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. Alethes

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Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa Revisão: João Vítor Moreira. Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre O Moinho, de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1645/1648). Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre

The Three Trees (c. 1643), de Albrecht Dürer.

.

_____________________________________________

Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito Da UFJF. Vol. 06, N. 10. (Jan. a Abr. de 2016)

Juiz de Fora: DABC, 2016. Semestral. 1. Direito – Periódicos

ISSN 2177-4633

_____________________________________________

As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores

Esta publicação conta com o apoio do Diretório Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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O saber jurídico é um saber encarnado; tende a organizar operacionalmente a sociedade, tende a se tornar organização concreta da sociedade.. (Paolo Grossi, A Ordem Jurídica Medieval, p. 187)

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Conselho EditorialConselho EditorialConselho EditorialConselho Editorial Editores Chefes

Acadêmico João Vítor de Freitas Moreira (UFJF) Acadêmico Marcos Felipe Lopes de Almeida (UFJF) Editores Adjuntos Acadêmica Anna Flávia Aguilar (UFJF)

Acadêmico Arthur Barretto de Almeida Costa (UFMG) Acadêmico Aurélio Mendes (UFU) Acadêmico Bruno Silva (UFPB)

Acadêmica Elora Raad Fernandes (UFJF) Acadêmico Igor Ladeira dos Santos (UFJF)

Acadêmica Lorrayne Assis (UFJF) Acadêmico Rafael Carrano Lelis (UFJF) Acadêmica Giovana Figueiredo Peluso Lopes (UFJF) Acadêmica Maria Fernanda Campos Goretti de Carvalho (UFJF) Conselheiros

Dr. Alexandre Travessoni Gomes (UFMG) Dr. Andityas Soares de Moura Costa Matos (UFMG) Dr. Antônio Márcio da Cunha Guimarães (PUC-SP) Dr. Aziz Tuffi Saliba (UFMG) Ms. Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes (UFJF) Drª. Cláudia Toledo (UFJF) Doutorando Daniel Giotti (UFJF) Drª. Daniela de Freitas Marques (UFMG) Dr. Denis Franco Silva (UFJF) Drª. Elizabete Rosa de Mello (UFJF) Doutorando Geraldo Adriano Emery Pereira (UFV) Drª. Eliana Conceição Perini (UFJF) Doutoranda Éllen Rodrigues (UFJF) Drª. Fernanda Maria da Costa Vieira (UFJF) Mestranda Juliana Martins de Sá Muller (UERJ) Dr. Marcos Vinício Chein Feres (UFJF) Dr. Leandro Martins Zanitelli (UFMG) Doutoranda Nathane Fernandes da Silva (UFJF-GV) Dr. Noel Struchiner (PUC-RIO) Ms. Renato Chaves Ferreira (UFJF) Dr. Ricardo Sontag (UFMG) Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (UFMG) Mestrando Vitor Schettino Tresse (UERJ)

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SumárioSumárioSumárioSumário

Conselho Editorial | Editorial Board | 5

Sumário | Summary | 9

Editorial | Editorial | 13 Ensaio | Essay A Internacionalização do Ensino Superior por Meio da Mobilidade Estudantil: Diálogos entre o Brasil e a Europa | The Internationalization of Undergraduate Level Through Student Mobility: Dialogues Between Brazil and Europe | 19

Marcos Felipe Lopes de Almeida Artigos | Articles Mutação Constitucional: Parâmetros e Possibilidades | Constitutional Changes: Parameters and Possibilities | 27

André Augusto Giuriatto Ferraço A Aplicação dos Princípios Processuais Constitucionais: Um Meio Eficaz de Garantir uma Tutela Constitucional Efetiva | Application on Procedural Constitutional Law Principles: Na Effective Way to Ensure an Effective Constitutional Protection | 45

Felippe da Silva Afonso A Inconstitucionalidade da Redução da Maioridade Penal: Implicações para a População em Geral | The Unconstitutionality of the Reduction of Criminal Law Age: Implications for the General Population | 63

Graça Aretha Souza de Lira Análise Crítica sobre o Artigo 1829 do Código Civil Brasileiro e suas Diversas Interpretações | Critical Analysis Over de Article 1829 of the Brazilian Civil Code and its Diverse Interpretations | 81

Igor Ladeira dos Santos Seria o “Oversharenting” uma Violação aos Direitos à Imagem e à Privacidade da Criança? | Could the “Oversharenting” Practice be considered a Violation of the Rights to Privacy and the Image of the Child | 105

Karin Kelbert Turra A (In)consistência da Divisão Kantiana entre Deveres de Direito e Deveres de Virtude | The (In)consistency in Kant’s Division Between Duties of Justice and Duties of Virtue | 123

Lorena Soares Silva

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Entre o Direito e a Ficção: Uma Releitura do Fenômeno Jurídico na Perspectiva de Franz Kafka | Between Law and Fiction: A Reinterpretation of Legal Penomenon from the Perspective of Franz Kafka | 145

Lucas Silva Andrade Imunidade Tributária e a Possibilidade de sua Aplicação aos Livros Eletrônicos | Tax Immunity and the Possibility of its Application to E-Books |163 Bruno Felipe Barboza de Paiva Priscilla Karla Roseno Martins Entrevista | Interview | 181 Entrevista com o Prof. Marcílio Toscana Franca Filho | Interview with Professor Marcílio Toscana Franca Normas de Publicação | Publication Norms | 195

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MOREIRA, J.V.F., ALMEIDA, M. F. L. Editorial

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MOREIRA, J.V.F., ALMEIDA, M. F. L. Editorial

Alethes | 13

EEEEditorial ditorial ditorial ditorial

Com o passar do tempo conseguimos observar a grandiosidade de nosso trabalho.

Com esse nº 10 o Periódico Alethes não somente inaugura o 6º volume, como também tem a

certeza de que uma nova cultura no mundo jurídico surge. Nós alcançamos até então todas as

5 regiões brasileiras, com mais de 10 estados presentes em nossas edições. Somando todo esse

contingente, o Periódico Alethes publicou em sua existência um total de 100 artigos

científicos, 5 entrevistas e 3 ensaios. Obviamente, não se pode aqui elencar o argumento de

que nós estamos apreciando números em detrimentos dos seus conteúdos. Isso não é verdade.

A Alethes se pauta no pilar pedagógico e caminha junto ao empoderamento das alunas e dos

alunos de graduação que intentam publicar suas inquietações e pensamentos. Os números que

alcançamos expressam mais que uma simples análise qualitativa, pois deles podemos inferir

que algo está mudando numa conjuntura de “provas e títulos”. O imperativo de autoridade

que está inscrito em um pré-nome se encontra abalado por aqueles e aquelas que pensam,

estruturam e escrevem independentemente dele.

Por esses motivos, abrimos entusiasmados essa edição, pois encontraremos o

entrelaçamento interdisciplinar e como somos capazes de pensar o Direito fora do direito. Um

belo exemplo é seguinte passagem: “Portanto, torna-se indispensável no atual paradigma,

com as crescentes desigualdades sociais, com a crescente violência (institucionalizada ou

não), a retomada das discussões dos entre o direito e a ficção antigos. A ética não pode se

desvirtuar da política, visto que essa é realizada por seres humanos que podem deixar a sua

natureza (a natureza segundo Hobbes) sobressair no contato com o poder, e exercer a sua

autoridade como forma de dominação.[...] E Kafka nos mostra que quando estamos diante da

lei, haverá sempre essa figura da autoridade responsável por protegê-la, e se as vaidades e

arbitrariedades desta não corresponderem à finalidade da lei, a qualquer momento

poderemos ser vítimas de um poder inexorável e arbitrário vindo do Estado[...]”.1 Encontrar

tamanha sensibilidade confirma a inferência de que não estamos trabalhando somente pelos

números, que não fomentamos um “produtivismo” a todo custo, queremos é encontrar

conforto nos pensamentos do “outro generalizado” e reconhecermo-nos uns nos outros.

Encontrar na diversidade de instituições presentes nessa revista – UFMG, FDV, UFERSA,

UFJF, UFPB, PUC-MG – aponta que nossa luta pelo reconhecimento dos trabalhos das alunas

e alunos está se generalizado. 1 Citação retirada de ANDRADE, Lucas S. Entre o direito e a ficção:Uma releitura do fenômeno jurídico na perspectiva de Franz Kafka, ineditamente publicado no presente número.

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MOREIRA, J.V.F., ALMEIDA, M. F. L. Editorial

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Portanto, poder-se-á encontrar nas páginas que seguem um convite irrecusável de se

mergulhar num espaço onde nosso “estado de certezas” é colocado em riso com muito gosto.

Lorena Soares faz isso em seu trabalho “(in)consistência na distinção kantiana entre deveres

de direito e deveres de virtude”, assim como Bruno de Paiva e Priscilla Martins, distante de

algo clássico, apresentam um interpretação de um novo fenômeno no mercado literário

representado pelos e-books no trabalho “Imunidade tributária e a possibilidade de sua

aplicação aos livros eletrônicos”. Percebemos nesse trabalho que o conhecimento do universal

não ignora o particular, mas reconhece o particular nele contido, como a epígrafe de

Aristóteles sugere.2

Complementando, o número 10 apresenta uma entrevista com o Professor Marcílio

Toscano Franca Filho, que logo se aparelha conosco ao apresentar uma visão crítica sobre o

modo como a ciência é conduzida hoje, pois “de fato, nos últimos anos, se tem verificado a

valorização de um certo tipo de docente “cabeça-de-planilha” que domina com perfeição a

matemática dessas produções em série: quanto vale um artigo, quanto vale um livro, onde é

melhor publicar, em que congresso é mais vantajoso falar... É uma lástima, porque isso não

quer dizer uma ciência melhor, mais rigorosa e mais profunda.”. Acrescenta-se, ainda, uma

ampliação de nosso horizonte nas diferentes perspectivas de ensino a partir de uma

experiência que foi/está sendo vivenciada em um programa de intercâmbio. Deste modo, com

o texto “A internacionalização do ensino superior por meio da mobilidade estudantil:

Diálogos entre Brasil e Europa”, o Periódico Alethes rompe fronteiras e aborda criticamente

nosso tão sonhado “Direito”. Por fim, o que nos resta é desejar uma prazerosa leitura regrada

de grandes insights que possam trazer novos frutos e compositores a música sem fim que

redigimos.

João Vitor de Freitas Moreira Marcos Felipe Lopes de Almeida

Editores-Gerais da Alethes

2 “Portanto, quem possua a noção sem a experiência, e conheça o universal ignorando o particular nele contido, enganar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto de cura é, de preferência, o singular" (Aristóteles, Metafísica, livro I.)

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ALMEIDA, M.F.L. A internacionalização do ensino superior

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Ensaio

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ALMEIDA, M.F.L. A internacionalização do ensino superior

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A internacionalização do ensino superior por meio da mobilidade estudantil: Diálogos entre Brasil e Europa

The internationalization of undergraduate level through student mobility: dialogues between Brazil and Europe

Marcos Felipe Lopes de Almeida1

Resumo: A globalização estimulou a internacionalização do ensino superior, em virtude da

aproximação dos países. No entanto, a internacionalização realçou algumas questões normalmente invisíveis. No caso da mobilidade estudantil, é possível identificar as semelhanças entre os países que mais enviam estudantes e entre aqueles que mais recebem, bem como as diferenças entre esses dois grupos. Com relação aos aspectos acadêmico-pedagógicos, podem ser apontadas algumas distinções quando se compara o Brasil e a Europa, por exemplo, o sistema de créditos e a pesquisa científica.

Palavras-chave: Internacionalização. Ensino superior. Mobilidade estudantil.

Abstract:

The globalization stimulated the internationalization of the undergraduate level, due to the approach between countries. However, the internationalization highlighted some issues that are normally invisible. Regarding student mobility, it’s possible to identify the similarities between those countries that most send students and between those that most receive them, as well as differences between these two groups. Concerning the academic and pedagogical aspects, there are some distinctions when comparing Brazil and Europe, for example, the credit system and the scientific research.

Keywords: Internationalization. Undergraduate level. Student mobility.

1 Editor-geral do Periódico Alethes. Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, em período de intercâmbio acadêmico na Universidade de Lisboa, Portugal.

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Ensaio

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A globalização é responsável pela aproximação dos países, facilitando as relações

entre eles, desde a simples troca de informações até o fluxo de pessoas. No campo da

educação e da ciência, a globalização impulsionou o intercâmbio de conhecimento, então,

pode-se dizer que contribuiu para a internacionalização do ensino superior.

Segundo Fábio Contel e Manolita Lima (2007), existem 4 modalidades de

internacionalização: (1) consumo do serviço no exterior; (2) prestação do serviço no exterior;

(3) oferta transfronteiriça dos serviços; e (4) presença comercial. No âmbito deste trabalho,

será dado destaque à primeira opção, que representa a mobilidade estudantil com o intuito de

realizar estudos no exterior.

A partir disso, o presente ensaio apresentará dados estatísticos do fluxo de estudantes

de ensino superior e como isso reafirma a linha abissal que distingue a metrópole da colônia.

Ademais, serão elencadas as principais semelhanças e diferenças entre o Brasil e a Europa no

que tange às práticas acadêmico-pedagógicas.

1. A mobilidade estudantil

No Brasil, a realização de intercâmbios durante o ensino superior recebeu grande

impulso com o “Ciência sem fronteiras”, programa do governo federal. Porém, em geral, os

cursos das áreas de humanas e sociais aplicadas não foram contemplados pelo programa,

como é o caso do Direito. Então, a alternativa que possibilita a mobilidade estudantil nesses

cursos não-contemplados é a celebração de protocolos de cooperação entre as instituições de

ensino superior, as quais devem se articular com o fim de se projetar internacionalmente.

Por outro lado, na Europa, há o “Erasmus”, programa de intercâmbio já

institucionalizado, que permite a mobilidade estudantil dentro da União Europeia, em virtude

das estreitas relações entre os países-membros do bloco.

Em busca de um mapeamento da mobilidade internacional de estudantes, o Institute of

International Education (IIE) elabora anualmente o Project Atlas, que contém informações

como o número de estudantes em mobilidade, a comparação com os anos anteriores e os

principais destinos. Na Tabela 1 estão enumerados os principais destinos e o número de

estudantes recebidos, conforme a versão de 2015 (ano acadêmico 2014/2015) do Atlas2.

Tabela 1 – Países que mais receberam estudantes estrangeiros no ano acadêmico de 2014/2015.

País anfitrião Número de estudantes recebidos

2 Mais informações em: http://www.iie.org/Research-and-Publications/Project-Atlas.

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ALMEIDA, M.F.L. A internacionalização do ensino superior

Alethes | 21

Estados Unidos da América (EUA) 974.926

Reino Unido 493.570

China 377.054

Alemanha 301.350

França 298.902

Austrália 269.752

Canadá 268.659

Japão 139.185

Países Baixos 90.389

Nova Zelândia 46.659

Fonte: Institute of International Education, Project Atlas 2015.

Quanto ao Brasil, são apresentados apenas dados relacionados com os Estados Unidos,

já que o IIE é sediado nesse país.

No ano acadêmico de 2014/2015, constatou-se que 23.675 brasileiros estavam

estudando nos Estados Unidos, que geraram uma contribuição de 408 milhões de dólares para

a economia desse país. Calcula-se que o Brasil é o sexto país que mais envia estudantes para

os EUA.

Como pode ser percebido na tabela, com exceção da China, os principais destinos são

países integrantes do Norte global, cujo desenvolvimento já foi consolidado. Nesse sentido,

cabem as ideias de Boaventura de Sousa Santos (2007), que afirma a existência de uma linha

abissal. De um lado, temos a Metrópole, onde impera a lógica da regulação/emancipação,

contraposta à Colônia, onde vige o paradigma da apropriação/violência.

A mobilidade estudantil é capaz de deixar mais clara a presença da linha abissal,

inclusive, pode agravá-la, pois consolida o Norte global como o pólo da educação e da

ciência.

2. As práticas acadêmico-pedagógicas: Brasil-Europa

No cenário científico brasileiro, o monopólio de dizer a ciência está condicionado às

titulações, uma vez que as publicações científicas se limitam a divulgar apenas os trabalhos,

cujo autor ou cuja autora tem títulos. Com isso, os graduandos e as graduandas encontram

grandes entraves para participar. Nesse panorama, insere-se o Periódico Alethes, enquanto

iniciativa contra-hegemônica.

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Ensaio

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Todavia, no Brasil, é possível, apesar de ainda incipiente, encontrar alunas e alunos

em contato direto com a pesquisa científica, através da participação em grupos de pesquisa,

coordenados por um(a) professor(a) orientador(a).

Contrariamente, na Europa, o envolvimentos das(os) alunas(os) é mais restrito ainda.

A investigação científica é praticada apenas nos cursos de pós-graduação. Durante a

graduação, é dado maior enfoque ao ensino. Consequentemente, os(as) graduandos(as) não

têm a faculdade de publicar seus trabalhos.

Já no âmbito pedagógico, a metodologia de ensino adotada na Europa é a repartição da

disciplina em aulas teóricas e em práticas. Em um momento, são lecionados, geralmente por

um professor catedrático, os elementos teóricos do assunto. Posteriormente, são ministradas,

por um professor auxiliar, as noções práticas, através de resolução de casos práticos e

comentários de jurisprudência.

No Brasil, predominam as aulas teórico-práticas que, na verdade, se limitam

praticamente apenas à abordagem teórica do conteúdo, deixando a parte prática em segundo

plano.

Outra importante diferença é o sistema de contagem de carga horária das disciplinas.

A Declaração de Bolonha, de junho de 1999, define etapas e objetivos a serem alcançados

para a construção de um espaço europeu de ensino superior globalmente harmonizado. Assim,

consta como um dos objetivos o estabelecimento e a generalização de um sistema de créditos,

chamado de European Credit Transfer System (ECTS). Ao adotar o ECTS, o processo de

formação deixa de ser centrado na sala de aula, passando a ter foco na aprendizagem, visto

que leva em consideração as atividades externas à sala de aula exercidas pelos(as) estudantes.

Além disso, a padronização proporcionada pelo sistema facilita a mobilidade estudantil dentro

dos países da União Europeia e o aproveitamento dos estudos realizados fora da instituição de

origem.

Como já dito, o ECTS também considera os estudos externos à sala de aula. Por

exemplo, se uma disciplina tem 6 ECTS, significa que a sua carga horária semanal é de 6

horas, sendo 4 horas de aulas, subdivididas em 2h práticas e 2h teóricas. As duas horas

restantes são atribuídas ao estudo individual, preparação de projetos e para exames. Portanto,

o ECTS acompanha as tendências mais modernas no campo da educação, as quais enxergam

a(o) discente como a(o) protagonista do processo de aprendizado, cuja concretização não está

mais restrita aos espaços típicos de outrora.

3. Conclusão

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ALMEIDA, M.F.L. A internacionalização do ensino superior

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A globalização trouxe benefícios e facilidades para a sociedade em geral,

principalmente com relação à tecnologia e suas potencialidades. Porém, também agrava as

desigualdades sociais, pois colabora ainda mais com a concentração da riqueza em países

desenvolvidos, integrantes do Norte global.

É importante o intercâmbio cultural entre os países do Norte global e os do Sul, sendo

determinante a maneira como se lida com as diferenças.

No contexto do ensino superior, podem ser percebidos avanços e atrasos: quanto a

investigação científica, o Brasil está à frente, pois abre oportunidades ainda para a graduação;

porém, quando se trata da metodologia de ensino, remanesce um modelo retrógrado.

Portanto, é preciso conhecer as experiências educacionais inovadoras de outros países,

visando a autonomia do aluno e da aluna e a formação de um senso crítico. Uma educação

centrada na emancipação dota o indivíduo de instrumentos capazes de questionar a realidade,

assim como de conter e combater os malefícios advindos da globalização.

4. Referências bibliográficas CONTEL, Fábio Betioli; LIMA, Manolita Correia. Aspectos da internacionalização do ensino superior: origem e destino dos estudantes estrangeiros no mundo atual. INTERNEXT – Revista Eletrônica de Negócios Internacionais da ESPM, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 167-193, jul./dez. 2007. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Novos Estudos, n. 79, novembro de 2007.

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Ensaio

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FERRAÇO, A.A.G., Mutação Constitucional

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 27-44, jan./abr., 2016.

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FERRAÇO, A.A.G., Mutação Constitucional

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Mutação Constitucional: Parâmetros e Possibilidades Constitutional Changes: Parameters and Possibilities

André Augusto Giuriatto Ferraço1

Resumo: Junto aos mecanismos formais de modificação constitucional, o processo de adaptação

do texto constitucional à realidade social mutante tem sido amplamente utilizado. Entretanto, tal instituto carece de parâmetros para ocorrência frente ao ativismo judicial, não havendo no ordenamento jurídico brasileirogrande tratamento sobre quais limites tal fenômeno deva obedecer, face ao tímido enfrentamento doutrinário que o instituto apresenta. A técnica de pesquisa utilizada é a documentação indireta, por meio de pesquisas bibliográficas e da legislação. O método hipotético-dedutivo utilizado, de natureza qualitativa e vertente jurídico dogmática, tem como hipótese central que a mutação constitucional é um instrumento de modificação do enunciado normativo que ocorre no ordenamento brasileiro e este fenômeno deve acontecer de acordo com os parâmetros expostos no decorrer da obra e, sobretudo, pela observância ao postulado da razoabilidade.

Palavras-chave: Reforma constitucional. Mutação constitucional. Limites. Abstract Beside the constitutional review and constitutional amendment, the adapting process

of the Constitution to a changing social reality has been widely used. However, this institute lacks parameters for occurrence against judicial activism, once the Brazilian legal system do not have such analysis about what limits the phenomenon occurrence, due to the timid doctrinal confrontation that the institute presents. The technique used is the indirect documentation, through library research and legislation. The method used was the hypothetical-deductive, qualitative nature and dogmatic legal aspects, having as the central hypothesis that constitutional changes is a tool for changing the normative statement that occurs in the Brazilian legal system and this phenomenon should happen in accordance with the parameters set out in this paper and, above all, by observing the principle of reasonableness.

Keywords: Constitutional Reform. Constitutional change. Limits.

1Graduando do 9° período em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV e Técnico Legislativo Sênior na Assembleia Legislativa do Espírito Santo. Membro voluntário na AIESEC Vitória.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 27-44, jan./abr., 2016.

Alethes | 28

1. Introdução

Ao lado dos procedimentos de reforma constitucional o fenômeno de adaptação do

texto constitucional à realidade social mutante tem sido amplamente utilizado na prática

forense, muito embora não haja qualquer instrumento legitimador para a técnica

interpretativa, o que gera severas críticas a tal ativismo judicial.

