regime de trabalho obstinado. Repetir indefinidamente os mesmos
movimentos, sem nunca abrandar as rédeas para galopar (caso o abor-
recimento destas repetições, sempre no mesmo sentido, não tiver, en-
tretanto, morto o desejo de continuar). A isto chamo eu perseverar
numa luta incansável ”contra a Arte do Movimento”.
Não se trata aqui de defender uma liberdade absoluta que
conduziria a fazer desaparecer os constrangimentos e a disciplina que
são o tributo consentido para atingir um certo grau de perfeição.
Trata-se sim de pôr em causa a concepção estereotipada do trabalho
em Aiki Do. Ora, o que é ”o trabalho” senão a actividade de uma
pessoa que age com sequência e coordenação a fim de produzir um
resultado útil?
As exigências do trabalho numa repetição de movimentos são
particulares a cada praticante, dependendo do nível e do estádio em
que ele se encontre (saber onde estás, a fim de saber para onde vais...).
Para uns, o que estará em causa será o questionamento das bases de-
masiado frágeis dos movimentos; outros considerarão um problema
particular que nunca terão ultrapassado; outros ainda penderão pa-
ra os Kata14... Estas disparidades tornam felizmente impossível uma
solução que se queira global, uma receita universal! E, no entan-
to, o papel da técnica tal como a necessidade de um trabalho inteli-
gente são os mesmos para todos, sejam quais forem o talento e a
competência de cada um.
Nascemos todos com uma capacidade criadora natural. Se to-
marmos a palavra grega technos, a verdadeira técnica é uma arte
que consiste em fazer com que nos tornemos nós mesmos, procu-
V
25
V a b o r d a r a p r á t i c a d o a i k i d o
Não é a técnica que representa o verdadeiro perigo
para a civilização, é a inércia das estruturas.
perior àquela que era a sua, o seu poder criador encontrará um cam-
po de expressão mais largo no Kokyu Nage15. A sua liberdade depen-
de dos seus poderes e é pelo domínio da sua visão global dos movi-
mentos que poderá revelar a espontaneidade e a riqueza interior.
Suprimir toda a dualidade entre meios técnicos e uma forma-
li-dade gestual eis o que é próprio da execução perfeita de um movi-
mento. A actividade pela qual pensamos o movimento ganha corpo
na activi-dade que a realiza! O valor de uma concepção testa-se nas
realidades da técnica e uma riqueza interior que não adquire forma
acaba por se esgotar. Ao contrário, uma subtileza de pensamento que
tem a possibi-lidade de se exprimir plenamente vai aprofundar-se de
forma contínua, criando de novo a necessidade de afinar os seus meios
de expressão.
Sabemos que o Aiki Do, como toda a actividade que põe em
jogo o corpo, requer um gasto de Energia seja sob a forma de ener-
gia muscular, seja sob a forma de atenção persistente. Ora, sendo a
nossa quantidade de Energia disponível limitada, devemos evitar o
desperdício provocado pela dispersão. A inquietação ou o nervosismo
decorrentes da insegurança de uma técnica mal assimilada vão pro-
vocar esta diminuição de Energia onde e quando ela era absoluta-
mente necessária para a execução correcta do movimento.
A técnica está longe de ser uma perda de Energia do ponto
de vista do número de horas que lhe deve ser consagrada. De facto,
ela é o meio de realizar, num prazo mais ou menos longo, uma eco-
nomia de trabalho considerável. É, pois, importante, orientar o inte-
resse dos alunos para as subtilezas da técnica, mostrando-lhes bem
que esta técnica é já uma arte e um trabalho estético e não mecâni-
co.
Isto significa que mesmo o trabalho enraizado ”num desejo
rando restaurar esta capacidade natural corrompida por um estudo
exagerado e mal concebido.
A uma chamada de atenção de um professor, ouvem-se por
vezes alguns alunos responder: ”Trabalhei muito!”. Uma pedagogia
elementar impede que se replique: ”Justamente, teria sido melhor
praticar menos, do que praticar tão mal!”.
Falhas como estas seriam certamente evitadas se uma técni-
ca inteligível fosse proposta ao aluno desde que este se mostre capaz
de levar a cabo um trabalho consciente.
A melhor técnica adaptada a cada um é aquela que desen-
volve as disposições naturais em vez de as combater (este género de
erro é cometido de boa fé, seja por ignorância, seja por falta de sen-
sibilidade).
A melhor técnica consiste em accionar meios físicos suscep-
tíveis de dar forma a sentimentos invisíveis: por um lado, através da
educação do seu corpo em função das leis da natureza e da fisiolo-
gia; por outro, através da assimilação consciente das exigências pró-
prias ao Aiki Do.
O praticante pode adquirir o que se chama uma ”técnica” no
sentido forte do termo, aquela que possui um estado de alma! Ela
não é um mecanismo ou um automatismo dominado à custa de um
constrangimento maior, alegadamente, necessário para a passagem
de grau... Técnica e interpretação da forma estão indissoluvelmente
ligadas (fundo + forma).
Um ataque é, por exemplo, o que informa, isto é, o que dá
forma a um poder técnico. Para tanto, é preciso que o pensamento
não esteja asfixiado por um jogo em que rivalizam parasitas e inter-
fe-rências de toda a espécie, uma das quais é o medo de fazer mal.
A partir do momento em que o praticante adquire uma precisão su-
V
26
de praticar” não deve ser a negação do prazer: ele é a fase do parto
preparada pela inspiração primeira que culmina com o sentimento de
plenitude do movimento. O prazer do movimento harmonioso ou
do movimento circular, como o Tai Sabaki16, ou mais tarde o Aiki Nage17,
é o prazer de uma justeza perfeitamente expressiva com o seu dei-
xar--se ir, o largar da mão, ou a capacidade para se abandonar ao mis-
tério do movimento, movimento que ”se faz por si só” no tempo
exacto e se apodera do nosso ser, apagada toda a vontade.
Sem prazer, regressamos a este trabalho triste e monótono
que decepciona porque nada cria e é fecundado apenas por um con-
trolo ilusório (Ni Kyo). Esta maneira de praticar cria mesmo um obs-
táculo à expressão interior, afastando-se da atitude lúcida e criativa
que caracteriza um trabalho consciente.
Como em todos os outros domínios da actividade humana, a
prática do Aiki Do desenrola-se em várias fases. As suas diferentes
componentes são as de qualquer estudo.
Poder-se-ia comparar o praticante a um computador. Tendo
em conta as suas capacidades, tentar-se-ia obter dele o melhor re-
sultado possível, porque esta prática ou este trabalho, organizados
em função de um resultado (cuja definição acima referimos), nada são,
se não se revelarem fecundos. De igual modo, quando se pratica, to-
do o prati-cante deveria ter constantemente presente estes princípios
de bom senso sem os quais o resultado corre o risco de ser muito de-
cepcionante.
A primeira necessidade que se impõe é ponderar a situação:
1. Avaliar o estado presente (sem informações coeren-
tes e suficientes, um computador não pode dar respostas).
2. O praticante que não sente nada em relação à sua
prática criará obstáculos ao progresso (isto acontece muito mais ve-
zes do que se pensa).
3. O professor deve ajudar, com doçura, os alunos a to-
marem consciência do material com que vão trabalhar, isto é, eles
próprios.
É impossível haver empenhamento numa nova prática na es-
perança de nela progredir, sem que quem o faz se conheça exacta-
mente, sem que veja claramente as compensações, as tensões e os
sinais do seu mal-estar. Estas dificuldades são frequentemente mal
percebidas ou mesmo completamente ignoradas. As suas causas per-
manecem obscuras e esta avaliação da situação não é muitas vezes
senão um sentimento difuso de mal-estar e de insegurança, ligado
ao temor e a uma prática anterior mal assimilada.
Uma ajuda externa é então preciosa para o praticante dese-
joso de entender claramente um determinado problema, distinguin-
do-o dos restantes. O diagnóstico do professor, ao ser mais fino do
que o sentimento intuitivo do aluno, permitir-lhe-á isolar estes pro-
blemas ao mesmo tempo que os liga ao estudo do movimento visto
na sua globalidade.
Identificadas, assim, as dificuldades, importa enfrentá-las, ten-
tando não se deixar possuir pela angústia que decorre de uma luci-
dez demasiado rápida acerca da sua própria realidade. É a partir
deste trampolim que tudo se inicia e que se poderá enfim começar a
pensar numa nova maneira de agir. A partir do momento em que o
praticante de Aiki Do toma consciência da situação, pode abandonar
o presente imediato e empregar a sua Energia em função do objec-
tivo visado: tal como o computador, as informações recolhidas só têm
sentido se forem orientadas para um resultado preciso.
Mas esta tomada de consciência das situações por parte do
praticante requer calma e silêncio interior. Nem a agitação, nem a in-
V
27
desejo e bloqueia de novo a situação.
É a descoberta desta distância que constitui o motor da prá-
tica e que faz dela um processo de aperfeiçoamento por aproxima-
ções sucessivas. Esta retroacção, para empregar um termo apropria-
do aos objectos cibernéticos, torna-se possível pela observação do mo-
vimento, que é o elemento essencial desta tomada de consciência, e
que pode ser reforçada pela escuta do Mestre... Mas as informações
sensoriais apreendidas pelo sistema proprioceptivo18 permitem igual-
mente com-parar a desadequação entre uma imagem mental e a sen-
sação realmen-te percebida (os movimentos em espiral, de que são
exemplo as técnicas de Aiki Do: Irimi Nage, Kaiten Nage, Kokyu Nage
e Aiki Nage).
Se existe diminuição de energia, haverá certamente, um tal
fosso.
Só então se pode começar a fase de programação que é a ba-
se de trabalho do aprendiz aikidoca. O computador, de que se espe-
ra o resultado, deve organizar um pedido, cujas etapas são claramente
estabelecidas e escalonadas no tempo.
Uma grande parte do caminho já se encontra percorrida quan-
do o praticante, lúcido em relação a si mesmo, acciona de forma me-
tódica os meios adaptados ao objectivo que persegue. Cada aluno
tem o seu próprio ritmo e uma maneira igualmente própria de abor-
dar a sua prática. Ele é o único a conhecer a dinâmica das suas per-
cepções e do seu comportamento real. Mas ainda aqui, a sensibilida-
de de cada um, a sua liberdade de acção não estão em contradição
com a lógica dos movimentos. Harmonizar o seu corpo, como se diz
muitas vezes no tatami19, é uma acção prévia necessária. A prepara-
ção física no trabalho é portanto fundamental. Infelizmente fazemos
enormes erros nos exer-cícios preliminares da prática, que deveriam
quietação permitirão alguma vez precisar, de forma saudável, o pro-
jecto de uma prática correcta.
Qual é o meu objectivo? O que é que procuro? Eis algumas
questões que estão longe de ser questões resolvidas por tantos pra-
ticantes alienados pela rotina ou mal orientados.
A prática não se justifica senão em função de um objec-
tivo preciso. Será que se pode saber o que se encontra se não
se sabe o que se procura?
É impossível avaliar os seus progressos num caminho (Do) a
partir de acções vagas e ambíguas. Também não basta saber o que
se quer; é preciso ainda decidir exactamente qual o resultado que se
pretende obter, o que exige tomar partido e colocar a fasquia a uma
determinada altura pessoal, e examinar, com sensatez, o que se po-
de e quer atingir.
Decidir-se a agir por si só é coisa difícil. É, no contacto com o
professor, que o aluno, ao descobrir que não sabe ainda realmente o
que quer, conseguirá conceber e formular a sua pesquisa.
É evidente que o praticante cujo único desejo é transpirar e
quanto à sua técnica, ”passa”, não poderá obter resultados muito
subtis.
Se ele não se entregar por inteiro ao que experimenta, ou se
ele não tiver decidido ainda firmemente um objectivo, a comparação
entre o resultado obtido e a sua primeira e vaga intenção não será fe-
cunda. A escuta não poderá desempenhar a sua função crítica, isto
é, comparar o resultado e o objectivo procurado.
Com efeito, a fase seguinte consiste em tomar consciência do
fosso que subsiste entre o desejo e a realidade. A adequação perfei-
ta entre o projecto e a sua concretização é algo impossível: ela signi-
ficaria que o praticante teria atingido um topo, o que esgota todo o
V
28
ser antecedidos de descon-tracção e de um condicionamento corpo-
ral adequado. O praticante deveria concentrar-se (Dharana20), verifi-
car a liberdade da sua respiração, assegurando-se assim do seu bom
equilíbrio em termos de posturas: eixo vertical; firmeza dos pontos de
apoio; boa fixação no solo; braços relaxados, independentes para dei-
xar passar a Energia até à ponta dos dedos; ombros baixos; corpo em
vigília, punhos flexíveis, percebidos como o resultado do pensamen-
to e da Energia. O sentimento de inutilidade e de perda de tempo
desta tomada de consciência frequen-temente associada a esta veri-
ficação desaparecerá logo que o praticante tome consciência da sua
necessidade e da sua eficácia absolutas.
Uma tal preparação pode durar apenas alguns segundos co-
mo pode exigir mais tempo, tudo dependendo da integração da sua
prática.
Eis-nos, enfim, chegados à fase mais longa da prática, aque-
la que corresponde à prática do movimento correcto. É aqui que
tem sentido a procura da qualidade e da justeza de um movimento.
Uma técnica bem escolhida trata o problema em profundi-
dade, o problema em si, como se poderia dizer. É preciso também es-
colher, e de forma judiciosa, a forma de ataque. É preciso evitar trans-
formar um curso numa sucessão de técnicas que correm o risco de ”des-
gastar e esvaziar” o conteúdo destas mesmas técnicas e também de
esgotar o prazer...
Quaisquer que sejam as soluções escolhidas, o exercício de-
ve, em todo o caso, incidir sobre um único problema, a fim de ser
realmente profícuo. Compreende-se aqui a necessidade de uma ava-
liação lúcida, analisando separadamente cada uma das dificuldades
encontradas pelo praticante. Pode ser útil criar uma nova imagem
mental à qual o praticante tentará fazer corresponder o que sente.
Então, e só então, a repetição pode desempenhar o papel que
é o seu. Ela já não constitui a própria essência do trabalho, antes per-
mite a aquisição de sensações reflexas.
Estamos longe do Uchikomi21 que se faz demasiadas vezes de
uma maneira ”automatizada”, e, contudo, a dificuldade na concre-
ti-zação de um gesto fica a dever-se mais à opacidade de uma ima-
gem mental do que a uma incapacidade mecânica.
A repetição deve ser, portanto, consciente e obedecer a um
funcionamento correcto. Ela não deve ser cega e mecânica em mo-
vi-mentos mais ou menos exactos. É ela que, reforçando a sugestão,
cria uma nova via cerebral. Uma acção assinalada fixa-se na memó-
ria, torna-se mais rápida e fácil e cada vez menos pesada para o es-
pírito. É assim que uma vez a atenção liberta, esta pode virar-se para
os elementos primordiais da prática: estilo não pensado (que envol-
ve a noção de silêncio interior, ligado à disponibilidade e à consciên-
cia), sensação ou contacto correcto com os parceiros. Além disso, a
repetição permite ao praticante adquirir uma segurança e uma con-
fiança que o tornam menos dependente de circunstâncias exteriores.
Ela corres-ponde igualmente a reconhecer uma forma e a aperfeiçoar
esta ou aquela técnica e a conduzi-la a um estádio de perfeição... É
sobre uma experiência ”sentida” que outras podem criar raízes. Chamo
a isto a ”referência interior”.
Da mesma maneira que um curso não pode começar sem con-
centração, ele não deverá acabar num estado de fadiga: o espírito
deve estar ainda suficientemente lúcido para tirar a conclusão e as li-
ções do trabalho empreendido. Isto é muito importante, porque es-
ta análise permitirá uma maior motivação para os cursos seguintes:
haverá um optimismo justificado que fará acreditar no valor da prá-
tica realizada.
V
29
A partir de um certo nível, o exercício técnico, enquanto tal,
pode desaparecer, sendo substituído por um Geiko23 livre e será o
próprio facto de praticar livremente que vai recriar e alimentar de no-
vo a intensidade do vivido a um outro nível, que será o sustentáculo
da técnica.
Contudo, é sempre essencial, mesmo a um nível elevado, con-
servar um contacto frequente com a técnica pura (as bases, por exem-
plo), a fim de poder, se necessário for, retomar um exercício destina-
do a refrescar uma sensação. A isto chamo regressar regular-mente
às ”raízes da competência”, a fim de evitar este desmazelo insensí-
vel que estraga tantas qualidades.
É indispensável nunca suprimir o papel da atenção e das suas
funções conscientes. Ao criar automatismos, é preciso evitar cortar as
vias que ligam ao cérebro director, caso contrário, estamos perante o
praticante estilo ”Rambo”. Uma tal privação de fontes novas conduz
seguramente a uma degenerescência da Via (Do).
Na Índia, diz-se: ”Aquele que deve percorrer cem mil consi-
dera noventa mil como a metade.”
Quanto mais alguém progride na sua técnica e no domínio da
sua arte, mais cuida das suas qualidades interiores.
Considera-se frequentemente o início do ensino o mais duro.
Na verdade, são ”os últimos mil” que são os mais duros. É um traba-
lho incessante (até à morte) se se quer ser verdadeiramente autênti-
co.
Por fim, quando se tiverem explorado todas as possibilidades
técnicas e quando a habilidade tiver sido dominada, a prática passa a
fazer-se de uma maneira menos metódica. O Aiki Do conduzirá o es-
tudante à ”realização de si mesmo”.
A prática far-nos-á tomar consciência de nós mesmos, porque
Em caso algum a fadiga deve levar a melhor e restituir à prá-
tica o carácter mecânico de que nos tentamos desfazer na nossa es-
cola.
A fadiga muscular leva o organismo a fazer trabalhar múscu-
los inadequados ao trabalho requerido, o que se traduz inevitavel-
mente por uma perda de qualidade e pelo aparecimento de falsos
problemas que teimamos inutilmente em querer resolver. É pois im-
portante assegurar sempre um bom encaminhamento da Energia (Ki),
em particular em direcção às mãos. É esta economia da energia que
torna, no essencial, uma técnica correcta.
Se a prática conduz à consciência de si (que é fonte de cal-
ma), ela acaba por se reflectir seguramente na beleza dos movimen-
tos. É o momento de utilizar durante os cursos o que normalmente
será difícil realizar na vida ”stressante” do quotidiano.
É no dojo que se podem reunir as condições favoráveis à li-
vre circulação da Energia e à eliminação das tensões. A boa organi-
zação no domínio da postura da cabeça e da coluna vertebral, o cen-
tramento no Hara22 e a respiração que descansa, a polarização da
atenção numa acção instantânea, a aceitação deste aqui e agora são
o melhor meio de cortarmos com as nossas preocupações e inquie-
tações.
É preciso também não esquecer que o progresso, seja ele téc-
nico ou interior, é a motivação essencial (muito mais do que as gra-
duações). Isto exige evidentemente um certo nível de maturação e
manifesta-se por vezes quando menos se espera.
A ausência aparente de progresso não corresponde a uma es-
tagnação definitiva e é preciso, sem perder a coragem, aceitar passar
por zonas de obscuridade e de contradição, que correspondem a uma
germinação silenciosa.
V
30
seremos confrontados com os problemas da nossa mente. Perante os
obstáculos com que deparamos na estrada da vida (no tatami ou fo-
ra dele), este conhecimento é o penhor da permanência e da estabi-
lidade das nossas aquisições.
Ao longo deste percurso, é a tensão dirigida para um objec-
tivo que dá o máximo de alegria, procurando por vezes o que os psi-
cólogos chamam ”as experiências superiores”. O praticante torna-se
então aikidoca (termo que designa no Japão o praticante confirma-
do e que é aquele que anulou completamente a distância entre con-
cepção e realização).
Quando o esquecimento do Eu passa a ser total, quando o
praticante se integra no acontecimento instantâneo e ao mesmo tem-
po conserva uma vigilância do espírito, então a Arte do Aiki Do po-
de revelar toda a sua dimensão: ele torna-se a Via real, em que se su-
pera a técnica.14. Kata significa literalmente forma, conjunto de movimentos codificados onde se es-tuda a essência de uma Arte.
15. Kokyu Nage é a técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento.
16. Tai-Sabaki é, a um primeiro nível, a aprendizagem da espiral.
17. Aiki Nage é um estudo sobre o registo da harmonia.
18. Trata-se de uma informação que provém do corpo e que fornece elementos sobre omovimento, a atitude, o equilíbrio, etc.
19. O tatami, na sua forma clássica, é formado por esteiras constituídas por palha dearroz, cozidas e reunidas, de maneira a formar módulos de 1, 95 metros por 0, 95metros. Elementos que faziam parte do mobiliário tradicional da aristocracia deKyoto no século XV, eles eram dispostos segundo uma simbologia que representavaum labirinto iniciático (Mandala – Do). Hoje, os Budos utilizam tatamis especiais,frequentemente, fabricados a partir de matéria sintética, e envolvidos por uma for-te cobertura, a fim de amortecer os eventuais choques provocados pelos movimen-tos de projecção.
20. Dharana é um termo sânscrito. O sentido desta palavra é incompletamente dadopela tradução: concentração.
21. Repetição de um mesmo movimento.
22. Noção de centro que não faz obrigatoriamente referência à geometria.
23. Trata-se de uma prática em que a concentração desempenha papel fundamental.
V
31
Encontrar a energia na consciência plena.
32
Presença, espírito e alma. As aves do lago sobrevoam-no sem deixar rasto.
Dizemos no Zen que a prática de uma arte pode ser um meio
de ”formar a mente e de a pôr em contacto com a realidade última”.
Aquele que projecta e aquele que cai não são duas entidades
opostas, mas uma única e mesma realidade. Aquele que projecta não
deveria ter consciência de si. Este estado só se obtém quando o pra-
ti-cante se desembaraçou do seu ego e quando ele e a sua técnica se
fundem. Há nesta habilidade técnica qualquer coisa de ordem muito
diferente, que nenhum estudo metodológico do Aiki Do pode ofere-
cer.
Esta qualquer coisa de ordem muito diferente é o que se cha-
ma a “intuição”. Mas não se trata de uma intuição vulgar. No Yoga,
esta intuição designa-se pelo termo “prajnâ”, que é uma intuição
que capta ao mesmo tempo a totalidade e a individualidade das coi-
sas. Esta definição ultrapassa os limites do ego. De um ponto de vis-
ta lógico, corresponde à síntese da afirmação e da negação; de um
ponto de vista metafísico, é saber por intuição que o devir é o ser e
que o ser é o devir...
É uma intuição, que pode surgir de forma súbita; quem vê
que zero é o infinito e que o infinito é zero, vê que isto não constitui
uma indicação simbólica ou matemática, mas antes um facto da ex-
periência, resultado de uma percepção directa. A prática da Arte do
Movimento pode levar a descobrir, sem meditação de qualquer es-
pécie, a essência sem fundo e sem forma, ou melhor ainda, a sua
identificação com a realidade última.
Segundo os Mestres Zen, o Zen consiste em ver a sua própria
natureza. Esta é a expressão mais significativa da abordagem. De fac-
to, o Zen significa dirigir os nossos esforços e representá-los na nos-
sa consciência.
Mas isto é uma outra história.
VI
33
VIp a r a u m e n s i n o m a i s a v a n ç a d o — o z e n
34
A sabedoria não se obtém por mérito de uma conduta moral, mas pela maneira como o corpo e o espírito permanecem na consciência do ser.
Durante demasiado tempo, no Ocidente, deu-se pouca im-
portância à experiência e à busca interior em detrimento do intelec-
to.
É na compreensão da aparente oposição do preceito do Budo
— Ken Zen Ichi Nio (Sabre e meditação formam uma unidade) — que
se pode descobrir a harmonia.
Ao criar por vezes um efeito de espelho, as oposições reve-
lam insuspeitados contornos da nossa personalidade. Se, perante eles,
nos refugiamos invariavelmente num comportamento dogmático, o
medo é proporcional à nossa rigidez. Em contrapartida, se desenvol-
vermos a comunicação com nós mesmos e com os outros, é plausí-
vel que descubramos soluções adequadas, que nos permitam adap-
tar a novas situações. Este processo servirá, indirectamente, a inicia-
ção ao Aiki Do. Num plano completamente diferente, a vocação pri-
meira de um dogma religioso não é propriamente a de servir o ego
ou os interesses ligados a um grupo étnico particular. Seja como for,
o Aiki Do não é uma prática religiosa, xintoísta ou outra.
A perspicácia e uma acuidade trabalhada assiduamente pou-
parão ao aluno ou ao professor cair no marasmo de um esoterismo
mal assimilado.
A prática do Aiki Do é uma abertura ao Universo.
Por diversas razões, verifiquei que os japoneses controlam me-
lhor esta atitude reflexa que consiste em obedecer à hierarquia sem
nela aparentemente reflectir demasiado.
Esta evolução das mentalidades nem sempre é bem seguida
nas Artes Marciais. Muitas vezes, confrontado com perguntas sem
resposta ou repleto de respostas pouco credíveis, permaneci incré-
dulo e perplexo.
A prática de uma Via exige o empenhamento total do Ser,
uma dose de autenticidade e o sentido da justa medida. Simular um
empenhamento é alterar os tempos de certas respostas.
Um empenhamento pressupõe a existência de princípios e de
VII
35
VII k e n z e n i c h i
meus alunos... Mas foi preciso predispor-me a aceitar a experiência
pessoal dos meus alunos e deixar que essa experiência ocupasse um
lugar central nas preocupações da minha vida particular. Escutava, ob-
servava, estando tanto quanto possível cada vez mais presente.
Dialogando com eles, esforçava-me, com os que o desejavam, por tor-
nar claros os seus problemas.
Partindo do mais íntimo de mim mesmo e com a penetração
de que era capaz, investiguei, estudei, examinei a natureza e o im-
pacte destes problemas, totalmente empenhado nesta busca. Durante
estes anos, fui-me apercebendo pouco a pouco de que se tratava, de
facto, de uma pesquisa, de uma investigação, acerca da dimensão da
expe-riência do Zen na Arte do Movimento, através do Budo japo-
nês e do Yoga. Não sou intelectual, não elaborei uma ciência do mo-
vimento, antes me integrei no movimento, vivendo-o ao fio dos dias.
Devo muito a todos os meus alunos, dos mais recalcitrantes
aos melhores — mas haverá melhores? — porque me interpelaram.
A eles devo o ter sido obrigado a procurar, a procurar sempre mais, a
começar por vezes tudo de novo e, deste modo, a evoluir.
Não valeria mais convidar os interessados a transpor o limiar
das técnicas e oferecer definições aparentes, sem delas fazer méto-
dos, dado que toda a prática vivida no coração conduz naturalmente
à via da unidade, e portanto à da clareza luminosa do ser?
Não se pode falar desta ”claridade unificadora do ser”, senão
para dizer que ela se exprime sob a forma de uma abertura e do dom
de Si, uma vez que o ego, lugar de todos os medos, dos constrangi-
mentos, do racional e das inúmeras retracções do homem moderno,
desapareceu para dar lugar à emergência do ser. O Aiki Do, como to-
da a sabedoria, é uma aplicação da Energia fundamental do Universo.
Todo o ensino pressupõe etapas, graus, numa progressão que requer
uma disciplina funcional em relação aos objectivos que se visam. A
obediência servil e destituída de sentido nunca constituiu um mode-
lo a seguir. Inspirar uma obediência absurda, a fim de obter benefí-
cios de ordem social ou monetária, é o atributo de uma espécie de
inte-ligência perversa.
Para resolver de forma duradoura um problema técnico ou
mental, é preciso compreender o ”porquê”. Ao esforço de anos de
procura por parte de um indivíduo que percorre a Via com autentici-
dade e devoção correspondem respostas que um Mestre assinalará
no momento certo. O silêncio que corresponde a uma condescen-
dência de quem se pretende omnisciente é uma caricatura que o tem-
po se encarrega, aliás, de desestabilizar.
Estas observações, que pude fazer ao longo das minhas via-
gens ao Japão, permaneciam interiores e raramente se exprimiam em
palavras, dada a distância inviolável que separava o Mestre do seu
aluno. E, no entanto, um certo optimismo fundamental levava-me a
acreditar que, num céu carregado de nuvens, a mais pequena nesga
de céu azul era uma promessa...
Quando a minha confiança e o meu discernimento se forta-
le-ceram, a necessidade de ver claro, de compreender, tornou-se ir-
re-sistível. Encontros fortuitos e decisivos permitiram-me, então, abrir
os olhos e, ao mesmo tempo, trabalhar sobre mim mesmo a fim de
explorar todos os arcanos, à maneira de uma evidência lógica, como
uma Via de conhecimento inesgotável. Para citar o poeta Kabir: ”Aquilo
que eu procurava veio ao meu encontro e transformou-se no Eu a
que eu chamava Outro.”
De descoberta em descoberta, passando por todos os ques-
tio-namentos, a minha vida tornou-se uma apaixonante e intermi-
nável procura. Iniciada comigo mesmo, ela prossegue agora com os
VII
36
tempo, em que o objectivo a atingir não é propriamente ganhar umas
tantas coisas, nem mesmo um combate. O importante nesta aborda-
gem é chegar ao momento em que a mutação sobrevem, a maior
parte das vezes de forma inesperada. É o movimento que faz nascer
o outro movimento, é criar toda uma vida em que o homem se tor-
na senhor de si próprio.
É por isso que a Prática é tão importante e tão bela.
a potência do tao
O príncipe maravilha-se perante tanta habilidade; mas
não se apercebe do seu fundamento, nem do seu alcance.
Ding lembra-lho: a habilidade não é nada; ela pode
mesmo provocar uma admiração indevida, tão superficial co-
mo a da destreza, a do golpe de força, a do show. A verda-
deira habilidade exprime a realidade profunda; ela é, assim,
uma arte. A beleza resulta da sua relação com o real.
A arte não é senão unidade e harmonia no Tao. Não
se admira a destreza por si mesma, mas pelo que ela revela.
Inseparável da beleza, o seu valor decorre de nos fazer sentir
e pressentir Aquilo que existe e faz existir. O Tao confere à ar-
te a sua potência, ultrapassando toda e qualquer arte.
Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée
De vide en vide. Zhuangzi – La conduite de la vie
Paris, Desclée de Brower, 1995.
VII
37
38
Calma e vigilância.
A experiência quotidiana leva por vezes a aprofundar fenó-
menos sobre os quais pouco teríamos reflectido se a realidade não
no-lo obrigasse a fazer. É o problema da passividade, isto é, da des-
contracção, problema ao qual, nas Artes Marciais, se atribui gran-de
importância. Mas as observações diárias da pedagogia vêem nele al-
go mais do que um ponto importante!
Um número inimaginável de praticantes estão de tal manei-
ra contraídos (a maior parte sem o saberem) que alguns nem sequer
são capazes de separar os braços do corpo ou de desbloquear as an-
cas. Estes praticantes terão evidentemente enormes dificuldades em
executar as mais simples técnicas do Go Kyo. Certos defeitos, mes-
mo entre os mais antigos, podem atenuar-se ou desaparecer graças
a um trabalho apropriado. Mas nenhum verdadeiro equilíbrio, ne-
nhum movimento harmonioso, em suma, nenhum progresso real po-
dem ser realizados enquanto o praticante permanecer crispado,
ignorando o que possa ser um comportamento descontraído, isto é,
disponível.
Ora, a disponibilidade (distendida) é uma necessidade abso-
luta!
No praticante que atinge um certo grau, o movimento é be-
lo porque o gesto vai buscar a sua fonte aos recônditos da sua alma
seguindo esquemas interiores — e nunca recebidos do exterior, por
imitação ou submissão a estereótipos. Todas as formas “de ataque”,
todas as respostas ao ataque, todas as impulsões do corpo devem
partir de dentro. Mas, partindo de dentro, a Energia (Ki) que se ele-
va do nosso íntimo desloca-se ao longo de uma rede de nervos e mús-
culos. Esta Energia é portanto particularmente sensível a todas as con-
tracções desta rede energética e aos obstáculos provenientes das com-
pensações no domínio das posturas.