Por tratar-se de um meio informal, tal instituto não possui limites procedimentais, de

modo que carece de parâmetros para a sua ocorrência. No ordenamento jurídico brasileiro, há

pouca análise metódica no tocante a quais limites tal fenômeno há de obedecer, devido ao

pequeno enfrentamento doutrinário que o instituto apresenta. De tal modo, necessário se faz

analisar os parâmetros dentro dos quais o fenômeno da mutação constitucional deve se pautar

em sua ocorrência para que sejam respeitadas as garantias constitucionais e a este seja

conferida legitimidade, sem que se incorra na prática judicial desmedida.

Entretanto, questiona-se nesse estudo a possibilidade de se impor limites precisos a

um fenômeno que visa a adaptação do enunciado constitucional à nuança social, vez que tais

limites encontram fundamento de legitimidade na própria sociedade cambiante.

Para que tais parâmetros sejam analisados, necessária se faz uma incursão à realidade

social cambiante, em contraponto com a ductilidade, rigidez e dinâmica que o tema da

mutação constitucional exsurge, por meio da técnica de documentação indireta, com base em

pesquisas bibliográficas e legislação, tendo como apoio o método hipotético-dedutivo

(MEZZAROBA e MONTEIRO, 2008, p. 68, 110), pela vertente jurídico-dogmática, uma vez

que se propõe como forma de suprir a carência de limites à mutaçãoa hipótese central de que

ofenômeno deva respeitar os parâmetros que assegurarem a manutenção da supremacia da

ordem constitucional vigente e, sobretudo, pela observância ao postulado da razoabilidade.

Inicialmente serão abordados os tipos, conceitos e a necessidade de ser dos

mecanismos formais de mudança do texto constitucional, para posteriormente tratarmos do

mecanismo informal e seus possíveis limites.

Contribuir na identificação e tratamento dos parâmetros impostos à mutação

constitucional é o objetivo principal deste estudo, para que então este fenômeno, aliado à

atuação judicial necessária ao suprimento de lacunas e omissões legislativas, assim como de

políticas públicas ausentes ou insuficientes, seja percebido como uma forma benéfica de

adaptação e atualização do texto constitucional, com base nos parâmetros hipotéticos

supracitados e obedecendo, em todos os momentos, ao postulado da razoabilidade.

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2. Mecanismos de mudança do texto constitucional

Um grande fator de discussões na sociedade jurídica refere-se à relação dialética

entre a norma e o contexto social, mais precisamente sobre o descompasso existente entre

eles.

Entende-se que a Constituição, para atingir legitimidade, deve manter relação de

congruência com a realidade social. Para que não permaneça estática e obsoleta, é necessário

que a Carta possua mecanismos que possibilitem sua adaptação às novas realidades do seio

social.

Nesse sentido, como expõe Bulos (1997, p. 3-6), as constituições podem ser

consideradas como organismos vivos com íntima ligação com o meio circundante, com os

avanços da ciência, da tecnologia, da economia, com as crenças e convicções morais e

religiosas, com os anseios e aspirações de toda população. Por assim dizer, a ordem

constitucional deve estar em consonância com os chamados fatores reais do poder.

Fatores reais de poder são forças sociais, políticas, econômicas, morais e religiosas

que atuam na comunidade e correspondem à lei social, o que nos remete a ideia de

Lassalle(1998, p. 32), para quem o texto constitucional que não se coadunar a tais fatores

reais não passará de uma "simples folha de papel", pois não haverá concretização no âmbito

social.

O Poder Constituinte Originário positivou mecanismos formais de mudança do texto

constitucional em face da necessidade de adequação das normas constitucionais à realidade

social. Tais mudanças se manifestam por meio da atuação do Poder Constituinte Derivado,

subordinado e condicionado a normas jurídicas impostas pelo poder originário que confere

legitimidade constitucional àquele.

Os meios formais de modificação da Constituição Federal de 1988 abarcam duas

modalidades, espécies do gênero reforma: a Revisão Constitucional e as Emendas à

Constituição. Quanto ao meio informal temos o que se chama de Mutações Constitucionais,

cujos limites são o objeto principal deste estudo que será mais bem analisado em outro tópico

específico.

Preliminarmente, para entender os mecanismos de modificação, é necessário destacar

uma das características da Constituição Federal de 1988, referente ao modo de edição e

estabilidade constitucional, que pode ser imutável, fixa, rígida ou flexível. Rígida é a carta

modificada formalmente por um procedimento lento e difícil, previsto especificamente na

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própria Constituição e as flexíveis como as que podem ser estabelecidas ou modificadas pelas

mesmas regras a que está submetida a legislação ordinária.

Vale ressaltar que o que caracteriza a rigidez de uma carta, como exposto por

Zandonade (2001, p.157), é o fato de haver maior proteção obstinada à manutenção da norma

constitucional, que é alterável, sim, mediante um processo especial, mais complexo do que o

previsto para a edição de normas infraconstitucionais, tal como previsto no ordenamento

jurídico brasileiro, podendo, deste modo, atribuir à Constituição de 1988 a característica de

rígida.

3. Procedimentos formais de reforma constitucional

Existem limites intrínsecos e extrínsecos, de forma e conteúdo, que norteiam a

competência do Poder Reformador instituído, quais sejam: limites formais, temporais,

circunstanciais e materiais.

As limitações formais ou procedimentais estão positivadas no art. 60, I, II, III, §§ 1°

a 3º da Constituição Federal. Tais limitações cerceiam a forma do exercício da competência

reformadora, ou seja, referem-se às disposições especiais que o legislador constituinte

estabeleceu para permitir a alteração da Constituição em determinado modo quanto à

iniciativa, ao número de turnos de votação, à maioria deliberativa e à promulgação.

Em regra, as constituições podem ser modificadas a qualquer tempo, bastando apenas

ambiente político estável e favorável. A limitação temporal consiste na existência de um

interregno de tempo durante o qual o texto constitucional não poderá sofrer modificações. Isto

ocorreu, como bem lembra Santos(2008, p.142), com a Constituição Imperial de 1824 que,

em seu art.174, proibiu qualquer tipo de reforma no interstício de seus quatro primeiros anos a

partir de sua outorga. Tal limitação justifica-se, de acordo com o entendimento de

Bonavides(2001, p.176) para “consolidar a ordem jurídica e política recém-estabelecida, cujas

instituições, ainda expostas à contestação, carecem de raiz na tradição ou de base no

assentimento dos governados”.

Contudo, segundo posicionamento doutrinário majoritário, a Constituição Federal de

1988 não estabeleceu tal limite. O constituinte brasileiro optou apenas por uma “limitação

assemelhada à temporal, já que proibiu que a matéria constante de proposta de emenda

rejeitada ou havida por prejudicada venha a ser objeto de nova proposta na mesma sessão

legislativa” (SANTOS, 2008, p.145).

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No que diz respeito às limitações circunstanciais à competência reformadora, o

constituinte pretende “evitar modificações na constituição em certas ocasiões anormais e

excepcionais do país, a fim de evitar-se perturbação na liberdade e independência dos órgãos

incumbidos da reforma”(MORAES, 2002, p.546).

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988, no art.60, § 1º, estabelece que o seu

texto não poderá ser emendado na vigência de estado de sítio, estado de defesa ou intervenção

federal ou quaisquer outras situações de crise institucional que cale a opinião pública ou

limite direitos individuais, bem como em face de ocupação territorial por tropas estrangeiras,

em virtude da pressão imposta por fatores relativos a conjuntura da sociedade a que ela

abrange.

Os limites materiais, por sua vez, preocupam-se com o objeto da reforma. No Brasil,

a limitação material foi inaugurada na Constituição de 1891. Tais limites possuem duas

acepções: explícitos (ou expressos) e implícitos (ou inerentes). Existem matérias

irreformáveis pela atuação da competência reformadora, obedecido ao expresso no texto

constitucional.

Na Constituição Federal Brasileira de 1988, os limites materiais expressos estão

declarados no art. 60, § 4º, consubstanciando o núcleo imodificável ou as disposições

constitucionais intangíveis, mais conhecidas como cláusulas pétreas, com isso não poderá ser

objeto de deliberação a proposta de “emenda com o objetivo de abolir a forma federativa de

Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e

garantias individuais” (BONAVIDES, 2001, p.148).

No entanto, vale ressaltar que é permitida a apresentação de emendas aditivas ou

modificativas dos institutos mencionados no §4° do art. 60 que irão conformar uma nova

feição à Constituição, desde que não tendam a extinção ou abolição de tais cláusulas.

Os limites materiais implícitos englobam a proibição de qualquer forma de alteração

ou supressão de certas normas ao longo do texto constitucional elevadas à condição de

inalteráveis, por serem manifestações dos princípios, do regime e da forma de governo

adotados pela constituição, que, contudo, são distintas daquelas protegidas pelos limites

materiais expressos.

Tais limitações, para Bonavides (2001, p.148), “são basicamente aquelas que se

referem à extensão da reforma, a modificação do processo mesmo de revisão e a uma eventual

substituição do poder constituinte derivado pelo poder constituinte originário”.

Vale ressaltar que essas limitações são inerentes à reforma constitucional, ou seja,

subsistem ainda que o texto silencie acerca da sua existência.

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Outras quatro categorias de normas constitucionais que estão implicitamente fora do

alcance da competência reformadora, são propostas por Silva (2009, p.68), a saber:

1. As relativas aos direitos fundamentais: diante do caráter supra estatal destes

direitos, o poder reformador tem obrigação de respeitá-los, não gozando da faculdade de

restringi-los, muito menos de aboli-los. Admite-se apenas reforma constitucional que venha

ampliá-los.

Insta salientar, como bem lembra Santos (2008, p.146), que a leitura do inciso IV do

§4° do artigo 60 da Carta Maior veda a abolição de direitos e garantias individuais, de modo

que, em uma análise restrita à letra do texto, não estariam protegidos os demais direitos e

deveres fundamentais, como os coletivos previstos no Capítulo I do título II da Constituição

brasileira e os sociais, econômicos, ambientais e culturais. De tal modo, a constituição negaria

a característica da Indivisibilidade dos Direitos Fundamentais, que não podem ser fracionados

em sua aplicação, são interdependentes e relacionam-se entre si, priorizando assim a esfera

dos Direitos Individuais em detrimento aos sociais.

De acordo com esta ótica, Ferreira Filho (1999, p. 97-98) nos ensina que:

Em primeiro lugar ao pé da letra, o texto, cuja óbvia intenção é proteger os direitos fundamentais, exclui da garantia os direitos sociais (e nem se fale dos direitos de solidariedade). Parece isto absurdo. Porque proteger uma espécie de direitos fundamentais mais do que outra? Assim, deve-se entender que o legislador disse menos do que queria e, portanto, os direitos sociais estão incluídos na proibição. Afinal, na interpretação – já ensinavam os romanos- há de prevalecer o espírito, não a letra.

2. As concernentes ao titular do Poder Constituinte: a competência reformadora é

estabelecida pelo próprio texto constitucional emanado do Poder Constituinte Originário,

sendo assim, o poder instituído não possui o direito de destituir um poder hierárquico, mesmo

não havendo proibição expressa neste sentido;

3. As referentes ao titular do Poder Reformador: a competência reformadora da

constituição não pode ser transferida ou delegada por ela mesma a outro órgão.

4. As relativas ao processo da própria emenda ou revisão constitucional: é

pressuposto de validade da reforma constitucional a observância restritiva do procedimento

prescrito na própria Constituição. Admitir atenuação do processo da reforma constitucional

implica a transformação de uma Constituição anteriormente rígida em flexível. Não obstante,

considera-se legítima a reforma constitucional que deseja dificultar o procedimento de

reforma.

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Merece destaque a limitação implícita à dupla revisão, que se materializa em dois

momentos: “Em um primeiro instante, a revisão incidiria sobre os dispositivos impeditivos da

revisão, de modo a alterar ou suprimir tais limites; em segundo instante a norma

constitucional, cuja alteração seria vedada, sofreria a alteração desejada”(SANTOS, 2008,

p.150).

3.1. Emenda constitucional

Trata-se de um instrumento normativo de procedimento formal de reforma parcial

aditiva, modificativa ou supressiva da Carta Magna, vez que tem como objeto de modificação

determinados pontos do texto constitucional, restrito a determinadas matérias estipuladas pelo

Poder Constituinte Originário, e que, uma vez aprovada, promulgada e publicada, passa a

situar e ter a mesma eficácia da Constituição.

Como preceitua José Afonso da Silva (2001, p. 62), a emenda constitucional

modifica pontos determinados, que o legislador não considerou de tão grande estabilidade

como outros, mas que possuem obstáculos e formalidades mais complexos que os exigidos

para o processo de modificação das leis ordinárias.

3.2. Revisão constitucional

Prevista no artigo 3° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a revisão é

o procedimento formal mais amplo da reforma constitucional. Caracteriza-se como "uma

alteração anexável, exigindo formalidades e processos mais lentos e dificultados que a

emenda, a fim de garantir uma suprema estabilidade do texto constitucional” (SILVA, 2001,

p. 62).

De acordo com o previsto pela Constituição em vigor, percebe-se que a única

possibilidade de revisão constitucional no ordenamento jurídico atual já foi realizada. Tal

revisão ocorreu “entre outubro de 1993 e maio de 1994. Após 79 sessões, o Congresso

Nacional aprovou seis tímidas Emendas Constitucionais de Revisão” (SANTOS, 2008,

p.150).

Desta forma, as reformas à Constituição Federal de 1988 só poderão ocorrer,

considerando os procedimentos formais, por meio de emendas ao seu texto.

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4. Procedimento informal de modificação constitucional

Ao contrário dos procedimentos estudados anteriormente, a modificação informal

não tem previsão expressa no texto constitucional, de modo que sobre a sua ocorrência não

há, obrigatoriamente, a incidência dos limites expressos por esse texto.

A constituição de determinada sociedade deve tentar se adaptar ao contexto social do

momento, visto que as sociedades, em geral, vivem em constante processo de auto

modificação. É o que se chama por “vicissitudes constitucionais”, de acordo com a linguagem

empregada por Jorge Miranda (2007, p. 389). Tal dialética entre direito e sociedade, segundo

Recásens (1965, p. 692), torna-se necessária devido ao fato de que, independente de ser um

conjunto de significações normativas, o direito é um fato social, é um conjunto de fenômenos

que se dão na realidade da vida social.

Grosso modo, “a Sociedade e o Direito se apresentam numa relação de causa e

efeito, ora a Sociedade determina o Direito e suas transformações, ora o Direito definindo

diretrizes da própria Sociedade, a partir de programas e planos” (FRANCISCO, 2003, p. 35).

Para que seja resguardada a segurança jurídica, a manutenção das instituições e o

respeito aos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos a constituição é dotada de certa

rigidez. Contudo, tal estabilidade não poderá ser confundida com a imutabilidade das normas

constitucionais, devido a necessária ductilidade constitucional que assegurará sua

legitimidade perante a sociedade, evitando, assim, a destruição da consciência da ordem

constitucional vigente, pois quando as normas se esquecem da sociedade, a sociedade se

levanta contra as normas (CRUET, s.d., passim).

Como ensina Canotilho (1993, p.147), o desenvolvimento constitucional é entendido

como o compromisso, pleno de sentido, entre a estabilidade e a dinâmica do direito

constitucional. Tendo em vista a vasta e complexa abertura ao tempo do direito constitucional

e do consequente desenvolvimento constitucional, as normas deverão ser abertas, de modo

que se possibilite a concretização renovada da mesma, conforme o câmbio de evolução

político-social.

Entretanto, esse processo de renovação se depara com a interpretação retrospectiva,

uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional, a qual procura interpretar o texto

de maneira a que ele não inove em nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível

com o antigo (BARROSO, 1999, p. 370).

Em face disso, as constituições sofrem processos reflexos ao seu texto por meio de

mudanças que, em curto prazo, atingem a substância do texto, sem modificar a literalidade e

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FERRAÇO, A.A.G., Mutação Constitucional

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conferem dinamismo à constituição, mesmo que rígida, em adequação às demandas emanadas

dos fatores reais de poder.

Apropriando-se das lições de Burdeau, Ferraz (1986, p.10 e 12) expõe que tais

mudanças informais

[...] operadas fora das modalidades organizadas de exercício do poder constituinte instituído ou derivado, justificam-se e têm fundamento jurídico: são, em realidade, obra ou manifestação de uma espécie inorganizada do Poder Constituinte, o chamado poder constituinte difuso.

Dessa forma, pode-se inferir que a Constituição deve permanecer em processo de

adaptação à realidade social, pois nenhum discurso, isoladamente, consegue dar conta da

realidade jurídica construída e ampliada constantemente. Diante de tais fatores podemos

justificar a necessidade da ocorrência de mutações informais à constituição.

4.1. Mutação constitucional

Não há doutrina assentada sobre a terminologia e conceito atribuído ao objeto desse

estudo.Para os fins pretendidos nesse estudo, atribuiremos ao fenômeno a terminologia

comumente empregada, qual seja, a mutação constitucional.

A mutação informal, pode ser entendida como um conjunto de alterações materiais

do texto constitucional produzidas pela atuação de um “poder constituinte difuso” que, como

bem expõe Bulos (1997, p. 171) apropriando-se da ótica de Burdeau, ocorre sem vulnerar o

enunciado linguístico da norma, atingindo tão somente o significado, o sentido ou o alcance

de suas disposições.

Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco

(2009, p.152) entendem que as mutações constitucionais

[...] são decorrentes – nisto residiria a sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.

Neste sentido, Hsü Dau-Lin considera a ocorrência de mutações em sentido material,

quando ocorre a transformação do sistema constitucional ou do seu significado, em prol da

manutenção da ordem estatal, e em sentido formal, quando a mudança volta-se contra o texto,

mas não ataca o sistema constitucional.

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O conceito de mutação constitucional em sentido material põe, necessariamente, uma negação a limites à mutação constitucional no sistema constitucional [omitido] nossa análise anterior mostra que o problema da mutação constitucional fundamenta seu significado, precisamente, no fato de que o sistema constitucional não pode desaconselhar uma mutação material (DAU-LIN, 1998, p. 177).

No que diz respeito à mutação em sentido formal,

[...] quando as normas positivas de uma constituição escrita já não guardam congruência com a situação real, quando surge uma diferença entre direito constitucional escrito e o efetivamente válido, então estamos ante uma mutação da constituição em sentido formal ou mutação de seu texto (DAU-LIN, 1998, p. 169).

Tratada como transição, processo ou mudança, mutação constitucional é a

terminologia comumente empregada para dar acepção à mudança difusa de algum dispositivo

constitucional vigente, por meio, por exemplo, da interpretação ou da prática, restrita ao

sentido do texto, sem que atinja a sua literalidade.

Mutações constitucionais são entendidas, portanto, como modificações implícitas e

não formais a constituição, por meio dos quais as disposições constitucionais se adaptam a

realidade, sem sofrer alteração alguma em seu texto, mas em seu conteúdo ou compreensão

(JELLINEK, 1991, p.7).

Pontua Jellinek (1991, p.482) ser inevitável que junto às constituições escritas e

rígidas se desenvolva um direito constitucional não escrito, nascendo assim, simultaneamente

aos princípios constitucionais formais, outros de índole material.

4.1.1. Limites da Mutação Constitucional

A doutrina é controversa quanto à existência de limitações de ordens explícitas ou

implícitas ao poder difuso, titular do processo de mutação constitucional. Bulos (1997, p.91),

por exemplo, não admite a incidência dos limites implícitos ao exercício da mutação

constitucional.

A única limitação que pode existir - mas de natureza subjetiva, e até mesmo, psicológica - seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior.

Já para Jellinek (1991, p.25), os limites da mutação constitucional confiam-se ao

arbítrio dos tribunais.

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Embora informal e necessária, a metamorfose do sentido do texto constitucional

carece de limites que conferem freios ao processo reformador que pretendem assegurar

valores de certeza que possibilitam a segurança jurídica, haja vista o fato de que tal mutação

não poderá gerar deformações ou subversões à supremacia e à força normativa da

constituição, pois a mesma tem natureza condicionada ao poder constituído, por ser expressão

derivada deste, e também encontrará limites e influências estranhas ao mundo jurídico que se

manifestam na comunidade à qual emana, devendo, portanto, razoável respeito ao mesmo.

O problema dos limites das mutações, conforme alerta Vecchi (2005, p.138-139),

ocorre quando tensão entre faticidade e normatividade põe em perigo a supremacia

constitucional. O autor observar que a alternativa seria converter a prática convencional da

mutação em norma ou negar o valor jurídico à mesma, a fim de que se assegure a legalidade

existente, muito embora, a mutação enquanto tal viesse a desaparecer.

No que se refere à busca pela normatização, Waldron (2003, p. 94) remete aos

realistas jurídicos, para os quais a lei não pode trazer estabilidade, já que sua interpretação é

permeada pelos problemas inerentes à linguagem e pelas particularidades dos intérpretes.

Ainda que controversa, a identificação dos limites implícitos não pode ser

considerada como um obstáculo intransponível, em razão da necessidade de se estabelecer

parâmetros de adequação para a ocorrência de tal fenômeno difuso, de modo que este

encontre harmonia com o ordenamento jurídico da Lei Maior, sob pena de se considerar a

mutação como inconstitucional.

A doutrina afirma, sem grandes contraposições, que a mutação encontra limites em

elementos que visam garantir a manutenção da supremacia da ordem constitucional vigente,

pois, sem as quais, estaria alterando-se o conteúdo basilar da Carta.

A observância a tais elementos se justificam, pois, quando os anseios sociais se

modificam a ponto de não encontrarem qualquer relação ou possibilidade de adaptação à

Carta Magna, não se pode falar em mutação constitucional, ao passo que esta atinge

dispositivos isolados da Carta, mas sim de se tirar do estado de latência o Poder Constituinte

Originário, pois quando a Constituição não tiver mais aplicabilidade inicia-se o momento de

abandono à folha que não se coaduna aos contornos dos fatores sociais, dos quais a mesma

extrai sua legitimação.

Tal fato se justifica, pois, conforme bem expõe Konrad Hesse (1998, p. 503),

a força normativa da constituição está condicionada por cada vontade atual dos participantes da vida constitucional, de realizar os conteúdos da constituição. Como a constituição, como toda a ordem jurídica, carece da atualização pela atividade humana, sua força normativa depende da disposição de considerar seus conteúdos

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como obrigatórios e da determinação de realizar esses conteúdos, também contra resistências.

De acordo com Vega (1999, p.214-215) quando a tensão entre facticidade e

normatividade converte-se social, politica e juridicamente, colocando em risco a própria

supremacia da constituição, o interprete terá que se respaldar, de um lado, no respeito à

Constituição, como expressão máxima da soberania nacional, e, de outro, na necessidade de

constante adaptação de seus princípios e cláusulas às exigências de paz social, da justiça e do

bem comum, de modo que, sem destruir totalmente nenhuma, possam coexistir as duas.

Merecem destaque, dessa forma, algumas limitações, construídas doutrinariamente e

ainda em formação, ao exercício da mutação constitucional, que visam assegurar, por

exemplo, o respeito à (i) supremacia da ordem constitucional, com base na observação à (ii)

elasticidade do texto constitucional, já que a ocorrência da mutação não altera diretamente a

letra da lei, mas suscita novo significado a esta (STRECK, 2004, p.122), que não podem ser

infinitos (CALLEJON, 1997, p.180-109); pela observância às (iii) clausulas pétreas

implícitas e explícitas; pelo respeito às (iv) súmulas vinculantesexpedidas pelo tribunal

constitucional (PEDRA, 2012, p. 164); pela (v) vedação ao retrocesso dos direitos e

garantias fundamentais.

No que diz respeito a estas limitações, merece destaque, sobretudo para fins deste

estudo, a discussão acerca do Postulado da Razoabilidade.

A visão de Bulos (1997, p. 87 e 92) acerca da impossibilidade de fixar limites

jurídicos claros e precisos para a mutação constitucional, encontra alicerce na própria ideia de

interesse comum, pois os fatores sociais oscilam constantemente, de modo que caberá ao

intérprete auferir qual é o interesse comum daquele dado momento, devido ao fato deste

interesse se modificar na mesma proporção que a sociedade. Conseguintemente, como

expõem Jellinek(1991, p.7), o fenômeno mutacional é involuntário e intencional, de modo que

se torna difícil, ou impossível, prever-se com exatidão a unanimidade dos casos de mutação

constitucional que a experiência possa apresentar.

No que diz respeito à interpretação e construção constitucionais, insta salientar que,

conforme expõe Silva (2000, p. 291), a interpretação judicial exerce o papel fundamental de

adaptação constitucional às exigências de novos conceitos da realidade social, desde que não

viole a Constituição Federal.

Pode-se auferir que a imposição de limites à mutação constitucional torna-se

controversa ao passo que se analisa o propósito do instituto informal. Como é possível impor

limites precisos a um fenômeno que visa a constante adaptação do enunciado em função da

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FERRAÇO, A.A.G., Mutação Constitucional

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nuança social, sendo que tais limites encontram fundamento de legitimidade na própria

sociedade cambiante?

Neste sentido, merece destaque o que diz respeito à Razoabilidade na forma de

postulado. Os postulados são condições essenciais que submetem a interpretação de qualquer

objeto cultural, destinando-se à compreensão em geral do Direito e estruturaram sua correta

aplicação (ÁVILA, 2008, p. 122). Tratam-se de normas metodológicas, que inserem os

critérios de aplicação de outras normas no plano do objeto de aplicação, ou seja, são normas

de aplicação de outras normas, não são princípios e nem regras, pois não buscam um fim e

não estabelecem condutas, apenas estabelecem diretrizes metódicas com aplicação constante e

estruturante.

Apesar de não abrangido pelo artigo 44 da Constituição Federal, o Princípio da

Razoabilidade busca conferir racionalidade ao ordenamento jurídico nacional, sendo

imperativa sua observância como postulado para o exercício de todas as funções do Estado,

vez que é possível auferi-lo em diversos dispositivos da Carta. Tal postulado visa coibir o

arbítrio do Estado sobre a sociedade, fato este que pode ocorrer tanto na execução da mutação

constitucional quanto na não aplicação da mesma quando se faz necessária e em

conformidade com o interesse da população, mas não há outro meio para atendê-lo.

A razoabilidade, como equidade, exige a demonstração da perspectiva de aplicação

da norma geral em virtude das particularidades do caso concreto, presumindo-se como

verdadeiros os acontecimentos que se pautam dentro da normalidade (ÁVILA, 2008, p. 152).

Ela exige a interpretação, com a finalidade de preservar a eficácia dos princípios envolvidos

no caso em questão (ÁVILA, 2008, p. 153), que em última análise, tendem à manutenção da

ordem constitucional. A razoabilidade “serve de instrumento metodológico para demonstrar

que a incidência da norma é condição necessária, mas não suficiente para sua aplicação”,

onde ela atua na interpretação das regras gerais como fruto do princípio da justiça (ÁVILA,

2008, p. 155).

Como congruência, a Razoabilidade “exige a harmonização das normas com as

condições externas de aplicação” (ÁVILA, 2008, p. 155), ou seja, as decisões normativas

devem repousar em causas suficientes e existentes, reais, jamais em situações fictícias,

pautando-se sob uma relação de congruência entre o critério de diferenciação escolhido e a

medida adotada, pois ao passo que se se desvinculam da realidade, as decisões violam os

princípios do Estado de Direito e do Devido Processo Legal (ÁVILA, 2008, p. 156).

Há que se observar também a correlação entre o critério de distinção utilizado pela

norma e a medida por ela adotada, para que seja assegurado o princípio da igualdade. Ou seja,

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entre a medida e o critério adotado por certa norma que informa sua fixação, a Razoabilidade

exige que haja equivalência, pois o postulado exige a consideração das particularidades dos

sujeitos atingidos pelo ato de aplicação concreta do Direito, sem que haja menção a uma

proporção entre meios e fins, como prega o postulado da proporcionalidade (ÁVILA, 2008, p.

165).

No que diz respeito à aplicação do Postulado da Razoabilidade a doutrina,

majoritariamente, questiona a objetividade dos critérios de aplicação. Neste ponto, tal estudo

não pretende fixar, como bem defende Bullos (1997, p.91), como limite preciso e estático a

observância aos critérios propostos pelo postulado da razoabilidade, pois tal postulado muito

dificilmente se desvinculará de certa carga subjetiva, ainda que se baseie em decisões

anteriores ou fatos concretos, e, para o fim de adaptação a que este fenômeno objetiva, não

deverá, pois se pretende que seja instaurado um ideal de justiça que se respalda nas nuanças e

anseios da comunidade.

Tal ideal de justiça incita uma postura ética-jurídica-social do aplicador, que deve

ter consciência de não violar as normas constitucionais, e, mantendo relação de recíproca de

retroalimentação com os demais atores sociais, ter consciência jurídica geral, pois o aplicador

não possui total liberdade na definição do sentido, significado e alcance das normas

constitucionais, vinculando-se, por exemplo, aos demais parâmetros previamente

mencionados, e à suscitação social, sob pena de ocorrência da arbitrariedade.

Para tanto, propõe-se que, no que diz respeito à incidência da Razoabilidade, o

fenômeno da mutação constitucional deva ocorrer mediante argumentos racionais, com

fundamentações e motivações sustentáveis quanto à modificação do enunciado, pautado nos

preceptivos supremos da ordem constitucional estabelecida, que sejam bem aceitos pela

comunidade social e jurídica do período, sem violar os mecanismos que asseguram a

constitucionalidade, e limitado pelos parâmetros dentro dos quais deve ocorrer o juízo de

ponderação do aplicador, para que a aplicação da norma mutante ao caso concreto, real,

pautado dentro da normalidade, não possibilite a incidência do arbítrio estatal sobre a

sociedade.

Insta salientar que a razoabilidade não é um critério objetivamente definido. Para fins

deste estudo, a razoabilidade é tangida pela ideia de uma argumentação jurídica em face do

caso concreto que abarca circunstâncias particulares não expressamente previstas pela norma,

por meio de um processo de interpretação complexo, e por isso dotado de certa subjetividade,

que demonstre as consequências que serão implementadas pela ocorrência do fenômeno, ou

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FERRAÇO, A.A.G., Mutação Constitucional

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seja, que possibilite o diálogo intersubjetivo e que permita algum controle da argumentação

(SILVA, 2010, 147 e 148).

5. Considerações finais

Após a análise dos institutos e fenômenos contemplados neste estudo, fica evidente

que, em face da constante dialética existente entre a ordem constitucional e a sociedade e,

sobretudo, do descompasso existente entre eles, o Poder Constituinte positivou mecanismos

de reforma constitucional com o objetivo de assegurar a congruência fática e normativa, de

acordo com procedimento formal da Revisão e da Emenda Constitucional.

Ademais, em virtude da constante, e muito rápida auto modificação da sociedade

cambiante, ocorrem transformações informais por manifestação do Poder Constituinte Difuso,

as chamadas mutações constitucionais que conferem nova acepção à interpretação do texto,

sem que haja modificação do mesmo.

Contudo, por se tratar de um fenômeno informal, a mutação não possui limites claros

e expressos pela Carta Magna, mas necessita de parâmetros para a sua ocorrência. Com base

no posicionamento majoritário, entende-se como limite à ocorrência do fenômeno da mutação

a supremacia da ordem constitucional vigente, a vedação de abolição às clausulas pétreas, o

respeito à elasticidade do texto e a vedação ao retrocesso dos diretos e garantias fundamentais.

Além dos parâmetros assentados pela doutrina, há que se observar, como propõe este

estudo, o postulado da razoabilidade como diretriz à atuação da função jurisdicional do estado

sobre a sociedade, tanto na ocorrência quanto na inocorrência da mutação constitucional,

quando estas mutações são suscitadas pelo real quadro social.

Para que se atinja este fim, o aplicador deve pautar-se em uma postura ética-jurídica-

social, vinculando-se, simultaneamente, aos demais parâmetros e à razoabilidade, sob pena de

incorrer em arbitrariedade, mediante argumentos com fundamentações e motivações

racionais, para que tais acepções possam ser incorporadas pela comunidade jurídica e social

abarcada, oriundas de um processo de ponderação, sem que haja violação à

constitucionalidade de forma sistêmica.

6. Referências

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AFONSO, F. S. A aplicação dos princípios processuais constitucionais

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A aplicação dos princípios processuais constitucionais: Um meio eficaz de garantir uma tutela jurisdicional efetiva

The application of constitutional procedural principles: An adequate way to ensure effective judicial protection

Felippe da Silva Afonso1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve apresentação de alguns

princípios constitucionais aplicáveis ao processo. Ademais, temos como objetivo demonstrar como a aplicação efetiva destes princípios interferem para um provimento final justo e efetivo, sob a égide da Constituição Federal de 1988, que pela primeira vez adota expressamente a fórmula do direito anglo-saxão, garantindo que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, como prevê o art. 5º, LIV, da Constituição brasileira, ao expor a respeito do devido processo legal, que se mostra como o princípio mais importante dentre os constitucionais.

Palavras-chave: devido processo legal.direito processual.processo. princípios.

Abstract: This article aims to make a brief presentation of some constitutional principles applicable to the process. Furthermore, we aim to demonstrate how the effective application of these principles interferes for a fair end provision under the aegis of the Federal Constitution of 1988 for the first time expressly adopts the formula of Anglo-Saxon law, ensuring that "no one shall be deprived of freedom or property, without due process of law ", as required by art. 5, LIV, of the Brazilian Constitution, to expose the respect of due process, which is shown as the most important principle from the constitutional.

Key-word: dueprocess. procedurallaw. process.principles.

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora;foi bolsista de Iniciação Científica (FAPEMIG) com o projeto “Direitos Fundamentais - Tema Vértice do Debate Jurídico Contemporâneo”, sob a coordenação da Profª. Drª. Cláudia Toledo. Monitor da disciplina Teoria Geral do Processo, sob a orientação da Profª. Isabela Gusman Ribeiro do Vale.

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1. Introdução

Não se pode negar a ligação existente entre a disciplina do processo e o regime

constitucional sob o qual aquele irá tramitar, uma vez que a Constituição irá fixar e

estabelecer alguns princípios norteadores do Direito Processual. O art. 126 do Código de

Processo Civil de 1973 aduz que diante de uma lacuna da lei, deverá o julgador valer-se da

analogia, não havendo norma a ser aplicada de forma analógica, o juiz deverá valer-se dos

costumes e, por fim, caso não haja costumes a serem aplicados, a decisão será pautada com

base nos princípios norteadores do Direito. Ante o que foi dito acima, tiramos a primeira

conclusão, qual seja, a diferença entre os princípios de cunho constitucional e os princípios

gerais do Direito Processual.

Ao afirmar o art. 126, do CPC/1973 o que foi supramencionado, ou seja, que os

princípios norteadores do Direito são as últimas fontes de Direito a serem aplicadas no caso

concreto, caso haja umalacuna na lei, estaríamos afirmando que os princípios constitucionais

são aplicados em último lugar, o que não é correto, em virtude de a Constituição possuir

supremacia sobre as demais normas jurídicas.

Neste diapasão, afirma-se que é justamente na Constituição que se constitui o

instrumento jurídico que o processualista deve utilizar para interpretar e entender os

fenômenos processuais e seus princípios. É esta mesma Constituição que afirma o processo

como não mais um simples instrumento de efetivação e garantia de um direito material, mas

sim como um instrumento público capaz de promover a justiça e pacificar lides.

Adotamos a teoria acerca do processo, de Elio Fazzalari (2006), jurista italiano, que

afirma que o processo é um procedimento em contraditório, tendo em vista o procedimento

com uma estrutura técnica de atos jurídicos sequenciais numa relação espaciotemporal,

segundo o modelo legal em que o primeiro ato é pressuposto do ato conseguinte, e este, por

sua vez é extensão do ato anterior, rumo ao provimento final. Ao afirmar o exposto acima,

fazemos a diferença entre o procedimento e o processo, este ultimo, com aspectos de

pacificação social, solução de litígios, pondo fins às lides.

O que se questiona agora é se realmente o processo como um instrumento de

pacificação social realmente cumpre esta função de solucionar os litígios, dando fins às lides,

ou seja, as pretensões resistidas que tem o judiciário como único meio para pacificar tais

conflitos.

Tentaremos demonstrar de que forma o processo pode vir a exercer essa função

pacificadora, através da aplicação efetiva dos princípios processuais constitucionais que foram

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escolhidos como os principais, o que não torna os demais princípios processuais menos

importantes. Entretanto, por questões acadêmicas e científicas escolhemos somente alguns

princípios constitucionais para análise.

Os princípios escolhidos de cunho constitucionais foram: o contraditório, ampla

defesa e tempestividade da tutela jurisdicional, todos estes decorrentes do chamado devido

processo legal.

Passaremos adiante a fazer um estudo a respeito de cada princípio mencionado

acima, explicando cada um, bem como sua finalidade e adaptação ao caso concreto para que

se possa chegar a um provimento final justo tendo em vista a aplicação destes princípios.

2. A força normativa dos princípios

Tendo em vista a concepção de Robert Alexy (2002), os princípios são normas que

ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas

e reais existentes. Assim, os princípios são mandamentos de otimização, caracterizados pelo

fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e de que seu cumprimento não somente

depende das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades

jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostas.

Cumpre salientar que para Alexy (2002), os princípios se diferenciarão das regras

com base no modo de aplicação e no modo de colisão, ou seja, enquanto as regras seriam

aplicadas mediante “subsunção”, os princípios seriam aplicados mediante “ponderação”.

Ademais, vale ressaltar outro critério que concerne à distinção entre as regras e princípios, no

que tange o modo de colisão. Para as regras, temos que quando duas delas entram em colisão,

ou haverá uma exceção que irá afastar o conflito, ou uma dessas duas deverá ser declarada

inválida. Já em relação aos princípios, ambos mantêm sua validade, estabelecendo uma

hierarquia móvel e concreta entre eles.

No entanto, o respectivo trabalho tem como objetivo analisar a principiologia

processual constitucional, não sendo o foco deste estudo analisar os conflitos doutrinários

acerca das regras e princípios.

Tendo em vista os argumentos apresentados acima, analisaremos princípios

propriamente ditos, ou seja, mandamentos de otimização, que caso entrem em colisão não é

necessário que um seja inválido para que o outro se mantenha. No Direito Processual (foco

deste trabalho), os princípios da ampla defesa e do contraditório (que serão analisados

posteriormente) têm sido igualmente afastados em razão do denominado princípio da

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tempestividade da tutela jurisdicional, ou da celeridade processual. Um exemplo claro é a

concessão liminar inaudita altera pars, ou seja, sem que se forme o contraditório é concedida

uma providência judicial, em virtude da tempestividade da tutela jurisdicional que poderia vir

a demorar, colocando em risco o direito de outrem (periculum in mora). Sendo assim,

observa-se o contraditório sendo sopesado em prol da celeridade processual.

É notório que a compreensão do Direito através de princípios rompe com o modelo

positivista do Estado liberal, que se expressava em um direito constituído não por princípios,

mas por regras. Destarte, a compreensão da lei a partir da Constituição expressa uma outra

faceta do positivismo, denominada de pós-positivismo, não por atribuir às normas

constitucionais o seu fundamento, mas sim por submeter a lei a princípios materiais de justiça

e direitos fundamentais, permitindo que seja encontrada uma norma jurídica que revela a

adequada conformação da lei.

3. O devido processo legal

Como já dito, o Direito Processual também é um ramo do Direito que possui

princípios norteadores desta matéria, sendo certo que os mais importantes encontram-se

consagrados na Constituição Federal. Em verdade, dentre os princípios constitucionais, o

devido processo legal, estampado no art. 5º, LIV, da Constituição, mostra-se como o mais

importante, uma vez que este princípio irá dar causa para os demais. Cumpre salientar que tal

princípio tem como origem o Direito Anglo-Saxão, no art. 39 da Carta Magna Inglesa, que era

escrito em latim, já com o intuito de dar um caráter seletivo ao processo e suas garantias. O

supracitado artigo da Carta Magna Inglesa afirmava que:

Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut disseisiatur, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eum ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terre. (Em vernáculo: Nenhum homem livre será detido ou aprisionado ou privado dos seus bens ou dos seus direitos legais ou exilado ou de qualquer modo prejudicado. Não poderemos nem mandaremoos proeder contra ele, a não ser pelo julgamento regular dos seus pares ou de acordo com as leis do país. ( CARVALHO, 1993)

Muito se fala do devido processo legal, mas o que é passar por ele?

Cremos que este está relacionado com a garantia de pleno acesso à justiça, mas o que seria

esse acesso à justiça? Kazuo Wantanabe (1985) define o acesso à justiça como uma garantia

de acesso à ordem jurídica justa, de forma substancial (ou seja, um acesso à justiça para todos,

sem qualquer obstáculo social, econômico ou qualquer outra coisa que impeça alguém de

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reparar uma lesão ou a violação de um direito), e não meramente formal (o simples fato de

qualquer pessoa poder ajuizar uma ação, ou seja, o direito de ação contido no art. 5º, XXXV,

da Constituição Federal).

A garantia do acesso à ordem jurídica justa assegura a todos aqueles que possuem

uma pretensão resistida ou não (casos de jurisdição voluntária, onde inexiste a contraposição

de polos, bem como ausente a figura da lide) a prestaçãoda tutela jurisdicional, de forma

eficaz, capaz de proteger e assegurar um direito, bem como de sanar e por fim a uma lide

através de elemento e suportes que o Estado fornece ao cidadão, como por exemplo, o

beneplácito da assistência judiciária gratuita, bem como a Defensoria Pública. Ambos

exemplos citados são formas de garantir a qualquer pessoa o acesso a justiça, sem qualquer

entrave financeiro ou social.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth, respeitáveis juristas, reconhecem três fases, ou

como se costumam referir “as três ondas do acesso à justiça” (CAPPELLETTI, GARTH,

1989) começando pela necessária luta pela assistência judiciária gratuita, já que os entraves

econômicos podem ser um fator determinante para repelir alguém a ajuizar qualquer tipo de

ação a fim de reparar a lesão ou ameaça de lesão de um direito seu. É nítido que demandar

pode ser um meio oneroso de sanar uma pretensão resistida, entretanto, com o advento da Lei

1060/50, o Estado veio a promover a assistência judiciária gratuita a todos aqueles que de

acordo com critérios legais fazem jus a tal beneplácito. Os entraves econômicos não se

esgotam com as custas processuais, havendo também a questão da defesa técnica, que o

Estado garante a todos, através da Defensoria Pública, instituto amparado constitucionalmente

no art. 134, da Constituição.

A segunda onda do acesso à justiça está relacionada com a proteção dos interesses

metaindividuais, como por exemplo a ação civil pública, a ação popular e o mandando de

segurança coletivo. Não entraremos a fundo neste tema, pois não é pertinente ao assunto. Para

finalizar o pensamento de Capelletti e Garth (1989), a terceira e última onda é a preocupação

em garantir uma maior satisfação do jurisdicionado com a prestação da tutela jurisdicional, a

qual deve ser efetiva e adequada a garantir verdadeira proteção às posições jurídicas de

vantagem lesadas ou ameaçadas. É nesta ultima onda que alocamos a aplicação dos princípios

processuais, como meio de garantir uma tutela jurisdicional racional e justa.

O que propomos agora é analisar um devido processo legal como, além de uma

garantia a uma ordem jurídica justa, seja formal ou substancial (ambos explicados acima),

analisar um processo em que para que se tramite de uma maneira legal e justa, venha a

respeitar os princípios processuais constitucionais e gerais, promovendo, assim, uma ordem

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jurídica equânime (igualitária, paritária), racional (motivada, pública) e justa. Ou seja, não

basta eliminar os obstáculos sociais e econômicos, é necessária a aplicação de princípios

norteadores, os quais serão explicados em seguida cada um e como eles são aplicados no caso

concreto e sua finalidade. Afinal, os demais princípios, como já dito são decorrentes do

devido processo legal, logo, ao fazer essa afirmativa, temos que para a efetivação do devido

processo legal, a presença destes são de suma importância.

4. O Contraditório e a Ampla Defesa

Primeiramente, devemos estabelecer que se trata de dois princípios autônomos no

Direito Processual, que se correlacionam bastante, uma vez que através do contraditório irá

garantir o exercício da ampla defesa. Como aquele irá garantir este será explicado ao longo

deste item. Primeiramente iremos discorrer sobre o contraditório, princípio este de suma

importância para o desenvolvimento válido e coerente do processo.

Muito se define o que é o contraditório. Aroldo Plinio (1992) aduz que a essência

deste princípio encontra-se na “garantia de participação em simétrica paridade”. A paridade

que tal princípio confere, está relacionada com a ciência bilateral dos atos processuais, ou

seja, o contraditório se traduz na necessária oportunidade que se oferece a todo aquele que

cuja esfera jurídica possa ser atingida pelo resultado do processo, assegurando-lhe, ainda,

igualdade de condições com os demais interessados, seguindo assim, o entendimento de

Humberto Dalla (2007).