Sempre que um praticante vive uma crispação geral — o que
é, repito-o, um facto corrente— está fora de causa qualquer hipóte-
se de expressão; o seu movimento bloqueia-se, fecha-se a qualquer
VIII
39
VIII a c t i v o — p a s s i v o
são. Poderíamos ler estas últimas linhas de uma forma subjacente: is-
to é, aquilo que é válido em relação a um praticante é igualmente vá-
lido em termos da harmonia entre Aité e Shité21. A dança clássica, pa-
ra citar um exemplo mais comum, é o modelo perfeito de uma arte
do movimento em que nada é possível nem na moleza nem na ten-
são.
Certos “pesos pesados” do Budo resistirão a aceitar esta apro-
xi-mação à dança. Contudo a Arte do Aiki Do está bem perto dela e,
evidentemente, muito mais do que eles o imaginam.
Se o Aiki Do não se orienta para a competição ou não se su-
bordina à “razão do mais forte”, também não podemos conceber um
acrobata a efectuar um “salto perigoso” com o corpo tenso...
A nossa prática requer as qualidades que no dançarino dão
uma tão grande impressão de harmonia e fluidez... Não lhe reduzin-
do o alcance, é a descontracção a melhor garantia do dinamismo tão
necessário à prática.
A descontracção é um estado que se adquire: não se pode
estar descontraído no momento, no instante da prática, quando anos
de um estudo crispado nos afastaram deste equilíbrio feito de tonici-
dade e de disponibilidade.
Do mesmo modo, para um praticante que adquiriu consciên-
cia dos seus problemas e que os tenta solucionar, assimilando, com
maior ou menor convicção e ardor, os princípios já evocados de equi-
líbrio corporal, de abordagem interior no estudo do movimento e na
percepção das sensações, importa desenvolver uma abordagem a lon-
go prazo que, só ela, lhe permitirá realizar, no inesperado de um ata-
que, este instantâneo da descontracção.
A primeira etapa nesta via é antes de mais uma tomada de
consciência: cada um deve descobrir o que é, o mesmo é dizer, apren-
per-cepção sensorial. Um único músculo contraído (ou mais?) basta para
des-regular a prazo tanto as suas faculdades físicas como a sua sen-
sibilidade.
Daí a importância da descontracção, não no sentido em que
eu lhe atribuiria um lugar particular, na medida em que para isso es-
tou sensibilizado, mas no sentido em que ela é muito frequentemente
o problema crucial tanto dos novos como dos mais antigos... Sem ela,
não há respiração, nem concentração, nem beleza do gesto (há por-
tanto um “Ki” geral disperso).
Em que consiste, na prática da nossa Escola, esta descon-trac-
ção ideal?
Antes de mais, ela não é um estado de passividade (como se
ouve dizer) ou de moleza, mas ao contrário um estado perfeitamen-
te dinâmico (activo) que resulta de uma justa tonicidade da postura.
Ela é uma disponibilidade física e mental capaz de tornar to-
da a acção fluida e harmoniosa.
Muitos alunos confundem leveza com moleza, firmeza com
crispação, porque não conhecem os gestos e a organização espacial
susceptíveis de produzir uma Energia ou uma determinada acção, per-
manecendo ao mesmo tempo relaxado.
O nosso estado ideal deve ser tónico e descontraído e não
tenso e relaxado. Um movimento descontraído não pode ser nun-
ca relaxado, porque ele reclama constantemente uma Energia reno-
vada e posta em movimento contínuo (por exemplo, respostas a for-
mas de ataques sucessivas). Ora, para que haja Energia, é preciso que
haja tensão correcta entre os contrários. É a oposição correcta de mas-
sas musculares que dá o tónus ligado à distensão e permite a ausên-
cia de crispações. A grande dificuldade reside, portanto, em conciliar
harmoniosamente os dois factores inseparáveis: tonicidade e disten-
VIII
40
der a sentir os hábitos inconscientes do seu trabalho.
Numerosos praticantes, não se dando conta do seu estado de
contracção, atribuem as suas deficiências na prática do Aiki Do a um
conjunto de problemas técnicos que, à luz da realidade, pouco ou na-
da têm a ver com eles.
Esta inconsciência é ainda mais impressionante naqueles cu-
jo tónus é fraco e que não têm a coragem de pôr em causa o que fa-
zem.
Importa em primeiro lugar que o praticante se situe na “ca-
tegoria do seu temperamento”, que pode ir da dos hipotónicos à dos
hipertónicos. Cada um tem sempre uma dominante de tensão ou de
inércia, que deve saber gerir. O justo meio é bastante raro: um, o hi-
potónico, terá mais necessidade de fazer apelo à sua energia muscu-
lar, enquanto o outro deverá procurar distender-se. Quaisquer que se-
jam as tendências, é preciso, à partida, libertar-se do condicionamento
de toda a abordagem parcial e crispada, de toda a precipitação na
forma de agir (lançar-se, por exemplo, numa técnica com velocida-
de).
Aprender a descontracção é, em primeiro lugar, deixar falar
o corpo. Ora, quando um praticante trata de pôr em causa os seus
hábitos e decide conscientemente o que quer fazer, ele é muitas ve-
zes exageradamente tónico, ao ponto de viver num certo desequilí-
brio a este nível. A focalização do seu espírito, o facto de ter de fixar
a sua atenção num gesto, de tomar consciência de uma compensa-
ção ou de uma sobrecarga muscular, cria frequentemente um exce-
dente de tensões, uma atitude algo demasiado rígida e aplicada.
É um inconveniente passageiro que desaparece rapidamente
se procurarmos respeitar o ritmo tensão-distensão e não nos crispar-
mos, intelectual e fisicamente, sobre sensações fragmentárias e sis-
temáticas. Mais perturbante ainda — porque mais difundido e me-
nos passageiro — é o estado de espírito que consiste em exercer uma
vontade de ferro, em querer a todo o custo submeter-se a um mo-
delo pedagógico.
Esta tensão bem intencionada, dirigida ao resultado, é um
grande obstáculo ao êxito. Diz-se, muitas vezes, nas Artes do Budo,
“quanto mais procuras a eficácia, menos a encontras”. De facto, ape-
nas um certo vazio interior permite estar à escuta do instante vivido.
Esta vontade exagerada desemboca na ideia de sucesso e fracasso,
na antecipação de um juízo feito por outrem (designadamente pelo
próprio professor!), que, invariavelmente, cria crispação e an-gústia.
Aquele que não consegue, qual criança, abandonar-se sem cálculo e
premeditação à simples alegria das suas descobertas, fecha--se a uma
verdadeira descontracção...
Há um outro estado de espírito a rejeitar se se aspira à des-
con-tracção — e esta nota fará talvez sorrir alguns, tanto mais quan-
to ela pode parecer imprópria (ou incongruente). É o problema da
“cara de pau” (mau humor). Da mesma maneira que não se pode
praticar sem um mínimo de saúde, aquele que não tem “bom hu-
mor” verá anulados todos os seus esforços...
Quando os traços do rosto estão crispados pelo desconten-
ta-mento interior, o resto do corpo segue esta inclinação nefasta. Nada
vale tanto como o esboço de um sorriso para distender todo o corpo
e induzir um estado de espírito positivo. E, isto, tanto em relação a si
mesmo como em relação aos praticantes com quem trabalha...
Digo muitas vezes “tende o semi-sorriso de Buda”. Sem um
mínimo de abertura e de criatividade, em suma, sem Energia interior,
o tónus corporal necessário à descontracção estará ausente, afasta-
do por um ar carrancudo destruidor.
VIII
41
ções. Sempre que se faz trabalhar um grupo de músculos, todos os
outros devem permanecer livres e distendidos. Se se ergue o braço,
apenas devem agir os respectivos músculos, mas tudo o resto, inclu-
sive o cotovelo, o punho e os dedos devem permanecer completa-
mente flexíveis. Em resumo, é preciso saber agir com um tónus liga-
do à acção desejada, mas que não se repercuta sobre o conjunto do
corpo.
Os pugilistas dão-nos um exemplo impressionante (é caso pa-
ra o dizer!) desta independência muscular. Os seus golpes têm uma
eficácia que está directamente ligada à descontracção e à elasticida-
de do resto do corpo.
A nossa independência muscular permite-nos economizar a
Energia (Ki), ao utilizar, para um movimento, apenas os músculos ade-
quados; o nosso tónus vê-se reforçado e ficamos então na posse de
uma “sobrepotência” que nos garante, de forma permanente, uma
segurança próxima do famoso “Haragei”22.
Devemos igualmente saber dosear a nossa descontracção se-
gundo as necessidades do momento. É muito importante avaliar, con-
forme o exercício em causa, que grau de tonicidade e de des-con-
tracção devemos atingir. Por exemplo: no Kokyu Ho, é em função do
parceiro e das nuances da sua pega que devemos mobilizar uma maior
ou menor energia ou mantê-la em reserva.
O nosso tipo de acção é função de uma Energia correcta —
ela nem sempre será a mesma — e esta avaliação do esforço, que va-
ria de gesto para gesto, permite ao corpo responder às suas necessi-
dades e organizar-se.
Na música, acontece algo de semelhante. Conforme aquilo
que se toca, deve estar-se mais ou menos “envolvido” ao nível tóni-
co, e o excesso ou a falta de envolvimento podem ter consequências
Se a descontracção exige uma tal mudança de estado de es-
píri-to, ela necessita igualmente de uma preparação prática e corpo-
ral que mantenha o tónus e simultaneamente elimine as eventuais
tensões.
É frequentemente muito difícil dizer se a tensão do pratican-
te se deve ao seu desequilíbrio corporal ou se, ao contrário, é a sua
pre-disposição para uma excessiva contracção que está na origem de
um tal mal-estar físico.
É evidente que estas duas tendências, seja qual for aquela que
cria a outra, acabam por se alimentar mutuamente.
Também é importante, desde o início de um questionamen-
to profundo, trabalhar ao mesmo tempo a descontracção e a adop-
ção de novas condutas.
Do ponto de vista do corpo, é necessário aprender a colocar
devidamente as costas e o esqueleto, que dão “a forma” e a estru-
tura do corpo, indispensáveis a uma tonicidade mínima. Mas no seio
desta vigilância tónica, não se deve descurar a descontracção dos
membros, do plexo e dos músculos da cavidade torácica. A calma e
a amplitude da respiração, a liberdade dos gestos garantem-se atra-
vés do equilíbrio entre o tónus geral do corpo e a descontracção de
certos grupos musculares.
Uma parte importante deste treino consiste em aprender a
não desperdiçar o nosso tónus onde ele é inútil, mas sim a concen-
trá-lo na parte do corpo que se prende com a nossa acção, servindo-
nos unicamente dos músculos destinados ao próprio movimento, sem
fazer intervir outros. Dou frequentemente o exemplo da “mola de
roupa”. Quando a queremos abrir com os dois dedos, porque have-
mos de crispar a maxila inferior ou outra parte do corpo. Outro exem-
plo: quando pegamos no Sabre ou no Bokken, são inúteis as crispa-
VIII
42
fatais sobre a expressão. O mesmo se passa com o estado de espíri-
to ao longo de uma prática já avançada. É preciso deixar fazer, nada
provocar, nem querer, mas sentir-se “agido”, como se a acção obe-
decesse a uma pulsão do subconsciente. A descontracção, estado
criativo por excelência para o Aiki Nage, torna-se então senhora nes-
te menor investimento da Energia.
Nem sempre é assim, evidentemente. Consoante os ataques,
é necessário ter em conta diferentes elementos:
1. Há o elemento rítmico
2. A força mais velocidade (cara aos mecanicistas) ...
É preciso, então, apelar a uma espécie de organização dinâ-
mica, a uma concentração de vigor, a um tónus muito vigilante, que
de qualquer modo nunca excluem a descontracção permanente, a
qual é um estado de fundo indispensável a toda a acção. A prática
séria e bem conduzida de um relaxamento no plano psicológico po-
de revelar-se de enorme ajuda para os que têm dificuldade em de-
sinvestir as suas tensões do seu conteúdo emocional, e não conse-
guem, portanto, atingir através de simples tomadas de consciência o
estado de descon-tracção que procuram. Mas o relaxamento tem ou-
tras implicações muito fecundas.
Ele favorece, em particular, um estado de consciência supe-
rior, um meio termo entre a vigília e o sono, desenvolvendo conside-
ravel-mente o nosso poder criador.
Chegar a um tal domínio da descontracção, na consciência,
é já fonte de bem-estar.
Mas nada é comparável ao facto de realizar esta descontrac-
ção na execução de um movimento, isto é, quando os progressos na
aprendizagem do Aiki Do foram suficientemente levados até um cer-
to grau. Quem tiver a coragem de fazer o esforço necessário para
atingir um tal estado será recompensado muito para além da suas es-
peranças e dar-se-á conta das suas repercussões em todos os domí-
nios.
Uma distensão física e mental, bem realizada, não só nos apro-
xima dos seres e das coisas, como atenua ao mesmo tempo os efei-
tos nefastos dos ruídos e das excitações parasitárias e desvita-lizado-
ras. Com ela, não só a prática do Aiki Do ganha em sensibilidade, is-
to é, ganha uma consciência mais desperta, como a própria alma en-
tra numa espécie de vibração que poderia assemelhar-se a uma sim-
patia fundamental com todo o ser criado. Parece que a naturalidade,
enfim reconquistada desde o feliz estado da infância, dá a preciosa
certeza de dispor de uma Energia que se poderá aplicar onde se qui-
ser, acumular ou fazer desaparecer com um perfeito controlo desde
que a nossa respiração, inseparável da descontracção, não levante
obstáculos.
Se temos um bom Shizei (a boa atitude na descontracção), o
trabalho seguinte é: Ko Kyu:
Haku (Ko) Expirar
Suu (Kyu) Inspirar
21. Para Aité, ver nota 6, p. 22.Shité é a pessoa que tem a iniciativa na execução do movimento.
22. Fala-se de Haragei quando um homem possui o domínio da sua Arte: calmo e sere-no em todas as circunstâncias. É um estado de maturidade em que a sensibilidadee a Energia encontram todas as possibilidades a qualquer momento.
VIII
43
44
Gyô: arte de provocar acção do adversário, levando-o a um terre-
no desfavorável, obrigando-o a agir, forçando-o a ser autor da
sua própria derrota.
Kusa: o espírito subtil, a erva que oscila ao vento, a flexibilidade
do junco, a maleabilidade do espírito que conhece o desprendi-
mento; acção contida, perpetuada até ao limite.
A respiração é a encruzilhada em que se reconciliam as acti-
vidades fisiológicas, psicológicas e espirituais. O laço, a corres-pon-
dência rigorosa entre a actividade mental e a função respiratória é um
dos dados importantes do Budo em geral e do Aiki Do em particular.
A ciência da respiração, conhecida na Índia sob o nome de Pranayama,
e as técnicas de Yoga (Asana) deveriam interessar os praticantes, não
apenas para a flexibilidade e para o conhecimento do corpo. Mas sa-
bendo também que todas as funções dos órgãos do corpo são pre-
cedidas pela da respiração, existe sempre uma ligação entre a respi-
ração e o espírito nas suas funções respectivas. A respi-ração, quan-
do todas as funções dos órgãos estão suspensas, realiza a concen-
tração do espírito sobre um único objecto.
Existe sempre uma ligação entre a respiração e os estados
mentais. Isto permite entender que, ao ritmar a sua respiração de for-
ma cada vez mais lenta, seja possível penetrar em estados de cons-
ciência outros que os do estado de vigília.
O ritmo da respiração obtém-se através de uma harmoniza-
ção dos três movimentos: inspiração, expiração e retenção.
Tal como os batimentos do coração, o ciclo respiratório é uma
manifestação inconsciente da vida. Não há ser vivo que não respire,
a ponto de o ”sopro” ser, por vezes, assimilado à vida.
Mas, exactamente porque se trata de uma actividade vital que
não é possível dispensar, a nossa respiração acontece sem que nela
pensemos.
Infelizmente, parece termos perdido sem o saber a esponta-
neidade duma respiração absolutamente ”normal”, que devia ser a
dos nossos longínquos antepassados, e que observamos nos bebés,
nos animais e durante o nosso sono.
Por consequência, quando respiramos de maneira antinatu-
ral, ao invés da lógica do nosso corpo, não temos geralmente disso
consciência.
A respiração defeituosa é tanto mais dissimulada, quanto não
IX
45
IX k o k y o
nos apercebemos dela a não ser em casos de perturbações excepcio-
nais e fugidias, em que intervêm a emoção ou o esforço exagerado.
Ora, ela condiciona sempre o nosso comportamento e a nossa ma-
neira de praticar o Aiki Do, para o melhor e para o pior! Não pode-
mos, pois, ser-lhe insensíveis. Devemos, pelo contrário, aprender a
utilizá-la e a todo o momento conciliarmo-nos com ela.
Numerosas e variadas técnicas milenárias foram elaboradas
muito especialmente na Índia, no estudo do Yoga, e no Taoísmo chi-
nês.
Desde há milénios, diferentes tradições elaboraram técnicas
variadas, designadamente no estudo do Yoga (Pranayama). Frequen-
temente estas técnicas têm implicações que ultrapassam de longe o
quadro da aprendizagem de uma boa respiração. Neste trabalho, o
nosso objectivo não é analisar a fundo a respiração ou explicar como
deve ser praticada, porque, do meu ponto de vista, isso deve ser trans-
mitido directa e particularmente de professor a aluno.
Mas, nestas reflexões, podemos trazer à luz a influência ca-
pital que ela tem nos praticantes — sem que a maior parte das vezes
eles se dêem conta disso. E mostrar, em consequência, o lugar que
ela poderia assumir no ensino do Aiki Do.
Precisemos, desde já, que descontracção e respiração são ab-
solutamente indissociáveis, e que não podemos ocupar-nos de uma
sem passar pela outra.
Alguns praticantes de Aiki Do sentirão mais os inconvenien-
tes de uma tensão excessiva, outros os de uma respiração difícil, mas
qualquer que seja o ponto defeituoso para o qual a sua sensibilidade
particular os alerte, eles deverão, a fim de esperar melhorias, ter em
conta o duplo aspecto de um problema de que não percebem senão
uma parte.
IX
46
I
O estudo do sopro Ki começa pela compreensão do meca-
nismo da nossa respiração. Depois, uma vez assimilado, a respiração
torna-se Sopro e dá-nos Energia, harmonia e paz. Ele é factor de pro-
gresso na arte que praticamos, ao permitir unir o ser, ligando o cor-
po ao espírito, visando uma outra consciência.
Neste capítulo, estudaremos apenas a influência da respira-
ção e o seu mecanismo de base.
A prática dos exercícios respiratórios, sejam do Yoga ou do
Budo, deve ser precedida da obtenção de um ritmo mental harmo-
nioso e equilibrado na via quotidiana. Só então, com menor risco,
exercícios superiores de respiração poderão ser aplicados com a má-
xima sabedoria...
Os múltiplos ginásios em que hoje se pratica o Aiki Do e as
Artes Marciais são muitas vezes frequentados por pessoas que na sua
grande maioria vêm à procura de potência e força. Vão trabalhar du-
ro e forjar o seu corpo no combate, adquirirão títulos, obterão talvez
vitórias passageiras. Mas para o praticante que escolheu uma Via, é
algo diferente. A abordagem do Aiki Do é outra coisa. Em primeiro
lugar, não é uma construção intelectual, nem um discurso filosófico
frequentemente nebuloso, frequentemente confuso!
E, no entanto, a Arte do Aiki Do, se for bem ensinada, per-
mite descobrir a arquitectura subtil do corpo humano e, deste modo,
remontar à sua fonte.
Mas antes de continuar as reflexões sobre a respiração, que-
ria dar a palavra a Itsuo Tsuda23, deixá-lo explicar os seus primeiros
passos com o Mestre Ueshiba:
Quando comecei o Aiki Do por volta de 1960, aprendi sob a
direcção de professores, discípulos de Mestre Ueshiba, a fazer exer-
cícios de ginástica antes de começar a parte técnica.
Um destes exercícios consistia em rodar sobre cada um dos
pés alternadamente, descrevendo círculos através da deslocação. A
utilidade deste exercício, segundo a explicação dada, era a de permi-
X
47
X a r e s p i r a ç ã o e a s u a u t i l i z a ç ã o
A vida explica-se pela circulação dos sopros —
é um grande princípio, que a arte do Aiki Do deveria aprofundar.
Qual era a diferença essencial, segundo o que me foi dado ob-
servar, entre Mestre Ueshiba e os seus alunos? Os seus alunos, salvo
talvez algumas excepções, eram fascinados pelo poder do Mestre e
seguiam-no a fim de adquirir esse poder, a fim de se tornarem cada
vez mais fortes. Eles conseguiram chegar, em geral, ao Aiki Do de
Consolidação, cuja fórmula consiste em consolidar-se a si mesmo, atra-
vés da procura incessante do reforço dos pontos fracos. Fortificar os
pulsos e baixar o centro de gravidade. Procurar intensificar o Ki, au-
mentar a eficácia.
O Aiki Do de Mestre Ueshiba parecia-me ser completamente
diferente: era o Aiki Do de Conciliação, de comunhão com o Universo24.
Eu sentia um despojamento completo na sua personalidade, no seu
comportamento e na sua técnica. Ele era tão inatingível como um fe-
nómeno natural. Ele era inatacável como o ar e quem quer que o ata-
casse era arrastado no seu turbilhão.
Ele afastava-se dos humanos. Ele próprio o dizia. Uma tal de-
claração poderia ser compatível com a Via do Amor? Compreendi que
o Amor de que ele falava não se situava ao nível da afeição pessoal,
porque, no contacto que com ele tive, tinha sido absorvido numa di-
mensão sem medida à escala humana.
Uma tal concepção do Aiki Do é, evidentemente, inacessível
ao comum dos mortais. É infinitamente mais fácil explicar a Consoli-
dação. Ainda que se compreenda e aceite o Aiki Do como via de co-
munhão com o Universo, num plano meramente espiritual, é mais ló-
gico, de qualquer modo, dá-lo a entender em termos acessíveis a to-
da a gente e com a promessa acrescida da eficácia.
Ao primeiro confronto com as dificuldades reais, o espírito ce-
de o lugar à agressividade mesquinha.
À força de observar as pessoas praticar, acabei por sentir em
tir baixar o centro de gravidade do nosso corpo de maneira a que es-
tivéssemos em equilíbrio em todas as circunstâncias. A explicação pa-
recia-me muito lógica. Todas as perturbações por que passamos na
vida corrente provêm do facto de o nosso centro de gravidade estar
colocado demasiado alto. O sangue sobe à cabeça e perdemos a lu-
cidez. Levados pelos impulsos do momento, cometemos erros.
Tendo aceite a explicação, treinava-me neste exercício. Fazia
uma volta sobre um pé, em seguida, sobre o outro. Um, dois, três,
quatro, eu fazia círculos sem perder o equilíbrio, ao mesmo tempo
que me deslocava.
Um dia em que realizava este exercício, ouvi uma voz que,
embora muito gentil, não deixava margem para dúvidas sobre o con-
teúdo do que ela significava: “Assim, vai ter vertigens”.
Virei-me e vi Mestre Ueshiba que me olhava. Fiquei pregado
ao chão sem saber o que dizer. Esta palavra do Mestre teve em mim
um impacte terrível.
Eu tinha acreditado, até então, na uniformidade do ensino.
Quer se tratasse do Mestre ou de um pequeno professor, devia haver
uma doutrina imutável, uma prática determinada uma vez por todas.
O facto de o Mestre desaprovar o que eu tinha aprendido dos seus
discípulos directos constituía um caso de consciência muito grave.
Era preciso repor tudo em causa.
Levei muitos anos antes de compreender e sentir que o Aiki
Do de Mestre Ueshiba era muito diferente do dos seus discípulos.
Seria preciso acrescentar ainda que cada um dos seus alunos o prati-
cava à sua maneira, segundo a sua motivação pessoal, segundo a
sua abertura de espírito.
De qualquer modo, havia entre o Mestre Ueshiba e os seus
alunos uma distância tão grande que era difícil de ultrapassar.
X
48
filigrana o que levou cada um ao seu exercício. Há tantos Aiki Do
quantos os praticantes, tal como existem tantos grafismos quantos
os escribas. O que é terrível é que a motivação inicial, íntima e sub-
consciente, permanece frequentemente imutável, apesar da prática.
Raros são os que reconhecem a estreiteza da sua visão e introduzem
uma mudança radical na sua atitude.
Este foi, contudo, o caso de Mestre Ueshiba. Ele dizia que es-
tava no seu primeiro ano de Aiki Do. Eu sentia que a sua evolução
nunca desembocava num fim.
Mulheres que querem saber se a prática do Aiki Do as fará
emagrecer, rapazes que o querem aprender na condição de o pode-
rem utilizar ao fim de três meses nas suas zaragatas, estes são refle-
xos dos costumes dos nossos dias.
No que diz respeito à primeira parte da sessão, parte que pre-
cede o treino técnico, conheci várias concepções e, consequen-te-
mente, várias denominações. Ela era apelidada ora de “exercício pre-
paratório”, ora de “ginástica Ai Ki”, mas o Mestre Ueshiba nunca lhe
deu qualquer nome.
À primeira vista, todas as interpretações se assemelhavam
mais ou menos e os principiantes aceitavam-nas indistintamente co-
mo uma espécie de aquecimento. Foi por um trabalho contínuo de
observações e de comparações que acabei por sentir a importância
que o Mestre atribuía a esta prática.
Quando, de tempos a tempos, o Mestre Ueshiba chegava atra-
sado para a sessão das seis e meia, o seu substituto tinha concluído
esta parte e dizia: “Terminámos o exercício preparatório”.
Sempre que isto acontecia, era a vez de o Mestre fazer ex-
plodir a sua cólera numa voz tonitruante: “Qual exercício preparató-
rio? Nunca houve tal coisa”.
E, no entanto, ele jamais lhe deu um nome, e o outro estava
convencido de que se tratava exactamente de um exercício prepara-
tório, preliminar à técnica que era para este último a coisa principal.
Porque é que nunca houve nome? É difícil de compreender a
um espírito ocidental, porque, para este, a primeira coisa a fazer, quan-
do tem algo a preconizar, é dar-lhe um nome, colar-lhe uma etique-
ta. A coisa não existe enquanto não tiver denominação.
À falta de melhor, baptizei-a provisoriamente de prática res-
piratória, tendo por detrás toda a ressonância que a escolha deste no-
me possa suscitar.
É verdade que, nesta prática, nem tudo cabe no mesmo sa-
co. Existem também exercícios que podem passar por serem de aque-
ci-mento, como aqueles que se aplicam aos pés, aos dedos dos pés,
às plantas dos pés e aos tornozelos.
Há outros que estão carregados de significações profundas e
que merecem, por consequência, algumas explicações.
De outro modo, todos estes gestos se tornariam uma agita-
ção de marionetas25.
X
49
empurrando para cima o diafragma, cuja parte superior se levanta e
os flancos se retraem, arrastando consigo o fecho das costelas e per-
mitindo o expulsar do ar pelos pulmões.
Basta observar os alunos num dojo, para nos darmos conta de
que a respiração instintiva habitual é raramente ampla. Ela é, ao con-
trário, reduzida, não permitindo senão um afastamento das costelas
e um jogo muscular (diafragmático e abdominal) limitados e não as-
segu-rando senão um mínimo de ventilação da parte central dos pul-
mões.
Sempre que praticamos, os condicionamentos coercivos im-
postos ao nosso corpo, as nossas más posturas, a restrição do espaço
fecham-nos nesta respiração reduzida, que permite, certamente, as-
segurar trocas gasosas indispensáveis à nossa vida, mas cujos efeitos,
a mais ou menos longo prazo, ser-nos-ão prejudiciais tanto no plano
físico como no psíquico.
Com efeito, nesta respiração reduzida, a capacidade pulmo-
nar não é utilizada no seu máximo, o que significa que a base e a par-
te superior dos pulmões, não sendo praticamente ventiladas, os vasos
sanguíneos, as vísceras, os músculos e o cérebro, irrigados por um san-
gue insuficientemente oxigenado, acumulam as toxinas e funcionam
mal. O próprio mecanismo muscular respiratório atrofia-se pouco a
pouco, acentuando os erros da postura, fixando os efeitos de ten-
são muscular e nervosa, que agem, por sua vez, sobre o sistema sim-
pático, o qual reage através de tensões sobre o plexo solar, que trans-
forma em angústia a ansiedade psíquica original... e o círculo fecha-
se.
Quer isto dizer que, para assegurar uma boa saúde, devería-
mos respirar sempre no máximo da nossa capacidade pulmonar e so-
bre-oxigenar o nosso sangue em permanência? Na prática, isto não
Nota elementar sobre
o funcionamento respiratório
A respiração, no seu acto instintivo, vital para o ser humano,
é executado em dois tempos: a inspiração, ao longo da qual, o ar pe-
netra nos brônquios que o filtram e o enviam para os pulmões onde
se encontram os alvéolos pulmonares que dele extraem o oxigénio e
o enviam, sob a forma de sangue oxigenado, para o coração que se
encarrega de o distribuir, através do sistema arterial, por todo o cor-
po; e a expiração que consiste em expulsar o gás carbónico extraído
pelos pulmões do sangue viciado pelos detritos de combustão, re-
gressado ao coração através do sistema venoso.
Os cursos primários da nossa infância familiarizaram-nos com
a dupla rede circulatória do sangue carregado de oxigénio em ver-
melho e do sangue carregado de gás carbónico em azul. O coração
e os pulmões, intermediários obrigatórios, neles figuravam destaca-
dos.
Quanto ao mecanismo que preside a estas trocas gasosas e
circulatórias, não temos, em geral, senão uma ideia muito vaga.
Contudo, ele põe em acção um dos músculos mais potentes do cor-
po (que trabalha tanto ou até mais do que o coração): o diafragma,
espécie de cúpula que cobre o abdómen e cujos movimentos de vai-
vém, de cima para baixo e de baixo para cima, são condicionados pe-
la alternância tensão-distensão dos músculos abdominais.
Durante a inspiração: a cúpula do diafragma baixa e as suas
superfícies laterais alargam-se, os músculos abdominais distendem-
-se, o abdómen dilata-se, as costelas afastam-se, permitindo aos pul-
mões encherem-se de ar.
Durante a expiração: os músculos abdominais contraem-se,
X
50
seria possível: o mecanismo muscular respiratório fatigar-se-ia de-
pressa e uma excessiva entrada de oxigénio provocaria um desgaste
rápido dos órgãos por oxidação.
Sem querer fazer da respiração habitual uma tarefa discipli-
nar, os praticantes de Aiki Do, antes de falarem da Energia ”Ki”, de-
veriam praticar regularmente técnicas respiratórias, para melhorarem
as trocas gasosas (uma maior quantidade de oxigénio no sangue, uma
maior quantidade de gás carbónico expulso), permitindo à base e à
parte superior dos pulmões funcionar e, simultaneamente, reduzir as
tensões musculares e nervosas de todo o nosso corpo e corrigir as
posturas defeituosas.
Uma maneira muito simples de reeducar a respiração instin-
tiva consiste em praticar pelo menos duas vezes por dia (ao levantar
e ao deitar) uma série de respirações voluntárias profundas e lentas,
de tal modo que os três níveis dos pulmões (base, meio e cimo) se-
jam profundamente ventilados e permitam trocas gasosas máximas,
assegurando, assim, um forte acréscimo da taxa de oxigénio sanguí-
neo distribuído por todo o organismo e, em particular, no cérebro
(grande consumidor de oxigénio), cujo funcionamento ao nível do
néo-cortex (sede das faculdades intelectuais) e do rinencéfalo (sede
das emoções) se verá melhorado. Esta sobreoxigenação cerebral, agin-
do por intermédio do hipotálamo sobre a hipófise, melhora igual-
mente o funcionamento endócrino.
Ao mesmo tempo, os movimentos de fluxo e refluxo do dia-
fragma, lentos, regulares, profundos, asseguram uma massagem das
vísceras abdominais, cujas funções de depuração e de transformação
são facilitadas. A mais longa duração dos movimentos respiratórios e
das trocas gasosas reduz a velocidade da circulação sanguínea e des-
cansa o coração, desacelerando os seus batimentos.
Esta respiração voluntária, profunda e lenta pode ser pratica-
da durante ”o cerimonial”. A prazo, ela influi sobre a respiração ins-
tintiva habitual, que será mais completa e menos rápida.
Princípios de base
da reeducação respiratória
Todo o praticante de Aiki Do, antes de pensar num trabalho
mais subtil, deveria conhecer os princípios básicos da reeducação res-
piratória.
a) A inspiração e a expiração devem fazer-se pelo nariz.
Na inspiração: os pêlos que revestem a mucosa nasal retêm
as poeiras e a passagem pelo canal nasal aquece o ar antes da sua
chegada aos brônquios. Acresce que o muco segregado pela muco-
sa tem a propriedade de matar certos micróbios.
Na expiração: o sopro pelo nariz permite travar muito mais
subtilmente do que a boca o faria a quantidade de ar expulso.
Na inspiração e expiração nasais, o ar reunido à passagem age
como uma massagem sobre as células nervosas que estão em relação
com os centros simpáticos.
Note-se que, para os Yogi, o papel de cada narina tem a sua
importância ao nível da absorção e da expulsão da Energia vital (Ki)
contida no ar.
b) O ritmo deve ser lento para permitir uma melhoria da cir-
culação sanguínea, uma desaceleração da ”bomba” cardíaca, uma
massagem mais profunda das vísceras e do plexo solar.
c) A respiração deve fazer-se aos três níveis: abdominal (ven-
tilação da base dos pulmões), torácica (ventilação do meio dos pul-
mões), clavicular (ventilação da parte superior dos pulmões), favore-
cendo assim o livre jogo do diafragma, a massagem das vísceras e o
X
51
aluno e deve visar também o anti-stress. A prática, como vimos, é tam-
bém distensão, em movimentos conscientes, controlados, permi-tin-
do que o aluno se recentre, se ponha à escuta do seu corpo, sinta uma
forma de ataque e o aceite para lhe fazer frente. A tomada de cons-
ciência da descontracção e a da respiração inauguram a confiança.
Segundo Karlfried Dürkheim, a falta mais corrente, cometida
em respiração, é não respirar a partir do seu centro, mas de demasia-
do alto. Daí resulta que um trabalho muscular do peito se substitui ao
trabalho inconsciente do diafragma. E, assim, se instala uma respira-
ção saída do ”eu” contrária ao ritmo de uma respiração saída do Ser
autên-tico. Sempre que a respiração falsa se tranforma num hábito,
ela entrava o devir de uma pessoa27.
O diafragma participa no jogo ritmado da respiração que nos
liga ao Universo...
O praticante de Aiki Do ignora frequentemente que a beleza
dos seus movimentos, que devem vir do mais íntimo do seu ser, é fun-
ção da sua calma e da correcta utilização do seu sopro. O praticante
cujo ritmo respiratório não é amplo e distendido não pode aspirar à
naturalidade nas deslocações.
Quando se fala de um belo movimento, diz-se que nele há ”Ki”.
Poder-se-ia dizer também: ”Este movimento tem Sopro”.
A respiração não é apenas uma exigência técnica, sem a qual,
de um ponto de vista do corpo, não se pode estar ”colocado”. Ela é,
antes de mais, tal como a descontracção, necessidade na Arte do
Movimento.
Sempre que nos exprimimos através do nosso corpo, somos
tributários da nossa respiração, a meio caminho do consciente e do
subconsciente, do baixo e do alto do corpo, do físico e do espiritual.
Se a respiração é interior, profunda e calma, ela é a fonte de uma
descongestionamento do plexo solar.
d) A duração da expiração deve ser dupla da da inspiração,
o que é o caso na respiração instintiva do corpo em repouso.
Ao procurar conservar na respiração voluntária a relação 2 pa-
ra 1, permite-se aos músculos abdominais, nesta fase dinâmica que
é a expiração, expulsar ao máximo o ar viciado dos pulmões.
e) Deve observar-se um tempo de paragem com os pulmões
cheios e um tempo de paragem com os pulmões vazios:
• no fim da inspiração, a paragem permite aos alvéolos pul-
monares desenvolverem-se e encherem-se de ar, no máximo da sua
capacidade, a fim de extrair o máximo de oxigénio;
• no fim da expiração, a paragem permite o repouso do dia-
fragma.
f) O corpo deve estar em perfeito equilíbrio em torno de uma
coluna vertebral o mais direita possível, e os ombros baixos.
A simetria dos dois lados do corpo em relação ao eixo central
assegura um mesmo trabalho e um mesmo efeito benéfico para ca-
da pulmão e cada músculo gémeo.
g) O espírito deve concentrar-se sobre cada fase respiratória
e acompanhar os seus efeitos: por um lado, a concentração sobre a
tarefa permite realizá-la melhor; por outro lado, a acção do pensa-
mento sobre os centros de aprendizagem inconsciente do cérebro fa-
vorece a aquisição de novos automatismos; por último, ao fazer isto,
não pensamos mais nas preocupações quotidianas e, pouco a pou-
co, chegamos a eliminá-las e a aproximarmo-nos do vazio mental que
coloca o corpo e o espírito em repouso26.
Nesta reflexão sobre a respiração de base, será preciso não
esquecer que a sessão de Aiki Do deve privilegiar a recentragem do
X
52
Energia Vital inesgotável. Dizia o Mestre Ueshiba: ”Para aquele que
compreende o princípio essencial do Aiki Do, o Universo está nele; eu
sou o Universo”.
E este princípio essencial é o Sopro.
Se, ao contrário, a respiração é curta, mal colocada ou inibi-
da, ela não só perturba o metabolismo, como paralisa o movimento,
bloqueia a relação entre o baixo e o alto do corpo e priva-nos, por-
tanto, de uma comunicação real com a riqueza criativa do nosso in-
consciente.
Ora, é este estado privilegiado que vivemos em certos mo-
men-tos da prática, sempre que abandonamos o domínio do ”fazer”,
para experimentarmos o do ”deixar fazer”...
23. Itsuo Tsuda, de nacionalidade japonesa, fundou, em Paris, a ”escola da respiração”.Integrou-se perfeitamente na cultura ocidental. Foi aluno de Marcel Granet, cujacultura chinesa aprofundou. Por várias vezes, nomeadamente em Marrocos ondeentão eu ensinava, troquei impressões com ele sobre o problema da divulgação dasArtes Marciais (Budo) fora do Japão. Itsuo Tsuda conseguiu, a meu ver, a ponte en-tre o Oriente e o Ocidente, o que é muito raro.
24. Também eu senti isto, depois da morte do Mestre Ueshiba. Decidi, pois, abandonara organização Aikikai, em 1969.
25. Itsuo Tsuda, La science du particulier, Paris, Le Courrier du Livre, 1976, pp.125-126
26. Para ir mais longe na respiração, v.,designadamente, Georges Stobbaerts, Hatha-Yoga, Centro do Livro Brasileiro, 1977; Recueil de satsang, Lisboa, ed. do autor,1978/1988; Étude sur l’origine des énergies, Lisboa, ed. do autor, 1979; O Soprodo Espírito, Lisboa, ed. do autor, 1982; Yoga — Noções elementares, nº3, OPranayama, Lisboa, ed. do autor, 1987.
27. Karlfried Dürkheim, Hara. Centre vital de l’homme, Paris, Le Courrier du Livre,1974, pp.154-178.
X
53
A percepção do Ki suscita e reclama uma qualidade
de atenção particular que sai dos nossos automatismos
tanto na sessão de Aiki Do como no quotidiano.
Esta presença no instante é um dos melhores cami-
nhos para a qualidade da nossa concentração. II
54
Longe da especulação intelectual, a importância da experiência directa.
Uma das consequências imediatas da descontracção e da res-
piração correcta é permitir-nos aceder à concentração.
Da mesma maneira que a descontracção é, como vimos, mui-
tas vezes confundida com um relaxamento geral, a concentração é
indevidamente assimilada a um paroxismo de atenção, a uma vigi-
lância interior sem falha, que não são, de facto, senão crispação do
pen-samento (morder o cérebro com os dentes!). Descontracção e
con-centração, longe de serem moleza do corpo e crispação do espí-
rito, são dois estados inseparáveis, que envolvem por inteiro o indiví-
duo. A concentração é, antes de mais, disponibilidade, abertura em
relação a si mesmo e em relação ao exterior, um movimento de Energia
insuspeitada. A expressão de um movimento é uma força dirigida do
interior para o exterior, um movimento de Energia vindo do mais fun-
do de nós mesmos, que procuramos traduzir. Caso o caminho da co-
municação connosco esteja bloqueado, não há descarga possível pa-
ra esta Energia que se transforma então em tensão e crispação.
Se não existem técnicas pré-fabricadas que possam conduzir
à concentração, há, no entanto, tomadas de consciência físicas e psí-
qui-cas que a ela facilitam o acesso. Sabemos, por o termos visto mui-
tas vezes, que se o corpo se verga às exigências da imaginação, em
contra-partida, o seu equilíbrio, a "centração" permanente são a con-
dição do bom funcionamento do espírito. A concentração, directa-
mente ligada ao estado criativo, por exemplo, num movimento de
Kokyu Nage, é antes de mais este retorno a si, sem o qual um bom
praticante não poderia exprimir senão movimentos superficiais. É pre-
ciso não esquecer que um movimento mesmo Ni Kyo liberta uma
emoção que pode ser nervosa, agressiva, vazia, etc., e deixa também
àquele que o sofre um mal-estar e que não passa despercebido a um
olhar atento...
É aqui que se separam as escolas! Uma será a da Consolidação
e outra a da Conciliação.
A concentração deve, portanto, ser objecto de uma aborda-
XI
55
XI c o n c e n t r a ç ã o
Seria preciso parar o saber.
Saber parar seria a salvação
Lao Tsé28
não permitem nem retoque, nem remorso, exigem de nós um inves-
timento e uma disponibilidade totais, que não podem basear-se se-
não na nossa concentração no sentido físico do termo. (E isto, pou-
cos o compreendem!).
A valorização do Seika Tanden não é pura fantasia.
O ventre é o estado mais primitivo da evolução na estrutura
do corpo humano. Ele é origem da vida (no ventre) e da reprodução,
o lugar de junção do alto de do baixo, da direita e da esquerda, o pon-
to de partida dos nossos braços e das nossas pernas. Não se diz "aguen-
tar-se nas cruzes", ou "fazer das tripas coração"? Ora estas locu-ções
tendem a indicar a importância atribuída a esta região do corpo.
Pensar com o abdómen significa baixar o diafragma para dei-
xar o campo livre ao funcionamento correcto dos órgãos do tórax e
conser-var assim o corpo firme e convenientemente disponível para a
acção.
Antes de estar familiarizado com esta concentração física, é
muitas vezes útil despertar esta região abdominal que facilmente es-
capa ao nosso controlo conscientemuitas vezes por razões de edu-
cação...
Podemos, por exemplo, solicitar a musculatura da nossa ba-
cia, exercitarmo-nos alternadamente em contracções e relaxamentos
que apuram a sensação. Da mesma maneira, é eficaz praticar um li-
geiro movimento de anteriorização dos quadris (não com um blo-
queio, exagerado!), como quando de uma entrada, por exemplo, em
Koshi Nage, a fim de favorecer a base de sustentação e dar às pernas
uma descontracção suplementar, que permite aceder mais livremen-
te à consciência abdominal.
Certas imagens mentais podem ser muito úteis ao principian-
te que aprende a concentrar-se. Assim, quando imaginamos o nosso
gem privilegiada por parte dos aikidocas.
Concentrar-se é, antes de mais, regressar ao centro do corpo
e aí se enraizar, em vez de andar ao sabor do jogo de forças diver-
gentes e contraditórias.
O Seika Tanden ou Kikaï Tanden (impropriamente traduzido
por Hara), de que falam os Mestres de Budo, é o ponto crucial do nos-
so corpo. Ele é o centro vital onde se concentra o Ki, a Energia cós-
mica, e de onde ela se expande por todo o corpo. Nós ocidentais po-
demos relacionar esta Energia ao Sopro. Em latim, a energia é alma
ou anima, que vem do grego anemos, que significa "o vento". Em
grego, anemos corresponde ainda a psico, que vem de psyché que
significa "respirar". O Sopro é também espírito: em latim spiritus e
em grego pneuma. Mas aqui estamos perante o Sopro Divino como
no Génesis: "Então Jeová Deus modelou o homem com a argila da
terra, insuflou pelas suas narinas um sopro de vida e o homem tor-
nou-se num ser vivo". É o Ki com maiúsculas.
O Seika Tanden, situado no ponto de junção do sacro-lom-
bar, coincide com o centro de gravidade. Este ponto não é um órgão
preciso que se possa situar anatomicamente. É o lugar físico onde se
concentra a nossa força, onde se baseia a nossa estabilidade. Estar
"colocado" é estar no Haragei, com o seu centro, concentrum. Quan-
do conseguimos verdadeiramente chegar a esta concentração na sua
acepção literal, o que implica estarmos descontraídos, assentes nu-
ma postura correcta e com a nossa respiração colocada, detemos, en-
tão, uma força muito superior àquela que possuímos em tempo nor-
mal.
Em vez de sermos apenas um intelecto todo poderoso, tor-
namo-nos um ser integral, o que nos abre a via de progressos ilimi-
tados. É por isso que o Aiki Do e todo o Budo, Artes do instante, que
XI
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corpo semelhante a uma esfera, em que as distâncias entre alto e bai-
xo, frente e trás, direita e esquerda seriam mínimas e em que cada
ponto do corpo estaria ligado a um ponto central, estamos no bom
caminho de virmos a centrar-nos sobre o "ponto". Contribuem igual-
mente para a concentração as imagens pelas quais sentimos toda a
Energia do "alto" (Céu) percorrer, descer no corpo para o umbigo,
ou ainda aquela outra sensação de caminhar sobre as mãos, isto é,
fazer perder à cabeça o seu papel de chefia... Vi, na Índia do Sul, uma
escola de Kalaripayat29 que pratica habilmente este exercício mental.
Todas estas imagens são ricas de sugestões... e põem cobro ao vaga-
bundear da mente.
Mas a concentração não é apenas uma realidade física; é tam-
bém uma atitude mental e não basta tomar consciência do seu cor-
po ou viver este sentimento de estar centrado em Seika Tanden. A
verdadeira concentração exige também do aikidoca uma mudança
de espírito que não se efectua num instante, mas ao longo de todo
um trabalho sobre o tapete e fora do dojo!
Ela adquire-se através da nossa prática, em cada movimento,
até à identificação completa: cada "presença" tem uma sensação ver-
dadeiramente vivida, cada minuto de disponibilidade activa ao servi-
ço de uma busca particular, cada retorno a nós mesmos são um ins-
tante de verdadeira concentração que criamos. Quando muitos ou-
tros instantes semelhantes vierem juntar-se-lhe postas e repostas à
prova que foram todas as distrações correntes então, cria-se em nós
uma real possibilidade de concentração instantânea, uma força que
nos permite "aguentar" sem sermos submersos pelas emoções exte-
rio-res30. Importa, como sugeri, criar em nós um clima de amor de on-
de estejam excluídos o nervosismo, a impaciência, as contestações
palavrosas, seja connosco ou com os outros, que são os maiores obs-
táculos ao nascimento da concentração, porque eles fecham-nos à
realidade vivida.
A aprendizagem da concentração deve permitir o reencontro
consigo mesmo em todas as circunstâncias e não ser tributário das
emoções provocadas por um resultado, um julgamento, um momento
a advir. É por isso que todo o trabalho do Aiki Do com o Jô ou o
Bokken é um caminho que visa atingir o estado de concentração, ca-
minho em ponteado, feito de todos estes instantes vividos, onde nos
entregamos por completo, onde procuramos reduzir sempre cada vez
mais a parte acidental no gesto e a sua precipitação muitas vezes ner-
vosa, a fim de nos tornarmos verdadeiramente disponíveis.
Todos estes exercícios de "centração" física e de localização
da atenção têm uma mesma finalidade que se exprime ao mesmo
tempo de maneira muito pontual e de maneira quase intemporal.
Com efeito, a concentração é ao mesmo tempo este estado instan-
tâneo em que o praticante se reencontra a si mesmo e a capacidade
que ele tem de se abstrair dos acontecimentos e das situações.
A concentração, por um lado, vive-se, por outro, aprende-se.
A concentração — estes momentos de unidade interior, on-
de nos sentimos viver até ao limite de nós mesmos, numa unificação
completa do organismo — a todos diz respeito.
Tal como o actor, o músico ou o calígrafo, que dependem da
sua concentração, o praticante de Budo deve estar concentrado no
instante da criação, e nunca pode voltar atrás. Quando um começa
a tocar, ou o outro projecta o seu pincel no papel, dá-se um momento
único e em que ambos não podem mais tergiversar.
Para o aikidoca, é o momento da recepção, De Ai a que cha-
mo "o estado de De Ai", o momento único do "encontro", da for-
ma de ataque, o espaço harmonioso do encontro, em que tudo se
XI
57
decide.
A concentração é este estado privilegiado que, se não garante
a riqueza da inspiração, favorece-a e permite que ela desabroche. A
concentração é a imagem do tempo concentrado; ela é o resultado
instantâneo de todo o trabalho anterior, de todos os esforços do pra-
ticante. Ela é a única coisa que perdura quando todo o traço desta
preparação desapareceu. É demasiado tarde para alterar, naquele ins-
tan-te decisivo, o que foi feito, isto é, para renegar o seu próprio tra-
balho.
No estado de concentração encontra-se condensado o pas-
sado do seu estudo. Já não é necessário fazer apelo à memória, ir pro-
curar elementos de técnica, visto que tudo lá está, tudo é presente.
A concentração é portanto também esta possibilidade de
abandonar a mente, de confiar no que é, a fim de coincidir totalmente
com a acção, e viver o instante presente. Para chegar a este estado
óptimo em que estamos concentrados, é preciso, nunca será demais
repeti-lo, estar liberto de toda a preocupação, tanto em relação ao
resultado, como em relação ao juízo de outrem.
Esta sensação de disponibilidade, de total receptividade à cria-
tividade do instante, constitui o estado ideal para o qual deveria ten-
der todo o praticante consciente de ser um mensageiro do Sopro...
Aquele que, ao longo do seu trabalho de aprendizagem, foi
suficientemente paciente para aprender a concentrar-se torna-se ca-
paz, em dois segundos e quaisquer que sejam as circunstâncias, de
se "re-unir" para poder exprimir, no instante, a própria essência do
movimen-to. Sempre que se acede a um tal sentimento de liberdade
interior, a prática torna-se, sem esforço, fonte permanente de alegria
e de criação.
É então possível falar sem impostura da nossa Arte.
28. Lao Tsé, em português, ou ainda Lao-Tseu, na norma francesa, e Lao-Tzu, na ingle-sa. Mas Laozi, na transcrição oficial chinesa, Pinyin.
29. Considero o Kalaripayat e outras artes de que desconheço o nome, os antepassa-dos das Artes do Judo, Aiki Do, Karaté, Kung Fu, Tai Chi, etc. Nascido na Índia, hámais de 3 500 anos, é ainda desconhecido na Europa, embora alguns ocidentais te-nham tentado fazê-lo conhecer, por vezes, de forma desajeitada. O Kalaripayat (omelhor conhecido) tem a riqueza de uma grande tradição, tanto no combate e namedicina, como ainda no método de meditação e de evolução espiritual.
30. É desolador ver, por vezes, num tapete, praticantes avançados e muito bons execu-tantes perderem-se neste género de situação.
XI
58
XI
59
a concentração no estudo do yoga
Ekagrata: modalidade da consciência que conduz a
Dharana (estado de concentração).
Viyasa (in Yoga Sutra, I, 1) classifica, da forma seguinte,
as modalidades da consciência (ou "planos mentais", chitta
bhiumi): 1. instável (kshipta); 2. confusa, obscura (mûdha); 3.
estável e instável (vikshipta); 4. fixa sobre um único ponto (eka-
gra); 5. completamente controlada (nirodha).
Destas modalidades, as duas primeiras são comuns a
todos os homens, porque, do ponto de vista indiano, a via psí-
quico-mental e dinâmica é, habitualmente, confusa. A
ter-ceira modalidade da consciência, vikshipta, obtém-se fi-
xando "ocasional e provisoriamente" o espírito, através do
exercício da atenção (por exemplo, num esforço de memória
ou quando de um problema matemático, etc.); mas ela é pas-
sageira e de nada serve para a libertação (mukti), visto não ter
sido obtida por meio do Yoga. Apenas as duas últimas mo-
dalidades acima enunciadas são estados de Yoga, isto é, pro-
vocados pela medita-ção (Dhyana).
Mircea Eliade
Téchniques du Yoga
Gallimard, 1975
Ter o seu espírito consigo.
III
60
À mínima discriminação, céu e terra ficam a distância infinita...
O praticante tem por missão fazer viver o espírito do Ai Ki,
mas para traduzir os sentimentos que este estado de espírito repre-
senta é preciso ainda conhecê-lo! Consolidação ou Conciliação?
Devo dizer que, na Arte do Movimento (Ai Ki), isto pode ser ainda
mais profundo...
Cada fase da prática deveria ser virada para o"Momento Úni-
co", aquele em que o praticante, confiante nas suas possibilidades,
libertará os seus movimentos tal como os sente. O ensino num dojo
deveria, pois, contribuir para fazer do praticante um "ser total", que
sabe traduzir a sua mensagem com clareza e sensibilidade. Ora, jus-
tamente, parece que este objectivo último é muitas vezes esquecido
no ensino, mesmo quando se diz "superior".
Aí, procura-se sobretudo a performance, a eficácia, a aquisi-
ção de velocidade, etc… Enveredar por novos horizontes provoca ho-
je desprezo ou desconfiança... O aluno pouco se envolve na sua abor-
dagem. Ele contenta-se em copiar, passivamente e com zelo, o seu
professor, sem manter a liberdade de comparar com outras concep-
ções e sem assumir pessoalmente opções firmes quanto à sua in-
terpretação da Via (Aqui, separo-me, pela prática no tapete, deste en-
tendimento).
O período teoria/prática está desfasado. (Neste preciso caso,
chamo teoria à leitura de textos que podem ajudar realmente e não
à leitura que nos leva à especulação intelectual, que nada tem a ver
com a prática).
Como espantarmo-nos hoje que, após uma formação de duas
ou três horas por semana (sem reflexão), prática que considero exí-
gua, alguns praticantes "Dan" não façam senão cursos ou apresen-
tação de movimentos muitas vezes decepcionantes, onde pouco re-
cebemos em troca da nossa presença: de tempos a tempos, há uma
execução perfeitamente correcta (Ghi) e, por vezes, uma verdadeira
exibição pessoal em que o praticante esquece o espírito (Shin) para
se transformar em vedeta. Os mais novos são frequentemente ví-
XII
61
XII a e n e r g i a c r i a d o r a
verá ser esquecido.
Todos os recursos da Arte do Movimento não podem revelar-
se a não ser que o praticante experimente emocional e fisicamente
aquilo que pratica (Atenção. Aqui, quando falo de emoção, alguns
podem equivocar-se... No semi-sorriso de Buda, havia uma emoção...).
Tornar vivo um movimento, é repor o Ki no lugar que é o seu!
Os praticantes são obrigados a envolver-se intimamente na ac-
ção. Nem todos o conseguem, devido, muitas vezes, a factores psi-
cológicos. Mas os factores nem sempre são psicológicos. O equilíbrio
do corpo, o élan que lhe deve ser imprimido, a respiração que não es-
tá de acordo com o centro podem ser outras tantas causas. No teatro
e na música, os laços entre a vida interior e a expressão do corpo tor-
naram-se evidentes para os pedagogos. Não vejo porque é que as es-
colas de Aiki Do, que se interessam pela formação interior, não have-
riam de compreender que existe frequentemente um problema de fun-
do que toca a formação total do indivíduo, o seu nível afectivo, inte-
lectual, cultural, a sua imaginação criadora, a sua possibilidade de vi-
brar fisicamente. Não é portanto apenas uma questão de conheci-
mento. É preciso, nelas, desenvolver uma força interior e uma
elasticidade que abriria o campo e daria fecundidade às técnicas e,
muito especialmente, às de Aiki Nage ou Kokyu Nage.
Mas o que, em minha opinião, deveria evoluir não era tanto a
aprendizagem do Go Kyo, mas o espírito dentro do qual ela se pro-
cessa.
Não se pode ajudar os principiantes em Aiki Do a tornarem-
-se futuros aikidocas sem mudar o espírito com que hoje são encara-
das as Artes ditas Marciais.
É preciso questionar a escala de valores "Shin – Tai – Ghi".
Com efeito, e antes de mais, é preciso desenvolver no principiante
timas de uma aflitiva dicotomia quando observam os mais antigos.
A precisão do gesto parece incompatível com a emoção real da be-
leza. Ora, como o sabemos e o esquecemos regularmente, o perfec-
cionismo sem alma é tão insatisfatório quanto o pathos sem escrú-
pulos... Isto não é, obviamente, uma regra geral. Existem, felizmen-
te, bons praticantes, assim como professores de grande qualidade,
que sabem captar a adesão de todos, porque acreditam na sua prá-
tica...
Não se trata aqui de exigir constantemente ao praticante um
"grande momento", que é, infelizmente, muito raro. Mas o aborre-
cimento que por vezes emana de um curso ou de uma prática pes-
soal também é infelizmente vulgar. Porventura, é, para o Aki Do, a
maneira de matar a sua Arte!
Também não devemos cair num estudo do Aiki Do à manei-
ra dos dojos japoneses, onde frequentemente os estrangeiros tal co-
mo os japoneses são estigmatizados pela secura do ensino. Em Aiki
Do, insisto, é necessário ter prazer em comunicar com os parceiros.
Nada é estereotipado em Aiki Do. Tal como "o Bom Mestre, que é
aquele que, ao repetir o Antigo, é capaz de nele descobrir o Novo",
o bom praticante é aquele que faz "reviver o Aiki Do", no sentido
forte, através da sua personalidade e da sua subjectividade.
Muitas vezes, aquilo a que chamo "a ausência do real" de-
corre da importância dada aos problemas técnicos que já deveriam
estar resolvidos: sem a postura correcta e, sobretudo, sem a presen-
ça de si mesmo, o praticante não pode jogar com o seu corpo e não
pode estar plenamente à vontade na sua mente.
Ocupar-se de uma escola de Aiki Do consistiria em dar ao alu-
no uma formação larga e aberta que lhe permitisse um dia praticar
com prazer, numa felicidade comunicativa e isto é o que nunca de-
XII
62
uma qualidade de presença efectiva perante a técnica que deve
corporizar.
É preciso que ele seja envolvido pela prática e que participe
activamente na sua realização.
Se a técnica fosse vivida de uma maneira fervorosa, ele lu-
craria pessoalmente, do ponto de vista do equilíbrio geral e, mais uma
vez, do ponto de vista do prazer da prática...
É preciso saber também que um bom praticante deve poder
ser ao mesmo tempo o anjo e o demónio, o fogo e o gelo...
Não nos devemos limitar apenas a certas técnicas e excluir
aquelas em relação às quais nos sentimos ultrapassados, não tanto
pelas dificuldades técnicas, como pelo seu conteúdo... É desejável que
cada um tente evoluir, abrir o seu campo interior na sequência de no-
vas experiências ou de novas tomadas de consciência. O pensamen-
to na Arte do Budo retira o seu alimento de várias fontes e o nosso
pensamento consciente não é senão uma parte mínima do processo
psíquico total.
Ele é insignificante relativamente à potência das nossas fon-
tes interiores, que são provavelmente o cadinho-mãe de que resulta
a nossa prática.
O intelecto propõe, mas não é ele que dispõe. Ele é um po-
der superficial, que flutua à superfície do inconsciente, e se a sua ac-
tividade é necessária para colocar questões, para determinar aproxi-
madamente onde se encontra a realidade da prática, ele não é esta
própria realidade.
A realidade da boa execução de um movimento só pode ser
captada quando o intelecto renuncia a todos os direitos sobre ela. Ela
exprime-se de forma caprichosa, segundo o seu próprio querer, que
não é o nosso, e que tem os seus próprios tempos.
Sempre que a propósito de um movimento se diz que uma
graça fez uma subtil intrusão no Aiki Do (o que é raro), não se trata
de uma criação do intelecto. A inspiração de um tal movimento está
longe de ser um privilégio, ela é uma possibilidade que existe laten-
te em cada um de nós.
É verdade que o movimento não pode ser estudado e insti-
gado, mas cada professor deveria conhecer as leis que o governam e
descobrir os caminhos que a ele conduzem.
Aquele que seguiu de forma respeitosa os passos da nature-
za, que elaborou uma técnica em que cada gesto é claro, em que ca-
da encadeamento obedece a uma lógica interna, animada do inte-
rior por uma verdade, aquele que, para além disso, conseguiu domar
o espartilho da vigilância intelectual, que conseguiu vencer a insegu-
rança e o medo e que a partir daí nada a grandes profundidades, on-
de já não há nem raciocínio nem análise, esse realiza, então, um fei-
to que pode permitir que, no Kokyu Nage, se manifeste a inspiração
de um novo sentido.
Um dia, destas águas profundas, pode brotar uma qualidade
inesperada, que agarra, revira e arrasta para um Universo desconhe-
cido, mas pressentido, que é o da inspiração criadora.
Um bom praticante, verdadeiramente "realizado", nunca é
senhor da inspiração. Ele não a possui. Nem mesmo o Mestre Ueshiba
a possuiu. Era a inspiração que o visitava!... Por vezes! Nada pode-
mos fazer para a provocar, nem para a reter. Ele mais não pode fazer
do que cuidar a casa deste hóspede passageiro, isto é, tornar-se o
mais dúctil instrumento da Natureza que nele habita.
É por isso que a maior qualidade que o praticante deve culti-
var é a disponibilidade interior.
Ela permite-lhe deixar-se penetrar, em todos os momentos,
XII
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IV
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“No verdadeiro Budo não há adversários nem inimigos, o verdadeiro Budo é estar em uníssono com o Universo.” (M. Ueshiba)
Em todos os cursos de Aiki Do dever-se-ia falar da Sensação
e da Sensação Consciente, dizer que esta última é baseada na aqui-
sição do movimento já estudado.
Sentir é também escutar.
A realidade no tapete é muitas vezes diferente. E, no entan-
to, "sentir" deveria ser, para o praticante, a sua preocupação per-
manente.
Para a maioria dos praticantes, o trabalho consiste em repe-
tir um mesmo movimento, eventualmente, em formas de ataque va-
riadas, a fim de adquirir automatismo técnico: segundo forças ou ve-
locidades diferentes. Ou, decompondo o movimento com lentidão...
Recomeça--se, assim, dia após dia, mas esquece-se que o tempo só
pode fazer amadurecer aquilo que foi fecundado. Dizer "isso virá com
o tempo" equivale, frequentemente, a reconhecer, de forma mais ou
menos consciente, a esterilidade dos esforços empreendidos.
Parece evidente que esta maneira de trabalhar dificilmente
conduzirá à realização de transformações e aquisições duradouras.
Ela exige, ao contrário, um treino intensivo sem o qual muitas lacu-
nas reapareceriam e faz entrar o aikidoca num círculo infernal, uma
vez que a repetição e a prática são os únicos garantes da técnica.
Não se pode parar a repetição e praticar directamente, ou
mesmo ensinar, se não se repete... caso contrário as circunstâncias
exteriores assumem rapidamente proporções desmesuradas e nada
já é possível. Estes famosos dias em que "não se está em forma"! O
trabalho, longe de ser ocasião de aprofundamento e de procura, não
é mais do que um simples meio de conservar um estado, uma ne-
cessidade a fim de não regredir... E, no entanto, em nenhuma idade
se pode aceitar a fatalidade de não poder progredir: a evolução nun-
ca está fechada àquele que aceita interrogar-se sobre o seu próprio
método e sobre si mesmo.
É possível substituir a aprendizagem baseada na imitação e
na aproximação por uma abordagem que responda às necessidades
XIII
65
XIII s e n t i r
— Ju no Geiko31
— Tira os teus óculos!
— Mas não vejo nada quando pratico.
— Aqui, não se trata de ver, mas de sentir!
sensação não implica, sobretudo, o abandono do trabalho com dife-
rentes níveis de força ou de velocidade.