Ao afirmar o exposto acima, a respeito da aplicação deste princípio para aqueles que

tenham interesse na causa (cujo provimento final venha a interferir em sua esfera de direitos),

temos que o contraditório é um princípio que é aplicável, também, para aqueles que não são

partes no processo, devendo ser aplicado na maior medida possível, para os chamados

“terceiros” que o CPC de 1973 expõe dos art. 56 ao 80, e que no novo CPC de 2015 estará

presente nos art. 119 ao 138 (tendo em vista a alteração existente no instituto da intervenção

de terceiros, achamos válido expor a disposição legal nos dois Códigos).

Alexandre Freitas Câmara (2014) afirma que terceiro é um conceito que se chega

por negação, sendo aquele que não é parte no processo. Tendo em vista a lição deste nobre

jurista, chegamos à conclusão de que terceiro é aquele que não é um legitimado ordinário (ou

extraordinário), nem aquele que forma um litisconsórcio originário, ou seja, a pluralidade de

partes no momento que surge o processo.

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O que o contraditório proporciona é um processo dialético, ou seja, a possibilidade

de uma parte apresentar sua tese, a outra parte a antítese, e só assim o julgador formular sua

síntese, representada pelo provimento final do processo, ou seja, a prolação de uma sentença

que nada mais é do que “o ato do juiz que implica algumas das situações previstas nos art.

267 (casos se extinção do processo sem resolução do mérito) e 269 (quando houver resolução

do mérito)” (art. 485 e 487 do novo CPC), tendo em vista a afirmação do Código de Processo

Civil de 1973 (art. 162, §1º, do referido Código) a respeito da sentença.

Essa antítese mencionada acima, ou seja, este meio de garantir aos interessados na

causa a possibilidade de conhecimento da lide, e, assimpoder manifestar-se (ou não, em

alguns casos ocorrendo os efeitos do art. 319, do CPC/1973 (art. 344 do novo CPC), os efeitos

da revelia), pode ocorrer de algumas formas ao longo do processo. Sua efetivação, ao conferir

às partes a ciência dos atos processuais, pode ocorrer através da citação, intimação ou uma

notificação.

A citação é o ato pelo qual informa a outra pessoa a existência de um processo, ou

seja, que foi ajuizada uma ação contra sua pessoa, (seja natural ou jurídica), dando a

possibilidade de exercer seu direito de defesa. Pela citação há um convite a contraparte para

poder integrar a relação processual, formando, deste modo, a chamada tríade processual,

formada pela parte Demandante, o Estado-juiz e o Demandado.

Já a intimação é a ciência dada a outrem a respeito dos atos processuais, podendo

conter atos de ordenatórios de cunho positivo ou negativo (comando de fazer ou deixar de

fazer). No que tange a notificação, esta é usada de diversas formas, no processo penal para

designar atos de comunicação processual, já a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) usa

a notificação no lugar da citação.

É pertinente aduzir que o contraditório é aplicado não só no Poder Judiciário, sendo

utilizado tanto no Legislativo como no Executivo. Tal fato ocorre, pois qualquer

procedimento que tem como objetivo a elaboração de um provimento, só é legítimo através da

participação dos interessados no provimento que irá surgir. Podemos enxergar com clareza a

aplicação do contraditório no Legislativo, através dos procedimentos de eleição de seus

membros (deputados, senadores e vereadores). Já no executivo, também há a participação

para a composição de seus membros (prefeitos, governadores e presidente), bem como através

da ação popular. Entretanto, não discorremos a respeito da aplicação desde princípio a fundo

nestes dois poderes, para não fugir do foco deste estudo. Colocamos apenas a título de

informação.

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Há uma hipótese em que o contraditório não é respeitado, hipótese esta que é válida e

amparada pela lei, são os casos em que o juiz é levado a proferir decisões em que não é dado a

possibilidade da parte contrária apresentar sua defesa ou se manifestar de qualquer forma no

processo (art. 273 do CPC de 1973). Trata-se das decisões proferidas inaudita altera pars.

Sua legitimação é fundamentada através da urgência de certas demandas, podendo por em

risco o suposto direito de outrem. Entretanto, não podemos dizer que não irá ocorrer o

contraditório, porém, este será postercipado. Ressalvadas essas hipóteses de urgência de uma

tutela do Estado, qualquer decisão só será legitima se respeitado o princípio constitucional do

contraditório.

Acerca do contraditório, e também incluindo outro princípio que será estudado a

diante, a isonomia. Alexandre Freitas Câmara leciona de maneira brilhante a respeito da

junção destes princípios, aduzindo que:

De toda forma, embora conceptuadamente distintos os dois princípios, é adequado que os mesmos se encontrem, garantindo-se assim o que se chamou “contraditório efetivo e equilibrado”. O processo justo (ou, em outras palavras, o devido processo legal) exige não apenas o contraditório, mas também isonomia, o que nos leva a concluir que a garanti constitucional do due processo oflaw só estará verdadeiramente assegurada onde os dois conceitos – de contraditório e isonomia – conviverem harmonicamente, tendo as partes do processo não só a oportunidade de participação, mas identidade de oportunidades. Em outras palavras, há que se assegurar na só o contraditório, mas um contraditório que, além de efetivo (ou seja, capaz de permitir resultados adequados na formação do provimento jurisdicional), seja também equilibrado, o que se assegura com a igualdade substancial de tratamento deferida às partes. (FREITAS CÂMARA, 2014).

Destarte, temos como essencial para um contraditório efetivo, não apenas a ciência

bilateral dos atos processuais, mas sim como dito acima, um contraditório equilibrado, que se

da através da junção destes dois princípios. De nada adiantaria a presença do contraditório, se

estivesse ausente a isonomia entre as partes. Creio que possamos falar desta isonomia

relacionando-a com a paridade de armas, também, uma vez que este princípio vem para dar

um equilíbrio na relação processual. Por isso, achamos válido, desde já, mencionar o princípio

da isonomia como essencial para o contraditório. Quando formos discorrer através da

isonomia, ficará mais claro como a presença deste principio é de suma importância para a

validade do processo.

Cumpre salientar, a título de curiosidade, a respeito das hipóteses em que se tratar de

direitos indisponíveis, em que o contraditório deverá ser efetivo e equilibrado. Tal hipótese

ocorre corriqueiramente no Processo Penal, quando é garantido a todos aqueles que

quedando-se nos termos da revelia, o juiz nomeará defensor, para que possa representa-lo em

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juízo. Tal fato tem como escopo jurídico os art. 261 e 263, do Código Penal. Temos como um

meio mais justo e eficaz para se garantir as garantias fundamentais de cunho constitucionais e

processuais.

Quando mencionamos acima a questão da paridade de armas, entraremos mais a

fundo na questão da ampla defesa. Como dito ainda neste item, o contraditório é uma das

formas de garantir a ampla defesa. De uma forma sucinta, podemos afirmar que a partir do

momento que se garante, que se da oportunidade de conhecimento acerca dos atos

processuais, ou até mesmo o conhecimento de que há um processo em face de uma pessoa, a

partir deste momento, damos a oportunidade dela poder ofertar uma defesa, seja uma

contestação, reconvenção ou uma exceção.

Garantir a ampla defesa significa dar oportunidade às partes de produzir alegações

que sustentem sua pretensão ou defesa, bem como direito a provar essas alegações, uma vez

que faz-se necessário a comprovação de todo o alegado, com o material probatório que for

necessário e adequado a cada caso concreto.

Neste diapasão, cumpre expor um pouco a respeito da assistência judiciária e defesa

técnica gratuita. O instituto da assistência judiciária gratuita está positivado no art. 5º,

LXXIV, da Constituição Federal, o qual prevê que “o Estado prestará assistência jurídica

integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Tal garantia tem o escopo

de impedir que alguém tenha seu direito de ampla defesa lesado em virtude de aspectos

econômicos, uma vez que demandar não é algo gratuito, tampouco barato. Além das custas

processuais, há os custos com uma defesa técnica (não se tratando de ação nos juizados

especiais – Lei 9.099/95). Ademais, estamos falando de uma garantia fundamental do

individuo, a qual, para grande parte da doutrina, basta a simples declaração de insuficiência de

recursos, podendo valer deste benefício tanto as pessoas físicas como as jurídicas. No entanto,

o que se observa na prática é a necessária comprovação, através de documentos fiscais que

comprovem a real situação financeira do requerente.

Já no que tange o instituto da Defensoria Pública, verifica-se que não basta isentar o

sujeito das custas processuais sem que se isente também de uma defesa técnica, uma vez que

a apresentação em juízo munido de um defensor técnico é um dos pressupostos processuais

para que se possa postular.

Ante o exposto, observa-se que tais institutos estão mais relacionados com a questão

do acesso à justiça, sendo estes dois benefícios de suma importância para que não crie

qualquer entrave para que a parte possa exercer sua ampla defesa. Ou seja, há uma correlação

entre o acesso à justiça e ampla defesa, neste viés.

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O contraditório permite com que se efetive a resposta do Demandado, pois através do

que conhecemos como citação, este terá o conhecimento de que existe um processo contra sua

pessoa, possibilitando, deste modo, que ele venha a exercer sua defesa. Ademais, através da

intimação, a parte poderá se manifestar ao longo do processo, se defendendo, apresentado

provas para enriquecer o entendimento do julgador acerca da lide, fato este que é de suma

importância para que se obtenha um provimento final justo e equânime para todas as partes.

Um processo que

Em suma, são dois princípios que se correlacionam bastante, como exposto acima, a

presença do contraditório é de suma importância para que se garanta a ampla defesa. É claro

para nos que a presença efetiva e substancial destes dois princípios no processo, é de extrema

relevância para o provimento final justo e legal de uma demanda.

5. Tempestividade da tutela jurisdicional

Este princípio, que é de suma importância para as partes, foi inserido no art. 5º da

Constituição Federal, por meio do inciso LXXVIII, que entrou em vigor através da Emenda

Constitucional de nº 45/2004, mais conhecida como a emenda de reforma do Poder Judiciário.

Tal dispositivo legal afirma que “a todos no âmbito judicial e administrativo, são assegurados

a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Ademais, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos

Humanos), de 1969, que foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto

Legislativo 27/92 e mandado executar pelo Decreto 678/92, prevê a garantia de que todos

devem ser ouvidos em prazo razoável.

Vejamos, o art. 8 da Convenção afirma que:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.(CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 1969).

Ante o exposto, percebe-se que esta convenção ao arguir acerca da tempestividade da

tutela jurisdicional, enfatiza sua aplicação em face, somente, do Processo Penal, caso fosse

feita uma interpretação restrita deste dispositivo. Entretanto, as disposições desta Convenção

merece uma interpretação ampliativa, empregando métodos aliados a interpretação

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sistemática, chegando a conclusão de que tal dispositivo merece irradiar força para todo ramo

do direito processual, não apenas no processo penal, fato este que faz o processo civil e

administrativo serem contemplados por esta garantia.

Neste sentido, observa-se que não só Constituição brasileira se preocupou em

garantir uma tutela jurisdicional num prazo razoável, países como Italia (Art. 111)2 e outros já

previam dispositivos legais a respeito deste principio, além da previsão na Convenção

Europeia de Direitos Humanos (art. 6º, 1º)3.

Tendo em vista as garantias do devido processo legal, observa-se que a mera garantia

formal do dever do Estado em pacificar as lides, não é suficiente, sendo de extrema

importância uma prestação jurisdicional rápida, efetiva e adequada. Foi assim que a referida

emenda objetivou, ao tentar garantir a todos uma razoável duração do processo e meios que

garantam a celeridade de tramitação.

Vale ressaltar que este princípio, além de ser dirigido para o juiz, tem sua função

legislativa também, ao impor ao legislador a tarefa de aperfeiçoar a legislação processual,

para que se efetive uma duração razoável do processo.

Cumpre analisar que o respectivo dispositivo legal afirma acerca da “duração

razoável do processo”, e não apenas em relação a uma rápida tutela do Estado, uma vez que

ao afirmar a razoabilidade do processo, não significa que este deve se findar de forma rápida,

mas sim que este processo possa se concluir no tempo mais breve, tendo em vista a

complexidade do processo e de seus atos.

Este princípio não serve de instrumento para a construção de um processo rápido,

mas sim que haja um sistema processual sem dilações indevidas. Ou seja, o processo deve

2Const. Ital.: “Art. 111. La giurisdizione si attua mediante ilgiusto processo regolatodallelegge. Ogni processo si svolgenelcontraddittoriotrale parti, in condizionidiparità, davanti a giudiceterzo e imparziale. La legge ne assicuralaragionevoledurata. Nel processo penale, laleggeassicurachela persona accusatadi um reato sai, nem più breve tempo possibile, informata riservatamente dela natura e dei motividell’accusaelevata a suo carico; dispongadel tempo e dele condizionenecessari per preparar ela sua difesa; abbialafacotà, davanti al giudice, diinterrogare o difar interrogar ele personecheredonodichiarazoni a suo carico, diottenerelaconvocazione e l’interrogatoriodi perona a sua difesanellestessecondizionidell’accusa e l’acquisizionediognialtromezzodi prova a suo favore; sai assistita da um interprete se non compreende o non parla la língua impiegatanel processo”. [A jurisdição é exercida mediante o devido processo regulado pela lei. Todoo processo se desenvolve pelo contraditório entre as partes, em condições de igualdade, diante de juiz equidistante e imparcial. A lei assegura a duração razoável. No processo penal a lei assegura que a pessoa acusada de um crime seja, no mais breve tempo possível, informada reservadamente a respeito da natureza e dos motivos da acusação dirigida contra ela; disponha de tempo e das condições necessárias para preparar a sua defesa; tenham a faculdade, diante do juiz, de interrogar ou se fazer interrogar as pessoas que fazem declarações e a seu cargo, de obter a convocação e o interrogatório de pessoa em sua defesa nas mesmas condições da acusação e a aquisição de todo e qualquer outro meio de prova a seu favor; seja assistida por um intérprete, se não compreende ou não fala língua empregada em juízo]. 3 CEDH: “Art. 6º(Direito a um processo equitativo). 1. Qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada, equitativamente e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.”

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durar o tempo necessário para que se possa alcançar um provimento final justo, tendo em

vista a complexidade do processo, o comportamento dos litigantes e a atuação jurisdicional.

É claro que a mera positivação deste princípio não soluciona os problemas de

morosidade da justiça, uma vez que está arraigado com o sistema judiciário brasileiro. Ou

seja, a mera exposição deste princípio não soluciona nada, sendo necessário que se faça uma

reestruturação no sistema judiciário atual.

O novo Código de Processo Civil foi festejado no mundo como um instrumento

capaz de dar solução à tão reclamada morosidade da Justiça. Ademais, sabemos que a duração

de um processo está relacionada com a forma de desenvolvimento dos ritos processuais

(ordinário, sumário e sumarissímo, tendo em vista o Código de Processo Civil de 1973).

Sendo assim, uma das mudanças mais interessantes foi desenvolvida para o processo de

conhecimento. O novo rito comum (art. 318 e ss, do Novo CPC/2015) incorpora a primazia

para solução dos lides, conflito de interesses, por intermédio de técnicas de conciliação e

mediação, as quais estão bem enfatizadas no novo CPC que entrará em vigor em março de

2015.

Na dicção do artigo 335, do Projeto do Novo Código de Processo Civil, se não for o

caso de indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido formulado no

processo de conhecimento, o juiz deverá designar audiência de conciliação ou de mediação

com antecedência mínima de trinta dias, devendo o réu ser citado com pelo menos vinte dias

de antecedência.Em princípio, este meio aponta para a possibilidade de uma rápida solução do

conflito. Contudo, a realidade do Judiciário ainda está bastante distante do propósito do

legislador.

A exigência de audiência inaugural para todos os processos de conhecimento

demandará estrutura física bem mais avantajada e pessoas qualificadas para a realização de

conciliação e, em especial, mediação, o que hoje é uma realidade bem distante do Judiciário

Brasileiro, em especial das comarcas menores do nosso país.Diante deste cenário, é possível

prever que os juízes que não contarem com estrutura condizente construirão alternativas para

evitar a realização da audiência como regra, tendo em vista que o grande volume de trabalho

impossibilita a presença do magistrado em todas as sessões de conciliação e de mediação.

Cumpre salientar, ante o exposto, que os meios alternativos de solução de conflitos é

uma faceta deste princípio, sendo a outra, o tempo do processo, em sentido estrito, ou seja, a

duração que o processo tem desde o seu inicio até o final com o trânsito em julgado.

Destarte, este não é o foco do presente tópico, entretanto, estes meios enfatizados no

novo CPC são de suma importância para a celeridade processual, e meios de finalizar e

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pacificar lides bem antes do que se esperava, através da conciliação e mediação (art. 165, do

novo CPC).

A efetividade deste princípio não pode ficar a cargo somente do Poder Judiciário e

do juiz (tendo em vista o princípio constitucional da eficiência do serviço público), mas

caberá, também, ao Legislativo e Executivo, bem como uma possível mudança na

mentalidade de governantes e demais políticos, no sentido de cumprir as exigências

constitucionais, principalmente no que tange a judicialização de questões que seriam

resolvidas caso não houvesse falha do poder público no que tange a direitos que são inerentes

a pessoa.

Destarte, tendo em vista a sua eficácia plena e imediata, qualquer cidadão que ver

seu direito sendo lesado, poderá exigir imediatamente seu cumprimento pelo poder público.

Ademais, a parte poderá ser indenizada a título de danos morais e patrimoniais que sofreu

decorrentes da duração irrazoável do processo. O art. 37, § 6º, da Constituição impõe ao

Estado o dever de indenizar, objetivamente, os prejuízos materiais e morais advindos da

morosidade da justiça. Entendemos que a indenização a título de danos materiais é plausível

neste caso, uma vez que o particular não pode ter seu patrimônio prejudicado em virtude da

morosidade da justiça. Já em relação aos danos morais, cuja sua natureza jurídica está pautada

no direito de personalidade, ou seja, aqueles estampados no art. 11º, do Código Civil,

observa-se que por mais frustrante que seja a morosidade da justiça, meros aborrecimentos ou

dissabores do cotidiano não poderiam ser contemplados pelo instituto do dano moral, uma vez

que para usá-lo deverá haver a violação de um direito de personalidade do agente, e pelo que

nos parece, não é o que ocorre. Tal pensamento é de suma importância para que este instituto

não seja banalizado e usado para qualquer hipótese de aborrecimento cotidiano.

Cumpre ressaltar, ainda sobre a indenização que a parte tem direito, que caso seja

detectado que o agente tenha culpa ou dolo pelo dano, o Estado tem direito de entrar com uma

ação de regresso contra o causador deste dano.

6. A efetivação do contraditório na improcedência liminar do pedido,

ante o argumento de uma maior celeridade processual

Feitas as devidas considerações a respeitos referidos princípios do contraditório,

ampla defesa e da tempestividade da tutela jurisdicional, passaremos a expor a problemática

que envolve estes princípios na prática. O que iremos discorrer é a respeito da relação destes

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princípios com um provimento jurisdicional efetivo, no que tange a improcedência liminar do

pedido, trazida no artigo 332 do novo Código de Processo Civil de 2015.

De acordo com Leonardo Greco (2016), o processo só constituirá uma garantia de

tutela efetiva dos direitos, caso fosse capaz de dar a quem tem o direito tudo aquilo que faz

jus frente ao ordenamento jurídico brasileiro. O que pretendemos discutir é se o art. 332, do

Novo Código de Processo Civil de 2015 está diante de uma teoria de um processo justo, e se

atende os preceitos de uma efetividade jurisdicional qualitativa, com valores humanitários,

que fazem do processo moderno um instrumento apropriado para a tutela de todos os demais

direitos, e não mais uma preocupação quantitativa em face da tutela jurisdicional.

No que tange ao tema tratado por este trabalho, qual seja, a aplicação dos princípios

processuais (com ênfase no contraditório, ampla defesa e a tempestividade da tutela

jurisdicional), associaremos estes a improcedência liminar do pedido, onde iremos mostrar

onde cada principio estaria atuando e seus problemas.

Percebemos que o princípio do contraditório tem sido afrontado pelo artigo 332, do

CPC/15. Isso ocorre em virtude do julgamento de improcedência do pedido formulado pelo

Autor, não ter como fundamento as questões de mérito trazidas por este, mas sim argumentos

suscitados pelo juiz, de forma unilateral, sem que possibilite que o Demandante se manifeste a

respeito da decisão antes dela ser tomada, ou seja, uma decisão com apenas o saber do juiz e

encontrando seus fundamentos unicamente em outra decisão judicial.

A improcedência liminar julga o pedido antes do Réu ser citado. Ademais, trata-se de

uma decisão de mérito, definitiva, podendo fazer coisa julgada. O legislador impôs dois

requisitos para que se possa julgar liminarmente o pedido: a) a causa deve ser eminentemente

de direito, ou seja, havendo desnecessidade de produção de provas, deixando assim, a cargo

do juiz a verificação da necessidade de instrução probatória para verificar o direito do Autor

no caso concreto; b) o pedido deve encaixar-se em uma das hipóteses previstas nos incisos I a

IV do artigo 332 ou no §1º deste mesmo artigo.

O que verificamos que é que o referido dispositivo fere claramente o preceito

constitucional do contraditório ao impedir que as partes argumentem ao longo do processo de

forma paritária, para a partir dai o julgador tomar sua decisão. Ora, a decisão judicial não

pode ser alvo exclusivamente do juiz, deve haver todo um processo dialético para que no final

seja dado um provimento jurisdicional.

O que se discute é a respeito de uma possível oportunidade que o juiz poderia dar a

parte Autora em virtude da sua pretensão, como juiz, de julgar liminarmente improcedente o

pedido exordial. Estaria assim, garantindo um contraditório mais efetivo no processo, ao dar a

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parte Autora ciência a respeito do referido ato processual. O que se questiona é justamente

isso, a ausência de intimação do Autor e do Réu antes da sentença, sobre o fundamento do

indeferimento.

Sem dúvidas que a parte Autora seria a maior prejudicada com esse julgamento

liminar, uma vez que tem por cerceado o seu direito de contraditório, em demonstrar através

dos demais meios legais possíveis que tem razão, e que sua causa merece ser julgada

procedente,podendo, ainda, demonstrar que seu pedido não está nas hipóteses do inciso I a IV,

bem como do §1º, do artigo 332 do novo CPC, bem como ser uma causa que não possa

dispensar uma fase instrutória.

Argumenta-se, também, que tal dispositivo não viola o contraditório, uma vez que a

parte tem a possibilidade de rever tal decisão num segundo grau de jurisdição. Ocorre que é

sabido que o contraditório em grau de recurso não é efetivo, amplo e eficaz como poderia ser

em primeiro grau, uma vez que não há qualquer possibilidade de audiência oral, e diálogos,

sendo permitido, somente, as sustentações orais pelos advogados das partes, no curto tempo

de quinze minutos.