Mas ela permanece um elemento preliminar absolutamente
necessário a todo o tipo de trabalho, mesmo o mais técnico e o mais
intensivo. Não é paradoxal que no Aiki Do, em que se fala tantas ve-
zes de Sen no Sen32, de espaço, de globalidade, etc., se dê tão pouca
importância, no seu ensino, ao estudo das nossas próprias sensações?
O praticante deveria desenvolver uma imensa receptividade
sensorial, mas, além disso, deveria ter uma consciência afinada do seu
corpo que permitisse reconciliar o movimento e o seu mecanismo.
O ensino, em geral, parece, ao contrário, curiosamente sepa-
rado: fala-se, por um lado, do espírito e da atitude mental; fala-se, por
outro, do mecanismo, considerado este como a única via de aborda-
gem conveniente à técnica. Esta dicotomia leva a trabalhar separada-
mente a técnica e a mente, como se fossem ambas estranhas uma à
outra. Uma terceira via consiste num imperativo de realização que pas-
sa pela assimilação de sensações que são o elo de ligação entre o Aiki
Do e a velocidade, caso tal seja necessário.
É porque praticamos com o nosso corpo que a procura da sen-
sação pura é tão importante.
Em vez de incriminar, por sistema, a falta de trabalho ou o
"mau" trabalho sem precisar o que este termo significa, deveríamos
pôr o corpo em causa, sensorialmente, tanto na sua relação consigo
mesmo, como na sua relação com o parceiro ou com o seu Jô ou o
Bokken: tudo, o equilíbrio no domínio da postura, o gesto, a preci-
são..., pode e deve passar pelo admirável canal da sensação cons-
ciente, a fim de poder ser possuído. A sensação e a consciência de-
vem por todo o lado estar presentes.
Nenhuma parte do corpo pode permanecer estrangeira ao
profundas do praticante.
O seu princípio consiste em fazer incidir a atenção não sobre
o mero resultado exterior do trabalho, mas, partindo do interior, di-
rigir a atenção para a percepção da sensação física que permite atin-
gir aquele resultado. Não podemos adquirir realmente senão aquilo
que é "nosso", isto é, uma combinação de uma tomada de cons-
ciência e de uma experiência vivida (portanto praticada). Mais preci-
samente, uma ideia, uma sugestão só adquirem valor se elas forem
experimenta-das sensorialmente. Recordo-me de, no Dojo do Budokan
em Cascais, ter falado da espiral a uma das minhas alunas que tinha
a seu cargo o curso infantil. Aluna de grande sensibilidade, ela levou
as crianças para a praia do Guincho e, após todos terem procurado
e apanhado conchas, observaram os desenhos das diferentes espirais
nelas impres-sas. Depois, reproduziram a espiral com o seu corpo, até
que a sentiram verdadeiramente. Por fim, veio, em seguida, a de-
monstração da técnica.
Foi uma das mais belas classes de crianças que vi em Portugal.
Isto explica os mal entendidos do ensino, quando é pratica-
do sobre alunos enervados, por professores também eles enervados,
em que nem uns, nem outros estão em condições de dar, de receber
e de tratar correctamente as informações que lhes permanecem ex-
terio-res. A nossa abordagem, e muito especialmente na nossa esco-
la, consiste, na realidade, em tomar uma consciência íntima e aguda
daquilo que se sente num gesto ou em vários gestos combinados até
poder reencontrá-los e refazê-los sem a menor dúvida, através da sim-
ples evocação mental de uma forma instantânea de ataque e da sen-
sação obtida. A originalidade desta abordagem consiste na procura
aprofundada feita a partir do conjunto das sensações que entram em
jogo na elaboração da nossa técnica. Bem entendido, a procura da
XIII
66
campo da consciência, sem correr o risco de um dia ser a causa de in-
terferências e desordens que perturbariam o movimento. Talvez pos-
samos acomodar-nos a situações imperfeitas, mas apenas até um
certo nível. Um dia virá em que descobrimos, aquando de um pro-
blema particular, que nos faltam as respectivas sensações e que a sua
ausência era a razão de um bloqueio.
31. Ju no Geiko quer dizer praticar com leveza. No termo Geiko, há a noção de Renque significa trabalhar a matéria um pouco à maneira do oleiro que trabalha o seubarro (amassar); há a noção Shu que significa aprender; há ainda a noção Tan quesignifica martelar o ferro. Portanto, Ju no Geiko encerra noções profundas que dãopara reflectir. Na prática, trata-se de fortalecer a nossa disciplina, de purificar a nos-sa mente, tudo isto numa grande flexibilidade do espírito.
32. Sen é o futuro, antecipar, surpreender. Para as Artes Marciais, Sen é o estado de es-pírito que consiste em prever a acção do adversário e em o atacar antes dele. É to-mar a iniciativa.
XIII
67
V
68
Ser, conhecer e fazer confundem-se.
.1 Irimi Nage ou Yama-Biko-No-Michi
A voz de um eco na montanha
O essencial desta técnica é ser imperativamente praticada no
"instante". É preciso penetrar no adversário, de um só movimento!
Penetrar, como se se entrasse em colisão com ele e, no entanto, res-
peitando-o. O passo, deslizando sobre o lado (issoku, ângulo morto),
que permite também um posição de guarda de perfil, poderia evocar
a ideia do Sankaku Tobi do Karaté…, em que se entra em contacto
com o braço ou a tíbia de forma oblíqua a fim de desviar a força e de
a orientar na direcção oposta…
Mal entramos no ataque, encontramo-nos por detrás do Aité
(daí a ideia do eco). A entrada pode ser feita com pequena ou gran-
de amplitude. No Ken Jitsu, diz-se sempre: "Coloca-te longe do ad-
versário, ao mesmo tempo que te manténs perto dele." É o essencial
da Arte do Sabre. O princípio é de desviar tangencialmente a forma
XIV
69
XIV n o c o r a ç ã o d a t é c n i c a
de ataque, é de entrar no centro de Aité, criando um ângulo óptimo
para o envolver de uma maneira circular, um pouco como a sateliti-
zação do protão com o neutrão do átomo.
O ideograma chinês Iri exprime a ideia de entrar em casa, só,
ou quando se é convidado. Mi significa a criança no ventre da sua
mãe em toda a plenitude.
No Aiki Do é comprometer o seu próprio corpo no corpo do
adversário. A mesma noção existe no Irimi do Naginata.
Quando duas forças se deslocam em sentidos opostos
F2 —>
F1 <—
1+1 =
a força que delas resulta é a soma destas duas forças. Também utili-
za-mos o resultado destas duas forças, quando do cruzamento, mas
tudo isto no sentido de Sabaki. Sabemos que na origem desta pala-
vra há a ideia de "encontrar uma solução para um problema".
oriental é feito frequentemente com metáforas. Mas, aqui, cada um
faz a busca, a partir do seu nível…
Para mim, Irimi Nage é procurar um acordo, portanto, uma
harmonia, querendo isto dizer que a forma de ataque encontraria o
"vazio", por conseguinte, o Yang, o mesmo é dizer, a "não-forma".
Visto que se fala do Ki, entramos na Energética chinesa, em
que se baseiam os japoneses para explicar o Ki ou Chi. Sabemos que
a Energia, quanto mais ganha forma, mais é Yin; e, quanto menos for-
ma ganha, mais é Yang.
Quanto mais nós descermos na manifestação, mais a Energia
é Yin. Quanto menos manifesta a Energia for, mais ela é Yang. Quando
eu executo Irimi, sou Yang. Devo, portanto, manifestar o menos pos-
sível o meu movimento. O Yin encadear-se-á por si mesmo e a forma
será construída, segundo a minha inspiração. O eco na montanha é,
no fundo, este Yin subjacente, que ressoa em mim. (É o fio de ouro
que liga os parceiros, Aité e Shité).
A projecção mais não é do que a continuação da forma. A
queda nunca é a vitória para Shité. Aquele que cai deveria, normal-
mente, sentir uma vibração vivificadora, que reanime, por assim dizer,
as suas energias latentes. A partir de então é-lhe possível entrar em
ressonância com aquele que o projecta, dele aproveitar as correspon-
dências silenciosas, para desenvolver o Aiki Nage!
Mas, nos dias de hoje, quem escuta, e quem projecta?!…
Poder-se-ia considerar que, na técnica Irimi, corresponderia a anular
o efeito de um ataque, de modo a que este se vire contra o agressor
de forma dissuasora.
No Irimi, não há a ideia de ataque. E, no entanto, há a de en-
trar, de atravessar. Mas, na realidade, trata-se de resolver o conflito
do ataque de uma maneira harmoniosa. Há também a ideia de amor,
de não fazer senão um com o outro, para o "satelitizar".
É nesta técnica que se situam a raiz e a origem de toda a nossa arte.
Esta forma de trabalho impõe que se avance na direcção do
ataque, o que pode levar-nos a ceder ao medo, perante, por exem-
plo, um tsuki, ou perante um ataque com Sabre! Ela requer, para além
de um "saber-fazer", determinação…
A noção de Irimi é de apreensão difícil para um principiante,
porque ela repousa num reflexo que não é natural. Neste movimen-
to não há oposição (não há portanto competição). Opondo-nos, en-
tramos na dualidade. Se tal acontece, descemos ao mais baixo nível
do Aiki Do, àquele que o coloca ao nível das disciplinas de competi-
ção.
Uma das especificidades do Aiki Do é superar este estádio. O
verdadeiro Aiki Do, dizem os Mestres, situa-se antes do movimento;
o resto não é senão técnica…
Mesmo com uma boa técnica, o Irimi raramente é bem exe-
cutado, dada a enorme dificuldade em o definir exactamente. Irimi
não é qualquer coisa que se aprenda. É um "conhecimento" que
transparece através do movimento. Mestre Saito diz: "Vós projectais
o vosso Ki, o Ki do adversário retornará a vós como um eco, contu-
do, não recebereis o Ki do adversário, porque estais colocado atrás
dele".
Sabemos que as vias do Aiki Do são misteriosas, e o ensino
XIV
70
.2 Ten Chi Nage
O intervalo Céu-Terra, dir-
se-ia um fole
Esvaziado permanece ines-
gotável.
Accionado, não cessa de
soprar.
Mais vale permanecer no
Centro
Lao Tsé
Ten – Céu Chi – Terra Nague – Projecção
Poder-se-ia simbolizar Ten Chi como uma passagem da Terra
ao Céu, de um estado a outro estado, do mundo sensível ao mundo
supra sensível. No simbolismo da passagem e no carácter frequente-
mente perigoso desta passagem, que é o de todo o caminho iniciáti-
co, Ten Chi Nage pode identificar-se com o eixo do mundo (axis mun-
di) e designadamente com a sua escala. Nesta projecção, é preciso ter
uma grande noção da vertical, como mediador entre Terra/Céu. É o
Eu que liga estes dois mundos e impede que eles se dispersem.
O Aiki Do, como vimos, deve fazer passar uma mensagem
através dos movimentos, chamando a atenção para que o homem es-
tá entre o centro da Terra, que o atrai, o infinitamente pequeno, e o
Cosmos (Céu) que o aspira, o infinitamente grande. O homem, como
numerosas artes japonesas33, deve realizar o equilíbrio entre os dois.
Para melhor compreender a projecção (Kake) do Ten Chi Nage,
é preciso recordar as palavras do Mestre Kyundo Ozawa, quando fa-
lava da atitude correcta no Tiro ao Arco:
"... De uma extremidade do seu arco, o archeiro fura o Céu;
no outro extremo, fixado num fio de seda, está a Terra. Se se desen-
cadeia o lançamento com um violento esticão, corre-se o risco de ver
o fio partir. Então, o homem permanece entre o Céu e a Terra numa
posição intermédia que não oferece salvação34."
Muitas vezes, quando pratico esta projecção, sinto que não
estou pronto para a ensinar verdadeiramente. Não é fácil representar
no seu corpo o fio de seda esticado entre Terra e Céu e não o que-
brar, sobretudo se se quer este fio em espiral...
Esta linguagem pode parecer para alguns esotérica. E, no en-
tanto, estas imagens, para o praticante de Aiki Do, são muitas vezes
de uma grande ajuda. É a reflexão estimulada pelo sentir do corpo.
Como diz Henri Focillon, a forma não é mais do que uma visão do es-
pírito, uma especulação sobre a extensão, reduzida à inteligibilidade
geométrica, enquanto não vive na matéria. Ten Chi Nage existe ver-
da-deiramente se houver a passagem Terra/Céu e não um Kake que
tanto pode ser um Kubi Nage35 como um choque entre Terra e Céu.
Este movimento é de uma grande importância para desenvolver os
grandes princípios do Aiki Do.
No caso, por exemplo, de um ataque em Ryo Te Dori, en-
contrar o seu centro perfeito, tendo uma mão em Terra e a outra em
Céu, não é fácil, se não se tiverem compreendido os grandes princí-
pios.
A mão não se libertou senão depois de vários milhões
de anos de evolução.
Na prática do Ten Chi Nage, tal como na dos Kokyu Nage, pe-
netramos na magia do Aiki Do.
XIV
71
plícita, a "ter um belo movimento", porque este nunca dispensa a pro-
cura interior, a necessidade de "mergulhar em profundidade", as úni-
cas coisas capazes de fazer do movimento uma manifestação do Ser.
Queria antes mostrar como a verdadeira harmonia Terra/Céu é inse-
parável de um certo estado de espírito, como ela exige uma aborda-
gem fervorosa. E mostrar que um movimento não pode ser, no fun-
do, senão uma emergência do nosso interior, longe do ego, onde o
olhar dos outros não desvie a nossa consciência do seu objectivo pri-
meiro.
Escutemos antes Tao Te King (2):
Beleza, bondade, aspecto simples da harmonia.
Equilíbrio universal, lei geral do mundo.
Pulsação do Universo.
Vez à vez, Antes e Depois fazem-se sucessão e lugar.
Ressonância perfeita.
É uma técnica portadora do imaginário e que obriga, muito
particularmente, a criar em nós o vazio, para que o movimento não
encontre qualquer obstáculo — é, portanto, a intenção do gesto
Terra/Céu. Aqui, o nosso trabalho consiste em libertar o nosso Ki.
Aquilo que possuímos em nós mesmos não deve ser procurado fora.
O praticante deve estar centrado, disponível, tendo realizado a sua
unidade. Se tiver encontrado o ponto "correcto da projecção", po-
derá então projectar facilmente e sem esforço o seu parceiro. Utilizo
muitas vezes com os meus alunos a imagem evocativa do pintor. As
mãos e todo o corpo seriam um pincel e o movimento poderia ser ar-
gila, viva, pronta a ser modelada. A tela do artista é a projecção do
seu espaço interior, ela materializa uma ou várias imagens mentais e
os golpes do pincel (projecção do espírito) têm por função tornar a
sua paisagem interior tangível. Isto deveria afastar-se da Consolidação
para se aproximar da mensagem Beleza.
Seria necessário introduzir na pedagogia a ideia do par eficá-
cia/beleza. Talvez pudesse, então, desaparecer a concepção de uma
técnica que é um conjunto de mecanismos que pode ser, "acessoria-
mente", revestida de beleza...
Esta osmose com a harmonia, no trabalho do Aiki Do ou no
de uma técnica particular, encontra-se, aliás, perfeitamente adapta-
da a toda a prática consciente, uma vez que a aquisição de toda a
praxis, tal como a procura de uma eficácia óptima, baseiam-se am-
bas nas mesmas exigências de equilíbrio corporal e de concentração
mental.
O meu objectivo não é portanto ensinar aqui, de maneira ex-
33. De que é exemplo, Ikebana, a arte de arranjos florais.
34. V. Michel Martin, Kyudo, Paris, Amphora, 1990, p. 87.
35. Kubi é pescoço. Nage é projecção. Kubi Nage é uma projecção pelo pescoço.
XIV
72
VI
Pode parecer ridículo pedir a um aluno para escutar, para se
escutar a si mesmo e para escutar o seu corpo...
Sabemos, de experiência feita, quanto estamos por vezes afas-
tados dos comportamentos mais naturais.
Este papel da escuta é tão importante que seria por assim di-
zer útil transformá-lo numa espécie de "aviso" em cada classe. Poderia
ser "Escuta!" e chamar-nos-ia a atenção para a nossa presença es-
sencial. Considera-se a escuta, como um dado de base, como o sen-
tir de uma evidência, quando, na verdade, ela requer toda uma acti-
vidade interior e uma grande concentração.
Alguns julgam que escutam, mas ignoram "o que é a escu-
ta", nunca se tendo debruçado sobre a sua prática consciente. O Yoga
Nidra é, por exemplo, uma escuta total (escuta do som).
Escutar não é "ouvir" e menos ainda "entender"!
Toda a gente pode ouvir. É uma função passiva ligada à exis-
tência material do ouvido.
Escutar supõe uma afectividade auditiva que é, ao mesmo
tempo, passiva e activa: sente-se e reage-se.
Entender o interior ou o exterior vai ainda mais longe; é uma
inteligência auditiva activa, um "entendimento" que é comunhão,
conhecimento e criação.
A ausência de escuta desorganiza o movimento. É através do
ouvido que nos apercebemos se a nossa organização corporal é boa36.
Infelizmente a ideia de escuta total é, a maior parte das vezes, utópi-
ca, porque numerosos problemas técnicos vêm perturbá-la. Mas tam-
bém deve ser tomada em consideração a atitude daquele que "está
perante nós". Importa não esquecer também que o inimigo do ouvi-
do é o olho (!), que invade o seu território.
Segundo a organização da nossa hierarquia sensorial, a vista
é o mais poderoso, o mais rápido e o mais intelectual dos nossos cin-
co sentidos. Ele subordina todos os outros sentidos ao seu magisté-
rio.
XV
73
XV t e m o s n ó s o u v i d o s ?
Mas escutai que diabo!
Há muito que queria escrever uma homenagem à Alma.
Parece que quando o Mestre Ueshiba praticava, murmurava
sons. Não era um canto, era um som interior.
No silêncio, cria-se uma extensão do gesto. Qualquer coisa
nasce, que não tem necessariamente uma forma (Kokyu Nage? Aiki
Nage?). Está-se mais em contacto com uma força.
Sabemos também que quando praticamos podemos ver, ou-
vir e sentir, mas a nossa atenção não se fixa em parte alguma, não se-
gue nada em particular. A consciência deve abrir-se a si e aos outros.
Sem pensar em nada de preciso, tudo está presente, vivo, mais ainda
do que no estado habitual da nossa consciência, porque já não há
confusão. Devemos traduzir directamente o que vivemos. Aqui, é pre-
ciso, portanto, grande reflexão antes, porque o Ai Ki poderia trans-
formar-se em violência, porque as barreiras teriam cedido e a violên-
cia é a de um vulcão. Com a meditação e o estudo de uma reflexão
justa, os movimentos podem ser feitos com doçura e serem eficien-
tes.
No Kokyu Nage ou no Aiki Nage, estamos perante um mun-
do em que não se sentem os limites. Os gestos e os movimentos do
corpo já não são controlados pela vontade. Eles estão em harmonia
com o Universo.
Se é o ouvido que dita o músico, é o olho que dita a mão do
aikidoca. E, no entanto, o olho não deveria desempenhar para ele se-
não o papel de um informador que transporta rapidamente à sua in-
telecção a mensagem do movimento. Mas desde que a sua acção pre-
domine na situação, desde que permaneça atento ao que o rodeia,
ele prejudica de imediato o movimento. É, por isso, que certos exer-
cícios — com os olhos vendados — seriam desejáveis na prepara-
ção do Aiki Do, para que o olho abandone o seu posto de espia e
possa voltar- -se "para o interior". Os cursos de Aiki Do para cegos
são muito ricos como experiência.
De todo o modo a escuta, qualquer que ela seja, deve ser fei-
ta sobre um fundo de silêncio. É preciso, antes de mais, entrar num
estado de disponibilidade interior, ser capaz de se acalmar, de fazer
calar as nossas agitações e as nossas contestações, de relaxar o es-
partilho do nosso espírito. A qualidade da escuta verdadeira passa em
primeiro lugar pela possibilidade de poder "escutar o silêncio".
O movimento brota, então, como uma fonte viva e deixa de
ser qualquer coisa mais ou menos conseguida, produzida pela agita-
ção.
"Não feches a mão quando praticas.
O Cosmos permanecer-te-á fechado.
Se queres abrir-te ao mundo e ao Universo,
abre primeiro a tua mão."
Muitas vezes se disse que o Kiai do Aiki Do é silencioso. Creio
que é preciso compreendê-lo desta maneira. Numa prática intensa, o
corpo e o som reúnem-se. Durante a prática, ouvimos, frequente-
mente, alunos que emitem diferentes sons. Mas estes não estão ain-
da harmonizados. O som deveria vibrar... 36. Alfred Thomatis, L´Oreille et le langage, Paris, Editions du Seuil, 1978.
XV
74
VII
Tentei, nestas curtas reflexões, abrir as portas para que os fu-
turos praticantes possam explorar a riqueza da Arte do Movimento.
Mas se a lógica dos movimentos do Aiki Do a todos se impõe,
a descoberta que dela pode ser feita acomoda-se a vias muito varia-
das. O ensino que ministrei durante longos anos obriga-me a dizer
que o equilíbrio na postura correcta dirige-se tanto aos futuros pra-
ticantes como a nós mesmos. A abordagem pela qual proponho sen-
sibilizar os aikidocas adultos é-lhes, de alguma maneira, desadapta-
da. Tentarei, muito brevemente, sugerir os meios de ultrapassar uma
concepção do movimento, do equilíbrio nas técnicas de base ele-
mentares, sempre que os alunos são principiantes. A sua tenra ida-
de, o facto de começa-rem a aprendizagem do Aiki Do a partir do ze-
ro exigem uma reflexão particular.
Ainda aqui se impõe uma constatação que, infelizmente, é
preciso não esquecer. Um número relativamente elevado de crianças
abandonam a prática, por nunca terem tido a oportunidade de ex-
perimentar o prazer da execução dos movimentos. Que professor de
Budo nunca ouviu esta confissão ressentida: "Ah! Você pratica uma
Arte Marcial? Em tempos também eu o fiz. Quando era novo, prati-
quei Judo durante alguns anos, mas desisti. Havia demasiada com-
petição. Já não tenho idade, etc...".
Os esforços investidos não deram o prazer esperado!
Se certos métodos de ensino criam ilusões ao início, os pro-
ble-mas com que estes jovens deparam permanecem frequentemen-
te ignorados e só emergem à luz do dia quando, com a idade, os seus
bloqueios se revelam. Certas atitudes pedagógicas, longe de forne-
cerem os "bons meios" capazes de libertar o gesto e de entusiasmar
os jovens e as crianças — o que seria, só por si, um óptimo resultado
— provocam aversão não só em relação à prática, como em relação
ao Aiki Do em geral. Importa, pois, propor às crianças um ensino que
repouse sobre dados saudáveis e definitivos. Assim, os jovens aikido-
cas não apenas terão o desejo de continuar, como poderão fazê-lo
XVI
75
XVI o f u t u r o é d a s c r i a n ç a s
cola de Aiki Do transforma-se num jardim de infância...
Não se trata aqui de fazer da nossa escola um dojo de elite re-
servado às crianças mais dotadas, mas de evitar que ela adquira uma
vocação terapêutica que, de todo em todo, não tem.
É errado dizer de uma criança desajeitada e que não se sente
bem na sua pele: "Vou metê-lo no Aiki Do. Ele será mais forte!". A
verdade é que o Aiki Do pode, por vezes, acentuar bloqueios e pro-
vocar ainda mais perturbações.
Para além de um mínimo de estabilidade e de distensão antes
dos cursos técnicos, de tónus vital e de habilidade corporal (através
de exercícios apropriados), o jovem praticante começará a trabalhar
de uma maneira mais fina, de modo a que possa ser-lhe incutido es-
te gosto pela Arte do Movimento. A falta de motivação anda também
a par com um professor pouco competente... É preciso, pois, desde o
começo, evitar que se desenvolvam situações perversas, que a melhor
"pedagogia adulta" terá a máxima dificuldade em corrigir.
Seguros da plena participação da criança, só então é possível
considerar a abordagem do Aiki Do. O objectivo do ensino não é pre-
cipitar as passagens de cinto, que se transformam "na cenoura para
o burro".
É não fazer aquilo que comigo fizeram quando era jovem e
aprendia piano. Para que eu pudesse tocar, o mais rapidamente pos-
sível, uma "balada"...!, os diferentes professores que tive precipita-
ram sempre o começo, sem me falarem de uma técnica, sem me da-
rem cores atraentes à iniciação do piano e sobretudo sem me faze-
rem amar a música. Resultado, abandonei a prática demasiado ce-
do, o que hoje evidentemente lamento!
Um professor feliz por praticar, que goste do seu papel peda-
gó-gico, que ame verdadeiramente a Arte do Movimento, ainda que
sem terem de reconsiderar inteiramente a sua prática quando com
ela contactam na idade adulta.
O primeiro elemento a verificar, antes mesmo que uma crian-
ça comece, é conhecer as suas motivações e as suas aptidões. Disse,
a propósito das relações que unem o Mestre e o aluno, que, sem de-
sejo profundo, nada pode resultar.
Aquilo que é verdade para o adulto é-o ainda mais no caso
da criança.
Seria preciso prestar muita atenção às razões que presidem à
sua escolha. Uma criança lança-se, muito frequentemente, no Aiki Do
empurrada pelos seus pais que nele vêem a realização dos seus pró-
prios desejos recalcados (Karaté Kid!), ou ainda porque o consideram
bom para os estudos. Depois, à mínima falta, o Aiki Do servirá tam-
bém como um meio de a punir.
Todos estes mal-entendidos — e nem refiro outros — vêm ali-
mentar uma série de abandonos. Eles estão na origem de muitas si-
tuações bloqueadas de que não sabemos como sair, a tal ponto se
encontrando misturados desejos pervertidos e rebeliões inconscien-
tes. Apenas a atracção da criança ou a saudável sugestão dos pais
que não se implicam pessoalmente nesta proposta deveriam condu-
zir à escolha de uma disciplina adequada.
O Aiki Do é uma arte global e pontual, cujo estudo não po-
de ser considerado se a criança não manifesta desejo de aprender, a
curiosidade e o ardor necessários.
Muitos começos em falso, muitos fracassos latentes poderiam
ser evitados se fosse descoberta a tempo uma ausência de gosto real
pela Arte do Movimento.
Muitas vezes, por interesse, deixa-se arrastar esta situação:
para o professor, trata-se de mais um aluno!; para certos pais, a es-
XVI
76
não tenha atingido um grau de maturidade para dela fazer uma Via
espiritual, arrastará quase seguramente o aluno na sua senda, co-
municando-lhe o seu entusiasmo.
A aprendizagem do Aiki Do deveria dar à criança a impressão
de fazer a Arte do Movimento, antes mesmo de começar o estudo
real do Go Kyo...
Isto exige evidentemente uma criação real de movimento pre-
liminar, que envolve o contacto, o espaço, o tempo, etc. Se perante
a criança, o papel do Mestre consiste essencialmente em criar um cli-
ma de confiança que facilite os seus progressos (como, de resto, pa-
ra o adulto), com a criança, é o amor pelo Movimento de que o Aiki
Do não é senão uma das múltiplas formas que o professor deve so-
bretudo comunicar-lhe...
Desenvolver o seu gosto pela observação dos movimentos da
natureza, falar-lhe de uma maneira extremamente simples do cosmos
— da satelitização de um planeta — são imagens interessantes para
a futura execução dos seus movimentos. Tudo isto faz parte de um
projecto pedagógico a longo prazo, que cria um clima caloroso e dá
grandeza ao movimento. O som deveria ser também abordado na
execução dos movimentos. É um excelente meio para que a criança
possa fazer sair a sua voz, a faça nascer, a consolide. Tudo isto cons-
titui já forma de manifestar a personalidade de que terá necessidade
para a sua prática.
Praticar com música pode ser interessante para a descoberta
dos ritmos no movimento. Para tanto, o professor deverá conhecer
as incidências que certas músicas podem ter. A criança poderá abrir-
-se pouco a pouco a um universo imenso sem compartimentações ar-
tificiais. "Isto é o Aiki Do, isto é a Arte do Movimento, onde se situa
a fronteira?"
Os programas de passagem de graus são frequentemente pa-
ra a criança (tal como para o adulto) uma imposição rebarbativa e
mal compreendida. Não me parece honesto em relação à criança, pri-
vá- -la, a pretexto da sua liberdade, de conhecimentos técnicos de ba-
se que garantam o seu desenvolvimento.
Prazer e esforço não são incompatíveis, tal como o não são a
criatividade e o trabalho rigoroso. Ao contrário, quanto mais deixar-
mos à criança uma margem de espontaneidade, mais exigente com
ela poderemos ser, sempre que se trate de práticas pontuais, cuja ne-
ces-sidade lha faremos compreender. Mas o que importa é reforçar
sempre as motivações dos jovens praticantes, não os deixar cair nun-
ca numa atitude passiva.
As passagens de grau, as demonstrações públicas, etc., não
são suficientes para reforçar as motivações.
É preciso não esquecer de reforçar o prazer da prática e nun-
ca deixar que se instale a ansiedade relativamente a fazer bem ou a
fazer mal... Uma abordagem puramente negativa num exame de grau,
que consiste em não fazer faltas, é anti-Arte do Movimento.
Há outros meios, e menos "escolares", de testar as capaci-
dades de uma criança do que a de ser presente a um "Tribunal de
Cinturões Negros". Participar numa prática na Natureza, num mini-
estágio adaptado à sua idade, pode constituir um maior estímulo.
Seja como for, a única riqueza indefectível que podemos dar
aos alunos muito jovens, nos primeiros contactos com o tatami, an-
tes mesmo de serem abordados os problemas especificamente técni-
cos, é o amor pelo movimento, aspecto em que nunca será demais
insistir.
A diferença mais significativa entre a abordagem de um adul-
to e a de uma criança decorre do facto de esta não poder trabalhar
XVI
77
Vi um dia, num Estágio Internacional, um mau professor, mas
talvez um bom executante de técnicas, a querer exibir um aluno pro-
dígio. A fim de espantar os participantes pediu à criança para se de-
fender de um ataque com uma faca de talho, o que de imediato re-
cusei. Quais eram os objectivos? É tão difícil aprender bem como apren-
der mal. De facto, bastam esquemas claros e simples, bastam bons
modelos visuais para que a criança adopte sem problemas as suges-
tões propostas, caso o amor do Aiki Do e o desejo de imitar nela se-
jam muito vivos. Se a criança não pode compreender raciocínios de-
masiado abstractos, nem por isso ela é menos eminentemente lógi-
ca. É-o muito mais do que os adultos julgam. Ela está pronta a admi-
tir que é preciso respeitar certas evidências: uma pessoa é menos es-
tável desde que lhe falte uma perna; se não tem braço não poderá
agarrar com as suas mãos... Assim, a criança estará inteiramente de
acordo com a procura do seu equilíbrio corporal, desde que ela lhe
seja pro-posta de uma forma atractiva. Dar às crianças, desde o prin-
cípio, o tónus físico, estabilizá-las no seu equilíbrio, evita ter de corri-
gir, anos mais tarde, uma postura defeituosa e permite canalizar toda
a sua Energia (Ki) para o movimento e para aquisição de uma boa téc-
nica.
A preparação do Aiki Do pode ser rápida nas crianças muito
despertas e requerer, ao contrário, um certo tempo nas crianças que
habitam pior o seu corpo.
Mas qualquer que seja a dificuldade com que elas se deba-
tam, é facilitar toda a sua aprendizagem futura ajudá-las a perseverar
na procura do seu equilíbrio (noção importante que, no princípio da
aprendizagem, muitas vezes se esquece, na precipitação de lhes ensi-
nar as técnicas de base, por exemplo, Shio Nage, etc..., como se elas
ao início devessem fazer projecções sem equilíbrio). Importa não es-
sobre si mesma de forma consciente. O motor de todas as aquisições
de uma criança é a aprendizagem mimética, e o raciocínio é sempre
contra-indicado.
A quantidade de conselhos e de discursos com que podemos
sobrecarregar uma criança só servem para aliviar a boa consciência
do professor; eles em nada facilitam a compreensão pela criança. Esta
vive no instante e não pode, como o adulto, captar o funcionamen-
to geral de uma técnica, ainda que... tal não seja impossível.