Tal dispositivo legal, tem sido encarado como uma técnica de aceleração do

processo, propiciando maior celeridade processual, sendo dever do juiz aplica-lo, sempre que

presentes os pressupostos supramencionados. Porém, o que nota-se, através de uma

perspectiva processual, é que em alguns casos, a referida decisão iria se postergar ao longo do

tempo, e abarrotar os tribunais de segunda instância, para aqueles que possuírem condições de

reaver seu direito num segundo grau de jurisdição.

Devemos sempre ter em mente que o processo deve preconizar sempre uma tutela

jurisdicional qualitativa e humanizada e deixar de lado essa tendência processual brasileira de

focar na tutela quantitativa e rápida. Nem sempre processo rápido é sinônimo de um bom

processo. Como já dito ao longo deste trabalho, o termo “tempestividade da tutela

jurisdicional”, não equivale à celeridade. Todo processo possui suas complexidades e

formalidades a serem cumpridas, as quais sem elas o torna nulo. Sendo assim, a celeridade

processual deve ser ponderada sempre que um bem maior estiver em conflito. Ora, não se

pode suprimir o contraditório em razão de uma eventual celeridade quantitativa dos

processos.

O que concluímos é que o art. 332, do CPC/15 não resolve de maneira eficaz a

problemática da celeridade processual, uma vez que aqueles que possuírem condições de

rever a matéria num duplo grau de jurisdição o fará. Porém, não são todos que detém, de

condições técnicas e financeiras para poder reaver a improcedência da causa, uma vez que são

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inúmeros os recursos que poderiam ser interpostos em virtude da decisão liminar de

improcedência.

Sendo assim, verifica-se que numa última análise que o instituto da improcedência

liminar do pedido serve como um filtro social, para quem tem possibilidade de recorrer

através dos demais meios possíveis em face da referida decisão, e aqueles que não possuírem

uma boa defesa técnica e condições financeiras para arcarem com as custas recursais teriam

que ficar satisfeitos com o julgamento de primeiro grau, o que ao meu ver fere por completo o

acesso amplo e efetivo à justiça.

A aplicação do artigo 332, não traz celeridade, traz injustiça social no seio do

processo, sendo um instrumento de injustiça desde o inicio. Caso o Autor/Demandante possua

as demais condições para recorrer, ele recorre, caso contrario que fique obrigatoriamente

satisfeito com a decisão prolatada pelo juiz de primeiro grau, não em virtude de estar convicto

de seu direito, mas porque, antes mesmo da citação do Réu, obteve um provimento negativo,

contra o qual terá que lutar se quiser que sua petição inicial seja, ao menos, recebida pelo juiz

de primeiro grau.

Contudo, o único contraditório na improcedência liminar do pedido é a injustiça

social arraigada desde o inicio no seio do processo, que teria como fim a garantia de direitos

fundamentais, pacificar lides e por fim a certos conflitos sociais.

7. Conclusão

Um dos fatos que ensejaram a preocupação ética com o processo foi o crescimento

de parte da doutrina pela irradiação constitucional em face do processo. Ademais, em razão da

segunda fase histórica do processo, a fase autonomista ou conceitual, deu-se uma maior

concretude a ciência processual, uma vez que antes deste marco, o processo era encarado

como um instrumento dependente do direito material, sem qualquer autonomia, sendo esta a

fase sincrética do processo (ou primeira fase).

Como dito acima, a partir da fase autonomista do processo, passou-se a colocar o

direito processual como ciência, tendo este seus métodos e objetivos próprios. Tal fase foi de

suma importância para identificar os elementos da ação, a teoria das condições da ação,

pressupostos processuais e finalmente, para formular os princípios.

Hodiernamente, vivemos a fase instrumentalista do processo, em que se busca a

legitimação pelos resultados que irá produzir, aumentando o acesso à justiça, tentando-se

alcançar a deformalização racional dos procedimentos, aceleração dos meios de defesa, em

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suma efetividade da tutela jurisdicional. É preciso deslocar o ponto de vista e passar a ver o

processo a partir de um ângulo externo, ou seja, nos seus resultados. O processo é instrumento

que deve ser sempre o mais adequado possível para fazer valer o direito material subjacente.

Assim deve-se buscar amoldá-lo sempre, de modo a que sirva da melhor forma à solução da

questão discutida.

Tendo em vista a exposição dos princípios processuais constitucionais ao longo do

presente trabalho, é claramente visível que sua aplicação efetiva no processo é de suma

importância para a formação de uma tutela jurisdicional justa e efetiva. O processo passa a

incorporar as normas dadas pela Carta Magna, notadamente os direito fundamentais, a

exemplo, do dueprocessoflaw.

A Constituição como norma suprema expõe as diretrizes principiológicas que devem

ser seguidas pelo direito processual, sendo os direitos fundamentais a base, o fundamento e o

objetivo de se alcançar a tutela pretendida. O eixo legislativo desloca-se do aspecto

patrimonialista e individual, para uma tábua sem fim de valores. Isto aquece a letra morta da

lei, permitindo o profícuo florescimento da dignidade humana, com fins de atender os

interesses sociais mais diversos.

Em síntese, o que tínhamos como objetivo éa criação meios para aplicaçãodos

princípios e regras constitucionais de forma mais efetiva, extraindo a roupagem retórica do

texto, demonstrando a sociedade que a melhor forma de se alcançar uma tutela jurisdicional

justa e efetiva é com a aplicação efetiva dos princípios expostos ao longo deste trabalho,

tendo em vista o seu fim ultimo, qual seja, garantir os direitos fundamentais e a dignidade da

pessoa humana.

8. Referências bibliográficas

ALEXY, Robert. Teoria de losderechosfundamentales. 1.ed. (1993), 3. Reimpr. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2014. CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. bras. De Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1989. CARVALHO, João Soares. Em volta da Magna Carta. Portugal: Editora Inquérito, 1993 DALLA, Humberto. Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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A Inconstitucionalidade da Redução da Maioridade Penal: Implicações

para a População em Geral The Unconstitutionality of the Reduction of Criminal Legal Age: Implications for the

General Population

Graça Aretha Souza de Lira1

Resumo:

Este artigo propõe uma análise da PEC 171/1993 e a inconstitucionalidade dessa emenda, além da consequência de possível aprovação da presente Emenda Constitucional. Para isso, serão analisadas a Convenção da ONU de 1989 sobre os Direitos da Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e estatísticas a fim de comparar os índices infracionais e de reincidências relativos aos adolescentes com os números verificados entre os adultos. Através do estudo da legislação nacional e internacional sobre o tema, bem como da análise dos dados estatísticos, pretende-se indicar caminhos mais promissores para o enfrentamento da questão que não impliquem a redução da maioridade penal e demais reforços punitivos ora defendidos em face dos adolescentes do Brasil.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Emenda Constitucional. Estatuto da Criança e do Adolescente.

Abstract: This article proposes ananalysis of PEC 171/1993 and the unconstitucionality of this

amendment, as well as a result of possible approval of this Constitutional Amendment. For this, it will be considered the United Nations Convention of 1989 on the rights of the child, the Child and Teenager Statute, the National System of Educational Assistance and statistics in order to compare the infractional rates and re-offending relating to teenagers with verified numbers among adults. Through the study of national and international lesgislation on the topic, as well as the analysis of the statistical data it is intended to indicate most promising paths to the confrontation of the issue that do not envolve the reduction of criminal and other punitive reinforcements majority well defended in the face of Brasil´s teenagers.

Keywords: Unconstitucionality. AmendmentConstitutional. Statuteofthe teenager andthechild.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 63-80, jan./abr., 2016.

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1. Introdução

Em momentos de aumento de processos de criminalização no Brasil, especificamente

161% desde 2000 (Ministério da Justiça, 2014), cabe aos legisladores a função de criar

políticas que reduzam esses atos infracionais, trazendo assim maior segurança para os

cidadãos. Em contraposição a isso, são criadas políticas punitivas ainda mais rigorosas,

enquanto a taxa de reincidência da população carcerária é de até 70% (se somada a

reincidência de mulheres e homens) (Instituto Avante Brasil, 2014) e altas taxas de déficit

prisional (Ministério da Justiça, 2014), tratando-se de uma conjuntura de um sistema prisional

colapsado que denigre os direitos humanos e, principalmente, não consegue cumprir o seu

papel de ressocialização do preso.

Para além da falência desse sistema prisional que decorre da incapacidade de geri-lo,

há o fato de haver possibilidade de redução da superlotação nos presídios onde em alguns

estados atinge 70% o número de presos sem condenação (Ministériod da Justiça, 2014), há

contraditoriamente a tentativa de criação de nova lei penal, a Proposta de Emenda

Constitucional nº171, de 1993 que prevê a redução da maioridade penal para 16 anos de idade

para todo o tipo de crime, o que necessitaria de mais recursos financeiros e técnicos que não

são capazes nem de gerenciar as penitenciárias.

Outrossim o presente artigo visa questionar a constitucionalidade do Projeto de Lei

nº171/1993, da análise da própria inviabilidade das condições expressas nesse projeto de lei

que ao assegurar o que o país ratificou na Convenção da ONU de 1989 pelo Decreto

nº99.710/1990 (Brasil, 1990) quanto ao fato do adolescente ao ser privado de sua liberdade ter

que ficar em regime de cárcere diferente do adulto e do regime socioeducativo. Ademais

analisar-se-áas consequências da aprovação dessa lei para a população em geral como

também para o contingente populacional baixa renda e negro que é onde é concentrada tanto a

violência quanto a maioria dos casos de homicídios e delitos (Unicef, 2015) como também, se

pretende discutir acerca da condição de cláusula pétrea dos artigos 227 e 228 da Constituição

Federal e, por conseguinte, a impossibilidade de uma reforma ou supressão destes artigos

recém citados.

A análise do caso, de suas circunstâncias e de suas consequências será analisada de

acordo com os apensos, emendas da comissão e emendas aglutinativasdo plenário à PEC

171/1993quanto a suas apreciações pelo Legislativo desde 1993, associada a doutrinas que

caracterizam o sistema penitenciário. Além da observação do ECA(Estatuto da Criança e do

Adolescente) (Brasil, 1990), da SINASE(Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo)

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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(Brasil, 2012) e de comparação entre estatísticas da criminalidade e reincidência do adulto e

do menor de idade.

Sendo assim, o artigo tem início com a explanação quanto à legalidade de emendas

constitucionais, suas exceções e só então, a definição de inconstitucionalidade, já que se faz

necessário a explicação desses termos para melhor compreensão da inviabilidade da PEC

171/1993. Visando também analisar as falhas do próprio sistema socioeducativo como

possível fator de não haver ainda mais eficácia na reinserção dos jovens na sociedade.

2. Definição de constitucionalidade, cláusulas pétreas e inconstitucionalidade:

Inicialmente, cabe notar que há legalidade em uma proposta de emenda constitucional

(PEC), ela podendoser exposta pelo Presidente da República, por senadores e/ou por

deputados federais, desde que se conte 1/3 de senadores apoiando a emenda ou 1/3 dos

deputados federais, ou ainda por mais da metade das Casas Legislativas, cada uma delas tendo

metade relativa. Uma PEC para ser aprovada, tem que ser, em cada Casa do Congresso

polemizada, votada em dois turnos e ao final ter 3/5 dos votos favoráveis na Câmara (308

deputados) e também 3/5 no Senado (49 senadores).

No entanto, assim como a determinação dos critérios para votação e aprovação da

Emenda Constitucional, o §4° diz:“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a abolir:IV- Os direitos e garantias individuais” (BRASIL/1988).

O IV, §4º, art.60 trata das chamadas cláusulas pétreas que não podem ser alteradas por

Emenda e a inimputabilidade penal do menor de idade que recebe sanção por legislação

especial. Essa inimputabilidade prevista no art. 228 da mesma Constituição é uma garantia

fundamental da criança e do adolescente menor de idade que são facilmente aliciados a

cometerem infrações.

Especificamente pelo objeto de estudo do presente artigo ser a PEC 171/1993 que

prevê a redução da maioridade penal para menores a partir de 16 anos, cuja principal

justificação para a pertinência da emenda escrita por Benedito Domingos em 1993 à época

Deputado Federal é o desenvolvimento mental dos jovens de 1993 se comparado aos de 1940

(ano de modificação do Estatuto Criminal que estabeleceu a irresponsabilidade do menor e

consequentemente a inimputabilidade), pois o jovem de 1993 tinha acesso a meios de

comunicação que não mais eram censurados, a liberação sexual e liberdade de imprensa, o

que segundo Benedito Domingos formava consciência política e uma maturidade maior

podendo discernir o certo e o errado.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 63-80, jan./abr., 2016.

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Em contraposição, o Código Penal de 1940, vigente atualmente dispõe em seu §2º,

art.216-A sobre o aumento da pena de assédio sexual quando for em relação ao menor de 18

anos de idade, o que supõe incapacidade do adolescente defender-se diante de atos aliciáveis.

Com isso, nota-se a inconstitucionalidade da Emenda que antes de nova explanação,

pela pertinência cabe definição:

“Toda lei ordinária que, no todo ou em parte, contrarie ou transgrida um preceito da

Constituição, diz-seinconstitucional. ”(AZAMBURJA, D./1988). E também, “sujeição da

ordem legal à ordem constitucional. ”(JACQUES, P./1958). Inconstitucionalidade pode ser

também:

Dirigido a um ato do Congresso, o vocábulo inconstitucional quer dizer que esse ato excede os poderes do congresso e é, por consequência, nulo. Neste caso a palavra não importa necessariamente reprovação. O americano poderia, sem incongruência alguma, dizer que um ato do Congresso é uma boa lei, beneficia o país, mas, infelizmente, peca por inconstitucionalidade, isto é, ultra vires, isto é nulo. (MENDES, G.F./ 2010). Por fim, o modelo misto – adotado no Brasil – defere essa possibilidade de qualquer órgão judicial determinar a inconstitucionalidade de determinada norma em caso concreto, mas defere a um Tribunal Supremo ou Corte Constitucional a competência para proferir decisões em determinadas ações de perfil abstrato ou concentrado. (MENDES, 2010).

3. Qualidade de claúsula pétrea do art.228 da Constituição Federal de 1988

A Constituição Federal de 1988 declara, em seu artigo 60, § 4º, inciso IV, que os

direitos e garantias individuais são considerados como cláusulas pétreas, ficando impedidos

de qualquer modificação ou abolição. De tal modo, dita o artigo 60 recém mencionado: “§ 4º

não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV – os direitos e

garantias individuais” (Brasil, 1988).

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes

do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a

República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL/1988) . Para o autor (Céspedes; Pinto;

Windt, 1988), este parágrafo relaciona os direitos e garantias aos princípios da própria

Constituição e dos tratados internacionais, firmados por nosso País, integrando o rol do artigo

5º, mesmo estando fora de sua lista.

Com base na afirmação do parágrafo anterior pode-se dizer que há outros direitos e

garantias individuais espalhados pela redação da Constituição Federal de 1988 e que a

inimputabilidade penal compreende disposição pétrea, pois é considerada uma garantia dada

ao indivíduo com menos de 18 anos.

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Então, no que se refere à inimputabilidade penal, o constituinte a colocou no capítulo

que aborda o tema dos direitos à criança e ao adolescente, por questão de técnica legislativa,

pois por meio de duas emendas populares, apresentadas pelos grupos de defesa dos direitos da

criança é que inseriu na Constituição os princípios da doutrina da proteção integral, baseados

na Convenção da ONU.

O"Art.227- §3º: IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade;". (BRASIL/1988).

Em contrapartida o “artigo 5º- LV - aos litigantes... e aos acusados em geral são

assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes."(BRASIL/1988). Ou seja, é assegurado na citação anterior direitos que já estavam

assegurados como direitos individuais pelo artigo 5º.No que diz respeito ao artigo 228, da

Constituição Federal, pode-se dizer que a interpretação é semelhante.

Enquanto o artigo 228 da Constituição Federal de 1988 diz:

"São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação

especial." (BRASIL/1988).

Já asegunda parte do artigo 228 dispõe que o adolescente, apesar de inimputável penalmente, responde na forma disposta em legislação especial, abarcando além de uma garantia social de responsabilização de adolescente, um direito individual de que a responsabilização ocorrerá na forma de uma legislação especial (Neto, 2000). Dessa maneira, há uma responsabilização especial, não penal, que é um direito individual do adolescente e, logoconsubstanciado em cláusula pétrea. Dito isto, só nos resta assegurar que este dispositivo constitucional também é cláusula pétrea, portanto, insuscetível de reforma ou supressão (Neto, 2000).

Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que estão no art. 5º, mas, como determina o parágrafo 2º do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo texto constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra em Textos Constitucionais anteriores. (MARTINS, I.G.S./1998).

4. Descumprimento de compromisso internacional

O Brasil ratificou através do Decreto n° 99.710/1990 (Brasil, 1990) a Convenção sobre

os Direitos da Criança, Resolução n°44 (XLIV) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em

20 de novembro de 1989. A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), define o

conceito de criança e estabelece parâmetros de orientação e atuação política de seus Estados-

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partes para a consecução dos princípios nela estabelecidos, visando ao desenvolvimento

individual e social saudável da infância, considerando este período como base da formação do

caráter e da personalidade humana (Ferreira; Júnior, 2010-2011).

O presente Decreto atribui aos pais ou outras pessoas encarregadas, a responsabilidade

de proporcionar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida

necessárias ao desenvolvimento da criança (art. 27, item 2), cabendo ao Estado-parte, de

acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotar medidas

apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo

este direito e caso necessário proporcionando assistência material e programas de apoio,

especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação.

Já no artigo 1º da Convenção de 1989 é conceituada a condição de criança, que é todo

indivíduo menor de 18 anos, a menos que, de acordo com lei nacional aplicada à criança, a

maioridade seja atingida antes. Enquanto no Brasil, criança é toda pessoa entre 0 e 12 anos e

adolescente entre 12 e 18 anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil,

1990).

A Constituição Federal de 1988 marcou o Direito Brasileiro com um grande avanço no

campo da normatização de direitos e garantias fundamentais, resultado de importante

processo de democratização do Estado e do Direito. A moderna concepção do

constitucionalismo nacional ensejou não só a ratificação de Tratados e Convenções

internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a inclusão em seu texto

constitucional, de forma irrevogável, de princípios consagrados nos referidos instrumentos

internacionais, dando-lhes força de norma de aplicabilidade imediata.

O Brasil se dispõe ainda a, de acordo com o art.37 da presente Convenção a:

a) nenhuma criança seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Não será imposta a pena de morte nem a prisão perpétua sem possibilidade de livramento por delitos cometidos por menores de dezoito anos de idade; b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado; c) toda criança privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade inerente à pessoa humana, e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família por meio de correspondência ou de visitas, salvoem circunstâncias excepcionais. (BRASIL/1990)

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Na alínea “a” é garantida à criança o direito a não ser torturada nem ser desumanizada

e também garante ampla defesa em seu julgamento. Já a alínea “b” fala sobre o direito à

liberdade da criança a menos que algum crime seja cometido e seja coberto pela legislação

nacional, mas que ao ter sua liberdade restringida, esse menor deverá ficar recluso ou preso o

menor tempo possível, o que é garantido pela SINASE (Brasil, 2012) (Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo) que estabelece pena de até 3 anos. Por fim, a alínea “c” refere-

se a, quando em reclusão, ser necessário que esse indivíduo seja preso em local diferente do

adulto.

E segundo atualizações da PEC 171/1993, além de ficar em ambiente diferente do

adulto, caso a maioridade penal fosse reduzida, o menor infrator seria mantido também em

recinto distinto do para menores de idade. No entanto, ao analisar essa possibilidade, surge

um questionamento, se em presídios para maiores de 18 anos, há um déficit prisional de

231.062 pessoas (Ministério da Justiça, 2014), como o Governo disponibilizaria verba para a

criação de mais locais de reclusão, quando nem sequer consegue regularizar a situação

deficitária nos sistemas carcerários para maiores de idade.

Ainda, quanto ao artigo 40, inciso 1 da presente Convenção que trata sobre a

necessidade de a criança ao ser reclusa ou presa,esta deve receber tratamento de modo a

estimular um sentido de dignidade e valor, como também incentivá-la a respeitar os direitos

humanos e a liberdade de terceiros. E para a concretização desse fim a SINASE (Sistema

Nacional Socioeducativo) (Brasil, 2012) tem maior êxito em educar o menor infrator e tem

sucesso em reinseri-lo na sociedade após a internação (Brasil, 2015).

Ainda, segundo Terra (2001), enquanto o Brasil for signatário da Convenção

Internacional dos Direitos da Criança e em respeito ao estabelecido na Constituição Federal

de 1988que confere estatura constitucional aos direitos e garantias advindas de tratados

internacionais sobre Direitos Humanos de que o Brasil faça parte, por consequência é

inviabilizada qualquer possibilidade de ser alterada a idade da maioridade penal.

5. Disposições do Estatuto da Criança e do adolescente e sua violação pela PEC 171

O estatuto da criança e do adolescente classifica como criança o menor de doze anos

de idade e o adolescente é o que possui entre doze e dezoito anos de idade em seu art.1º. Já o

§ único desse mesmo artigo diz que em casos expressos da lei, este estatuto é aplicado para os

indivíduos entre dezoito e vinte e um anos de idade. Já o art.6° estabelece que:“Na

interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do

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bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e

do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. (BRASIL/1990)

Quanto à qualidade de ato infracional segundo o art.103 da lei nº8.069/1990 é a

conduta descrita como crime ou contravenção penal. Os menores de dezoito anos estando

sujeitos às medidas que esta lei prevê e a idade do adolescente deve ser considerada à data do

fato, art.104. Ainda, ao ato infracional cometido por criança, esta estará sujeita às seguintes

medidas:

I- Encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II- Orientação, apoio e acompanhamento temporários; III- Matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV- Inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V- Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI- Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII- Acolhimento institucional; VIII- Inclusão em programa de acolhimento familiar; IX- Colocação em família substituta. (BRASIL/1990)

Essas medidas referentes à criança não têm caráter de privação de liberdade e a

entidade de acolhimento institucional deve analisar caso a caso, visando a reintegração

familiar. Essa análise no acolhimento institucional observa a opinião da criança e o

compromisso que os pais desta se dispõem, no entanto, caso não seja possível a reintegração

familiar por decisão judicial, o indivíduo será colocado em família substituta, também

constante nos § do art.101 da presente lei.

Ainda quanto ao ato infracional, ao adolescente é resguardado o direito de que ele

somente poderá ser privado de sua liberdade, se preso em flagrante ou por ordem escrita e

fundamentada de autoridade judiciária competente. Ao ser apreendido, o local de apreensão

deve ser informado à autoridade judiciária, aos seus parentes ou à pessoa determinada pelo

mesmo. Quanto a internação, antes da sentença, só pode ocorrer no prazo máximo de quarenta

e cinco dias, a decisão devendo estar fundamentada e com base em fundamentos concretos.

Informação constantes nos parágrafos 106-108 também da lei 8069/1990.

São asseguradas também ao adolescente, quanto às medidas processuais, o

conhecimento da atribuição infracional por citação ou equivalente, igualdade na relação

processual, direito a defesa por representação de advogado, assistência pela defensoria pública

aos necessitados, direito de depor perante autoridade competente e direito a solicitar a

presença dos pais no procedimento, em acordo com o art.111 da mesma lei.

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Quanto ao art.112, que estabelece as medidas aplicadas ao adolescente e

regulamentadas pela lei nº 12.594 de 18 de janeiro de 2012:

I- Advertência; II- Obrigação de reparar o dano; III- Prestação de serviços à comunidade; IV- Liberdade assistida; V- Inserção em regime de semiliberdade; VI- Internação em estabelecimento educacional; VII- Qualquer uma das previstas no art.101, I a VI. (BRASIL/1990)

Sendo importante ressaltar que para a imposição do cumprimento de algumas das

medidas acima é analisado a capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da

infração, o portador de doença ou deficiência mental recebe tratamento individual e

especializado em local adequado às suas limitações, estabelecido pelos § constantes no

art.112 da lei nº8.069/1990.

Dentre as medidas previstas como forma de coerção aos delitos cometidos pelo

adolescente, observa-se que a única medida que objetiva a privação da liberdade é a

internação e ela só pode ser prevista para o ato infracional praticado sob violência ou grave

ameaça à pessoa, por executar graves infrações ou por reiterar a medida anterior, mencionado

no art.122, lei nº 8.069/1990. Sendo competência do conselho tutelar a aplicação das medidas

referentes tanto à criança quanto ao adolescente.

O §2º do art.185 da lei nº 8.069/1990 estabelece que caso não aja nenhuma unidade de

justiça restaurativa ou mesmo por qualquer motivo não seja possível no momento a

transferência do adolescente, este aguardará em repartição policial, devendo ficar em seção

diferente da dos adultos com instalações apropriadas, não devendo ultrapassar cinco dias, do

contrário, caberá à autoridade policial pena de responsabilidade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente presente na lei nº8.069/1990 trata das

liberdades e direitos individuais da criança e do adolescente estabelecendo inclusive punições

às autoridades que negligenciem os direitos previstos neste Estatuto, regulamentando os

direitos e garantias individuais relativos à infância e à adolescência previsto na própria

Constituição de 1988. Nesse sentido, a aprovação da PEC 171/1993 seria inconstitucional no

que concerne à violação dos direitos fundamentais e concessão à criança e ao adolescente.

6. Regulamentação do sistema socioeducativo pelo SINASE (Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo) e sua efetividade

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De início, o §1º do art.1º da lei 12.594 de 2012 conceitua a SINASE, comoum

conjunto ordenado de princípios, regras e critérios das medidas socioeducativas, em âmbito

municipal, estadual e distrital, assim como todos os planos, programas e políticas específicas

para atendimento ao adolescente que cometeu delito.

Já as medidas socioeducativas têm como objetivos:

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei. (BRASIL/2012)

A instituição do Sistema NacionalSocioeducativo pela lei 12.594/2012 tem como

finalidade regulamentar a execução das medidas destinadas ao adolescente que pratique ato

infracional e analisa também a situação do adolescente após o cumprimento de medida

socioeducativa, tendo por base as perspectivas educacionais, sociais, familiares e profissionais

do adolescente, além de observar a reincidência da prática de ato infracional. Essa avaliação

do sistema será para que possam ser planejadas metas, eleger prioridades no Sistema

Socioeducativo, reestruturar ou ampliar a rede de atendimento socioeducativo, adequar a

natureza e o objetivo do atendimento socioeducativo, aumentar o financiamento e celebrar

acordos para que melhor funcione o sistema de ressocialização, observados nos arts. 25 e 26

da presente lei.

Já os princípios da execução das medidas socioeducativas consistemna legalidade do

ato, na intervenção judicial e imposição de medidas visando a auto composição de conflitos,

priorizar práticas restaurativas e que se possível favoreçam a vítima, proporcionalidade em

relação à ofensa cometida, brevidade da medida de acordo com o ato cometido,

individualização do adolescente, mínima intervenção sendo apenas o necessário para

cumprimento da medida, não discriminação do adolescente independente de suas escolhas

religiosas, sexuais, sua etnia ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status,

como também o fortalecimento do vínculo familiar durante o período sujeito à medida

socioeducativa, presentes no art.35.

Princípios que norteiam as ações correspondentes ao SINASE enquanto não for

definido o órgão de administração direta competente para operacionalizar essas ações por

qualquer dos órgãos presentes no art 8°:

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Os Planos de Atendimento Socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e esporte, para os adolescentes atendidos, em conformidade com os princípios elencados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). (BRASIL/2012, grifo nosso).

Estes órgãos prestando atendimento desde o momento da apreensão até o

acompanhamento posterior ao término do cumprimento da medida socioeducativa, enquanto o

Plano de Atendimento Socioeducativo não for elaborado (Digiácomo, 2012).

O Plano Individual de Atendimento (PIA) que éum instrumento de previsão, registro e

gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente estabelece o cumprimento das

medidas socioeducativas, seja em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade

assistida, semiliberdade ou internação. O PIA deverá considerar a participação dos pais ou

responsáveis como de grande importância, os quais têm o dever de contribuir com o processo

ressocializador do adolescente, sendo passíveis de responsabilização administrativa, civil e

criminal, previsto no art.52.

No plano individual constará os resultados da avaliação interdisciplinar, os objetivos

mencionados pelo adolescente, estimativa de suas atividades de integração social e/ou

capacitação profissional, atividades de integração e apoio familiar, formas de participação da

família para cumprimento do plano individual e as providências de atenção à sua saúde. No

que concerneao cumprimento das medidas de semiliberdade ou de internação, o plano

individual conterá ainda, a designação do programa de atendimento mais adequado para o

cumprimento da medida, o estabelecimento das atividades internas e externas, individuais ou

coletivas em que o adolescente participará e a fixação das metas para o alcance de

desenvolvimento de atividades externas, dispostos nos arts. 54 e 55.

“Não será aplicada sanção disciplinar ao socioeducando que tenha praticado a falta: I -

Por coação irresistível ou por motivo de força maior; II - Em legítima defesa, própria ou de

outrem. ” (BRASIL/2012).

Observado o art.75 da lei 12.594 de 2012 há uma ressalva quanto à aplicação de sanção

disciplinar que é quando o adolescente age por meio de coação irresistível, novamente

colocando o menor de idade na posição de incapaz ao não conseguir se desvencilhar de

aliciamento.

Apesar da regulamentação dessas medidas socioeducativas, ainda há grandes problemas

nos locais de internação dos jovens infratores:

Relativamente à qualidade do atendimento, embora se registrem alguns progressos, com a construção de unidades mais compatíveis com a norma legal, e, em alguns estados, a descentralização das mesmas, ainda ocorrem inúmeros problemas, como

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instituições ainda concebidas nos padrões do antigo Sistema FEBEM, superlotação, maus tratos, tortura e falta de capacitação dos recursos humanos. Existem ainda casos extremos de violência em diversas unidades, culminando com rebeliões e mortes de adolescentes. (MPERS/2002-2003).

7. Apensose emendas à PEC 171 de 1993:

A Proposta de Emenda Constitucional quando da sua concepção em 1993 objetivava a

seguinte redação: “São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos,sujeitos às

normas da legislação especial.” (BRASIL/1993). Uma das justificativas dadas a essa

modificação é que somente ao ser punido mais severamente é que o adolescente vai

compreender plenamente o seu papel na sociedade e consequentemente da necessidade do

cumprimento à lei, presente na justificação da PEC 171 de 1993. Outra questão a ser

observada na nova redação é que ela prevê a extensão de punição criminal para todos os tipos

de crime.

Junto à PEC 171 de 1993 houveram muitas opções normativas projetadas em outras

propostas, a PEC nº 260/00, que propõe seja fixada em dezessete anos o início da maioridade

penal; PEC's 37/95; 91/95; 426/96; 301/96; 531/97; 68/99; 133/99; 150/99; l67/99; 633/99;

377/01; 582/02; 179/03; 272/04; 48/07; 223/12 e 279/13 que propõem sejam fixadas em

dezesseis anos a maioridade penal; as PECs169/99 e 242/04, dos deputados respectivamente,

Nelo Rodolfo e Nelson Marquezelli, que propõem sua fixação aos quatorze anos; a de nº.

321/01, que pretende remeter a matéria à lei ordinária retirando do texto constitucional a

fixação da maioridade penal e a PEC 345, de 2004, do Deputado Silas Brasileiro, que propõe

seja fixada em doze anos o início da maioridade penal e a 125, de 2007, do Dep. Fernando de

Fabinho, para tornar penalmente inimputáveis as crianças.

Na mais recente tramitação da PEC 171/1993, os deputados Rogério Rosso e André

Moura propuseram uma Medida Aglutinativa Nº9/2015 à PEC 171/1993 que pretende

estabelecer a redução da maioridade penal para 16 anos apenas para crimes hediondos como

estupro, latrocínio, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte tendo sida aprovada

na Câmara Legislativa em 1° turno por 323 votos favoráveis e 155 votos contrários à medida

aglutinativa.

As emendas da comissão estabeleciam a edição de alguns artigos da Constituição,

como: a EMC Nº1/2015 que pretende incluir no artigo 207 da Constituição Federal de 1988

que cabe ao Estado instituir políticas públicas e manter programas destinados ao atendimento

socioeducativo e à ressocialização do adolescente em conflito com a lei. A EMC(Emenda da

Comissão) Nº2/2015 quer estabelecer que cabe ao Ministério Público propor, nos

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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procedimentos para a apuração de ato infracional praticado por menor de dezoito e maior de

dezesseis anos, observando-se:apenas em caso de reincidência na prática dos crimes de

homicídio, lesão corporal grave e roubo qualificado e tambémo cumprimento de pena em

estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis, também

com modificação do art.228, CF/1988. E por último a EMC Nº3 prevê a modificação do

art.228 da Constituição Federal/1988 estabelecendo a inimputabilidade dos menores de

dezesseis anos, sujeitos às normas de legislação especial, sendo ainda ao condenado entre

dezesseis e dezoito anos aplicáveis às penas previstas no Código Penal, sendo, porém, seu

cumprimento realizado nos estabelecimentos previstos pela legislação especial até a idade de

vinte e um anos. Com vinte e um anos completos, o condenado será transferido para o sistema

prisional, cessando a aplicação das normas da legislação especial na execução da pena, o

tempo de medida socioeducativa cumprida até os vinte e um anos sendo computado para

todos os efeitos legais. As emendas aglutinativas do plenário do nº1 ao 17 todas do ano de

2015, estabelecem todas as condições apresentadas nesse título.

8. Comparação de estatísticas em relação à criminalidade e taxa de reincidência dos

adultos e menores de idade

Inicialmente, cabe analisar que a população carcerária no Brasil de 2000 a 2014

aumentou de 232.755 a 607.731, no mesmo período houve aumento do número de vagas, mas

ainda assim, por exemplo, em 2014 houve um déficit de vagas de 231.062 (Ministério da

Justiça, 2014). Esses dados configuram um estado precário de sobrevivência, os presos

ficando amontoados e em condições desumanas. Situação que pode explicar o fato de a taxa

de reincidência do sistema carcerário ser tão alta, sendo 47,4% dos reincidentes homens e

30,1% das reincidentes mulheres (Instituto Avante Brasil, 2014).

Já para a análise do jovem em sistema socioeducativo há três tipos de dados: o perfil

dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa com restrição de liberdade, a relação

de incidência dos atos infracionais e a reincidência dos jovens egressos do sistema

socioeducativo. Quanto ao perfil dos adolescentes que cumprem a medida socioeducativa em

privação de liberdade (Unicef, 2015), 57% não frequentavam a escola antes da internação;

86% não completaram o ensino fundamental; 75% eram usuários de drogas e 72% tem entre

16 e 18 anos.

Em relação de incidência de atos infracionais há: 40% roubo; 24% tráfico de drogas;

9% homicídio; 6% ameaça de morte; 3% tentativa de homicídio; 3% furto; 2% porte de arma

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de fogo; 2% latrocínio; 2% tentativa de roubo e 1% estupro, dados de 2012 também da

UNICEF, o que significa que de toda a população dos menores de idade apenas 0,01% estão

reclusos por ato contra à vida.

Enfim, a taxa de reincidência do sistema socioeducativo é um dado que não tem tanta

precisão como os demais e segundo a Presidenta da Fundação Casa de São Paulo, neste

recinto a taxa de reincidência é de aproximadamente 15%. Dado que é bem inferior se

comparado à taxa de reincidência do adulto em sistema carcerário e que ainda é alto por falha

do próprio Sistema de Atendimento Socioeducativo que ainda não está completamente

implementado e: “Na execução do Programa Justiça ao Jovem, o DMF (Departamento de

Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas

Socioeducativas) visitou todas as unidades de internação de adolescentes no País e constatou

que os adolescentes são mantidos em locais insalubres e sem acesso à educação.”

(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; 2013).

9. Conclusão

A inimputabilidade penal do menor de 18 anos de idade (ART.28 DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL/1988) é uma garantia constitucional e é acima de tudo um

direito individual. De acordo com o art.60 da Constituição Federal de 1988 o direito

individual é impossibilitado de modificação pois é cláusula pétrea. Logo, a Proposta de

Emenda Constitucional de 1993 que prevê a modificação do art.228 da Constituição Federal é

inconstitucional por ser contrária à determinação da Constituição de cláusulas imutáveis

(Neto, 2000).

No que concerne ao Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo falta o

cumprimento da própria lei nº12.594/2012 que regulamenta o sistema socioeducativo. E

principalmente, assegurar educação profissionalizante, trazendo perspectiva de vida para esse

adolescente, visto que pelo analisado no item anterior, maior parte dos jovensinfratores não

frequentaram a escola ou não concluíram os estágios dela, em decorrência disso não tendo

perspectivas de boa condição de vida ou de emprego, podendo ser uma das razões para o

cometimento de atos infracionais.

Já quanto à reincidência dos jovens infratores, a própria ausência de educação e o fato

de os centros socioeducativos não terem estrutura física adequada,este não consiga

ressocializar o adolescente, ele reincidindo criminalmente:

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LIRA, G. A. S. A inconstitucionalidade da redução da maioridade penal

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Em um cenário como esse, não cabe nem sequer a discussão sobre ampliação do tempo de internação dos adolescentes. Muito menos aventar a redução da maioridade penal, de constitucionalidade duvidosa. No País ainda impera a lei do ‘cassetete pedagógico’ e não um programa pedagógico voltado à ressocialização dos adolescentes e jovens privados de liberdade. (GURGEL, M./2013)

Se observado também a questão de gastos públicos com o sistema prisional em

contraposição com o sistema educacional que pode ser uma alternativa viável para reinserção

na sociedade e no mercado de trabalho, estima-se que o gasto com um presidiário é 11 vezes

maior do que com um estudante, segundo a Associação Brasileira de Tecnologia Educacional

(2007).

O discurso da redução da maioridade penal, em geral, advém da população que exige

justiça ao ver menores de idade cometendo crimes hediondos, mas o que eles não percebem é

que inimputabilidade não quer dizer impunidade, aliás o sistema socioeducativo pelos seus

índices tem mais sucesso em sua política de ressocialização do que o sistema penitenciário

falido do Brasil, cuja taxa de reincidência é bem alta, principalmente se comparada a do

jovem infrator.

Por fim, uma discussão pouco fomentada é que diferente da quantidade de jovens que

cometem atos infracionais, mais especificamente, crimes hediondos, o número de jovens

assassinados no Brasil tendo de 1990 a 2013 como base, passaram de 5 mil para 10,5 mil

casos ao ano (DATASUS, 2013). Isso significa que, a cada dia, 28 crianças e adolescentes são

assassinados. E ainda, as vítimas de homicídio são em sua maioria meninos, negros, pobres,

que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades. A taxa de homicídio

entre adolescentes negros chegando a quase quatro vezes maior do que aquela entre os

brancos (36,9 a cada 100 mil habitantes, contra 9,6 entre os brancos) (DATASUS, 2013).

10. Referências Bibliográficas BRASIL. Câmara dos Deputados. Taxa de reincidência entre internos da Fundação Casa é de 15%. Brasília, DF, 2015. Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JU STICA/489058-TAXA-DE-REINCIDENCIA-ENTRE-INTERNOS-DA-FUNDACAO-CASA-E-DE-15.html>. Acesso em: 14 out. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão especial à Proposta de Emenda à Constituição 171 de 1993: Emendas Aglutinativas do Plenário e Emendas da Comissão.Brasília, DF, 29 abr.2015-01 jul. 2015. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_emendas?idProposicao=14493&subst=0>. Acesso em: 15 out.2015.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 63-80, jan./abr., 2016.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 63-80, jan./abr., 2016.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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Análise Crítica Sobre o Artigo 1829 do Código Civil Brasileiro e suas Diversas Interpretações

Critical Analysis Over the Article 1829 of the Brazilian Civil Code and its Diverse Interpretations

Igor Ladeira dos Santos1

Resumo: O presente artigo científico pretende minudenciar a problemática das várias

interpretações dadas ao artigo 1829, I, da Lei 10.406/2002 (Código Civil), que versa sobre a concorrência na herança entre o cônjuge supérstite, casado em regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus. Para tanto, far-se-á uma análise crítica a cada uma das quatro principais correntes da doutrina pátria acerca do tema, bem como ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Finalmente, o principal objetivo desta obra será encontrar os principais problemas de cada interpretação a fim de provar que nenhuma delas está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, havendo, pois, urgente necessidade de alteração do dispositivo legal em comento.

Palavras-chave: Concorrência. Sucessão. Comunhão parcial de bens. Artigo 1829 Código Civil. Herança.

Abstract: The following scientific paper intends to detail the problem with the multiple interpretations given to the Article 1929, I, Law 10.406/2012 (Brazilian Civil Code), that talks about the dispute for heritage goods between the living spoUse, married with partial separation of property, and the descendants from the deceased. To this end, will be addressed each of the four main currents of homeland doctrine discussing the topic, as well as the understanding of the Superior Tribunal de Justiça. Finally, the main objective of this work is to find the main problems of each interpretation in order to prove that none of them is in accordance with Brazilian legal system, having therefore an urgent need to change the legal provision under discussion.

Keywords: Concurrence. Sucession. Partial community property. Article 1829 Civil Code. Heritage.

1 Aluno do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. E-mail: [email protected]; [email protected].

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 81-104, jan./abr., 2016.

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1. Introdução

No que tange ao direito civil brasileiro contemporâneo, o cônjuge sobrevivente obteve

grande conquista no campo do direito sucessório, uma vez que o Código Civil de 2002, ao

tratar da ordem de vocação hereditária, colocou-o no rol dos herdeiros necessários do cônjuge

falecido. Desta forma, sendo herdeiro necessário, o cônjuge supérstite pode concorrer com os

descendentes do de cujus em alguns casos.

Porém, a intricada redação do inciso I do artigo 1829 do CC, que determina as

hipóteses em que o cônjuge supérstite concorrerá com os descendentes do de cujus, tem sido

alvo de severas críticas e deu azo a inúmeras discussões na doutrina e na jurisprudência

pátrias. Faz-se necessário, pois, analisar a melhor solução para o conflito, de modo que se

respeite a vontade dos contratantes (nubentes no contrato de casamento), a vontade presumida

do de cujus e o regime de bens adotado no casamento, evitando que o regime da comunhão

parcial sobreponha o da comunhão universal de bens. Tal solução também deve alijar

possibilidades de fraude. Diante as controvérsias, surgiram quatro interpretações que se

destacaram, as quais serão explicadas e analisadas minuciosamente neste trabalho.

As interpretações e soluções analisadas são as mais fortes e recorrentes na

jurisprudência e na doutrina contemporâneas. Para as análises, serão considerados os

principais argumentos favoráveis e os principais problemas de cada interpretação dada ao

dispositivo supracitado. Destarte, objetiva-se, por meio da análise dos conflitos existentes nos

posicionamentos de diferentes doutrinadores, encontrar uma interpretação que seja capaz de

profligar os principais problemas levantados e de atingir os objetivos supracitados.

2. Concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus em todo o

acervo patrimonial, se houver bens particulares.

Trata-se de posicionamento adotado por autores como, Maria Helena Diniz, Francisco

José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka, que condiciona a concorrência

sucessória do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus à existência de bens

particulares deixados pelo falecido. Nesse caso, segundo os referidos autores, além do direito

à metade de todos os bens comuns, meação – garantida em razão do desfazimento da

sociedade conjugal celebrada sob o regime de comunhão parcial de bens -, o cônjuge

sobrevivente - por direito sucessório- também recebe uma quota da herança do falecido.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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Se o de cujus deixou bens particulares, a concorrência sucessória ocorrerá sobre a

totalidade dos bens, tanto em relação aos bens particulares, quanto em relação à meação. Por

outro lado, se ele não deixou bens particulares, o consorte sobrevivo terá direito apenas à

meação que lhe é garantida em virtude do desfazimento do matrimônio. Destarte, a qualidade

de herdeiro, no que tange ao cônjuge sobrevivente, está condicionada à existência de bens

particulares deixados pelo autor da herança.

Segundo Maria Helena Diniz:

Pelo novo Código Civil, convém repetir, haverá concorrência do cônjuge supérstite com descendentes do autor da herança, desde que, pelo regime matrimonial de bens, o falecido possuísse patrimônio particular. Para tanto, o consorte sobrevivo, por força do art. 1829, I, só poderá ser casado sob o regime da separação convencional de bens, de participação final de aquestos ou de comunhão parcial, embora sua participação incida sobre todo o acervo hereditário e não somente nos bens particulares do de cujus. Se o falecido não possuía bens particulares, o consorte sobrevivente não será herdeiro, mas tem assegurada a sua meação, sendo o regime de comunhão universal ou parcial. Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal deles já lhes pertencia. Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivo receberá sua meação, se casado sob o regime de comunhão parcial, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário. Concorre em igualdade de condições com os descendentes do falecido, exceto se já tiver direito à meação em face do regime matrimonial de bens. Terá quinhão igual ao dos que sucederam por cabeça, não podendo sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer (CC, art. 1.832). (2008, p. 105 -106).