Também é preciso fazê-la adquirir, sem que se dê conta, bons
hábitos na postura, sempre que executa uma técnica. A vertical, o cír-
culo, a espiral, os alongamentos, os contactos, tudo isto (como para
o adulto) leva-a a estabelecer, através do seu corpo, formas e atitu-
des interiores que vão permitir-lhe viver e sentir a harmonia, na ex-
pressão individual da ordem cósmica, de que nos falam muitas vezes
os Mestres de Budo.
Isto recorda-nos que o dojo é um lugar onde a atitude e a in-
tenção são primordiais. O dojo não é uma sala de desporto, de com-
bate, onde a agressividade e a violência são "Rei", lugar de egotis-
mo e de egoísmo que muitas vezes influencia as crianças. O local em
que elas praticam deve ser um lugar de harmonia.
Devemos escolher um bom pedagogo para a iniciação. Nem
todos servem. Parece-me, bem pelo contrário, que se deveria atribuir
uma importância particular à escolha do primeiro professor, porque lhe
competirá assegurar as fundações do edifício. Sem boa base, a casa
não se aguenta... A primeira direcção seguida pelo aluno marcá-lo-á
tanto mais quanto ele, confiante e cândido, mais não fez do que se-
guir a via que lhe era mostrada. Enquanto eles são jovens..., porque,
depois, muitas influências exteriores virão deformar o caminho do Aiki
Do.
XVI
78
quecer que o estudo das quedas é de primeira importância, mas sem
a compreensão do equilíbrio e dos desequilíbrios, a sua assimilação
será superficial.
Não existem receitas infalíveis para abordar a técnica propria-
mente dita. Jogos de equilíbrio e de desequilíbrio, com o Jô ou sem
o Jô, em que a criança pode mimar gestos mantendo o seu centro,
são um excelente exercício, porque, sem a preocupação de uma téc-
nica, ela será capaz de realizar gestos livres que correspondem à co-
locação exacta do corpo e aos movimentos requeridos. Ela não terá
assim qualquer problema em integrar com mais precisão uma técni-
ca... É então chegado o momento de ela aprender os principais mo-
vimentos. Podem existir movimentos simples e fragmentados que per-
mitem mantê-la sensível à simetria do seu corpo.
Desde que ela esteja suficientemente disponível para real-
mente praticar e comece a sentir o seu corpo de uma forma mais glo-
bal, poderá então seguir o modelo proposto pelo seu professor. O
mecanis-mo de aquisição encontra-se montado. Estão reunidos to-
dos os elemen-tos para subir passo a passo os escalões da dificuldade
de um movimento.
Ainda assim, o professor não deve esquecer que os exercícios
de estruturação técnicos não são tudo. A criança tem necessidade de
desenvolver livremente a sua criatividade pessoal e o Ju no Geiko é
para isso a melhor das aberturas: este exercício permite a adequação
sem a inibição e confere um carácter mais natural ao gesto. As crian-
ças poderão, então, após uma breve explicação, trabalhar em dife-
rentes ritmos: lento (Jo), médio (Ha) e rápido (Ku).
Deveria haver, em minha opinião, Kata para crianças, elimi-
nando certas técnicas que, ao início, não são necessárias (como, por
exemplo, San Kyo e Yon Kyo). Estes "mini-Kata" não deverão ser ne-
gligenciados, porque contribuirão para alimentar o interesse da crian-
ça pelo Aiki Do.
Será necessário que estas formas nunca sejam aborrecidas.
Muitas vezes desencorajam-se as crianças, ao serem postas a traba-
lhar formas para adultos... Nas Artes do Budo, estamos longe de res-
peitar as crianças e de confiar no seu gosto por este ou por aquele
movimento. Muitos professores contemporâneos poderiam debruçar-
se sobre esta questão e adaptar a sua sensibilidade à da nossa épo-
ca, que já nada tem a ver com o rigor dos jovens Samurais.
Para estes Kata pedagógicos, é preciso encontrar movimen-
tos suficientemente simples para que o aluno não se sinta "esgota-
do" e tenha prazer em praticar (o que é uma evidência pedagógica,
igualmen-te, para os mais velhos...), mas comportando, apesar de tu-
do, novas dificuldades que o estimulem e o mantenham desperto. É
importante que a criança se sinta feliz em vir ao dojo, para praticar e
"descobrir". Podemos afirmar que se ela estiver na posse de um bom
tónus corporal e se os seus progressos se fizerem a bom ritmo, de-
senvolvendo-se num clima de amor pelo Aiki Do, ela reúne todas as
hipóteses de se tornar um bom praticante.
A criança excepcionalmente dotada, se não pode em caso al-
gum ser tratada como um adulto, exige, contudo, mais atenção. O
professor que a tem a seu cargo deve procurar evitar dois erros cor-
rentes. Acontece que o professor, tendo ele próprio sofrido no estu-
do do Ai Ki, recusa inconscientemente que uma criança obtenha re-
sultados sem grande esforço (ainda que muitas vezes aquelas crian-
ças abandonem rapidamente a prática) e torna-se demasiado exigente
em pormenores que não são indispensáveis no início da aprendiza-
gem.
Outro escolho a evitar consiste, inversamente, em apropriar-
XVI
79
ça, deixarão de ser aceites mais tarde. Sempre que estas deficiências
não são corrigidas a tempo, ou sequer assinaladas, aquela que era
uma criança invulnerável ressente como uma profunda injustiça o fac-
to de ser criticada... E não aceitará reconquistar, por uma aprendiza-
gem longa e difícil, aquilo que pela facilidade lhe parecia devido.
De qualquer maneira, é preciso nunca perder de vista que na-
da está definitivamente adquirido antes da adolescência, momento
em que a criança começa a tomar consciência do que quer. Mas to-
das as dificuldades encontradas no decurso da formação das crianças
não devem fazer esquecer ao professor que o seu papel não é apenas
formar aikidocas. É igualmente o de permitir, a todos quantos, novos
e menos novos, tem o encargo de guiar, que se desenvolvam e en-
contrem na Arte do Aiki Do um meio de expressão e uma alegria de
viver.
-se da criança, em fazer dela o instrumento da sua própria glória. O
professor, orgulhoso de si mesmo e do seu aluno, apressa prematu-
ra-mente o seu desenvolvimento. Frequentemente, não pensando se-
não no seu dojo, ele não tem em conta outros dons que coabitam na
mesma criança.
O grande talento, na prática da Arte do Movimento, rara-
mente vem só. Para com estes jovens é necessário observar uma ex-
trema equidade.
Com efeito, estes alunos são dotados de capacidades dema-
siado precoces para que se possam determinar a si mesmos.
Eles estão como que desarmados e entregues à influência dos
seus professores. É preciso ter cuidado: ao querer fazer excessiva-
mente bem, pode transformar-se o trabalho do Aiki Do numa espé-
cie de escravatura. Uma criança em que se depositam esperanças
apercebe-se disso e compreende, de uma certa maneira, a sua situa-
ção privile-giada. Também convém, evidentemente, promovê-la para
que ela faça desabrochar os seus movimentos e ganhe confiança em
si mesma. Mas o essencial é dar-lhe bases sólidas, cuja ausência é de-
masiadas vezes disfarçada pela manifestação da sua habilidade.
Ora, estes fundamentos, que são as bases do Aiki Do, ser-lhe-
-ão ainda muito mais úteis do que a outros e, se tal for o caso, a sua
ausência será cruelmente sentida quando houver Randori com outros
praticantes, porque aquela criança será sempre tomada como um al-
vo...
Uma criança arrastada demasiado cedo pelo sucesso (cinto,
por exemplo) corre o risco de ficar nos limites do seu nível do mo-
mento e de se exibir (com a ajuda do professor), sem ter a ideia de
prosseguir o seu desenvolvimento, nem de progredir continuamen-
te. As imper-feições e insuficiências, que passam despercebidas à crian-
XVI
80
VIII
No tatami, ouve-se frequentemente afirmar: "Faz, não pen-
ses, deixa passar".
Também se diz: "Você tem uma bela forma!" Mas qual? O
corpo? A atitude?
A arte, segundo Heidegger, é "desvendamento da verdade
do Ser". De facto, preferiria dizer, como Maître Eckart —"deixar Ser".
A forma em Aiki Do é deixar aparecer aquilo que exige im-
periosamente passar à existência, aquilo que pede para nascer, reali-
zando-se pelo movimento ou pelo gesto, libertando a sua Energia,
para que este mesmo movimento ou gesto sejam testemunhos da
própria Energia que é a do Universo. Dando-lhes forma.
É preciso não esquecer também que a forma está em cons-
tante formação. Ela nunca é um traço, um contorno imóvel. E, es-
tando em movimento, ela move-nos, arrasta-nos nos seus ciclos.
Os orientais dizem que o belo "nasce da perfeição de formas
inexactas", que o belo só pode atingir a sua plenitude "através da
mão que treme". Paradoxo que mais não é do que aparente. De fac-
to, não pode haver simetria perfeita na natureza e toda a forma be-
la não pode estar senão em harmonia com a génese do mundo cria-
do. Perante toda a obra bela, nós teremos como que um sentimento
de inacabado, que não resulta, naturalmente, de uma falta de jeito,
de uma falta de "saber-fazer", mas, ao contrário, de uma suspensão
da duração, da criação de um tempo diferente daquele que cremos
viver, um tempo que só existe na obra de arte pelo seu ritmo.
Para compreender o que é o ritmo, nada melhor do que ver
correr. Nada existe de mais natural do que correr. E, no entanto, ob-
serve-se quem corre na rua. A maioria dá a impressão de o fazer sem
graça, de arrastar atrás de si, e com grande dificuldade, um saco mui-
to pesado. Veja-se, pelo contrário, correr um campeão ou ainda cor-
rer uma criança. É a corrida de um corpo sempre à frente de si mes-
mo, uma corrida feita de ligeiras rupturas e revivificando-se de saltos.
Estamos aqui nos antípodas da cadência — a do pêndulo do
XVII
81
XVIIa f o r m a d o m o v i m e n t o . m a s q u a l ?
A verdadeira vida dos que têm olhos
para ver e um coração para sentir.
uma forma?
Podemos deter-nos aqui, numa encruzilhada: a encruzilhada on-
de desaguam todas as estradas pelas quais se separarão aqueles que
atingem este ponto através de uma única estrada, a da vida cria-
dora.
Se digo, por exemplo, Shio Nage, evocamos directamente o
desenho das formas corporais e o traçado das linhas, que mesmo o
principiante reconhece facilmente...
Mas se digo o "movimento de Shio Nage", eis-nos mergu-
lhados em cheio na própria vida e já não sei onde se situam os limi-
tes... Assim, não uso frequentemente a palavra "movimento", a fim
de não me afastar demasiado por territórios da filosofia... cuja musa
não me compete servir, ainda que tenha muito a ver com o meu te-
ma.
Quando comecei a prática de Budo, do Judo, e isto muito an-
tes do Aiki Do ter sido introduzido na Europa, sempre que se falava
de "movimento", os alunos compreendiam-no, e com razão, como
uma "Expansão Universal". Hoje, alguma coisa se perdeu no ensino
e na "forma" também... Eu dizia, na época: "O movimento é como
uma dança cósmica, onde todas as vibrações da natureza, por mais
subtis que sejam, são percebidas, primeiro, intuitivamente, em segui-
da, conscientemente, para, depois, serem sentidas até ao seu frémi-
to". O "Movimento" é, portanto, ilimitado.
Um movimento belo, vindo de um "Sopro" que é concretiza-
do, recriado, torna-se por este facto uma sequência de formas e, fi-
nalmente, de fórmulas técnicas fixadas no Go Kyo.
O movimento de que vos falo está directamente ligado ao es-
paço, não apenas porque nele se move, mas porque ele é uma ex-
pansão directa e visível do espaço e das suas palpitações.
relógio, a dos soldados marchando a passo cadenciado.
Forma estética e ritmo, aliás a mesma palavra em grego, são
inseparáveis. E através do ritmo de uma música, de um poema, atra-
vés do ritmo criador de um simples bule de chá de época antiga, uni-
mo--nos ao próprio ritmo do mundo e, assim, à nossa respiração in-
terior.
O ritmo, diz Henri Maldiney, articula-se em instantes críticos,
que se resolvem uns nos outros, no decurso de uma interacção recí-
proca. Em cada um de nós, uma presença, constrangida até ao im-
possível e posta em situação de ser, aí se torna o que é na dor e no
salto. Exposta ao espaço, o ritmo iguala-a no Espaço tal como o faz
do seu presente o Tempo37.
Nos movimentos contínuos de Aiki Nage, há o ritmo, igua-
lando o espaço, através de uma sequência de rupturas (que são os
instantes críticos), que se verificam neles e sobre eles, a fim de criar
uma conti-nuidade de um novo espaço, conduzido pela beleza... O
Aiki Nage conduz-nos ao aberto que vai soltar a nossa própria liber-
dade.
O aberto de Rilke é "o puro, o maravilhamento que respira-
mos, que sabemos infinito e não cobiçamos".
Desta dinâmica, a forma poderia e deveria ser o melhor re-
flexo do ser.
A prática que só se entrega na e pela liberdade do aberto se-
rá em si mesma uma chave particularmente activa. O aberto é o ape-
lo à Unidade. Esta Unidade em Budo chamamo-la música do sopro,
ou se preferirem música ou sopro!
Não esqueçamos, uma vez mais, que o Do do Ai Ki é a arte por
excelência de dominar o corpo e todas as formas da vida pelo espírito.
Mas antes de me seguirem no Caminho, onde se desenvolve
XVII
82
A técnica está ligada ao espaço através do movimento mas
apenas quando este é escolhido, é eleito por aquele que o executa.
Há movimento sempre que há vida.
Há movimento correcto desde que haja renascimento de uma
certa forma de vida registada pela consciência e traduzida pelo cor-
po; há técnica sempre que lhe seja dado um invólucro formal para es-
ta tradução.
O Aiki Nage é uma liberdade.
Se a técnica é uma forma, o movimento existe antes da for-
ma. É uma libertação antes da reclusão voluntária na "forma".
A técnica é sólida; o movimento é fluido,
A técnica é vitória sobre o plano e sobre o espaço; o "movi-
mento" é possibilidade no plano e no espaço. Se vos digo que o
movimento é uma liberdade, a técnica é uma disciplina, é uma cap-
tação voluntária.
Podemos nela entrar ou dela sair quando o desejarmos.
Vemos que um não existe sem a outra, sempre que há cria-
ção... É preciso que um, o movimento, o livre, o indisciplinado seja
dominado e que a outra, a técnica, o formal, possa expandir-se.
Os dois estão, portanto, sempre reunidos. Mas hoje quem o
sabe ver? Não, seguramente, o grande público das Artes Marciais!
Em resumo, poderia dizer: "Um é liberdade, a outra uma tra-
dição"! O que era praticamente o mesmo. Na verdade, o que é uma
tradição senão uma disciplina mantida através dos tempos.
O Oriente soube conservar, através de certos mestres, a cons-
ciência do movimento. Cabe-nos a nós, ocidentais, conquistá-la! O
Ocidente — e isto generaliza-se, pouco a pouco, em todos os azi-
mutes — apenas manteve o desenvolvimento das formas e dos meios
e não a cultura mais profundamente intuitiva das bases e dos funda-
mentos que, no centro destas formas e destes meios, permitem reen-
contrar intacto o movimento inicial, fonte de toda a vida da forma
em movimento.
O problema da Escola do Movimento
Eis o dilema!
Como é que hoje o Aiki Do nos propõe esta liberdade (do mo-
vimento) a reconquistar e a reafirmar? Isto é, como procurar o senti-
do do movimento, na fonte profunda, para além do invólucro este-
reotipado dos Go Kyo, ditos "programas de graus", propostos pelas
escolas japonesas?
E, mais ainda, como educar o desenvolvimento e a expansão,
sem entrar em esoterismos, frequentemente mal assimilados e so-
bretudo mal interpretados?
Para aprender, é preciso escolher uma escola, sabendo que
racionalizar, tornar perceptível a outros, encerrar num estudo, limitar-
-se a um método é, para nós, um falso estado, uma falsa atitude.
Falso, ainda que seja necessário, porque apenas meio falso. Temos,
por vezes, que nos ater a esta situação, sem descurar, porém, que a
liberdade, sendo indispensável, necessita de ser adquirida e só o po-
de ser através do trabalho e da pesquisa e, para tanto, é necessária
uma base, é precisa uma ajuda, é preciso uma direcção.
Como diria Rilke numa das suas cartas a Rodin, aquilo que
procuramos junto de um Mestre não é apenas encontrar "mãos que
fazem a grandiosidade". Estas mãos que permitem a grandiosidade
a outros, fazem antes de mais a sua grandiosidade, através da sua
própria pesquisa e percorrendo o seu próprio caminho. E elas não se
pousam sobre o ombro daquele que humanamente procura a sua via,
a não ser para lhe dar uma direcção, uma indicação para se voltar pa-
XVII
83
— e sobretudo reencontrar-se a si mesmo.
Mas ele devia poder educar-se igualmente num dojo onde a
Arte do Movimento fosse também ela ensinada. É aqui que reside a
lacuna: o Aiki Do deve aprender-se através do ensino da "consciência
do movimento" e dos seus princípios, que sustentam a própria Arte
do Aiki Do!
Este trabalho consistirá em despertar o aluno para a Arte do
Movimento no seu próprio corpo, torná-lo consciente das suas rela-
ções com o espaço em que se move, reunir nele e através dele a vida
ritmada das sensações e das linhas imprecisas e fazer com que dele elas
brotem nas formas e expressões dadas ao seu corpo, animado pelo Ki.
É preciso aprender o "devir" para além do movimento, mas
isto é já uma outra história...
O dojo ideal seria aquele onde fosse possível encontrar, para-
lelamente à educação da forma, uma educação do espírito ou a for-
ça que o faz mover.
"No movimento tudo é nuance.
Sêde o eixo da roda e ignorai se os
raios giram"
No Kaiten Nage, a noção de "Roda", de centro imóvel, é im-
portante para compreender a sensação de Kaiten que se executa na
oposição de Aité.
É fácil declarar ou dizer num curso que "é preciso dominar es-
te mundo de oposições que são forças e ritmos esparsos e que é ne-
cessário canalizá-los numa direcção de não-oposição, a fim de reali-
zar uma forma a que chamamos Kaiten Nage". Seguramente, isto não
ra o "lado certo". Esta mão colocada sobre o ombro, esta pressão im-
perativa, esta insinuação, esta certeza não podem senão indicar o ca-
minho já percorrido.
Quem no-lo desdobrará sob os pés? Que outro ser, para além
de nós mesmos, nos dirá "é isto", "é por ali"?
Todas as escolas estão perante nós, tentam-nos, convidam-
nos, chegam mesmo a aspirar-nos por longos anos...
Mas ele, o principiante, isolado, para onde irá?
Onde aprender aquilo que outros experimentaram e desco-
briram antes dele? Será que uma escola é única? Não certamente! É
preciso descobrir uma escola em que o exemplo ligado ao ensino, a
dignidade unida à experiência, a grandiosidade junta ao conheci-men-
to possam ser propostos como modelo deste ambiente perfeito on-
de o ser que se procura deva poder reencontrar-se antes de, enfim,
se encontrar.
São precisos dojos dotados deste espírito e deste clima, mas
não nómadas, não errantes, fixados na ingerência e tornados viáveis
pela liberdade que largos meios financeiros lhes conferem38.
Vimos, quando destas reflexões, que o praticante é um ser li-
gado ao espaço, ao seu parceiro e que faz movimento. Vimos tam-
bém que antes de entrar no molde da técnica, é preciso que ele seja
terra maleável, terreno propício, que ele aprenda a conhecer, primei-
ro, a dominar, depois, quer este espaço, quer este movimento cria-
dor dos seus gestos reactivos.
É isto que, antes ou paralelamente a qualquer outro estudo,
ele deve encontrar sob a forma de ensino em todas as escolas, seja
qual for a sua tendência, e que o pode ajudar a praticar diferentes
formas. Pode pedir-se sempre de empréstimo e conhecer todas as
sensações, beber em todas as fontes — e abandoná-las em seguida
XVII
84
constituía uma educação! Uma educação, ou melhor dito, uma for-
ma-ção é ajudar a que seja possível captar sensações virgens, é con-
seguir torná-las flexíveis como se fossem tenros bambus.
Isto exige, por certo, um trabalho perseverante, ou talvez me-
lhor dito ainda, isto constitui um estado de ser, uma vigilância cons-
tante (Zanshin), sabendo que o ser se transforma naquilo que o pen-
samento lhe sugeriu.
O erro inicial é acreditar que num corpo tornado flexível, for-
tificado e dócil, respondendo bem ao que dele se exige, a imagina-
ção se reencontraria livre, fácil e intacta. Poderíamos pensar assim se,
no trabalho, não separássemos espírito e corpo, tal como o separa-
mos ao dizer "o peixe na água", quando deveríamos pensar "as va-
gas e a água".
Também acreditamos que um certo "estado de ser", artifi-
cialmente assumido no momento de um combate (competição) e de
que nos desfazemos com o Kimono, é suficiente para reencontrar o
clima particular de cada combate (real).
O olhar global — "aquele que tudo e nada vê", "aquele que
vê em toda a parte e em parte nenhuma" — constitui, de facto, uma
ajuda, e, no entanto, considero-o apenas "apoio exterior".
Sabemos, hoje, aquilo que Miyamoto Musashi sentiu intuiti-
va-mente: que os combates mais profundos do ser (e a psicanálise
ensinou--nos a disso tomar consciência) fazem aflorar ao nível do real
o que se encontra escondido no fundo do nosso inconsciente e cada
um de nós sabe que, ao ouvir por vezes o relato de um combate par-
ticular-mente bem descrito, ele pode evocar no praticante experi-
mentado uma reminiscência, uma sensação de reflexos vividos.
Tal perfume não é para nós uma parcela de vida esquecida
que renasce na sugestão de um odor?
E, no entanto, para compreender o movimento, será preciso
escavar ainda mais fundo!
Que significa Aiki Do ou Aiki Budo?
"Ai" significa, literalmente, "unir", conjunto, amor, etc.
"Ki" significa espírito, sopro, etc.
Mas analisemos este vocábulo de mais perto.
Trata-se aqui de pôr o espírito em sintonia com o dos outros
e com aquilo que o rodeia. É a verdadeira lei da harmonia que pode-
mos compreender facilmente, quando Mestre Ueshiba diz "eu mes-
mo sou o vazio", ou quando Lao Tsé, muito antes dele, dizia: "Aquele
que conseguir fazer de si mesmo um vazio em que os outros possam
penetrar livremente tornar-se-á senhor de todas as situações."
Para que haja estado de vazio, é preciso um espírito de aban-
dono, de que muito pouco se fala no Budo, porque ele poderia ser
mal interpretado. Uma vez que "Ai" quer dizer unir-se, tal correspon-
deria mais precisamente a "abandonar-se sem reticências, para se unir
no ataque". Significaria "dissolver-se no Universo" por uma osmose,
que é comunhão, e onde o ego é esquecido. Significaria um estado
de união com o ritmo Universal. Ser capaz de ver as coisas de forma
desinteressada.
Aqui, a dificuldade para o praticante do Movimento reside no
facto de que, para ele, entre a revelação e a realização se inserem a
aprendizagem, o aperfeiçoamento técnico, o trabalho... É durante es-
ta etapa tão longa que muitas vezes se perde a autêntica verdade, a
essência intacta na espontaneidade da prática, e que só alguns privi-
legiados guardam. É durante esta etapa que a exigência criadora der-
rotará os mais fracos. Alguns abandonarão, ainda que tenham pos-
sibilidades físicas de continuar a procura... Outros curvar-se-ão pe-
rante exigências mais fáceis, por exemplo, graus, títulos, ou mesmo
XVII
85
talvez inconscientemente.
O Mestre de Budo que deixa expandir a vida nas linhas do seu
corpo; o escritor que a faz correr através dos seus dedos até à cane-
ta; o pintor que a deixa deslizar até à ponta do seu pincel; o sábio e
todos aqueles que desempenham bem as suas tarefas, tal como o pra-
ticante de Sabre, que faz correr também a vida e não a morte, todos
eles sabem que, em última análise, a faculdade de reviver e a intuição
criadora, estes actos em que podemos tornar-nos outros que não nós
mesmos e capazes de nos abandonarmos, são obras inteiramente de-
sinteressadas.
O desinteresse mais despojado é talvez o do artista. Ainda os
há pelo mundo que vivem e morrem, por vezes silenciosos e desco-
nhecidos, a fim de que a sua arte subsista.
Posso afirmar-vos que as Artes do Budo dependem, à partida,
da Escola que deveria desenvolver a "Arte do Movimento em si", em
vez de a ir procurar no exterior de si: nos títulos, nos pequenos po-
deres ou na alegada "eficácia".
As Artes do Movimento poderiam encontrar-se entre seres cria-
dores, bem longe da má informação com que hoje deparamos neste
"meio", sem falar dos filmes de Hong Kong ou outros, bem longe de
quem atrai jovens para a violência, para deles fazer "super-homens",
e que abandonam, geralmente, alguns anos depois. Relativamente
aos que ficam, a maioria, após terem sido campeões ou vedetas, tor-
nam-se líderes de grupo e formam, por sua vez, uma motivação que,
infelizmente, não ultrapassa a técnica. "Eis que o círculo se fecha".
Sei que uma escola (dojo) que procura "a essência do movimento"
parecerá a alguns uma grande pretensão ou uma utopia. Contudo, a
incursão que fazemos através das nossas reflexões não constitui pro-
va de que uma abordagem como a nossa não atrairia outras motiva-
a busca da eficácia, que é também uma ilusão...
Ser capaz de se manter semelhante "no espírito do principi-
ante" é, para o verdadeiro praticante, o seu mais belo triunfo. A pes-
quisa técnica, comparável à temível experiência de viver, seca fre-
quentemente esta fonte. Se o praticante de Budo, na sua abor-da-
gem, possuir esta faculdade de se esquecer de si mesmo, se for ca-
paz de vivificar o seu caminho por uma permanente vigilância, ele
atingirá então esta dupla consciência que o torna senhor do espírito
a fim de se libertar numa forma, também ela dominada.
O que é, no fundo, uma técnica ou um movimento, caso o
seu objectivo não se torne apenas uma busca de eficácia, ou mesmo
de acrobacia e de perfomance, se não a liberdade de associar e dis-
sociar todas as partes do corpo, segundo a necessidade e os impera-
tivos do apelo criador?
Se, fazendo recuar os limites do tema, fôssemos todos até ao
fundo de nós mesmos, músicos, arquitectos, comediantes, homens
de negócios, engenheiros, muitos dos quais emparedados na luta pe-
lo dinheiro, místicos ou políticos, do mais leal ao mais cobarde, do
mais generoso ao mais cúpido, sentiríamos inconscientemente a nos-
talgia de um "paraíso perdido", ou de um tempo presente falhado...
de que nos afastam as nossas prudências, as nossas economias, as
nossas servidões, a nossa avidez. E este paraíso perdido não é o cli-
ma, as atitudes, as fachadas arquitecturais, as esculturas, os colori-
dos?
É aqui que eu peço um Dojo que não seja japonês, nem orien-
tal, nem ocidental: um Dojo Universal, que não se perca na pesqui-
sa, em que as técnicas de Budo sejam meios e não o objectivo, que
ganhe e amplifique o trabalho das faculdades criadoras e a intuição
do devir, cuja necessidade é sentida por um grande número de nós
XVII
86
ções? Mas nunca é de mais repetir que devemos encontrar em nós
este "mistério do movimento" e aperfeiçoá-lo. As reflexões que fa-
zemos não nos colocam contra os diversos métodos e não vêm pro-
por uma nova receita. Não afirmo que seja melhor ou o ideal a se-
guir... Mas, depois deste longo percurso, sinto-me na obrigação de
afirmar: a consciência do Movimento é a base; ela não é verdade
absoluta, mas necessidade fundamental. Há, nas Artes de Budo e nas
do Aiki Do, um brotar criador primitivo.
Maurice Béjart, numa altura em que praticava Zazen com
Taisen Deshimaru, disse-me que as "Artes Marciais eram a fonte da
Dança". É evidente que se alguma coisa existe de primitivo e puro,
fonte da materialização no espaço, essa coisa é a essência da arte ges-
tual, que possui a sua mais elevada expressão: o poder quase divino
de dar vida, de criar.
Nos nossos dojos, não está em causa um novo método, mas
uma atitude esquecida. Trata-se mais de reaprender do que de apren-
der.
Uma vez despertada a consciência do movimento, que cada
um reintegre os limites do estilo que escolheu (duro ou flexível).
Cada estilo, de Escola Antiga ou de Escola dita "Moderna",
de personalidade ou de diferente tendência, mais não é do que o
acentuar de um sentido preciso, porque nenhum de nós pode trans-
gredir esta lei que nos condena a atingir as coisas apenas de forma
fragmentária.
Só a mecanização é incompatível com esta base lógica, uma
vez que sendo o seu automatismo demasiado semelhante à máqui-
na, também ele é inconciliável com o movimento da vida.
"Praticando, é em Si que é preciso procurar a forma exterior". XVII
87
37. Henri Maldiney, Regard, parole, espace, Paris, Ed. L’Âge de l’Homme, 1973.
38. Hoje, as Artes Marciais são, frequentemente, ajudadas pelos poderes públicos, comgrandes meios financeiros. Uma vez que gerem a competição, limitam-se a escolhera expressão de uma forma exterior espectacular baseada na alegada eficácia.
IX
Gei Jyutsu - A Arte
88
A vida é uma sucessão de trocas.
O movimento tem aspectos muitos mais vastos e profundos
do que aqueles que nos são familiares. Estes estão rigidamente limi-
tados a considerações de tempo, de espaço, de causalidade. "Daqui
em diante – dizia Minkowski em Setembro de 1908 – os conceitos de
espaço e de tempo, considerados como autónomos, vão desvanecer-
-se como sombras e só se reconhecerá existência independente a uma
espécie de união entre os dois".
Existem outras categorias de movimentos. Cada uma delas
possui os seus caracteres específicos.
Leis, não apenas diferentes, mas por vezes opostas, regem os
diferentes modos ou domínios do movimento.
Elas são de três ordens, porque se aplicam a três categorias
de movimento.
Porque considero que os praticantes de Aiki Do devem apro-
fundar esta matéria, passarei a resumir muito brevemente estas três
categorias.
XVIII
89
XVIII o s t r ê s m o v i m e n t o s
A verdade só pode ser atingida através
da compreensão dos contrários.
Okakura-Kakuzo
"Movimento"
fundamental
"Movimentos" "Movimentos"
de deslocação de transformação
na Natureza da Natureza
(visíveis) (invisíveis)
Ao falar de "movimento", evocamos quase sempre a deslo-
cação de um objecto, de um ser vivo, de um engenho mecânico, de
uma vibração ou de uma onda no espaço e no tempo.
É a este nível espácio-temporal, visível e concreto, que se si-
tuam os gestos do corpo humano. E, por conseguinte, os dos movi-
mentos técnicos das Artes de Budo.
Mas o domínio dos "movimentos" de deslocação que acaba
de ser evocado está ligado a um dos estados mais profundos de que
ele é inseparável.
2. Os "movimentos" de transformação
da natureza
Encontramo-nos aqui num domínio mais profundo, menos
aparente, escapando às percepções sensoriais familiares. Ele situa-se
nas profundezas da matéria. O mundo quântico tem regras diferen-
tes das do mundo à nossa escala.
Tal investigação, ainda que sumária, obriga-nos a entrar um
pouco na física.
Ao longo de todos os "movimentos" de deslocação acima evo-
cados, os objectos móveis permanecem intactos à nossa vista. Se lan-
çarmos um balão de um ponto A em que nos encontramos para um
ponto B a várias dezenas de metros de distância, este balão perma-
necerá idêntico. A natureza do objecto móvel não se modifica.
Tudo se passa diferentemente no plano intra-atómico e intra-
-nuclear, no coração da matéria.
Ao nível electrónico, este "pseudo-corpúsculo" ocupa prati-
ca-mente toda a zona das suas revoluções em torno do núcleo do áto-
mo, ao longo de milhares de milhões de voltas por segundo e a sua
estrita individualidade parece apagar-se, como é patente na definição
que Louis de Broglie dá de corpúsculos.