Nesse diapasão, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

afirmam que:

[...]entendimento diverso levaria a uma significativa vantagem à sucessão decorrente da união estável, pois nesta se defere ao viúvo o quinhão sobre bens já integrantes de eventual meação. E, na maioria das vezes, a parcela significativa do acervo hereditário forma-se exatamente na constância do casamento. Convocado o cônjuge, terá direito a uma parcela sobre toda a herança, inclusive recaindo o seu quinhão também sobre bens nos quais eventualmente já possui meação. Diversamente a esta conclusão, porém, talvez a tendência seja considerar a regra como estabelecendo um direito sucessório do cônjuge apenas sobre os bens particulares. Para nós a interpretação nesta linha causa expressiva desvantagem ao cônjuge em cotejo com o companheiro sobrevivente, pois este, como se verá, recebe quinhão sobre os bens adquiridos a título oneroso durante a união, sem prejuízo de sua meação; e, na maioria das situações, a realidade tem nos mostrado que o maior acervo hereditário é conquistado na constância da convivência. (CAHALI; HIRONAKA,2003, p. 213-214).

Para obliterar possíveis dúvidas e melhor ilustrar o entendimento desses respeitáveis

doutrinadores, convém analisar os gráficos abaixo, que demonstram a divisão dos bens do

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consorte falecido, supondo que este tenha deixado um cônjuge com quem foi casado pelo

regime da comunhão parcial de bens e dois filhos.

Suponha-se que o autor da herança tenha deixado um patrimônio no valor de R$

1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) e nenhum bem particular. A divisão do

patrimônio deixado seria:

Figura 1 – divisão dos bens comuns do de cujus quando este não deixou nenhum bem particular.

Suponha-se agora que o consorte falecido tenha deixado, além desses bens comuns,

R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) em bens particulares. A divisão de seu patrimônio ocorreria

da seguinte maneira:

Figura 2 – Divisão dos bens comuns do de cujus quando este deixou bens particulares.

Descendente 1

R$ 300.000,00

Descendente 2

R$ 300.000,00

Cônjuge

Supérstite

R$ 600.000,00

Divisão dos bens comuns

deixados pelo de cujus

Cônjuge

Supérstite

R$ 200.000,00

Descendente 1

R$ 200.000,00

Descendente 2

R$200.000,00

Cônjuge

Supérstite

R$ 600.000,00

Divisão dos bens comuns

deixados pelo de cujus

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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Figura 3 – Divisão dos bens particulares do de cujus.

2.1.Problemas desse pensamento

Conforme pode ser observado nos gráficos acima, se no exemplo dado for adotado o

posicionamento ora em comento, o consorte sobrevivente receberá: 50% (cinquenta por

cento) do imóvel deixado pelo de cujus, em razão do desfazimento da sociedade conjugal;

mais 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento) – equivalente a 1/3

(um terço) dos 50% (cinquenta por cento) restantes - do referido imóvel, em razão de ser

herdeiro do falecido; mais 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) -

equivalente a 1/3 (um terço)- dos bens particulares deixados pelo falecido. Enquanto cada

herdeiro receberá apenas 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento)

dos bens comuns e 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) dos bens

particulares.

Nota-se claramente a grande desvantagem dos herdeiros em relação ao cônjuge

supérstite. Ao fim da partilha este ficaria com um total de R$ 820.000,00 (oitocentos e vinte

mil reais), equivalente a 65,08% (sessenta e cinco inteiros e oito centésimos por cento) do

patrimônio total (um milhão, duzentos e sessenta mil reais), enquanto os herdeiros ficariam,

cada um, com apenas R$ 220.000,00 (duzentos e vinte mil reais), equivalente a 17,46%

(dezessete inteiros e quarenta e seis centésimos por cento) do patrimônio total.

Ademais, segundo os ensinamentos dos doutrinadores citados, e conforme pode ser

observado nos gráficos ilustrativos, essa linha de pensamento condiciona a qualidade de

herdeiro do cônjuge sobrevivente (casado sob o regime da comunhão parcial de bens)

Descendente 1

R$ 20;000,00

Descendente 2

R$ 20.000,00

Cônjuge

Supérstite

R$20.000,00

Divisão dos bens particulares

deixados pelo de cujus

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unicamente à existência de bens particulares. Sendo assim, a existência de determinado bem

particular, que pode, inclusive, ter sido adquirido antes dos nubentes sequer se conhecerem,

influenciaria na quota dos bens comuns, adquiridos conjuntamente e com o esforço de ambos,

a ser recebida pelo sobrevivente quando da morte do outro.

Tal hipótese é claramente nociva aos demais herdeiros do de cujus. Nesse sentido, é

oportuno citar brilhante reflexão de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado (2005,

p.942):

[...] c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade.[...]

Outro grande problema do posicionamento adotado por Maria Helena Diniz, Francisco

José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka é a senda para fraudes que ele cria. Se

aplicarmos a interpretação sugerida pelos exímios autores, um consorte poderia facilmente

aumentar sua porção na herança do outro. Para tanto, bastaria que ele solicitasse a um amigo

que fizesse qualquer doação em nome exclusivo de seu cônjuge.

Nesse sentido aduz Carlos Roberto Gonçalvez, ao criticar as fraudes possibilitadas

pela interpretação ora em comento:

[...] cônjuge moribundo recebe doação de determinado bem (art. 1659, I), feita por suposto amigo, na verdade, amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência daquela sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao princípio da eticidade. (GONÇAVEZ, 2009, p.153).

Por fim, é salutar observar o disposto no artigo 1.658 da Lei 10.406/2002 (Código

Civil), segundo o qual, no regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que

sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções feitas nos artigos 1.6592,

2 Art. 1659: Excluem-se da comunhão: I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares; III - as obrigações anteriores ao casamento;

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

Alethes | 87

1.6613 e 1.6624, do referido dispositivo legal. Assim, a lógica de separação entre o regime da

comunhão parcial e o regime da comunhão universal de bens baseia-se na vontade que os

nubentes têm em compartilhar os bens adquiridos antes da união. Quando os noivos desejam a

máxima comunicabilidade de seus bens, optam pelo regime da comunhão universal.

Destarte, a interpretação em análise consiste numa clara subversão da lógica de

separação entre os dois regimes, uma vez que permite que o cônjuge supérstite, casado pelo

regime da comunhão parcial de bens, em determinadas hipóteses, logre mais direitos que o

casado pelo regime da comunhão universal, conforme pode ser observado no seguinte

exemplo:

“A” e “B” são casados e possuem um filho “C”. “A” falece deixando um patrimônio

particular equivalente a R$500,00 (quinhentos reais) e um patrimônio comum - conquistado

com a ajuda de “B” enquanto casados - equivalente a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Se “A” e “B” fossem casados pelo regime da comunhão parcial de bens e fosse aplicada a

interpretação ora criticada, “B” concorreria com “C” em relação à totalidade dos bens

deixados por “A”. Portanto, “B” ficaria com a metade dos bens comuns - a título de meação -,

equivalente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), e, por haver bens particulares deixados

pelo de cujus, concorreria com “C” no restante dos bens. Deste modo, “B” receberia – a título

de herança – a metade dos bens particulares deixados (a outra metade seria herdada por “C”),

equivalente a R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) e a metade do patrimônio comum que

havia sobrado após a meação, ou seja, 50% (cinquenta por cento) dos R$ 500.000,00

(quinhentos mil reais) restantes, o que equivale a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil

reais). Os outros R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) seriam herdados por “C”.

Logo, “B” ficaria com R$ 750.250,00 (setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta reais)

do total de R$ 1.000.250,00 (um milhão, duzentos e cinquenta reais) deixados por “A”.

Porém, se “A” e “B” fossem casados pelo regime da comunhão universal de bens, “B”

receberia apenas a metade dos bens particulares, equivalente a R$ 250,00 (duzentos e

cinquenta reais), e metade dos bens comuns, equivalente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil

reais). Ficaria, deste modo, com R$ 500.250,00 (quinhentos mil, duzentos e cinquenta reais),

IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes. 3 Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento. 4 Art. 1.662. No regime da comunhão parcial, presumem-se adquiridos na constância do casamento os bens móveis, quando não se provar que o foram em data anterior.

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valor bastante inferior aos R$750.250,00 (setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta

reais) que receberia se fosse casado pelo regime da comunhão parcial de bens.

Deve-se ainda considerar que o regime da comunhão parcial de bens (também

conhecido por regime universal) é presumível para os cônjuges que não optam por nenhum

tipo de regime de bens. Portanto, não é plausível que se admita que ele seja mais benéfico ao

cônjuge supérstite que o regime da comunhão universal de bens, escolhido pelos cônjuges que

declaram manifestamente a vontade de garantir a máxima comunicabilidade de seus bens.

É verdade que o regime de bens que irá viger no casamento é de livre escolha dos

nubentes - desde que não contrarie o direito -, não sendo eles obrigados a optar por nenhum

dos regimes previstos no Código Civil, o que lhes permite adotar um regime particular que

expresse mais fielmente a vontade do casal. Todavia, é costume que os noivos optem por

algum dos regimes já positivados no código, mormente por desejarem evitar o grande

desgaste de passar pela delicada e constrangedora situação de realizar reuniões para discutir

sobre o futuro de seus bens em caso de divórcio ou de falecimento de um dos dois.

Diante disso, é preciso que a separação entre os regimes sugeridos pelo Código seja

coerente e que seus benefícios sejam determinados. Eles não podem ser confusos e

imprevisíveis. Não se pode permitir que a proteção dos regimes de bens seja determinada pelo

acaso. No momento da escolha, os cônjuges precisam ter certeza de qual regime será o mais

benéfico ao seu consorte; qual lhe garantirá mais proteção e mais direitos.

Porém, a aplicação da interpretação em análise impede que a escolha dos cônjuges, no

que tange a sucessão de seus bens, seja segura e realmente garanta que a vontade deles será

exercida, uma vez que condiciona a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite - e

consequentemente a repartição da herança – à existência de bens particulares deixados por

aquele que vier a falecer. Tornando a divisão da herança dependente não exclusivamente da

vontade dos cônjuges, mas sim à existência de bens particulares no momento do falecimento

de um deles.

Ressalta-se, ainda, a opinião de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado ( 2005,

p. 942) acerca dos bens particulares, qual seja, a que toda e qualquer pessoa sempre deixará

bens particulares, sejam eles de valores insignificantes ou não. Sendo assim, se a

interpretação em estudo fosse adotada, a comunhão parcial de bens quase sempre seria mais

benéfica ao cônjuge supérstite do que a comunhão universal.

3. A concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de cujus apenas

na meação da herança, se não houver bens particulares.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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Segundo a corrente de pensamento liderada pela ex-desembargadora do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul e atual vice-presidente do IDBFam – Instituto Brasileiro de

Direito de Família -, Maria Berenice Dias, o direito a concorrência sucessória entre o cônjuge

supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus,

ocorrerá somente em relação a meação deste último e quando ele não houver deixado bens

particulares. Tal posicionamento, a contrario sensu, preconiza que o direito de concorrência

do cônjuge está condicionado à ausência de bens particulares deixados pelo de cujus.

Portanto, havendo bens particulares, não há se falar em concorrência sucessória entre consorte

sobrevivo e descendentes.

Segundo Maria Berenice dias:

Aquele que casa pelo regime da comunhão parcial, com quem já possui patrimônio, quando da morte do cônjuge percebe apenas sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento. Apesar de todas as críticas a esse raciocínio – que dizem afrontar a letra da lei -, é o único que (...) corresponde à vontade manifestada pelo casal quando do casamento, ao optarem pelo regime da comunhão parcial. (...) a quota do cônjuge só pode ser calculada sobre os bens adquiridos durante o casamento, sob pena de chancelar-se o enriquecimento injustificado de quem em nada contribuiu para amealhar o patrimônio. Interpretação diversa deste intrincado e pouco claro dispositivo legal subverteria o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optarem pelo regime da comunhão parcial (não firmando pacto antenupcial), querem garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento e dos recebidos por doação ou herança, dividindo-se somente o patrimônio adquirido durante a vida em comum. Claro que, quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados dessa maneira. É a velha expressão: o que é meu, é meu; o que é teu, é teu; e o que é nosso, metade de cada um. (DIAS, 2008, p. 109).

Por fim, essa corrente de pensamento levanta uma questão interessante acerca do

motivo para as diversas interpretações do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil. Segundo

Maria Berenice dias, a diversidade de interpretações é fruto da confusa redação do

mencionado inciso, mormente à pontuação, isto é, ao ponto e vírgula inserido no texto em

comento. Para a doutrinadora, após o ponto e vírgula, passa-se a tratar de assunto diverso, não

enquadrado pela expressão “salvo se”. Nesse sentido, eis o seu magistério:

Em respeito à natureza do regime da comunhão universal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares. Outra não pode ser a leitura deste artigo. Não há como contrabandear para o momento em que é tratado o regime da comunhão parcial a expressão “salvo se”, utilizada exclusivamente para excluir a concorrência nas duas primeiras modalidades: o regime da comunhão e o da separação obrigatória. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na parte final – após o ponto-evírgula -, passa a lei a tratar de hipótese diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a distinção quanto à

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existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do ponto-e-vírgula. Isso inverte totalmente o sentido da norma, pois afasta o direito de concorrência na hipótese de o de cujus possuir patrimônio particular. Exclusivamente no caso de não haver bens particulares é que o cônjuge concorre com os herdeiros. (DIAS, 2008, p. 160).

Ainda sobre esse ponto:

Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)...aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (...) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares5.

Analisando o mesmo caso do exemplo dado na página 3, qual seja: consorte falecido

deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois

filhos. À época do falecimento o autor da herança possuía R$ 1.200.000,00 (um milhão e

duzentos mil reais) em bens comuns e nenhum bem particular. Segundo a corrente de

pensamento em estudo, teríamos:

Figura 4 – Divisão dos bens comuns do de cujus.

Todavia, se o autor da herança deixar bens particulares, tais serão divididos

unicamente entre os filhos (metade para cada um), enquanto os bens comuns serão divididos

da seguinte forma:

5 Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/2_-_ponto_final.pdf >. Acesso em: 2 out. 2015.

Descendente 1

R$ 200.000,00

Descendente 2

R$ 200.000,00

Cônjuge Supérstite

R$ 200.000,00

Cônjuge Supérstite

R$ 600.000,00

Divisão dos bens comuns deixados

pelo de cujus

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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Figura 5 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus quando há bens particulares.

3.1. Dos problemas desse pensamento

A justificativa dada por Maria Berenice Dias para que o cônjuge supérstite, casado

pelo regime da comunhão parcial de bens, herde sobre a meação dos bens comuns deixados

pelo de cujus é que houve esforço mútuo dos consortes para adquiri-los e que o desejo

manifestado pelo casal ao optar pelo regime da comunhão parcial era dividir os bens

adquiridos conjuntamente. Todavia, com toda a vênia à ilustre autora, no casamento realizado

sobre o regime da comunhão universal também há esforço mútuo na aquisição dos bens e a

vontade dos nubentes em dividir os patrimônios é ainda mais evidente e incontestável. E no

casamento realizado pelo regime da comunhão universal de bens, não há concorrência

sucessória do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de cujus.

Portanto, segundo o pensamento em comento, se o cônjuge supérstite for casado pelo

regime da comunhão universal de bens, este não terá o direito à concorrência sucessória com

os descendentes em hipótese alguma. Doutro lado, se o cônjuge sobrevivente for casado sob o

regime da comunhão parcial de bens – e o falecido não houver deixado bens particulares – ele

terá o direito de concorrer com os descendentes na meação do de cujus. Fica claro que, uma

vez não havendo bens particulares deixados pelo falecido, o cônjuge sobrevivente casado pelo

regime da comunhão parcial de bens terá direito a uma parte maior da herança do que o

cônjuge casado pelo regime da comunhão universal de bens que esteja nas mesmas

circunstâncias.

Descendente 1

R$ 300.000,00

Descendente 2

R$ 300.000,00

Cônjuge Supérstite

R$ 600.000,00

Divisão dos bens comuns deixados

pelo de cujus

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Outro problema a ser considerado é que a interpretação sugerida por Maria Berenice

Dias possibilita fraudes semelhantes às permitidas pela interpretação estudada no tópico

anterior6. Porém, agora o cônjuge sobrevivente não será mais o possível beneficiado pela

fraude, mas sim o principal prejudicado, uma vez que pode ter seu direito à concorrência

sucessória fraudado por descendentes do de cujus.

Nesse sentido, suponha-se a seguinte situação.

“A” é casado com “B” pelo regime da comunhão parcial de bens. “A” possui um filho

- “C” - que não é filho de “B”. Ocorre que a relação entre “B” e “C” é conflituosa. Deste

modo, “C”, com o intuito de beneficiar-se em detrimento de “B”, faz uma doação em nome

exclusivo de “A” – de preferência enquanto este estiver moribundo ou em idade bastante

avançada, para garantir que faleça sem desfazer-se do bem doado. Assim, “A” passa a possuir

bens particulares e “B” não será mais considerado seu herdeiro em relação aos bens comuns

por ele deixados. Assim, “C” aumentaria sua porção nos bens comuns deixados por “A”,

prejudicando “B”.

A adoção da interpretação em análise, também contraria o princípio da operabilidade,

princípio fundamental do Código Civil de 2002. Nesse sentido, convém observar mais uma

vez os brilhantes ensinamentos de Guilherme Couto de Castro. Se o mencionado autor,

conforme supracitado, mostrou que o de cujus sempre deixará algum bem particular, por mais

simplório que seja, o posicionamento em comento tornaria o inciso I do artigo 1.829 letra

morta, uma vez que a condição necessária para o cônjuge supérstite adquirir direito a

concorrer com os descendentes jamais seria satisfeita. Desse modo, o cônjuge supérstite

nunca se tornaria herdeiro do de cujus, uma vez que a condição “se o autor não houver

deixado bens particulares” nunca – ou quase nunca - será satisfeita.

4. Da concorrência do cônjuge supérstite assemelhada à concorrência do

companheiro com os descendentes do de cujus.

4.1. A teoria defendida por Roberto Senise Lisboa

Os defensores do posicionamento que será exposto interpretam o artigo 1829,I, do

Código Civil fazendo um paralelo entre o texto legal e a atual evolução das relações afetivas.

Destarte, segundo a interpretação em comento, no casamento realizado sob o regime da

6 Veja página 7.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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comunhão parcial de bens, deve-se estabelecer um regime jurídico semelhante ao disposto no

artigo 1.790 do Código Civil.

Assim dispõe o referido artigo:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, Lei 10.406,2002, art. 1.790).

Convém fazer uma breve análise sobre o artigo em comento. Segundo exemplo dado

por Theotonio Negrão (Negrão, 2011, p. 601), no que tange ao inciso I: “Tendo sido

onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e

havendo dois descendentes comuns, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação,

mais R$ 1.000,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.000,00”.

Já em relação ao inciso II:

tendo sido onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e havendo dois descendentes exclusivos do de cujus, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação, mais R$ 600,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.200,00 (NEGRÃO, Theotonio, 2011, p.601).

Portanto, percebe-se claramente uma vantagem do companheiro em relação ao

cônjuge casado em comunhão parcial de bens se adotarmos o entendimento da doutrina

majoritária, qual seja, que este último só concorre com os descendentes do de cujus se ele

houver deixado bens particulares, e tal concorrência se dará unicamente em relação a tais

bens. Conforme pode ser observado, o companheiro irá concorrer independentemente da

existência de bens particulares e sobre todo o acervo comum.

Nesse sentido, faz-se oportuno observar as reflexões do Promotor de Justiça, Roberto

Senise Lisboa:

A lei civil não teria, atualmente, qualquer razão para impedir o concurso se o de cujus não tivesse deixado bens particulares. Até mesmo diante do fato de que, na união estável, o convivente sempre participará da sucessão com os herdeiros necessários do de cujus, sem qualquer restrição, salvo aquela que estabelece limites de percentual quando o descendente herdeiro for apenas filho do autor da herança. Esse comparativo entre direitos outorgados pela lei civil ao cônjuge sobrevivente e

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ao convivente é inevitável para demonstrar-se o equívoco legislativo efetuado, mediante um tratamento desigual e preconceituoso. (LISBOA, 2010, p. 361).

Percebe-se que, na prática, o defendido por Roberto Lisboa é muito semelhante ao

posicionamento de Maria Berenice dias, porém, sem o grande problema de condicionar-se a

qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite à ausência de bens particulares deixados pelo de

cujus, o que, conforme já foi visto, daria margem a fraudes.

Lisboa ainda destaca:

Se o convivente se beneficia em qualquer hipótese com a sucessão, bastando que seja reconhecida, ainda que incidentalmente, a união estável, sendo os efeitos patrimoniais equiparados aos da comunhão parcial de bens, não há razão para adotar-se uma interpretação que suprime o direito do cônjuge sobrevivente de concorrer à toda a sucessão, se casado em comunhão parcial de bens. (LISBOA, 2010, p. 364).

Portanto, para o Promotor, necessário seria a modificação legislativa do artigo 1829,I

do Código Civil a fim de estabelecer entre os cônjuges casados pelo regime da comunhão

parcial de bens, um regime jurídico sucessório semelhante ao estabelecido, pelo artigo 1.790

do mesmo dispositivo, entre os companheiros.

4.2. Do projeto de lei nº 508, de 2007

No sentido de atenuar as diferenças entre o regime sucessório da união estável e o do

casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens, foi criado o projeto de Lei n°

508, de 2007, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, relatoria da Deputada Jô

Moraes. Tal projeto visa revogar o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 e alterar o artigo

1.829, do referido dispositivo.

A redação do novo artigo 1829 sugerida pelo Projeto de Lei foi proposta pelo IDBFam

(Instituto Brasileiro de Direito de Família) e assim determina:

Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente; III - ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente; IV – aos colaterais. Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados.7 (Projeto de Lei PL 508 de 2007).

Conforme pode ser observado, a redação dada pelo Projeto de Lei em comento não é

exatamente a solução sugerida por Roberto Senise Lisboa, uma vez que permite a

concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus também em relação aos

bens particulares por ele deixados.

4.3. Dos problemas com o projeto de lei 508/2007

Um dos principais motivos para justificar a revogação do artigo 1.790 e a nova

redação do artigo 1.829 - ambos do Código Civil-, segundo os defensores do projeto de lei

508/2007 é que, com a atual redação dos dispositivos em comento, no que tange aos direitos

sucessórios, a união estável é favorecida em relação ao casamento realizado pelo regime da

comunhão parcial de bens.