O Mestre Ueshiba empregava frequentemente o termo "Katsu
Hayabi":
"Num instante, eu percebo e compreendo
O espírito do adversário.
Não existe tempo, nem espaço,
Apenas existe o Universo".
O Mestre Ueshiba simbolizava aqui as leis da física do Movimen-
to Universal, mas com a sua espiritualidade. A espiritualidade consis-
te na harmonização no homem e pelo homem das diferentes cate-
gorias de movimento, que fazem parte da sua natureza e da nature-
za pro-funda de todas as coisas.
1. "Movimentos" de deslocação
Os "movimentos" de deslocação são aqueles que nos são fa-
miliares. Vêmo-los e experimentamo-los de mil e uma maneiras na vi-
da quotidiana. Eles exprimem-se também nos nossos gestos.
A respiração, os batimentos do coração, a intensidade das
trocas intercelulares, a circulação do sangue, o ritmo da marcha, as
palavras, as emoções, os pensamentos, o vento, a chuva, a revolução
da terra em torno do sol, a trajectória de um avião, etc. são "movi-
mentos" de deslocação.
Este movimento é simbolizado, na física, pela deslocação, no
espaço, de um objecto móvel a partir de um ponto A até um ponto
B, durante um período de tempo T, a uma velocidade V.
As leis deste movimento e as dos objectos móveis, deslocan-
do-se no tempo e no espaço, foram definidas pela mecânica clássica.
XVIII
90
A este nível, portanto, o "objecto móvel" é já muito diferen-
te de um balão sólido.
É, enfim, ao nível intra-nuclear, que tudo muda. O núcleo não
é homogéneo. Ele compõe-se de todo um mundo.
Aqui, o movimento é muito diferente de tudo quanto nos é
familiar. O movimento como que se recolhe sobre si mesmo. Tudo se
passa numa centésima milionésima parte de um milímetro.
O movimento concentra-se num ponto ínfimo do espaço e
do tempo.
Impõe-se-nos, de imediato, uma verdade fundamental: a es-
te nível, o movimento caracteriza-se por uma transformação de
natureza que só aparentemente se mantém intacta.
Com efeito, os objectos móveis não permanecem intactos.
Eles estão, ao contrário, sujeitos a contínuas transformações.
O conhecimento da física no Ocidente evoluiu de forma ver-
tiginosa, e controversa, nos últimos cem anos. É no entanto aceite
que no interior da matéria haja quatro tipos de interacção ou forças:
a gravítica, a electromagnética, a forte e a fraca, e que todas elas se-
jam explicadas por trocas de "micro-matéria": gravitões, fotões, gluões,
etc., com intensidades e alcance muito variáveis, mas sempre expli-
cando o equilíbrio e a movimentação da matéria em termos de "tro-
ca da matéria".
Assim, a intensidade das trocas é mais importante do que
a individualidade dos elementos ligados entre si.
3. O "movimento" de criação pura, fun-
damental
A existência dum "movimento" fundamental foi intuitiva-
mente pressentido tanto pelos gregos, caso de Plotino, como pelos
indianos, no Bramanismo.
Plotino falava "de um movimento puro sem objecto móvel e
não distinto do motor que o anima".
A palavra "Brahma" dos indianos provém da raiz do sânscri-
to "Brih", criar. Muito curiosamente, este movimento de criação pu-
ra é entrevisto por numerosos físicos e matemáticos da época actual.
Citemos entre eles John Wheeler (EUA), David Bohm (Inglaterra),
Blokhintsev Ivananko (Rússia), Tournaire e Vigier (França).
Para além da dualidade das ondas e dos corpúsculos, para
além dos electrões, neutrões e dos múltiplos elementos constituintes
intra-nucleares, para além dos campos electromagnéticos e gravita-
cionais, situa-se a unidade de um campo não linear de criação pura.
A este nível, não existe objecto móvel, nem tempo, nem es-
paço, nem causalidade.
Trata-se de uma Realidade Última, espécie de presença eter-
na, intemporal, formando a essência profunda dos seres e das coisas.
O papel do homem seria o de exprimir, no tempo e no espa-
ço, na e pela matéria, este movimento de criação pura.
É a este nível que intervém o papel supremo da Arte do
Movimento, para não dizer o do Aiki Do, porque seria fechar a Arte
do Movimento numa única disciplina.
A expressão de um movimento não seria apenas física, mas
estaria subordinada a uma inspiração espiritual emanada do movi-
mento de criação sempre presente, porque contínua.
XVIII
91
tre a Arte do Movimento e a Espiritualidade.
Quando o Mestre Ueshiba intuitivamente disse "o Aiki Do exis-
te à imagem da Natureza", quem o compreendeu?
Acabámos de ver que tudo na natureza se resume ao movi-
mento. Acabámos igualmente de ver que a essência profunda da na-
tu-reza e da matéria mais não é do que movimento: movimento de
criação pura muito para além das nossas categorias de vida e de mor-
te.
A Via "Do" e o "Dharma" consistem na harmonização no ho-
mem e pelo homem das diferentes categorias de movimento, que fa-
zem parte tanto da sua natureza quanto da natureza profunda de to-
das as coisas.
Nesta perspectiva, o Universo é uma unidade indivisível e a
realidade essencial do homem engloba e domina todas as nossas opo-
sições de vida e de morte, de carne e de espírito (Corpo/Espírito).
Os mestres do Oriente, sejam eles do Yoga ou das Artes do
Budo, põem todos em evidência a importância do movimento no
Universo e no homem, não apenas nos campos físico e psicológico,
mas muito mais ainda no plano espiritual último, e a necessidade de
admitir o carácter sagrado da Arte do Movimento, no sentido univer-
sal, e no sentido em que "sagrado" é "ligado".
Todo o movimento, numa prática sincera e correcta, encon-
tra-se expresso, no ser humano, cuja complexidade de organização
celular, o aperfeiçoamento do sistema nervoso e a morfologia permi-
tem as expressões mais totais de todas as categorias do movimento
acima citadas.
Em resumo, trata-se de uma experiência em que se exprimem
o movimento e a vida na sua totalidade. Deste ponto de vista, a cons-
ciência separada do "Eu" revela-se como pertencendo ao domínio da
Uma tal perspectiva não deveria surpreender-nos. O efeito de
surpresa provém do facto de não termos ainda compreendido até que
ponto a essência da matéria é espiritual.
Isto pode, contudo, divergir de uma escola para outra... Mas
é importante sublinhar que a concepção de um "Movimento de cria-
ção pura" é actualmente partilhada por um número cada vez mais
impor-tante de cientistas de renome mundial39.
Arte e movimento?
Toda a matéria animada e inanimada, viva ou morta, todos
os seres e todas as coisas participam, sem o saber, nas três categorias
do movimento que foram sumariamente referidas.
E não só nelas participam, sem o saber, na intimidade pro-
funda quer da sua substância material, quer da sua consciência, co-
mo podem exprimir as três categorias do movimento.
É pois de admitir que a Arte do Movimento possa ir buscar a
sua fonte de inspiração muito para além dos limites determinados pe-
los movimentos de deslocação temporais e espaciais.
Pareceria plausível a existência, no homem, de um elo e de
uma harmonização das três categorias de movimento.
Isto exige uma grande abertura psicológica e espiritual. As
formas mais evoluídas da vida humana exprimiriam uma plenitude de
movimento criador tanto nos planos espirituais, como psicológicos e
físicos. Estes seriam, por exemplo, os elementos base da adequação
perfeita nas relações humanas de que falam os mestres Zen.
É por isso que poderiam existir relações infinitamente mais
profundas do que as que são geralmente admitidas ou entrevistas en-
XVIII
92
ilusão. Ela dissipa-se, não para mergulhar num aniquilamento, mas
para se abrir a um conhecimento mais profundo e unificador da rea-
lidade.
O praticante sensível a esta extraordinária comunhão pode
comunicar pela beleza dos seus gestos exteriores — exprimindo si-
multaneamente a sua disponibilidade interior — um sentido vivo de
valores sublimes, triunfando das barreiras da linguagem e das ideias
porque o gesto visível contém a união das diferentes possíveis lei-
turas da natureza das coisas.
Creio que, apesar de certas aparências, uma tal perspectiva
não é nem criação do espírito, nem uma "ontologização".
E, no entanto, é destas profundezas da Arte do Movimento
ou da do Aiki Do que emana uma inspiração interior. Pela sua ex-
pressão corporal, elas realizam uma síntese harmoniosa do espírito e
do corpo, dois aspectos de uma mesma realidade.
Como disse Morihei Ueshiba: "O Ai Ki tem uma forma sem a
ter. O Ai Ki é uma vida tendo forma, mas esta muda constantemen-
te: ela só se exprime pela mudança. Uma forma sem forma, eis uma
expressão poética que ilustra o que é o Universo."
XVIII
9339. Princeton, La gnose, Paris, Fayard, 1974.
X
94
Chamai a isto cana de bambú e ficareis prisioneiros do meu ardil. Recusai chamá-lo cana de bambú e caireis no erro. Que nome lhe dais!?
Muito cedo, a Índia, a China e o Japão deliciaram-se a repre-
sen-tar os passos da vida espiritual ou as etapas no caminho do des-
pertar, de que a domesticação do búfalo é um exemplo excepcional.
Aqui o búfalo selvagem simboliza a Energia, mas também a
verdadeira natureza do homem, o ser profundo, esta realidade que
já está presente nele mas que ainda não foi realizada em plenitude.
O búfalo pode ser uma vaca, um touro, um boi ou mesmo
um cavalo e até um elefante. As diferentes etapas da domesticação
só podem ser verdadeiramente compreendidas por quem as experi-
mentou. É preciso saber também que aquele que entre no Budo, ape-
nas pela porta da técnica, terminará o seu percurso, quase de certe-
za, num "parque de estacionamento".
Ao contrário, a porta do Budo convida-nos a passar a "porta
sem porta", tão vasta e transparente quanto um grande céu vazio.
Mas para a transpor é por vezes necessário ter um guia e seguir o seu
próprio bom senso.
Um velho provérbio chinês pode fazer-nos reflectir e mostrar
que, apesar do nosso conhecimento, temos ainda muito a aprender
com os antigos de todas as tradições, ao mesmo tempo que nos dá
uma lição de humildade:
"Aquele que não sabe
e que não sabe que não sabe… evita-o.
Aquele que não sabe
e que sabe que não sabe… educa-o.
Aquele que sabe
e que não sabe que sabe… desperta-o.
Aquele que sabe
e que sabe que sabe… segue-o."
Todo o praticante deveria colocar-se esta questão: "Quem
sou?". E ainda "O que sou?". Mas gostaria de acrescentar uma ou-
tra: "Onde estou?" no caminho que escolhi e conduz ao real…
XIX
95
XIX a d o m e s t i c a ç ã o d o b ú f a l o
curar?
Se já não sentimos a presença do búfalo, tal significa que nos
afastámos de nós mesmos, que são os nossos sentidos que nos con-
duzem, que caminhamos em direcção a encruzilhadas incertas….
O gosto por "tomar" e o medo de "largar" consomem-nos.
Pensar o bem e o mal dilacera-nos.
Num outro estádio, começamos, paulatinamente, a ver. As
Escrituras e os ensinamentos ajudam-nos a ter um pouco mais de com-
preensão. Começamos a ver os traços do búfalo, mas somos inca-pa-
zes de distinguir o que é do que não é. O espírito tem dificuldade em
discernir o verdadeiro do falso.
Estamos sempre perante uma porta. A técnica do Budo não
nos deixa entrever a outra porta.
Depois, pouco a pouco, começa o encontro — a domestica-
ção do búfalo — em que o praticante descobre, pela escuta, o seu ca-
minho, em que os sentidos se harmonizam. Percebemos, então, a ori-
gem das mil e uma coisas. Em todos os actos, sentimos que nada es-
tá separado. Mas o olhar não é ainda puro, nem dirigido de uma ma-
neira correcta. Ainda não descobrimos ou não compreendemos que
todos estamos unidos à origem.
Após um longo caminho, encontramos realmente o búfalo,
temo-lo agarrado. Mas, ainda atraído pelas solicitações do mundo ex-
terior, o búfalo é difícil de controlar. A sua natureza selvagem é difícil
de dominar e recusa a familiaridade. É necessário utilizar a corda pa-
ra que ele permaneça perto de nós.
Começamos, então, a domá-lo, sem prescindir do chicote e
da corda. Quando um pensamento vem, outro se segue, outro ain-
da… O turbilhão sem fim dos pensamentos cresce e arrasta-nos no
erro, temos ainda falta de clarividência interior. Ainda nos é necessá-
A porta da técnica está, infelizmente, reservada "àquele que
não sabe / e que não sabe que não sabe". Têm olhos e não vêm, di-
zia Cristo.
As etapas da via são, antes de mais, transformação. "Aquele
que sabe / e que não sabe que sabe" já deu um passo no caminho.
A luz está nele, como em todos nós, e um trabalho de maturação pro-
cessa-se no seu íntimo, sem que dele se aperceba. Ele deve trabalhar
com perseverança em todos os planos da consciência. É-lhe necessá-
rio dissipar tanto os mais densos como os mais subtis estados de cons-
ciência que lhe escondem esta luz interior que está presente no mais
profundo do seu ser e cuja existência ele ignora.
É preciso que se liberte de todas as cadeias e ultrapasse to-
dos os preconceitos. Longo trabalho! Aqui, o estudo não basta. O sa-
ber livresco não substitui a experiência, a única que nos pode con-
duzir a um verdadeiro conhecimento. Para que o ser integral possa
transformar--se, é indispensável a vivência pessoal, porque "ver é ver
e fazer é saber". É, então, necessário um guia qualificado a fim de
não enveredar por becos sem saída e de não confundir o dedo que
mostra a lua com a própria lua.
"Aquele que sabe / e que sabe que sabe" é o único qualifi-
cado para levar a cabo esta tarefa difícil. Tem a humildade e a indul-
gência necessárias. Adquiriu o domínio do seu corpo, do seu sopro,
dos seus pensamentos e das suas emoções. Está também em con-
tacto perma-nente com a fonte cósmica, ele irradia amor. Mas é pre-
ciso ainda estar pronto para o receber, estar disponível e solto, a fim
de ser permeável a um verdadeiro ensino.
Regressando à domesticação do búfalo, é necessário, em pri-
meiro lugar, procurar!
Se o búfalo nunca está longe, importa saber porque o pro-
XIX
96
ria maior vigilância. É o momento de segurar bem as rédeas, de dar
mais atenção à atenção, caso contrário o animal pode extraviar-se.
É chegado, enfim, o momento em que já não temos necessi-
dade de "tomar" nem medo de "largar". Não há retorno. O coração
enche-se de uma alegria desconhecida. O combate termina.
Deixando-se levar pelo búfalo, o domador reencontra a sua
verdadeira morada. Todos os ensinamentos desvelam uma realidade
única. Encontrámos a pérola em vagas perigosas. Quando se tem o
peixe, que importa a rede!
A lua eleva-se acima das nuvens!
Nada mais há! Nem chicote, nem corda, nem homem, nem
búfalo. É o vazio, é a abertura. A confusão esvai-se, nenhuma ideia
de perfeição a atingir existe, apenas permanece a serenidade. Que
importa que o "despertar" seja aqui ou além? Quando se esbate to-
da a dualidade, para onde dirigir o olhar?
Numa base sem questões, numa prática desinteressada, abri-
mos a porta ao mistério. Já nada encobre o desenvolvimento daqui-
lo que é. Basta contemplá-lo. Basta contemplar o que permanece, o
que se passa, sem lhe acrescentar um pensamento, sem se identifi-
car com o que acontece, desprendido de si.
Azul é a resposta do Céu, verde a dos prados. As estações
passam.
"O quotidiano meditado na sua viva profundidade,
o movimento do sabre pode tornar-se o instante em que ve-
jo."
O Budo é uma arte do instante, mas é preciso não confundir
"este instante" com os momentos privilegiados, porque estes não
passam de fulgor disperso. Na arte do Budo, aprendemos, pelo con-
trá-rio, a recolher um presente, uma presença naquilo que nos acon-
tece, ocasião única de ver aumentar o Espaço – a luz nua.
"Que maravilha!
Recolho a água,
Apanho lenha."
Bashô
Sejamos inteiros em cada acto, nele exprimindo o melhor de nós.
Ser na energia do acto, para além do projecto.
Se praticais uma técnica, lavai o vosso espírito. O que impor-
ta é a integração no acto.
Tudo se torna claro, em nós e no resto. Tudo se revela na cla-
ridade do presente actualizado.
Quando vos transformais em um, quando atingis a unidade,
eis que o milagre ocorre e tudo se torna vivo.
O grande milagre é a própria vida.
XIX
97
Eles não se conheceram
Ele não é ainda o seu Senhor
A sua cabeça majestosa é ornada de cornos esplêndidos
Ela é selvagem, violenta, indomada.
O Céu parece hostil, como ela.
Como domesticar esta besta magnífica e perigosa?
No entanto, o Homem deseja, do fundo da sua alma, capturá-la.
Então, usa de astúcia com ela, explorando a sua avidez
Oferece-lhe a sua erva preferida a fim de vencer a sua desconfiança;
Mas esconde a corda com que a amarrará.
Prepara também a chibata com que reprimirá os seus abusos.
O Animal, qual nuvem tempestuosa, está carregado de uma energia
obscura;
Ele é negro da cabeça à cauda.
O que é esta potência desembestada?
XIX
98
A domesticação do Búfalo
O tema da domesticação do búfalo serviu para ilustrar
as diferentes etapas da Via.
Que representa o Búfalo? Representa a nossa própria
natureza, a natureza da vigília. O homem simboliza o indiví-
duo, o ser humano; o boieiro, a parte do indivíduo que se vol-
ta para a sua natureza profunda, o seu ser interior; a corda e
a chibata são os meios hábeis, os diferentes métodos de tra-
balho que guiam a vigília. A ideia de domesticação implica a
de um longo trabalho, constante e quotidiano, efectuado com
uma grande e ininterrupta vigilância…
Houve várias versões deste tema, todas elas subli-
nhando o aspecto progressivo do caminho. Os desenhos ori-
ginais e res-pectivos comentários são atribuídos a Kakuan Shien
(Kuo-an, Shih-Yuan), Mestre Zen do século XII. Ele não foi, po-
rém, o primeiro a ilustrar graficamente os estádios sucessivos
do conhe-cimento segundo o Zen. Existem versões anteriores
de cinco e oito desenhos, em que o búfalo se torna cada vez
mais bran-co, representando o último desenho um simples cír-
culo. Tal significava que o conhecimento da Unidade – o mes-
mo é dizer, o apagamento das noções do "eu" e do "outro" –
era o fim últi-mo do Zen. Mas Kakuan acrescentou duas ima-
gens ao círculo para mostrar que o perfeito seguidor do Zen
vive no mundo quotidiano, junta-se aos outros homens com
total liberdade de espírito, e que a sua compaixão incita a se-
guir a via do Buda. Foi esta versão a mais largamente adop-
tada no Japão40.
40. V. Philip Kapleau, Les trois piliers du Zen, Paris, Stock, 1972, p. 284.Os desenhos a tinta da china aqui apresentados são nossos.
I
O Homem conseguiu
a sua aceitação
Agora a Vaca começa a seguir o homem,
Mas com que relutância!
Ele já não puxa a corda e a chibata repousa no seu ombro.
A Vaca ainda não volta para ele o seu olhar.
O lombo contraído trai o seu medo e os seus desejos de evasão.
O Homem deve permanecer atento.
Ela sofre o seu ascendente mas à menor fraqueza ela fugirá.
Contudo, este começo de submissão humanizou a sua inteligência
animal,
Toda a sua cabeça se tornou clara.
O Sol, ainda vermelho, aparece entre as nuvens.
Porque é que a Natureza e a Vaca se apaziguam juntamente?
IIIO Começo do Domínio
O Homem estabeleceu o contacto com o Animal,
Conseguiu passar uma corda pelas suas narinas.
Brandiu a chibata, com a qual ameaça, para se fazer obedecer.
Ele não deve abrandar a sua pressão,
A Besta, agora, deve submeter-se.
As nuvens tempestuosas desapareceram, a natureza parece apazi-
guar-se,
Entretanto, o Céu permanece ainda cinzento.
Embora ela se debata, sente já que, a gosto ou a contragosto, se-
guirá o Homem.
A sua sombria e feroz energia cede a uma sensação nova.
Esta sensação subtil vem do homem.
Ela transmite-se à Vaca pelo laço que a ele a liga.
O seu focinho negro torna-se mais claro.
O que é esta mancha branca?
XIX
99
II
A Vaca volta a cabeça
para o Homem
O Céu desanuviou-se;
A luz do Sol atravessa o ar límpido,
As próprias árvores distendem os seus ramos
Que se abandonam na claridade do dia.
A Vaca volta a sua cabeça para o Homem e olha-o com confiança,
A sua nascente afeição por ele
Já apaziguou largamente a sua tumultuosa vitalidade;
A sua cabeça, o seu peito, as suas patas dianteiras são brancas.
Mas o Homem permanece vigilante;
Há ainda muita violência no corpo do animal.
É prudente não o deixar livre,
Temendo que o instinto desperte.
Que poder é este que, no Homem, apazigua?
IV Obediência e Amizade
Resta muito pouca energia obscura no corpo da Vaca.
Já não é um laço material que a prende ao Homem,
Mas uma afeição temerosa.
Ele já não é apenas o seu Senhor, ela ama-o um pouco.
Ele, entretanto, permanece ainda atento,
Conservando a corda e a chibata.
Uma água cristalina desce da montanha
O seu doce orvalho atenua a claridade do Sol.
Como é que o invisível prende tanto quanto o visível?
XIX
100
V
A Vaca está apaziguada
O animal está apaziguado; só um ligeiro traço sombrio
Resta sobre o seu manto branco de pêlo sedoso.
O homem está seguro da sua fidelidade,
Abandonou os meios de constrição.
A energia furiosa da Vaca mudou-se em terna sensibilidade,
O homem toca flauta e
Ela saboreia profundamente esta harmonia desconhecida.
Tudo é doçura nela e em seu redor;
As árvores estão em flor e uma bruma perfumada estende-se sobre
o vale.
Como é estranho! O animal, o homem e a natureza
estão em harmonia.
VI Ainda que livre, a Vaca
permanece perto do homem
O homem já não se preocupa com ela,
Ela está conquistada e não mais o deixará.
Ela bebe em grandes tragos a água cristalina da fonte.
Ele contempla e admira a sua força pacífica.
Na erva florida, a sua brancura é como um lótus
Aberto sobre um lago calmo.
O Sol enrubesce no horizonte.
O Homem goza profundamente a beleza deste vale
E a sua própria serenidade.
O que está fora dele é como o que nele reside.
XIX
101
VII
Ele está só, o Sol ilumina-se
A Vaca voltará para ele
O tempo passou? Qual tempo?
As estrelas da manhã ainda cintilam, o Sol irrompe na montanha.
O Homem está numa solidão maravilhosa.
Entretanto, ele nunca deixou de estar só.
A Vaca é simbólica;
As coisas são UM e sempre o foram.
O Animal, fora dele, era hostil.
O desejo, o esforço, o sofrimento e o amor
Restabeleceram a Unidade do Homem.
Mas se dela tiver necessidade, a Vaca aparecerá,
Porque, doravante, o homem sabe quem é e do que precisa.
Para ele, nada mais a conquistar, parte alguma aonde ir,
O combate terminou. Já não há ganho nem perda.
Descerá ele de novo ao Vale?
Eles esquecem-se um do outro
mas não mais se deixam
Brumas violetas estendem mansamente os seus véus,
Algumas estrelas acendem-se no céu imóvel.
Já a lua se levanta, pálida num terno azul.
Um orvalho morno eleva-se da terra.
Tudo é Paz.
A Terra e o Céu apagam-se.
Banhados pela doçura da noite, o homem e a vaca
Estão ambos sós, na sua tranquila beatitude.
Mas eles já não podem estar separados.
Qual a palavra para descrever esta harmonia, esta felicidade íntima?
Onde está a Terra? Onde está o espaço? Onde está o Tempo?
XIX
102
VIII IX
Os Dois desapareceram
Estão onde nada é
Qual é este estado em que nada há do que chamamos alguma coi-
sa?
É o nada ou a plenitude?
Mas quem pode imaginar o nada?
E quem pode pensar a plenitude?
Porquê falar tanto, as palavras são cheias ou vazias?
O que é, É. O que não é, não pode Ser.
Porquê limitar a realidade à mesquinhez das nossas experiências
contraditórias?
A criança chora se não agarra o Céu na sua mão.
O Oceano é uma grande gota de água ou a gota de água um pe-
queno oceano?
Quando um e outra estão unidos,
Onde está um e onde está a outra?
Alguma vez foi de outra maneira?
Não fiquemos assim, partamos mais longe para o que
nunca deixámos de ser, para o que somos verdadeiramente.
XIX
103
X
104
A verdade não existe fora do nosso espírito. Porquê procurá-la noutro lugar?
Na tradição, as Artes Marciais, e isto desde há séculos (e não
apenas no Japão!), foram sempre praticadas em lugares propícios ao
despertar. Hoje, a maior parte dos praticantes agarrou-se à pele des-
tas artes e esqueceu a medula... A Arte do Movimento não consiste
de modo algum em perseguir um resultado exterior com um "belo
movi-mento". Trata-se antes de realizar "o belo movimento, em si
mesmo".
A descoberta do Movimento, que vai para além da forma, de-
corre indubitavelmente de uma meditação da prática...
Um olhar sobre o passado e designadamente sobre a estra-
tégia do combate dos Mestres de Sabre japoneses da época Tokugawa
(1603-1868) é importante para compreender a prática do Budo de
hoje. O Sabre, símbolo da cavalaria, foi para os samurais um meio de
aperfeiçoamento de "si mesmos". A Via do Sabre foi fortemente in-
fluenciada pelo budismo Zen e por aquilo que o grande Mestre Takuan
nos deixou. Isto é válido ainda nos dias de hoje. É um assunto que
merece a nossa reflexão.
Como sabemos, a Arte do Movimento tem uma enorme con-
vergência com as outras Artes. Quando aquela é estudada em pro-
fundidade, o praticante de Aiki Do descobrirá certamente similitudes
nas artes da música, da caligrafia, do teatro, etc. E, nelas, encontra-
rá uma grande riqueza de inspiração.
Como também sabemos, a abordagem do Aiki Do é antes de
mais um percurso interior e tenho sublinhado muitas vezes que to-
das as intenções técnicas devem ser profundamente sentidas pelo
prati-cante antes de serem concretizadas no tatami, o mesmo acon-
tecendo quando se trata de as transmitir.
Esta busca, por mais pessoal que seja, não pode ser feita só;
ela requer a troca. Ela reclama obrigatoriamente uma pedagogia que
se lhe adapte, um ensino no qual a relação de autoridade seja subs-
ti-tuída por um espírito de pesquisa e de colaboração fervorosa entre
o Mestre e o aluno.
XX
105
XXo s e s c r i t o s d o p a s s a d o — o b u d o
A rede de pesca serve para apanhar peixes.
Apanha o peixe e esquece a rede.
O laço serve para apanhar coelhos.
Apanha o coelho e esquece o laço.
As palavras servem para transmitir ideias.
Pega nas ideias e esquece as palavras. Chuang Tsé41
senciais se reencontram através de todas as outras disciplinas. Os tem-
pos mudaram. Mas os fundamentos, a ciência profunda dos movi-
mentos, do sopro, da Energia (Ki) são imutáveis. Os princípios (muitas
vezes transmitidos ainda secretamente) constituem a própria raiz das
Artes Marciais contemporâneas. O Sabre, que simboliza precisamen-
te uma arma de morte, está ligado a uma sabedoria profunda: a Via
do Sabre inclui em si mesma todas as abordagens da sabedoria e le-
va a sua expressão até ao Absoluto...
.1 Takuan
(Mestre Zen do século XII)
Takuan foi um grande Mestre Zen que influenciou a investi-
gação do célebre Miyamoto Musashi, de que veremos alguns excer-
tos da sua escola no próximo ponto.
Para o Mestre Takuan, aquilo que é mais importante na arte
do Budo é a aquisição, após um treino prolongado, da atitude men-
tal chamada "sabedoria imutável". Muitos praticantes de hoje deve-
riam meditar sobre estas poucas linhas plenas de uma grande expe-
riência do combate...
Imutável não significa rígido, pesado e sem vida como um ro-
chedo ou um pedaço de madeira. Significa o mais elevado grau de
mobilidade em torno de um centro imutável. A mente atinge então o
mais alto ponto de alacridade e pode dirigir a atenção para todo o la-
do em que aquela se torna necessária — à esquerda, à direita, em su-
ma, para todas as direcções requeridas. Quando a vossa atenção es-
tá fixa e mobilizada pelo Sabre com que o inimigo vos golpeia, per-
Na análise dos textos que vamos abordar, nunca poderemos
substituir a experiência directa de um ensino vivo. Tal como nenhu-
ma mensagem do passado poderá substituir a relação de um Mestre
com o seu aluno.
Os textos antigos não são mais do que balizas que permitirão
ajudar a desenvolver a motivação do praticante. Um texto que não
seja materializado numa prática real é uma miragem... porque só con-
ta Tada Ima, o que significa "apenas agora". Só conta o "instante
presente", aquele que na prática toca a "Realidade".
O estudo da estratégia na Arte do Combate não deve parar
na "astúcia", porque esta não faz apelo senão ao "ego limitado",
pois, como dizem os sábios do combate, "a verdadeira vitória reside
na ausência de conflito".
Mas isto exige um desprendimento do espírito, exige o "va-
zio": Shûnya42.
De facto, o Budo é o estudo da vida e da morte através de
uma prática física e mental. É o que nos afasta evidentemente da via
desportiva. Quem se situar no plano desta realidade, a da competi-
ção, não será senão uma pálida figura, não revelará frequentemente
mais do que um espírito estratégico... É por isso que, ao ler os textos
antigos, será necessário nunca esquecer o contexto da época — sé-
culos XVII e XVIII — ou a sua particularidade cultural, em que a es-
crita não obede-cia a uma lógica sistemática, nem a uma ciência pe-
dagógica.
Os autores escreviam de uma maneira intuitiva, servindo-se mui-
tas vezes, tal como o poeta, da assimilação dos fenómenos cósmicos...
É verdade que o espírito das Artes do Budo moderno é dife-
rente do das Artes do Budo antigas. O Budo é uma Via e, portanto,
uma disciplina, uma ciência, uma técnica cujos grandes princípios es-
XX
106
deis a primeira oportunidade de realizar o gesto seguinte. Hesitais,
pensais e, durante esta deliberação, o inimigo prepara-se para vos
abater. Trata--se de não lhe dar essa oportunidade. Basta-vos seguir
o movimento do Sabre que se encontra nas mãos do inimigo, man-
tendo a vossa mente livre de fazer o seu próprio encadeamento, sem
que a vossa reflexão intervenha. Deslocai-vos quando o vosso adver-
sário se desloca e isso conduzir-vos-á à vitória.
Isto — que se pode chamar a atitude mental de não-ingerência
— constitui o elemento mais vital na Arte do Sabre, tal como na prá-
tica do Zen. Se a distância entre duas acções for da espessura de um
cabelo, há interrupção. Quando batemos com as mãos, o som sai sem
hesitação. O som não espera, nem pensa antes de sair. Não há me-
ditação. Um movimento segue o outro sem que a mente consciente-
mente o interrompa. Se estais perturbados ou se reflectis sobre o que
convém fazer quando vedes o adversário preparar-se para vos matar,
estais a dar-lhe o lugar, isto é, estais a oferecer-lhe uma boa oportu-
ni-dade para ele desferir um golpe fatal. Que a vossa defesa siga o
ataque sem um momento de interrupção e não haverá dois movi-
mentos separados chamados ataque e defesa. O carácter imediato
da vossa acção levará inevitavelmente à derrota do vosso adversário
por ele próprio. Tal como um barco deslizando docemente sobre os
rápidos, no Zen e no Budo, um espírito que não hesite, nem pare,
nem se interponha, é precioso.
Referimo-nos muitas vezes no Zen ao relâmpago ou às faís-
cas que brotam do choque de dois sílex. Se entendermos isto no sen-
tido de rapidez, cometemos um grande erro. A ideia deve ser a da
instantaneidade da acção, a de um movimento ininterrupto de ener-
gia vital. Sempre que dais lugar à interrupção, num sector que não
está em relação vital com a circunstância, é certo e seguro que per-
deis a vossa própria postura.
Isto não significa, bem entendido, que desejeis realizar as coi-
sas rapidamente ou no mais curto tempo possível. Se tiverdes em vós
tal desejo, a sua própria presença constituiria uma interrupção.43
D. T. Suzuki comenta:
Esta via de não-interrupção, que se diz ser necessária ao do-
mínio da Arte do Sabre, é uma via de não-esforço ou de não-desejo
(…) Do ponto de vista da Arte, é uma arte de não arte. Os confucio-
nistas diriam: ‘Que diz o Céu? Que diz a Terra? Mas as estações vão
e vêm e todas as coisas crescem’. Os adeptos de Lao-Tsé (diriam): “É
o princípio de não-acção que move todas as coisas”. Ou ainda: “Os
raios giram, simplesmente porque o eixo não mexe”. Todas estas ob-
servações tendem a mostrar que o centro de gravidade da vida, em
todas as suas manifestações, sejam elas artísticas, poéticas, religiosas
ou dramáticas e desenrolem-se numa existência tranquila de estudo
ou de intensa actividade, permanece imutável. E, quando o consegui-
mos compreender, obtemos um estado de realização do Eu que se
exprime de uma maneira perfeita na vida e na acção.44
.2 Miyamoto Musashi
(1584-1646)
Os textos de Miyamoto Musashi que chegaram até aos nos-
sos dias dão-nos uma ideia aproximada, uma representação do que
poderia significar esta Via que, por definição e uma vez mais, só na
prática e no total empenhamento de si ganha verdadeiro sentido.
XX
107
do Fogo trata da Energia; e O Escrito do Céu (ou Escrito do Vazio) abor-
da a meditação45. Todos estes temas foram frequentemente reto-ma-
dos nos mesmos Kakemono.
Penso que seria interessante extrair algumas reflexões que con-
densam o seu pensamento.
A ideia das duas mãos
Manter o sabre com as duas mãos não é o elemento funda-
mental da Arte do Sabre. Ao pegar em dois Sabres, o objectivo é apren-
der a servirmo-nos de um Sabre com uma única mão. Ao início, toda
a gente tem enorme dificuldade em utilizar o Sabre com uma só mão,
porque ele é muito pesado. Mas à força de treino, consolidado pela
Via, torna-se mais fácil. O mesmo acontece com o tiro ao arco, ou com
outras armas...46
A ideia da maneira de agarrar o Sabre
Agarra-se o Sabre, mantendo o polegar e o indicador com le-
veza; o dedo médio não deve estar nem apertado nem relaxado; o de-
do anular e o mindinho devem estar, esses sim, bem apertados. É ne-
fasto haver um vazio no interior da mão47. É preciso agarrar o Sabre
com o espírito de cortar o adversário em dois. Quando rachamos o
adversário, a forma da mão não muda. Quando desviamos um golpe,
quando nos apoiamos no Sabre do adversário ou quando o bloquea-
mos, só o polegar e o indicador se deslocam ligeiramente...48
O movimento do Sabre
Quem tiver assimilado bem o movimento do Sabre acabará
por conseguir servir-se do Sabre apenas com dois dedos. Se se quer
deslocar o Sabre muito rapidamente, sai-se da regra e depara-se com
dificuldades. O Sabre deve ser movido calma e correctamente. Quando
se utiliza o Sabre tão depressa quanto um leque ou quanto um tantô
(punhal), não é possível atravessar um homem. Quando se golpeia de
Em Maio de 1995, ocorreu em Inglaterra um facto histórico
que poucos especialistas de Budo conhecem.
A Dai Nippon Butoku Kai organizou então um encontro pou-
co divulgado. Esta associação, criada em 1895, sediada em Kyoto,
herdeira do Butoku Den (criado no século IX), agrupa e supervisiona,
actual-mente, as Artes Marciais japonesas. Tem como presidente o
príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador.
A cerimónia, na qual participou uma delegação portuguesa,
foi dirigida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi, presidente
da Divisão Internacional da Dai Nippon. O Mestre Hamada executou
um Kata muito antigo e examinou candidatos de várias disciplinas a
diferentes graduações Dan. Propôs, pela primeira vez, representantes
mundiais para dirigir os ramos nacionais da Dai Nippon Butoku Kai.
As graduações e a titularidade das representações foram, mais tarde,
ratificadas pelo Conselho de Hanshi, em Kyoto.
Mas voltando à cerimónia, aquela decorreu perante o
"Bokken" de Miyamoto Musashi, considerado tesouro nacional.
Miyamoto Musashi, aos 50 anos, tomou consciência de que
a Arte do Sabre era verdadeiramente um "Do". Poeta e excelente ca-
lígrafo, fundou um dojo, cujo ensino original foi a utilização simul-tâ-
nea de dois sabres, Nitô-ryû, um grande e um pequeno. Os seus due-
los tornaram-se rapidamente conhecidos em todo o Japão. A fim de
aperfeiçoar a sua arte, passou uma grande parte da vida a viajar, reen-
contrando pelo caminho numerosos discípulos. Aos 60 anos, escre-
veu o seu ensino sob o título Gorin no sho (Escritos das Cinco Rodas),
formados por cinco Kakemono (ou rolos manuscritos).
O primeiro, O Escrito da Terra, apresenta o sistema geral da
sua escola; depois, O Escrito da Água descreve sobretudo as técnicas;
O Escrito do Vento aborda a estratégia das diferentes escolas; O Escrito
XX
108
alto a baixo ou na horizontal, o Sabre deve ser conduzido segundo a
regra, os braços desenhando um movimento amplo.49
Podemos, aqui, abrir um parêntese a respeito do Aiki Do.
Muitas vezes vemos praticantes no tapete que utilizam a "ve-
locidade" sem ter assimilado a verdadeira profundidade do movi-
mento. Portanto, os seus Té-Katana50, para usar a expressão do meu
Mestre Nakakura, são como farinha.
Antes de passarmos a outros escritos, seria útil explicar aos
leitores ocidentais a significação japonesa de algumas noções.
Hyoshi
O Hyoshi é o espírito que se encontra em todas as coisas, de
uma simples pedra à imensidade das estrelas.
Segundo a tradição japonesa, é algo que se cultiva, que não
pode ser adquirido sem uma prática regular. Tal como o deslocar das
pedras pelo jardineiro, a fim de arranjar o jardim, exige uma prática
contínua. Do mesmo modo, o músico que toca regularmente o seu
instrumento possui o Hyoshi.
É também a integração das cadências que ligam ritmicamen-
te um ou vários sujeitos ao seu meio ambiente, no quadro de uma
actividade artística, que contribuirá assim para a harmonia do con-
junto.
Para Miyamoto Musashi, existe um Hyoshi particular para o
Sabre como para qualquer outra arma. No Sabre, o Hyoshi existe sob
uma forma concordante e uma forma discordante. É preciso saber
discernir entre o Hyoshi grande e pequeno, lento e rápido, o Hyoshi
do Ma (intervalo, distância). No combate, conhecendo o Hyoshi do
adversário, deve utilizar-se um Hyoshi com que ele nem sonhe, e ga-
nhar, fazendo surgir do vazio o Hyoshi da sabedoria.
Ni-No-Kochi-No-Hyoshi (o segundo Hyoshi da an-
ca)
Podemos compreender o Hyoshi em dois tempos...
Quando se está prestes a desencadear um ataque, caso o ad-
versário esboce logo um movimento de recuo ou de paragem, deve
fazer-se semblante de atacar; e caso o adversário reaja por uma ten-
são, devemos golpear um pouco mais tarde, aproveitando o momento
em que ele se distende.51
O movimento de Sekka (pedra e faísca)
A uma distância em que o meu Sabre e o do adversário mal
se tocam, é preciso bater extremamente forte, sem levantar o meu
sabre ... Para realizar esta técnica, é preciso ter força nas pernas, no
corpo e nas mãos. Com estas três forças, golpeia-se.52
De acordo com a descrição de Miyamoto Musashi, podemos
fazer uma comparação inesperada com o teatro. Com efeito, quan-
do um actor entra em cena, ele deve reunir todas as condições da ex-
pressão justa...
Ensino, muitas vezes, aos jovens actores, os rudimentos da
arte do Sabre. Através de uma simplicidade aparente, estas técnicas
são de uma grande profundidade.
A ideia do "corpo do Macaco mítico, Sukko"53
Antes de golpear o adversário, avança-se todo o corpo, co-
mo se não nos servíssemos dos braços. Quando se quer estender os
braços em direcção ao adversário, o corpo afasta-se instintivamente.
É por isso que é preciso avançar primeiro o corpo.54
Podemos ligar esta estratégia à posição de guarda – Waki
Kamae.
A ideia do "corpo de laca"
Tendo avançado para muito perto do adversário, a ideia é não
mais descolar, é permanecer colado, tal como a laca. Cola-se com for-
XX
109
máxima da Energia pura e imaterial.
Poderíamos fazer um estudo mais aprofundado sobre o som.
Mas não é esse o nosso tema nem o objecto das nossas reflexões.
Regressemos aos três sons do célebre Miyamoto Musashi, que
ele descreve assim:
Na guerra, utilizam-se três registos de voz. Um para o come-
ço, outro para o meio e outro para o fim. (...) No princípio do com-
bate, o som é exagerado; durante o combate ele é baixo e deve pa-
recer profundo; enfim, após a vitória, o som é forte e elevado. Num
combate a dois, a fim de fazer mover o adversário, faço semblante de
golpear, lançando um Kiai “Eï”, depois, executo a minha forma de ata-
que. Após ter golpeado o adversário, lanço o grito que anuncia a mi-
nha vitória. Não lanço o grito com força ao mesmo tempo que o meu
Sabre. Durante o combate grito baixo e ligeiramente a fim de me apoiar
nos Hyoshi.56
A propósito da velocidade
Creio que esta passagem é muito útil aos jovens praticantes
de Aiki Do.
Musashi critica a velocidade!
Este não é um caminho justo. O que se designa por rapidez é,
na realidade, não estar em dessintonia com o hyoshi de cada coisa.
Os gestos dos verdadeiros especialistas não parecem rápidos. Na dan-
ça ou no canto, quando um especialista e um principiante dançam ou
cantam em conjunto, o principiante tem sempre a sensação de estar
em atraso e o seu espírito torna-se apressado. O especialista que ba-
te ritmadamente o tambor, fá-lo calmamente, enquanto que o prin-
cipiante tem sempre a impressão de estar em atraso ... A rapidez é,
de facto, um desacordo com o Ma57. O gesto do verdadeiro especia-
lista antes parece lento, mas o Ma encontra-se preenchido e este nun-
ça a cabeça, o corpo, os pés, tudo. Habitualmente, no combate, tem-
se a tendência para avançar a cabeça e os pés, enquanto as ancas se
afastam. É preciso, pois, colar o corpo como a laca, sem nenhum in-
tervalo. É preciso reflectir nisto!55
Em Aiki Do, sabemos que os movimentos partem das ancas
(Koshi) que têm a sua origem ao nível da bacia. Os Mestres chineses
falam de "Rins". Quando a cabeça pende para a frente, perdemos o
nosso apoio "energético".
A ideia das três vozes (Kiai)
Aqui, Miyamoto Musashi fala do som. Ele utiliza três registos
de voz. Todos sabemos que o "grito" é uma primeira reacção peran-
te o perigo. O grito pode influenciar ou mesmo parar um ataque. Bem
conhecido das artes do combate tanto no Oriente como no Ocidente,
ele pode estar na origem do uso activo da voz humana como um ele-
mento maior do combate.
É preciso não esquecer que as legiões romanas e gregas co-
nheciam bem o efeito paralisante dos clamores que repentinamente
brotavam da profundeza dos bosques silenciosos.
Durante a última Guerra Mundial, os partisans do País Basco
tinham um grito bem estudado para passar à acção de combate.
Na Índia, ao contrário, não há grito (Kiai) como nas outras
Artes Marciais, como no Iai Do ou no Ken Do, grito que não apenas
"suspende", mas também liberta Energia (Ki).
Nas Artes Marciais indianas, o grito é silencioso! Ele vem das
profundezas do ser. O silêncio projecta uma energia subtil (bem co-
nhecida dos Yoguis) e o sopro liberta esta energia. Este grito emite
uma vibração que provoca um efeito extraordinário sobre o adversá-
rio, porque o silêncio (que é também uma força) está unido ao espí-
rito de que este é a raiz... Nestas técnicas indianas, há uma explosão
XX
110
ca parece apressado.58
A propósito do Céu ou do vazio
É no último capítulo dedicado ao Céu ou ao vazio que se en-
contra o essencial do ensino de Musashi.
O vazio não significa que nada exista ou que "nada" possa
ser objecto de conhecimento. O vazio não é igual a nada do que exis-
te. Ao conhecer o vazio, ficamos a conhecer, simultaneamente, tudo
o que existe e aquilo que não existe. O verdadeiro vazio não signifi-
ca apenas conhecer alguma coisa que é inexistente — isso é o espí-
rito transviado. Alguns, praticando o Sabre, sem conhecer o que é a
Via, falam do vazio quando chegam a um impasse. Isto não é o ver-
dadeiro vazio. O Bushi59 deve aprender a Via do Sabre de uma ma-
neira certa e treinar-se também nas outras Artes Marciais, aperfei-
çoando as suas acções, expulsando do seu espírito as perturbações,
não parando o treino nem um dia, nem uma hora; ele deve polir o
seu espírito, a sua vontade, a sua perspicácia e a sua capacidade de
observação. Afastada, assim, toda a nuvem de perturbação, o céu
torna-se claro. Eis onde se situa o verdadeiro vazio.60
Miyamoto Musashi também sustenta que aquele que não che-
ga a atingir o verdadeiro vazio se enganou no caminho...
.3 A arte de Ding
Os olhos abertos observam o trabalho Yang
Os olhos fechados contemplam o Yin secreto.
Chuang Tsé
Retrocedamos quase dois milénios para escutar a "arte de
Ding", pela pena de Chuang Tsé ou Zhuangzi, originário da cidade
de Mong, na actual província de Honan na China, e que terá vivido
cerca de 350 a 275 AC. Considerado um dos primeiros e mais signi-
ficativos intérpretes do Taoísmo, é conhecido sobretudo pela obra que
tem por título o seu próprio nome, Zhuangzi, também designada Nan-
hua cheching ("O Cânone Sagrado de Nan-hua").
Talhante na cozinha
ao serviço do Príncipe Wen Hui
Ding esquartejava um boi;
golpeando com a mão, pressionando com o ombro,
ajudando com o pé, empurrando com o joelho,
só sé ouvia huo! xiang!
o canto da faca
cortando as carnes em cadência,
quais os acordes da dança de Sanglin
ou as harmonias musicais de Jingshou.
— Oh! Ha! exclama o Príncipe. Excelente!
Que arte!
Pousando a sua faca, Ding, o talhante, respondeu:
— O vosso servo é um apaixonado do Tao
muito superior a todas as artes.
Quando começava a esquartejar os bois,
nada mais via do que o boi.
Após três anos,
já não via o boi como um bloco.
A minha abordagem é agora espiritual.
XX
111
nele fixo o meu olhar,
para ele avanço suavemente,
introduzo a faca com a máxima delicadeza,
e, de um golpe, a articulação desmembra-se
qual torrão atirado ao ar e que cai na terra.
Tiro a minha faca, endireito-me,
dirijo o meu olhar para as Quatro direcções,
repouso, satisfeito.
Limpo a faca, coloco-a no estojo.
— Excelente! exclama o Príncipe Wen Hui.
Acabo de aprender com o talhante de cozinha Ding
como manter a vida.61
Tão interessante quanto este texto de Chuang Tsé, cuja ver-
são francesa pertence a Claude Larre e Elisabeth Rochat de la Vallée,
é a leitura e os comentários que sobre ele tecem estes dois sinólogos.
Fazendo apelo a obras anteriores e posteriores à de Chuang Tsé, de-
sig-nadamente Tao Te King, de Lao Tsé, e Huainanzi, tratado eclécti-
co do século II AC, escrevem:
Aquele que sabe ver e encarar as coisas ou os seres tais como
eles são, no seu modo de ser, habita a realidade. Ele conhece as es-
truturas naturais que determinam as formas vivas e o seu destino.
Visionário, não lhe falharia uma via de acesso, uma passagem
no que aos olhos de um neófito aparece como uma massa compacta
de matéria, tendo forma e visibilidade, mas que, realmente, é com-
posta e sustentada por aquilo que não tem forma nem visibilidade: o
vazio. O vazio não é uma ausência. É o conjunto das comunicações e
dos movimentos de sopros; onde os sopros passam, passam facilmente
E já não vejo com os olhos.
A percepção sensível e o conhecimento mental
deram lugar ao impulso do espírito.
Partindo da organização natural,
começo o trabalho pelas grandes fissuras,
deslizo através das grandes cavidades,
aceito a realidade tal como ela se apresenta;
operando assim, jamais deparo com um tendão,
e por maioria de razão com um grande osso.
Um bom talhante, porque talha,
muda de faca todos os anos.
Os outros talhantes, porque despedaçam,
mudam-na todos os meses.
Eu, eu tenho esta faca há dezanove anos;
esquartejei milhares de bois,
e o seu gume permanece novo,
como se tivesse acabado de vir da pedra de amolar.
Cada articulação tem um espaço vazio,
o gume da faca não tem espessura.
Se se insere aquilo que não tem espessura
onde um vazio existe
o gume tem todo o espaço para se mover
com inteiro à vontade.
É assim que após dezanove anos,
o gume da minha faca
está novo como à saída da pedra de amolar.
Somente, cada vez que chego a um nó,
pondero a dificuldade.
Contenho-me e concentro-me,
XX
112
os Espíritos, se lhes não pesar o fardo de uma conduta desviante.
Onde passam Espíritos e sopros, passa aquilo que tem a mesma sub-
tileza: o gume da faca. Ding é um Mestre do vazio.
O gume não tem espessura: se se afia uma lâmina, o seu fio
é quase imperceptível. Mão e coração podem tornar espesso o gume
pela ideia grosseira que dele se tem, ou pela incapacidade de asse-
gurar sem solução de continuidade o encadeamento do coração, do
braço, da mão, da faca e das vias oferecidas na espessura das carnes
e no oco da articulação.
Com igual facilidade, o grande pintor empunha a brocha ou
o pequeno pincel de três pelos para transcrever o Universo em cada
uma das suas telas.
Informado pelos seus Espíritos, a imperceptível passagem tor-
na-se numa grande fissura e o ínfimo orifício numa grande cavidade.
A faca passa pelas vias naturais da organização viva. Ela desliza sem
raspar, fazendo ‘huo’ e ‘xiang’, não tocando as paredes, não se gas-
ta, encontrando sempre a enfiada das aberturas à sua frente, jamais
entra em choque onde não há acesso e, portanto, não se parte so-
bre um osso ou sobre um tendão inesperado.
Como a água, que é leve e se adapta, insinua-se por todo
o lado sem oferecer resistência e à qual nada pode resistir.
(…) A água é modelo de vida. A faca é uma metáfora da vi-
da pessoal.
Os talhantes inábeis gastam ou partem a sua faca, tal como
aqueles que, não sabendo estimar a vida, a dissipam ou a destroem.
As duas maneiras de interromper prematuramente a vida consistem
em delapidar a sua essência e os seus Espíritos, tanto por fricções con-
tínuas e conflitos, como por choques com o que se viu mal ou mal
calculou; ou então em se submeter a um esforço ou a uma tensão
tais, que, qual corda violentamente esticada, se rompe o Arco de Vida.
Os maus talhantes trabalham com demasiada força e apres-
sa-damente; agridem o boi; precipitam-se, sem se dar ao trabalho de
olhar ou escutar. As suas facas caem sobre um osso no qual se par-
tem. Actuam não importa como, sem respeitar as linhas de força das
estruturas naturais, por vezes, guiados exclusivamente pela oposição,
atraídos pela resistência. Talvez evitem os grandes escolhos e os gra-
ves erros, mas nunca os atritos que desgastam e fazem envelhecer
prematuramente. Eles embotam a sua faca; enfraquecem a acutilân-
cia do seu gume; perdem a clareza do seu espírito e a vitalidade do
seu corpo; inconscientes dos pequenos estragos, nem se preocupam
em encontrar-lhes remédio, nem em corrigir-se, tomando-se por sá-
bios quando não chocam com um grande osso. Eles não durarão.
Ding utiliza o mesmo cutelo desde há dezanove anos, sem es-
tragar o seu gume; a perfeição do seu gesto evita todo o choque, to-
do o esforço. A lâmina é a nossa vida: não a desgastemos, nem a for-
cemos; conduzamo-la para onde ela se dirige por si mesma; e não fa-
çamos contra nós próprios o que não ousaríamos fazer a outrem.
Evitemos os confrontos, os conflitos, as rivalidades e as provas de for-
ça. Para quê esgotar antes do seu fim uma vida para a qual não exis-
te uma pedra de amolar que a possa regenerar!
Ding sabe durar; ele tem a “Longa vida e a visão perene”.
Dezanove anos são disso símbolo. Se adicionarmos Dez, número do
homem na sua perfeição, a Nove, número dos sopros que formam
territórios organizados, obtém-se Dezanove. Dezanove exprime a per-
feição de actividade e de governo a partir de uma organização cen-
tralizada e de uma autoridade bem centrada62. Atribuindo ao núme-
ro Dez a totalidade de um ser composto, tomado na sua unidade, e
ao número Nove, a organização dos múltiplos elementos deste ser,
XX
113
mesmo um pai pode ensinar isto a um filho.
E concluem:
O vazio é a coisa mais bem partilhada e a mais necessária do
mundo. Nenhuma actividade do coração ou da mão pode efectuar-se
sem o vazio, sem o espaço livre. O cap. 11 de Lao Tsé repete-o por
três vezes. O mesmo se passa com o Céu, com a Terra e com o Homem.
O vazio é disponibilidade e possibilidade. O agir que ele permite é na-
tural; aquilo que se faz, faz-se por si e nada ofende. Mas é preciso
aceitar a submissão a este natural, a limpeza até ao osso, a desagre-
gação, para realmente manter a sua vida. Porquê? Porque o vazio é o
agir natural...63
Alonguei-me na transcrição do texto de Claude Larre, padre
jesuíta, professor no Instituto Ricci de Paris, e de Elizabeth Rochat de
la Vallée, autora de numerosos textos filosóficos, dada a sua enorme
riqueza.
Ele transmite-nos uma reflexão sobre a arte de viver, em ple-
no centro da Via (Do), curiosamente, muito próxima da que, vários sé-
culos depois, Miyamoto Musashi, veio a fazer.
A via do Budo não é como a da Vida? Quanto mais procura-
mos mantê-la de qualquer forma e a qualquer preço, mais a perde-
mos. Não seria melhor protegê-la com subtileza e respeito?
Neste estudo, a reflexão sobre o vazio não poderá em caso al-
gum evocar as diferentes correntes de pensamento relativas à "noção
do vazio".
Através do Budismo, a lógica do vazio defendeu diversos con-
ceitos. Enquanto na escola do pequeno Veículo (Hînayâna), o vazio
era um atributo só das pessoas, já na do grande Veículo (Mahâyâna)
o vazio era extensível a todas as coisas. Em todas as disputas orató-
obtém-se dezanove: na sua coesão de conjunto quase indistinta, to-
dos os elementos da composição são conhecidos; a decomposição
não impede a manutenção da Unidade.
Tudo o que deixa rasto mostra que ele não foi capaz de ser
subtil e não foi capaz de passar sem raspar, sem deixar um pouco de
si mesmo. O mau condutor deixa traços de tinta nas paredes da sua
garagem; os dirigentes medíocres multiplicam leis e decretos e can-
sam--se a explicá-los e a justificar-se.
“Os soberanos, no Tempo da Grande Virtude,
Da sua existência os súbditos mal se apercebiam…”
(Lao Tsé 17)
“Quem bem caminha não deixa rasto”
(Lao Tsé 27)
Recorrendo a uma outra obra, o Huainanzi, cap. II, que resu-
me a "arte de Ding", os dois sinólogos passam a citar:
Tu, o talhante, esquartejaste numa manhã nove bois e a tua
faca podia ainda rapar os pêlos.
Ding, o cozinheiro, serviu-se da sua faca durante dezanove
anos e o gume continuava ainda como se acabasse de ser aguçado.
Como era possível? É que eles moviam-se livremente nos in-
terstícios de numerosos vazios.
Se o compasso e o esquadro, a agulha e o fio são os instru-
mentos da habilidade, eles não constituem a sua razão de ser...
O bom artesão acciona sucessivamente as molas que os in-
fluxos libertam; entrincheirado no Yin, guiado por uma percepção
confusa, ele penetra a maravilha no Obscuro. Em total acordo com
os Espíritos, mão e coração movem-se livremente entre os incontá-
veis vazios, sem nunca serem parados pelos limites dos seres. Nem
XX
114
rias, os adeptos do Mahâyâna diziam aos membros do Hînayâna: "Para
vós, todas as coisas são como um tonel vazio. Para nós não há to-
neis".
Os praticantes ocidentais do Budo não estão sensibilizados à
mística de uma vacuidade espiritual. Frequentemente, confundem
"vazio" com o nada ou o espaço que nos rodeia. E, no entanto, nu-
merosas referências ensinam-nos o vazio. Ela, a vacuidade, não é es-
tranha ao pensamento do Ocidente. Símbolos, parábolas, místicos,
artistas tentam apoiar este objectivo.
A afinidade espiritual que liga os investigadores tanto orien-
tais como ocidentais faz com que todos eles saibam que o "vazio es-
piritual" não é o nada, nem a angústia. Falar do vazio é um desafio
àquilo que é objectivo, ao próprio bom senso das certezas quantas
vezes provisórias...
"Procurar uma imagem do vazio é um non-sens; mas a con-
ver-gência de várias imagens pode indicar o sentido, o bem fundado
de uma pesquisa que escapa assim ao absurdo."64
No Oriente, falar do inefável não é um acto contraditório. O
uso das imagens não é a ilustração do que já existe, do que é dado,
garantido, mas o meio de fazer aparecer o que é bem real e não dei-
xa de advir. Esta lógica poética revela a presença e a força irradiante
de uma realidade que permanece misteriosa porque a sua plenitude
é inesgotável.
As imagens do vazio sugerem ao espírito que esta vacuidade
é efectivamente plenitude.
.4 História chinesa da dinastia Song
(O encontro da “Arte do Movimento com o pincel do pintor”)
Um velho Mestre chinês, encontrando um jovem pintor na
floresta, perguntou-lhe:
— Sabeis pintar?
— Sois um velho camponês ignorante. Que sabeis de pintu-
ra?
— Como podeis conhecer o que trago no coração?, replica
o Mestre.
O jovem pintor sentiu-se envergonhado e surpreendido.
A primeira condição para pintar — diz o Mestre — é seguir
seis regras essenciais e estas mesmas regras aplicam-se também à
Arte do Sabre.
A primeira chama-se Chi65 (espírito ou energia vital); a segunda
Yun (correspondência ou harmonia); a terceira Si (pensamento ou pla-
no - desígnio); a quarta Sing (efeito de paisagem); a quinta Bi (pin-
cel); a sexta Mo (tinta).
O espírito permite ao pensamento seguir os movimentos do
pincel e fixar sem hesitação a forma das coisas.
Das formas correctas e perfeitas, resulta a harmonia. Destas
formas, o pensamento faz surgir o essencial.
A paisagem constrói-se observando a lei das estações. O pin-
cel deve seguir regras, permanecendo contudo livre e espontâneo no
seu movimento, de modo a que todas as coisas pareçam animadas e
movediças. A tinta pode ser carregada ou clara, espessa ou diluída
conforme a profundidade e a doçura das coisas; a cor deve ser de tal
modo natural que não pareça ser o resultado dos pincéis.
Um pintor perfeito, realizado, não faz nenhum esforço para
exprimir espontaneamente as variações da Natureza. Um pintor pro- XX
115
41. Chuang Tsé escreve-se, na norma francesa, Tchouang Tseu, na norma britânica,Chuang-tzu e, na transcrição oficial chinesa Pinyin, Zhuangzi. Sobre este filósofochinês taoísta, v. mais adiante.
42. Shûnya é um termo filosófico do sânscrito que designa a «vacuidade». Nós pode-ríamos traduzi-lo aqui por «espírito apropriado». Esta sabedoria adquire-se intuiti-vamente após uma prática do Budo rigorosa. A prática do Sabre «imutável» signifi-ca o alto grau de mobilidade em torno de um centro imutável.
43. Transcrito por D. T. Suzuki, Essais sur le bouddhisme Zen, Paris, Albin Michel, 1934,reed. 1972, pp. 362-363.
44. Idem, p. 363-364.
45. Miyamoto Musashi, Ecrits sur les cinq roues (Gorin no sho), Paris, Maisonneuve etLarose, 1977.
46. Miyamoto Musashi, op. cit.
47. Ou ainda, em Aiki Do, para aquele que agarra (Aité). Compreender como se agarraum punho exige, por vezes, numerosos anos. E o mesmo se passa, no Judo, com apega do kimono (Kumi Kata).
48. Miyamoto Musashi, op. cit.
49. Miyamoto Musashi, op. cit.
50. Em Té-Katana: Té significa mão; Katana - Sabre.
51. Miyamoto Musashi, op. cit.
52. Miyamoto Musashi, op. cit.
fundo penetra com o seu pensamento a Natureza e cada coisa que
existe no Céu e sobre a Terra.
O pincel entregue a si mesmo (sem pensamento) caracteriza
o pintor hábil. Ele diz que a realidade não é suficiente para ele. Mas
ele nada sabe do movimento espontâneo nem do Chi.
53. Sukko: macaco mítico com braços muito curtos. O mito do macaco pode resumir-secomo segue: trata-se de um mágico malicioso, que dissimula os seus poderes, oprimeiro dos quais é a inteligência, sob aspectos caricaturais.
54. Miyamoto Musashi, op. cit.
55. Miyamoto Musashi, op. cit.
56. Miyamoto Musashi, op. cit.
57. Neste caso, ao falar de Ma, trata-se do intervalo temporal numa cadência.
58. Miyamoto Musashi, op. cit.
59. Bushi significa Samurai.
60. Miyamoto Musashi, op. cit.
61. Tanto a epígrafe como o poema de Chuang Tsé são retirados de Claude Larre eElisabeth Rochat de la Vallée, De Vide en Vide. Zhuangzi – La conduite de da la vie,cit., p. 7 e pp. 37-39.
62. Em Zhuangzi, cap. 11, Huangdi, o Imperador Amarelo, governava há dezanoveanos quando se faz admoestar pelo eremita Guang Cheng, ao qual tinha ido pedirconselho. Após três meses de reflexão e de purificação, Huangdi regressa a GuangCheng a fim de receber o seu ensino (A nota é de Claude Larre e E. Rochat de laVallée).
63. Claude Larre e Elizabeth Rochat de la Vallée, op. cit., pp. 55-59.
64. Maurice Cocagnac, Le Zen, cit., p. 134.
65. Em japonês Ki.
XX
116
Ensinar a Arte do Movimento é coisa grave. Está-se menos na
zona do corpo do que no domínio do espírito.
O corpo do Mestre é um lugar de acto de conhecimento e sa-
bedoria, de contacto e de amor, de mistério.
O lugar da acção, do acto...
O Mestre da Arte do Movimento é um homem que ensina
através da sua acção, rodeado de praticantes que não são passivos,
mas observadores-executantes. Não são consumidores passivos, fa-
zem parte do jogo. Nele contam participar e dele tirar proveito. O
Mestre deve estabelecer com eles uma dupla relação de parceiro/ exe-
cutante na qual o seu corpo é o mediador privilegiado.
Ele vai tentar conduzi-los ao longo de uma viagem, através
de um caminho. É uma experiência delicada.
O Mestre faz propostas de movimentos que, em princípio,
não estão repertoriados no Go Kyo66, e que é preciso enunciar e des-
cre-ver, pelas palavras e pelo acto do corpo. Quanto mais avanço no
meu próprio trabalho, mais penso que a descrição oral é importante.
Ela é um meio de afastar uma reprodução mimética, mecâ-
nica e mecanicista do movimento, e um instrumento para orientar a
pesquisa no sentido de uma verdadeira criação, do domínio do uso
do movimen-to e no da tomada de consciência do corpo através do
movimento.
Mas o momento em que o enunciado passa pelo corpo não
é menos importante. É-o até talvez mais, no caso em que nos servi-
mos do enunciado oral, porque mais raro e mais esperado pelos pra-
ticantes.
Este momento é muito particular. Não se trata de executar
um movimento que os outros tentam imitar ou reproduzir por mi-
metismo. O Mestre não pede que se identifiquem com ele, nem que
XXI
117
XXIo m e s t r e , a r t e s ã o s e m o b j e c t o
a reflexão. Pode desfrutar-se a sua acção, o que nem sempre aconte-
ce num trabalho livre. Esta absorção na acção (que não é projecção
da acção em si mesma) está próxima da do artesão que roda o seu
pote, do pintor que pinta a sua tela e... que frequentemente força o
silêncio...
Mas o Mestre do Movimento, que fabrica ele? Nada. O mo-
vi-mento que ele indica não é feito para durar. Não é uma coreogra-
fia. É apenas uma efémera proposta que em breve desaparecerá. Tal
como o mineiro cavando a sua galeria, o poceiro furando o seu poço,
o Mestre como que escora o espaço, na impossibilidade do recome-
ço ou da expansão do movimento, o que, perante ataques fortes, tor-
na o gesto simultaneamente frágil e definitivo. Ele é um artesão sem
objecto. É uma consciência em acção.
O Mestre é um livro aberto, uma memória em total e contí-
nua transformação. Ajustamento, actualização, estaleiro.
O que ele contém não é definitivo, mas evolui com o trabalho
e com o tempo. A idade tem o seu peso nesta necessária adaptação
ao instante, fonte de riquezas e não de dificuldades. Livro aberto na pá-
gina de hoje. O importante é o que se vive e o que se diz no dia a dia.
Os anos de estudo, as práticas, as técnicas, as escolas, as ex-
periências marcaram este corpo, mas já não são senão vestígios.
Latentes, aparecem no momento próprio. Por vezes, vindo de muito
longe, emergem numa subtil conexão com coisas de outrora. Estes
conhecimentos antigos não se impõem a um Mestre que também não
os impõe aos outros. Eles não são o seu principal trunfo e apenas in-
tervêm como uma espécie de auxiliar de memória que corrobora a ex-
periência. O Mestre mostra mais experiência que saber. Sendo um prá-
tico, não impõe uma ciência, uma escola, um estilo. Antes propõe uma
prática.
reproduzam diante de si a sua imagem como num espelho, mas que
encontrem a sua própria identidade através de um movimento que
ele propõe, que ele enuncia com o seu próprio corpo e de que os pra-
ticantes vão tentar apropriar-se.
Um verdadeiro Mestre não se projecta, não se exibe.
Não é ele que vai em direcção aos outros, mas são os outros
que vêm a si. O olhar dos praticantes lêem o corpo do Mestre atra-
vés do "movimento" — o Mestre enuncia o movimento com o seu
corpo.
Os praticantes mais antigos como que o trespassam e lhe fil-
tram o movimento. É um olhar de "conciliação" com ele.
Em contrapartida, o Mestre fala em particular a cada um dos
que o rodeiam.
O Mestre não submete o seu movimento a um espartilho, ele
evolui em liberdade no espaço ilimitado (Aiki Nage).
Intimidade da presença. Para entrar neste jogo, é preciso atin-
gir um estado de fazer sem fazer, que é uma abstracção do Eu.
O Movimento que se enuncia e que o corpo descreve não é
passível de artifícios ou emendas; aparece em estado puro, sem es-
córias, nem romantismo. O bom executante no tatami tende a tor-
nar-se tecni-cista, a carregar o traço, a sobrecarregar o movimento.
O Mestre, ao contrário, joga no menos. Menos intenção, portanto,
menos tensão e menor exteriorização. O corpo do Mestre procede
por omissão, e, contudo, ele está ali na evidência do seu enunciado,
sem emoção, sem paixão.
Sobre o tatami, o praticante não saberá por si próprio se pra-
ticou bem ou mal. A memória da sua prática é frequentemente fal-
sa.
Em pedagogia, sabe-se o que se faz. Dá-se uma pausa para
XXI
118
No plano puramente físico, ao seu corpo apenas resta aquilo
que é estritamente necessário ao movimento profundo. Pouco a
pouco, tudo o que é superficial se desvanece. Fica qual planta poda-
da. O Mestre está em posição de aprender a cada instante. O seu en-
sino ensina-o.
É preciso muito abandono para atingir este estado. "Está-se
no autêntico"!
Esta transformação deve imperativamente desembaraçar-se
a todo o momento da fatalidade do "estático".
Um Mestre não se satisfaz com a acumulação do saber. Deve
entrar no caminho da metamorfose. Assim, permanece na constan-
te experiência da intuição, no seu sentido de conhecimento claro,
imediato, da verdade, sem auxílio do raciocínio. Não concebe a prio-
ri, inventa no momento.
Vai direito ao objectivo.
Picasso diria: "Ele não procura, encontra". É um corpo em es-
pírito.
A conexão, lugar de contacto e de amor
O que se ensina é menos importante do que aqueles a quem
se ensina. Prioridade, portanto, à relação com os outros. A presença
do nosso corpo pode tornar-se ambígua.
Um corpo dirige-se a um outro; a proximidade dos dois, o seu
contacto, deliberado ou fortuito, cria uma intimidade que importa
avaliar, medir, ajustar e explorar sabiamente.
O tocar, se tocar existe, é subtil. O mais profundo do homem
é a pele, diria um especialista, e quem nela toca corre o risco de atin-
gir o outro. Este tocar não é nem demasiado doce, nem demasiado
duro, nem adulador, nem reprovador. Não afaga com demasiada sua-
vidade, nem corrige com excessiva dureza. Os grandes Mestres do
Movimento dizem que quando se pousa a mão sobre alguém, não é
apenas o corpo que se toca, mas também a alma. O tocar guia e orien-
ta o movimento de um músculo, de uma articulação, de um segmento,
não é uma manipulação.
O contacto não é amoroso, nem terapêutico. Ele não deve
magoar, o que correria o risco de criar ainda mais tensão e provocar
bloqueios e rejeição. O Mestre não é um terapeuta. Não tem receitas
preconcebidas, poções mágicas, remédios miraculosos. Também não
é um treinador. O que ele propõe não é um training, palavra horrível,
porque veículo de uma velha herança desportiva totalmente inade-
quada à Arte do Movimento. O Mestre age na qualidade. Não apela
à boa vontade, à coragem, à resistência. Não é um domador. Não uti-
liza o chicote, nem o torrão de açúcar.
O seu modo é o do tacto, do contacto, da escuta objectiva.
A sua voz segue o diapasão do seu corpo. Usa mais a sugestão do
que a imposição. Apela às imagens que abrem as portas ao movi-
mento.
Corpo a corpo pacífico, sem complacência, nem excessivo ri-
gor. Trata-se de uma relação de confiança e respeito mútuos.
Aqui, estamos de novo no campo da intuição, mas no seu
sentido segundo, de faculdade de prever, adivinhar, prevenir, como
se evita um acidente. O corpo do Mestre, adivinho, detector dos pos-
síveis, é um corpo de presença e de atenção. Ele é travessia. Não se
dirige à emoção. Vai direito à consciência. Fala à escuta.
XXI
119
Aprende sem cessar consigo e com os outros. Um discípulo
dizia ao seu Mestre: "A minha arte encontra novas fontes de inspira-
ção, ao ver-vos exercer a vossa". E o Mestre, sorrindo, respondia-lhe:
"A minha arte encontra novas fontes de inspiração, ao ver-vos exer-
cer a vossa".
Ele é o aprendiz-sábio. Não tem o espírito do especialista,
centrado no ter e no saber. Chega a acontecer-lhe desejar possuir me-
nos para ser mais. A intuição condu-lo à essência do devir e à cons-
ciência do que é.
Arquitecto do vazio, escultor do invisível, faz vibrar a imobili-
dade, faz deslocar o espaço; ele é demiurgo. É o mensageiro do enig-
ma. O corpo do mestre é então a simples projecção do seu espírito. O
seu pensamento faz-se movimento e o seu movimento pensamento.
É um lugar de passagem, um não-lugar. E se se recorrer à imagem do
pedagogo, daquele que conduz a criança na escola, então ele é a crian-
ça, é o caminho, é a escola.
É o príncipe dos principiantes.
O corpo do Mestre, lugar de alquimia
poética e de metamorfose
Do movimento proposto, indicado, descrito, os movimentos
do Mestre sugerem o todo e as partes, a génese e o resultado, o den-
tro e o fora, as raízes e a flor. Ele dá o múltiplo no um. Revela o inte-
rior e o exterior, revela, como o mestre de Nô de que Zeami fala, a
beleza visível da flor — hana— e a beleza invisível ou secreta, con-
tida ou escondida, a beleza profunda — yûgen.
A beleza do Mestre, que emana da idade, é a beleza das coi-
sas vivas que chegam ao seu termo, a beleza tranquila da velhice, a
que no Japão se chama rogaku.
Por uma subtil combinação — yang/ying — ele possui ao mes-
mo tempo a força viril e o encanto feminino. Aproxima-se da graça.
O que irresistivelmente atrai neste corpo em acção: a certeza
de que quem o vê experimenta ser conduzido para um lugar primor-
dial e assiste ao nascer do movimento. Trata-se de criação. A intensi-
dade da solidão em que ele se move dá uma força incomensurável
ao seu acto; o movimento é então a única coisa que existe, como se
ele jogasse todo o seu ser.
Situa-se totalmente no instante.
Não recita um texto, nem elabora um texto para o dia de ama-
nhã. Pleno de passado, projectado para o futuro, o discurso que ex-
prime é fugaz, pertence por inteiro ao tempo do presente. É uma es-
pécie de meditação.
Assim, o corpo do Mestre do Movimento é um corpo de ac-
to, de pensamento, de amor e de mistério. É um mestre construtor,
mas de uma maestria singular. É um mestre construtor sem constru-
ção.66 No entanto, uma grande maioria de professores ensina movimentos repertoriados,
onde apenas é mudado o encadeamento...
XXI
120
Ai Ki
Ai significa Harmonia e Ki significa Energia. Poderíamos dizer que são
os elementos base de toda a arte do movimento.
Aiki Do
Termo japonês significando literalmente "Via de combate da divina
harmonia". É uma "Via marcial" fundada em 1936 por Morihei
Ueshiba, que se caracteriza pela sua enorme flexibilidade e pelo seu
carácter defensivo e não violento. Visa, acima de tudo, o desenvol-
vimento espiritual de quem o pratica.
Aiki Do de Conciliação
Aiki Do que privilegia a comunhão com o Universo.
Aiki Do de Consolidação
Aiki Do em que predomina a noção física desportiva e em que se es-
quecem os princípios espirituais da Arte.
Aikidoca
Praticante de Aiki Do com vários anos de experiência.
Aikikai
Mestre Morihei Ueshiba, após ter sido reconhecido pela Dai Nippon
Butoku Kai, começara a ensinar o Aikido e fundara o Dojo Kobukan
em 1931. Em finais dos anos 50, Kisshômaru Ueshiba, terceiro filho
de Morihei Ueshiba, cria a Aikikai, Dojo Honbu, com sede em Tóquio,
que sucede ao Dojo Kobukan. A Aikikai funciona também como cen-
tro da Federação Internacional do Aiki Do.
Aiki Nage
Projecção que obedece aos grandes princípios do Ai Ki, em que se
conjugam a harmonia (Ai) e a Energia (Ki).
Aité
Literalmente, é a mão que está perante mim. Na pedagogia do Aiki
Do, é utilizado para designar o parceiro.
Asana
São posturas do Yoga que devem ser executadas e mantidas com con-
forto e firmeza (sukha + stira).
g
121
g g l o s s á r i o
Chuang Tsé ou Zhuangzi
É uma das principais e mais antigas obras taoístas que tem por título
o nome do seu autor Chuang Tsé que viveu no Norte da China, no sé-
culo IV AC. Esta obra, também conhecida por Nan-hua chenching ou
Nan Houa Tchen King (O Cânone Sagrado de Nan Hua), compre-en-
dia, sob a dinastia Han, 52 capítulos. Hoje, só engloba 33. É formada
por histórias simbólicas, fábulas de fundo moral e debates contradi-
tórios. A ortografia do título Chuang Tsé é variável: Chuang Tsé,
Tchouang Tseu, Tchouang Tzu, ou ainda, na transcrição oficial chine-
sa, Pinyin, Zhuangzi. O mesmo acontece com o nome do autor.
Cinestesia
Vem do grego Kínesis. É o sentido pelo qual se percebem os movimen-
tos musculares, o peso e a posição dos membros.
Dai Nippon Butoku Kai
Associação criada em 1895 e sediada em Kyoto que, actualmente,
agrupa e supervisiona as artes marciais japonesas. Tem como presi-
dente o príncipe Higashi Fushimi, tio do actual imperador. A sua Divisão
Inter-nacional é presidida pelo Mestre Teshin Hamada, 9º Dan, Hanshi.
Dan
Grau, graduação.
De Ai
Espaço harmonioso do encontro em que tudo se decide.
Dharana
Termo sânscrito que significa fixar a mente num só ponto. Corresponde,
aproximadamente, a concentração.
Dharana-Yukta
Termo sânscrito que designa o processo pelo qual é dada uma direc-
ção precisa à mente, depois de esta se ter libertado de todas as dis-
tracções.
Bi
Termo chinês que designa pincel.
Bokken
Sabre de treino japonês feito de madeira dura.
Brahman
Termo sânscrito que significa sagrado. De forma simplificada, pode-
mos dizer que é o Deus supremo do hinduísmo primitivo, criador do
mundo, dos deuses e dos seres.
Buda
Termo sânscrito, que significa Sábio, Iluminado. Nome pelo qual fi-
cou conhecido, entre outros, o príncipe Siddhartha Gautama, que
criou uma nova religião e filosofia, o budismo. Originário do Norte da
Índia, viveu no século VI AC.
Budo
Bu significa marcial e Do via. Budo é a "Via marcial", cujo objectivo
é contribuir, pelo treino no combate com ou sem armas, para o de-
senvolvimento espiritual daqueles que o praticam.
Bushi
Palavra japonesa que significa guerreiro.
Chitta bhiumi
Modalidades da consciência ou planos mentais. Viyasa distingue cin-
co estados da consciência: Kshipta (dispersão); Mûdha (confusão);
Vikshipta (estabilidade imperfeita); Ekagra (fixação); Nirodha (imobi-
li-dade). Apenas os dois últimos pertencem ao Yoga, isto é, decorrem
da meditação (Dhyana).
g
122
Dharma
Termo sânscrito, significando, literalmente, aquele que suporta. A Lei
cósmica, a Ordem universal ou Ordem transcendental a que os ho-
mens estão sujeitos. Designa, por extensão, a doutrina do Buda, sen-
do Buda uma emanação do próprio Dharma.
Dhyana
(ver Zen)
Do
Termo japonês que designa a Via, o Caminho. Equivalente ao chinês
Tao ou Dao.
Dojo
Palavra japonesa significando literalmente "o lugar da Via". O dojo é
a sala onde se praticam as artes marciais.
Dojo Budokan de Portugal
Foi o primeiro Dojo fixo criado em Portugal por George Stobbaerts,
em Cascais, em 1971. Nele se ensinaram e praticaram a meditação
Zen e várias Artes Marciais, concretamente, Kendo, Iai Do e Aiki Do.
Ekagrata
Modalidade da consciência que conduz ao estado de concentração
(Dharana)
Escola Ten Chi International
Associação criada em 1992 por Georges Stobbaerts e por alguns dos
seus alunos espalhados pelo mundo. Sediada na Várzea de Sintra, é
aqui que se situa o seu principal Dojo. Nele se praticam, regularmen-
te, a meditação Zen, Yoga, Tenchi Tessen e Aiki Do. Durante os está-
gios internacionais, está aberto à caligrafia e ao estudo das vozes,
bem como à prática de outras artes marciais: Iai Do, Kendo e Jiu Jitsu.
Geiko
Tipo de prática em que a concentração desempenha um papel fun-
damental.
Go Kyo
Termo japonês que designa o conjunto das técnicas base do Aiki Do.
Gorin no Sho
Obra também conhecida por "Escritos das Cinco Rodas" ou "O Livro
dos Cinco Anéis", que condensa o ensino do Mestre de Sabre Miyamo-
to Musashi (1584-1646).
"Grande Veículo" (Mahâyâna)
Corrente budista, que remonta ao século I ou II DC, e que poderia
traduzir-se por "grande meio de progressão". Ela virá a ser dominante
no Tibete, Mongólia, China, Coreia, Japão e Vietname.
Haku
(ver Ko Kyu)
Hammi
Termo japonês que designa posição de guarda de perfil. Há duas po-
sições de guarda deste tipo: Migi Hammi (posição de guarda à direi-
ta) e Hidari Hammi (posição de guarda à esquerda).
Hana
Beleza visível.
Hara
Termo japonês que remete para a noção de centro do corpo, mas que
não faz obrigatoriamente referência à geometria.
Haragei
Expressão japonesa que vem do termo Hara. Corresponde a um es-
tado de maturidade em que a sensibilidade e a Energia têm a possi-
bilidade de se manifestar a qualquer momento.
g
123
Judo
À letra a "Via da flexibilidade". Arte marcial criada no fim do século
XIX por Jigoro Kano. Cedo se tornou modalidade desportiva de com-
petição.
Kaiten Nage
Projecção de Aiki Do em que a energia do ataque é absorvida por um
movimento de rotação horizontal, a que se segue um movimento de
rotação vertical que gera o desequilíbrio.
Kake
Execução, o momento da projecção.
Kakemono
Rolos manuscritos.
Kalaripayat
Arte marcial, originária do Sul da Índia, praticada nos meios campo-
neses. O termo vem de duas palavras utilizadas em malaiala, uma lín-
gua do Kerala, em que Kalari significa campo de batalha e payat prá-
tica. Os textos mais antigos que lhe foram consagrados encontram-se
escritos em tamoul primitivo, língua cujos primeiros traços remontam
ao século III. Mas o Kalaripayat é mais antigo, devendo existir há mais
de três mil anos. À semelhança da arte do Vajramukti, constitui a es-
sência das Artes Marciais actuais. Pensa-se que terá sido levada para
a China por Boddhidharma.
Kamae
Posição de guarda, que pode ser de três tipos: Jodan (guarda alta),
Chudan (guarda média), Gedan (guarda baixa). O Kamae é um esta-
do de espírito que envolve a Energia e a percepção.
Hikaï Tanden
(ver Seika Tanden)
Hyoshi
Termo japonês. Corresponde a algo que se cultiva e que só pode ser
adquirido através de uma prática constante e regular.
Huainanzi
Tratado ecléctico do século II AC, compilado por mestres taoístas na
corte do príncipe Liu An, da casa Han, rei de Huainan, de 164 a 123
AC. A obra retoma o pensamento de Lao Tsé e de Chuang Tsé e apre-
senta as teorias filosóficas e científicas da época Han.
Iai Do
Termo japonês significando literalmente a "Via do Sabre e da bainha".
Ikebana
Arte de arranjos florais.
Irimi Nage
Técnica de Aiki Do que envolve a noção de entrada no campo do par-
ceiro e a sua satelitização, num movimento que pode ser centrífugo
ou centrípeto.
Issoku
Ângulo morto.
Jô
Bastão de madeira de perto de um metro e meio.
Jo Ha Ku
Jo significa lento; Ha médio; e Ku rápido.
Ju no Geiko
Praticar com leveza.
g
124
Kanji
Caracteres sino-japoneses utilizados para transcrever a língua japo-
nesa. Enquanto que, em chinês, cada caracter representa uma pala-
vra ou uma ideia (ideograma), em japonês, estes caracteres foram uti-
lizados para representar quer uma ideia, quer um som da língua ja-
ponesa.
Karaté Do
A Via ou Arte da "mão vazia", originária de Okinawa. O Karaté tal
como hoje o conhecemos é essencialmente o produto de uma sínte-
se que teve lugar no século XVIII entre a arte do "Te" criada em
Okinawa, as artes chinesas do box do templo de Shaolin e de outros
estilos do Sul da China, que então eram praticados na província do
Fu-Kien.
Karateca
Praticante confirmado de Karaté.
Kata
Em japonês, significa "forma". É o conjunto de movimentos codifi-
cados através dos quais se estuda a essência de uma arte.
Katsu Hayabi
Estado de fusão com o Universo.
Ken Do
A "Via do Sabre". Forma moderna da esgrima japonesa, em que a
arma, o shinai, é um sabre de bambu com várias fendas longitudi-
nais.
Ken Jitsu
Termo japonês que significa literalmente a "Arte do Sabre".
Ki
Do chinês Chi. Energia, sopro, força vital ou princípio vital.
Kiai
Termo japonês que significa encontro do espírito. O Kiai é o nome do
grito lançado no momento em que se desfecha um golpe.
Ko Kyu
Termo japonês que designa respiração. Vem de Haku (Ko) que signi-
fica expirar e de Suu (Kyu) que significa inspirar.
Kokyu Ho
Exercício de respiração.
Kokyu Nage
Técnica de Aiki Do baseada na noção de respiração/movimento.
Koshi Nage
Projecção de anca.
Kubi Nage
Projecção pelo pescoço.
Kumi Kata
Pega do kimono no Judo.
Kyu Do
A "Via do Arco". Arte em que o objectivo do archeiro é fundir-se com
o alvo numa atitude inspirada pelo Zen. Distingue-se do Kyu Jutsu,
que é essencialmente uma arte de combate.
Ma
Intervalo, distância espacial. Numa cadência, também pode designar
intervalo temporal.
Makyo
Termo japonês que significa, literalmente, fenómenos demoníacos. É
o conjunto de sensações ilusórias de toda a espécie que podem ma-
ni-festar-se durante a prática do Zazen.
Mo
g
125
É na Índia a ciência da respiração.
Randori
Treino livre.
Rogaku
Beleza tranquila da velhice.
Ryo Te Dori
Pega dos dois pulsos.
Sabaki
Esquivar, rodar.
Sabre
O Sabre, para os japoneses, tal como a espada para os cavaleiros oci-
dentais, era o símbolo de discernimento e de lealdade. O Samurai ti-
nha dois sabres: um mais longo, o Katana, de 60 a 100 centímetros;
e outro mais curto, Shotô ou Wakizashi, com 30 a 60 centímetros.
Desde tempos antigos, o gume (Hamon), o punho (Tsuka), a protec-
ção do punho (Tsuba) foram sendo objecto de cuidados especiais e re-
quintados que transformaram o Sabre numa obra de arte. Inicialmente,
instrumento de morte, tornou-se no símbolo de protecção da vida. No
Japão, há três elementos preciosos – o Espelho (Sol), a Jóia (Lua) e o
Sabre (Relâmpago) – que são sagrados e venerados. De um ponto de
vista simbólico, o Sabre passou a ser um meio de concentração e de
suporte à meditação, um instrumento de contemplação e dos "exer-
cícios paradoxais" (Kôan), uma fonte de procura interior. A posse de
um Sabre (a não confundir com o Iaito, cópia de um Sabre real utili-
zado na aprendizagem do Iai Do) é um verdadeiro privilégio e supõe,
para o praticante das Artes Marciais, um elevado nível na ciência do
seu manejo.
Sankaku Tai
Termo chinês que designa tinta.
Naginata
Alabarda.
Ni Kyo
É uma técnica de imobilização do Aiki Do, que incide sobre as arti-
culações do pulso, cotovelo e ombro.
Nitô Ryu
Escola dos dois Sabres, um grande e um pequeno, criada por Miyamoto
Musashi (1584-1646).
Nô
Abreviação de "Sarugaku no Nô", forma aristocrática de teatro can-
tado e dançado, de influência budista e xintoísta.
Omoté/Ura
São duas maneiras diferentes mas complementares de executar al-
gumas técnicas em Aiki Do. Omoté corresponde à fachada, ao que é
visível e mais imediato. Ura, ao invisível ou ao que permanece escon-
dido e na sombra. De forma simplificada, poderíamos dizer que uma
técnica em Omoté é realizada pela frente do parceiro. Uma técnica
em Ura é executada pelo exterior ou por detrás do parceiro.
"Pequeno Veículo" (Hînayâna)
Corrente budista mais rigorosa, também intitulada Theravâda, ou a
"via dos antigos", e conhecida pelo termo pejorativo Hînayâna. Ela
implantou-se sobretudo na Ásia do Sul e Sueste (Sri Lanka, Birmânia,
Tailândia, Cambodja e Laos).
Prajnâ
Termo que no Yoga designa a intuição que capta ao mesmo tempo
a totalidade e a individualidade das coisas.
Pranayama
g
126
Triângulo recto que se forma quando, a partir da posição de Shizentai,
se avança um dos pés.
Sankaku Tobi
São, no Karaté, golpes com os pés sem pontos de apoio. A sua exe-
cução só se consegue através de uma ciência da marcha e de uma sá-
bia deslocação do peso do corpo. Ela exige descontracção e um gran-
de controlo da respiração. É uma técnica difícil, porque se bate si-
multaneamente com os pés e as mãos no mesmo salto. Flexibilidade
e concentração perfeita tornam-se indispensáveis.
San Kyo
Técnica de imobilização do Aiki Do, que consiste na torção do pulso
num movimento de espiral em direcção ao ombro.
Satori
Palavra japonesa que significa iluminação, revelação.
Satsang
Reuniões que investigadores espirituais e adeptos do Yoga realizam
a fim de escutar o ensino de um Mestre.
Seika Tanden
Termo japonês, correspondente ao chinês Chi Haï. É o centro de gra-
vidade situado entre a terceira e quinta vértebras lombares da colu-
na vertebral ou cerca de 3 cm. abaixo do umbigo, ponto do qual sur-
ge a nossa Energia.
Sekka
Literalmente, pedra e faísca. Termo empregue por Miyamoto Musashi
para designar o espírito e a técnica de um dos seus golpes de Sabre.
Sen no Sen
Previsão e antecipação da acção do adversário.
Shin – Ghi – Tai
Princípios que devem nortear a prática de uma arte e que significam,
respectivamente, espírito, técnica e corpo. A aquisição do Shin é a
mais longa.
Shio Nage
Projecção do Aiki Do, proveniente da Arte do Sabre, que envolve um
movimento de rotação do corpo e é executada nas quatro direcções.
Shité
Aquele que faz, que tem a iniciativa.
Shizentai
É a postura correcta em pé, natural, em que as pernas se encontram
afastadas a uma distância semelhante à da dos ombros e em que os
músculos estão totalmente relaxados.
Shûnya
Termo filosófico do sânscrito que designa a vacuidade.
Si
Termo chinês que significa pensamento, plano, desígnio.
Sing
Termo chinês que designa efeito de paisagem.
Sukko
Macaco mítico com braços muito curtos. Na mitologia japonesa, tra-
ta--se de um mágico malicioso que, sob aspectos caricaturais, dissi-
mula os seu poderes, o primeiro dos quais é a inteligência.
Tada Ima
Significa apenas agora.
Tai Sabaki
Rotação que se faz lateralmente à distância do raio de acção dos bra-
ços do parceiro ou que se executa para nos colocarmos atrás do par-
ceiro, mas sem que este nos possa atingir. A um primeiro nível, é a
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127
bastão ou o Sabre.
Uchikomi
Repetição de um mesmo movimento.
Waki Kamae
Posição de guarda lateral.
Yin/Yang
Yin significa literalmente a sombra. Yang significa literalmente a luz
do sol. É a fórmula de todas as alternâncias que constituem o Cosmos
e a nossa própria existência. São os princípios fundamentais e com-
plementares do Universo.
Yoga
O termo vem de "jug" que significa segurar, ligar, manter sob o jugo.
O Yoga é a disciplina que tem como finalidade dominar os diversos
elementos da personalidade. É uma das seis visões do mundo ou sis-
temas filosóficos (darshana) tradicionais da Índia.
Yoga Nidra
É uma escuta total (escuta do som).
Yon Kyo
Técnica de imobilização no Aiki Do, que envolve a pressão dolorosa
sobre o nervo radial.
Yûgen
Beleza invisível, secreta, contida, escondida, profunda.
Yun
Termo chinês que designa correspondência ou harmonia.
Zanshin
Estado de vigilância constante e contínua.
Zen
Termo japonês do sânscrito dhyana, através do chinês Ch’an. Escola
aprendizagem da espiral.
Tantô
Punhal de madeira.
Tao
Termo chinês de múltiplas significações. Princípio e Via de salvação,
princípio regulador do Universo. Segundo Marcel Granet, no fundo
de todas as concepções do Tao, encontram-se as noções de Ordem,
Totalidade, Responsabilidade, Eficácia. Na versão chinesa do 4º Evan-
gelho (S. João), os missionários traduziram: "No princípio era o Tao e
o Tao era com Deus e Deus era Tao". Aqui, Tao é o Verbo, o Logos.
Tao Te King
Obra fundadora do Taoísmo, cujo título em Pinyin é Daode Jing e que
em português significa Livro da Via e da Virtude. Livro célebre e cita-
do desde o fim do século IV AC, é atribuído a Lao Tsé (literalmente,
O Velho Mestre), que tanto pode ser uma figura lendária, como um
personagem real. A obra é formada por uma sucessão de máximas e
passagens versificadas, que, aparentemente, se destinavam a servir
de temas de meditação. Marcel Granet confessa que este livro, "tra-
duzido e retraduzido, é precisamente intraduzível". Tem sido objec-
to de inúmeras edições nas mais díspares versões.
Tatami
Tapete com que é revestido o Dojo de algumas Artes Marciais.
Te Katana
Fazer da mão sabre.
Ten Chi Nage
Técnica de Aiki Do. Literalmente, projecção Céu – Terra.
Tsuki
Golpe directo e de frente que pode ser executado com o punho, o
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131
132
Após ter acendido a existência, é preciso a si voltar
e sondar a própria natureza, é preciso viver a vida,
tornar presente e permanente a consciência do ser.
Deveria existir em qualquer parte, um lugar
onde o desenvolvimento e progresso inte-
rior se fizessem na harmonia entre o corpo
e o espírito. Um lugar onde as artes se
reencontrassem, a fim de despertar as
consciências. Um lugar dedicado a criar re-
lações de fraternidade entre os homens
e a fazer prevalecer a paz no mundo.
Foi a partir desta utopia que Georges
Stobbaerts concebeu o Dojo Ten Chi (Céu-
Terra) na Várzea de Sintra. Em 1980, junta-
mente com alguns alunos, começou por plan-
tar árvores e outras plantas de numerosas es-
pécies, dispondo criteriosamente caminhos,
muros de pedra, lagos, pequenas cascatas, e
finalmente o pequeno e o grande dojo, trans-
formando, com enormes esforços, um terre-
no árido de vários hectares num espaço har-
mo-nioso, guiado pelas linhas de equilíbrio
que orientam os jardins orientais.
Um espaço coberto de 500m2 acolhe
cursos regulares e estágios internacionais de
aikido, yoga, zazen e tenchi tessen (a arte do
leque). Tendo em vista uma perspectiva inter-
disciplinar, decorrem também seminários de
formação de actores, caligrafia, exposições
de pintura e escultura, concertos e espectá-
cu-los de dança, bem como encontros de in-
vesti-gadores de diversas áreas do saber, on-
de um dos objectivos é unir a razão e a sen-
sibilidade. Este é um lugar de reflexão e de
prática que procura ser a união da milenária
filosofia oriental com o pensamento analíti-
co e posi-tivo do ocidente.
aiki do
g e o r g e s s t o b b a e r t s
Hanshi, 8º Dan Dai Nippon Butoku Kai (Kyoto, Japão)
Fundador do Aikido em Portugal
a p r o c u r a d a u n i d a d e