Porém, no regime da comunhão universal de bens o cônjuge supérstite não herda sob a

meação do de cujus. Destarte, poderão ocorrer situações em que não só o casamento realizado

pelo regime da comunhão parcial de bens, mas também a própria união estável, garantam

mais proteção e benefícios ao cônjuge ou companheiro do que o casamento pela comunhão

universal de bens.

Imaginemos a seguinte hipótese: “A” casa-se com “B” pelo regime da comunhão

universal de bens. No momento do casamento, “A” não possuía nenhum bem particular de

valor considerável, apenas alguns bens móveis (roupas, materiais de trabalho etc). Ao longo

da vida de casados, “A” e “B” tiveram dois filhos e construíram um patrimônio avaliado em

R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). Quando “A” morre, de acordo com o estabelecido

regime de comunhão adotado pelo casal, “B” terá direito apenas a sua meação, ou seja, R$

300.000,00 (trezentos mil reais), os outros R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) serão divididos

entre os dois filhos, herdando cada um R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais).

7Recomenda-se ler a íntegra do projeto disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345372> Acesso em: 06 out. 2015.

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Figura 8 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus, quando este era casado pelo regime da

comunhão universal de bens.

Todavia, se “A” e “B” vivessem em união estável – ressalta-se aqui que o mesmo

ocorreria se fossem casados pelo regime da comunhão parcial de bens - e as alterações

propostas pelo Projeto de Lei 508/2007 estivessem em vigor, “B” herdaria os R$

300.000,00(trezentos mil reais) referentes à sua meação, mais R$ 100.000,00 de herança do

de cujus. Os filhos, por sua vez, herdariam, cada um, apenas R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Figura 9 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus quando este vivia em união estável.

Portanto, percebe-se que o Projeto de Lei 508/2007 não resolve o problema a que se

propôs, qual seja, impedir que a união estável garanta mais direitos que o casamento. O que o

Projeto de Lei tenta fazer é apenas mudar o local de sua incidência. Se o problema estava na

vantagem auferida à união estável se comparada com o casamento em regime da comunhão

parcial de bens, com as alterações propostas pelo Projeto, ele passaria a residir na vantagem

Descendente 1

R$ 150.000,00

Descendente 2

R$ 150.000,00

Cônjuge supérstite

R$ 300.000,00

Divisão dos Bens comuns deixados pelo de

cujus, quando casado pelo regime da

comunhão universal de bens

Descendente 1

R$100.000,00

Descendente 2

R$ 100.000,00

Companheiro

sobrevivente

R$ 100.000,00

Companheiro

sobrevivente

R$ 300.000,00

Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus,

quando este vivia em união estável

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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daquele que vive em união estável em relação àquele casado pelo regime da comunhão

universal de bens.

5. Concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus apenas nos

bens particulares.

Trata-se de corrente majoritária na doutrina, sendo defendida por autores como:

Theotonio Negrão, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Carlos Roberto

Gonçalves, Guilherme Couto de Castro, Silvio de Salvo Venosa, entre outros. Segundo esses

autores, o cônjuge supérstite casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com

os descendentes do de cujus apenas nos bens particulares por ele deixados.

O sentido da lei, em princípio, foi proteger o cônjuge quando ele nada recebe a título

de meação (VENOSA, 2005, p. 138). Acrescenta-se que tal proteção deve ocorrer somente

quando não vai diametralmente contra a vontade clara do de cujus. Destarte, na hipótese de

casamento realizado em comunhão universal de bens, como o patrimônio será

obrigatoriamente dividido, não há se falar em recebimento de herança pelo cônjuge

sobrevivente. Igualmente, no regime de separação obrigatória, o consorte sobrevivo não

herdará, sob pena de haver fraude ao sistema. De maneira análoga, o cônjuge supérstite não

será herdeiro se for casado pelo regime da separação convencional de bens, pois, caso

contrário, haveria claro desrespeito à expressa vontade do de cujus.

Nesse sentido, convém observar que diante de tantos posicionamentos acerca do

disposto no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil e do grande congestionamento no

judiciário causado pelas constantes discussões sobre o tema, o Conselho da Justiça Federal

consolidou, na III Jornada do Direito Civil, o enunciado 270, que determina:

O art.1829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes. (III Jornada de Direito Civil,2005, p. 70).

Deste modo, convém analisar como ficaria a divisão de bens na seguinte hipótese:

consorte falecido deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de

bens e dois filhos. O patrimônio do autor no momento do falecimento era de R$ 1.200.000,00

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(um milhão e duzentos mil reais) em bens comuns e R$ 60.000 (sessenta mil reais) em bens

particulares.

Figura 6 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus.

Figura 7 – Divisão dos bens particulares deixados pelo de cujus.

5.1. Dos problemas com esse pensamento

Uma das críticas acerca dessa interpretação dá-se em relação à autonomia de vontade

dos nubentes. Para os que discordam dessa interpretação, ao optar pelo regime da comunhão

parcial de bens os nubentes estão declarando expressamente a vontade de impedir a

comunicabilidade dos bens particulares de cada um e garantir a comunicabilidade dos bens

adquiridos, onerosamente, em conjunto. Portanto, permitir a concorrência do cônjuge

Descendente 1

R$ 20.000,00

Descendente 2

R$ 20.000,00

Cônjuge

supérstite

R$ 20.000,00

Divisão dos bens particulares

deixados pelo de cujus.

Descendente 1

R$ 300.000,00

Descendente 2

R$ 300.000,00

Cônjuge

supérstite

R$ 600.000,00

Divisão dos bens comuns deixados

pelo de cujus

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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sobrevivente com os descendentes e ascendentes do de cujus no que tange aos bens

particulares deixados por este último, violaria sua vontade (a do consorte falecido) expressa.

Todavia, a principal crítica à essa corrente é a de que, conforme visto no item 4 deste

artigo, sua aplicação garante menos direitos ao casamento feito sob o regime da comunhão

parcial de bens do que possui a união estável.

5.2.Argumentação favorável

Primeiramente, no que diz respeito à crítica do desrespeito a autonomia da vontade dos

noivos que realizam o casamento sob o regime da comunhão parcial de bens, é preciso ter em

mente que, uma vez que tal interpretação seja adotada, não há se falar em desrespeito à

autonomia de vontade dos contratantes no contrato de casamento, pois, no momento da

escolha do regime de comunhão de bens, os nubentes terão ciência de que o regime da

comunhão parcial faz do consorte sobrevivo herdeiro do consorte falecido no que tange aos

bens particulares. Se os nubentes tiverem ciência da interpretação da lei e ainda assim

optarem em realizar o casamento pelo regime da comunhão parcial, estarão declarando que é

exatamente esta a vontade deles, uma vez que o ninguém é obrigado a adotar determinado

regime de bens, sendo o casal livre para criar seu próprio regime de bens, com regras

diferentes daquelas previstas no Código, desde que não viole as disposições legais.

Ainda sobre as vantagens do pensamento em análise, é salutar observar as reflexões de

Guilherme Couto de Castro, Juiz Federal da seção Judiciária do Rio de Janeiro e autor do

projeto aprovado III Jornada de Direito Civil. Nesse sentido, argumenta o respeitável

pensador:

a) Se a ratio essendi da proteção sucessória do cônjuge foi exatamente privilegiar aqueles desprovidos de meação, a concorrência sobre todo o acervo iria de encontro à própria mens legis. O intérprete que assim procede despreza a vontade do legislador, a qual, independentemente da eterna polêmica entre mens legis e mens legislatoris, sempre constituirá critério válido para se penetrar no sentido e alcance de qualquer norma jurídica. Por outro lado, ao se privilegiar quem já era detentor de meação em detrimento das gerações futuras do autor da herança, representadas pelos seus descendentes, deixa-se de atender o princípio da sociabilidade; b) Assegurar a concorrência sobre a totalidade da herança de acordo com a existência ou não de bens particulares pode dar ensejo a fraudes, como na hipótese em que o cônjuge moribundo recebe doação de um determinado bem (art.1659,I), feita por suposto amigo, na verdade amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência desta sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao principio da eticidade; c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso

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pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade; d) O princípio da unidade da herança não pode ser visto como dogma, nem o seu rompimento pelo disposto na parte final do inciso I do art. 1829 implica qualquer prejuízo ao sistema. Trata-se (o inc. I) de exceção ao princípio da unidade, à semelhança do que existe em diversos outros ordenamentos jurídicos, como o argentino, o qual, nesse sentido, foi mais claro que o nosso Código Civil. (CASTRO, 2005. P. 414 - 115).

Tal argumentação foi escolhida por elencar vários dos principais argumentos dos

defensores da concorrência do cônjuge supérstite com os herdeiros do de cujus apenas nos

bens particulares.

6 - Do posicionamento do STJ

O Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento8 de que o cônjuge

sobrevivente, casado em regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes

do de cujus somente em relação aos bens particulares deixados por este último.

Nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS . INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. (...) 2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus. 4. Recurso especial provido. (Brasília. Superior Tribunal de Justiça, 2015, grifo nosso).

6. Considerações finais

Conforme visto em todos os casos analisados, a incongruência de pensamentos em

relação ao inciso I do artigo 1829 do Código Civil é motivo de grande debate na doutrina

8 Nesse sentido, vide o noticiário do STJ. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Se%C3%A7%C3%A3o-uniformiza-entendimento-sobre-sucess%C3%A3o-em-regime-de-comunh%C3%A3o-parcial-de-bens> Acesso em: 06 out. 2015.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

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brasileira. Diante as análises feitas neste trabalho, percebe-se que não há, atualmente, uma

solução capaz de dirimir todos os problemas trazidos pelo referido dispositivo legal. Cada

uma das interpretações sugeridas enseja problemas consideráveis e de complexas resoluções.

Diante disso, pode-se inferir que o critério utilizado pelo legislador para determinar se haverá

concorrência do cônjuge com os descendentes do de cujus é por demasiado falho.

Pode-se dizer que perante a atual redação do inciso em análise, a interpretação mais

adequada é a adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pela doutrina majoritária

(concorrência do cônjuge sobrevivente e dos descendentes do de cujus apenas nos bens

particulares deixados por este último), tendo em vista que, malgrado apresente problemas -

mormente o de não impedir que a união estável sobreponha-se ao casamento realizado sob o

regime da comunhão de bens em alguns casos-, garante a proteção do cônjuge supérstite e os

direitos dos demais herdeiros, dificulta a existência de fraudes e não condiciona a qualidade

de herdeiro do consorte sobrevivo à existência de bens deixados pelo de cujus.

Todavia, embora a interpretação supramencionada seja a mais adequada, é mister

destacar que nenhuma das interpretações sugeridas é capaz de sanar integralmente os

problemas, uma vez que há má redação legislativa e as interpretações devem ser limitadas

pela letra da lei, ou seja, o intérprete não pode assumir o papel do legislador e modificar

categoricamente o que está positivado no código, ainda que sob o argumento de melhorar o

disposto na lei. Portanto, a solução ideal seria o legislador fazer modificações no campo do

direito sucessório, a fim de garantir que: (I) o casamento realizado sob o regime da comunhão

parcial de bens e a união estável estejam em igualdade de direitos, impedindo que um

sobreponha-se ao outro ; (II) que o casamento pelo regime da comunhão universal de bens

não seja desfavorecido em relação ao casamento realizado pelo regime da comunhão parcial

de bens e (III) que não haja possibilidades para fraudes.

Para tanto, o mais adequado seria revogar o artigo 1.790 do Código Civil e tratar, no

mesmo dispositivo legal, dos direitos sucessórios oriundos dos casamentos e das uniões

estáveis, garantindo que tanto o cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens,

quanto o(a) companheiro(a), além de possuir metade de todos os bens adquiridos

onerosamente em conjunto, seja herdeiro(a) do de cujus apenas no que tange aos bens

particulares deixados por este. Essa alteração no disposto no Código Civil resolve o último

problema da interpretação sugerida: impede que a união estável tenha mais direitos que o

casamento realizado sob o regime da comunhão universal de bens, sem causar extremos

prejuízos e discriminações à união estável.

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7. Referência

ALVES, Jônes Figueiredo; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 6º vol. 22. Ed.; Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2008. CAHALI, Francisco José Cahali; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil, v. VI, 2003. BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <h ttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 25 dez. 2015. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Concorrência acervo hereditário. Recurso Especial Civil 1.368.123-SP. Relator: Ministro Sidnei Beneti. 22 abr. 2015. Informativo nº 0563, Brasília, DF, p. 5. 14 de jun. de 2015. BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Inventário. Agravo de Instrumento

1.0024.10.199410-1/001. Relator: Desembargador Eduardo Andrade – 1 ª Câmara Cível. 13 jul. 2012. BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível N.º 1.0024.04.463851-8/001(1). Relator: Desembargador Nepomoceno da Silva. 06 dez. 2007. BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento 00579354220138190000. Relator: Desembargador Carlos Santos de Oliveira – 22 ª Câmara Cível. Julgamento em 21 de jan. de 2012. Publicação da súmula em: 27 fev. 2014. BRASIL, Tribunal Regional de São Paulo. Agravo de Instrumento 22260939420148260000. Relator: Desembargador Silvério da Silva – 8 ª Câmara De Direito Privado. 30 abr. 2015. BRASÍLIA. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PL 508/2007. Altera dispositivos da Lei 10.406/2002 que dispõem sobre os direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros de união estável. Disponível em: <

http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345372> Acesso em: 06 out. 2015. JORNADA DE DIREITO CIVIL, 3, 2004, Brasília. III Jornada de Direito Civil. Portal do Conselho da Justiça Federal. 2005. LACERDA, Cesar, concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes. 2006. Monografia apresentada Universidade do Vale do Itajai – UNIVALI – para obtenção do grau de bacharel em Direito. LACERDA, Maria da Glória Souza; DUTRA, Vera Carmem de Ávila, Interpretação do art. 1829, I, do Código Civil de 2002, no tocante ao regime da comunhão parcial de bens, revista das Faculdades Integradas Vianna Júnior – Vianasapiens, v.1 Ed especial, out. 2010.

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LADEIRA, I. Análise Crítica sobre o artigo 1829

Alethes | 103

LISBOA, Roberto Senise, manual de direito civil, v. 5: direito de família e sucessões, 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. GONÇALVES, Carlos Roberto, direito civil brasileiro, V. 7, direito das sucessões, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊIA, José Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme A. Código Civil e Legislação Civil em Vigor, 30. Ed. São Paulo, 2011.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 81-104, jan./abr., 2016.

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TURRA, k. k. Seria o “oversharenting” uma violação

Alethes | 105

Seria o “Oversharing” uma Violação ao Direito à Privacidade e à Imagem da Criança?

Could the “Oversharing” be Considered a Violation of the Rights to Privacy and the Image of the Child?

Karin Kelbert Turra1

Resumo: O artigo em questão analisará a possibilidade de classificar a prática do

compartilhamento excessivo de imagens da criança como uma violação ao seus direitos à imagem, respaldados pelos direitos à intimidade e à privacidade, constitucionalmente garantidos. Realizada principalmente pelos pais, com o advento das redes sociais, tal prática vem se tornando cada vez mais recorrente e disseminada, sem que sejam discutidos os riscos causados à criança, bem como a falta de autorização dos menores para a divulgação de sua imagem. Por fim, tomando como positiva a resposta do questionamento principal que orienta a discussão deste trabalho, analisar-se-á a competência referente ao Ministério Público de tutelar os direitos inerentes às crianças e aos adolescentes, bem como as medidas autorizadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente a serem tomadas por este órgão em caso de violação de seus direitos.

Palavras-chave: “Oversharenting”. direito à imagem. direito à privacidade. Ministério Público.

Abstract: The presented article will examine the possibility of classifying the practice of

excessive sharing child’s images as a violation of their rights to the image, backed by the rights to privacy and intimacy, constitucionally assecured. Mostly performed by the parents of the child, since de advent of social networks, such practice is becoming increasingly widespread and recurring without any questioning of the risks the child are exposed to, as well as the absence of authorization from the minors for the dissemination of their images. Finally, taking as positive the answer to the main question that guides the discussion of this work, we will analyze the competence of the Public Ministry to protect the rights inherent in children and adolescents and the appropriate actions authorized to them by the Statute of Children and Adolescents, in case of violation of these rights.

Keywords: “Oversharenting”. Image rights. Privacy Rights. Public Ministry.

1 Graduanda do cuso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) ES.

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1. Introdução O presente trabalho tem por escopo discutir o fenômeno "Oversharenting", que surge

a partir da era da informação, impulsionada pelos avanços tecnológicos das últimas três

décadas, e, dentro deste cenário, verificar se a exposição em excesso das crianças realizada

por seus pais pode ser considerada uma violação dos seus direitos da personalidade, no

âmbito de sua privacidade e direito à imagem.

A metodologia da pesquisa realizada consistiu em pesquisa teórica, a partir da qual o

conhecimento foi constituído com o auxílio de estudos de obras literárias, diplomas legais e

reportagens, os quais direcionaram a discussão acerca da problemática em questão, para

chegar à conclusão dos fatos apresentados.

Inicialmente, far-se-á uma exposição fática e conceitual acerca do fenômeno

supracitado, abordando suas características, e outro fenômeno, derivado do inicial,

denominado "Oversharenting", o qual será o alvo de discussão, por envolver o

compartilhamento em demasia de imagens e dados de crianças nas redes sociais, e quais

riscos tal prática pode acarretar.

Em segundo plano, a discussão se voltará para a questão dos direitos de

personalidade das crianças, com destaque para o direito à privacidade e o direito à imagem,

com o intuito de verificar o alcance de tais direitos no que tange à proteção da criança como

ente civil.

Após a apresentação dos direitos personalíssimos citados, será concretizada a

discussão referente à possível ou não violação dos direitos à imagem e privacidade das

crianças pelos pais, que incorrem na prática do "Oversharenting”.

Por fim, será analisado o papel do Ministério Público como responsável por tutelar

tais direitos referentes às crianças, e de que maneira o referido órgão exerce essa

competência.

2. Os fenômenos "oversharing" e "oversharenting"

O advento da Era Digital, impulsionada pelos avanços tecnológicos surgidos a partir

do final do século XX e início do XXI, provocou mudanças nos padrões de comportamento

da sociedade, sobretudo com a introdução da internet no dia a dia dos indivíduos. O que

antes se assemelhava à ficção científica, hoje se tornou uma ferramenta inseparável do ser

humano.

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Com os indivíduos cada vez mais conectados, as relações interpessoais que os

permeiam sofreram modificações, principalmente a partir do surgimento das redes sociais,

que transformaram a comunicação humana em instantânea e global. Não há mais barreiras de

comunicação que separem distâncias físicas, pois a conectividade chegou a um ponto em que

é possível se comunicar com pessoas do outro lado do globo, sem sequer sair de casa.

É em meio a esse panorama que surge o fenômeno denominado "Oversharing". Essa

expressão, proveniente da língua inglesa, designa o compartilhamento excessivo de dados

nas redes sociais. Tal fenômeno é caracterizado pela publicação incessante de imagens do dia

a dia pessoal ou íntimas, incluindo localizações que a pessoa costuma frequentar, suas

refeições ou até comentários inapropriados sobre colegas de trabalho.

A partir do fenômeno principal, o "Oversharing", surge outro fenômeno similar,

denominado "Oversharenting", o qual será objeto de discussão deste trabalho. A expressão,

proveniente da língua inglesa, se origina a partir da junção das palavras estrangeiras "over" +

"sharing" + "parenting". O "Oversharenting", assim como o "Oversharing", designa o

compartilhamento excessivo de imagens, entretanto, a diferença entre eles está no fato de

este último ser provocado pelos pais, em relação aos filhos.

María Suarez Pliego descreve que o fenômeno "Oversharing" ocorre

cuando se pierde el control de lo que se comparte y a quien se comparte o puede llegar, hablamos del fenómeno de "oversharing", término anglosajón utilizado para denominar el fenómeno que consiste en compartir en internet, redes sociales, twitter, blogs etc., determinados datos personales que tienen que ver con tu vida familiar y personal que otros pueden no necesitar o, simplemente, no quieren saber o conocer. (PLIEGO, 2013, p.1)2

Os alvos do fenômeno descrito são, sobretudo, crianças, cujos pais realizam

publicações em demasia a seu respeito. O conteúdo das postagens pode variar entre fotos e

vídeos, a todo momento, de cada atividade praticada pela criança.

Muitas vezes essa prática ocorre antes mesmo da criança vir ao mundo, durante sua

breve vida intrauterina, com a divulgação de exames de ultrassom, e após nascer, sendo

acompanhada por toda a sua evolução, diariamente, como o primeiro banho, os primeiros

passos, dentre diversos outros eventos.

Uma reportagem publicada no jornal El País sobre a presença das crianças nas redes

2 Tradução livre: “Quando se perde o controle do que se compartilha e a quem se compartilha ou pode

chegar, falamos do fenômeno de “oversharing”, termo anglo-saxão utilizado para denominar o fenômeno que consiste em compartilhar na internet, redes sociais, twitter, blogs, etc., determinados dados pessoais que têm a ver com sua vida familiar ou pessoal que outros podem não necessitar ou, simplesmente, não querem saber ou conhecer.” (PLIEGO, 2013, p.1)

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sociais apresentou uma pesquisa realizada pela empresa AVG envolvendo duas mil mães,

de dez países, entre eles a Espanha. O resultado da pesquisa apresentou que

el 81% de los bebés ya tiene algún tipo de presencia en twitter al cumplir los seis meses; la cuarta parte ya ha salido antes através de la publicación de la imagen de una ecografía, el 7% de los menores de dos años tienen una cuenta de correo electrónico creada por sus padres y el 5% disponen de su propio perfil en una red social. (VÁSQUEZ, 2013, p. 2)3

A partir dos dados apresentados, percebe-se que a prática do Oversharing vem se

tornando um hábito recorrente, não apenas em nosso país, mas no mundo inteiro, sem que

se questione os riscos futuros que esse comportamento pode trazer, principalmente às

crianças, que não escolhem ter ou não suas imagens divulgadas.

Karelia Vásquez compartilha do mesmo pensamento ao afirmar que

nos hacen plantearnos preguntas como: ¿qué consecuencias puede tener compartir demasiada información personal en internet? ¿Cómo revertir o minimizar con posterioridad los efectos negativos de las consecuencias y riesgos analizados que puede conllevar la práctica del oversharing obsesivo de los menores cuando terceros, en este caso, tus progenitores o representantes legales, o sus respectivas parejas son los que te sobreexponen en la red? (VÁSQUEZ, 2013, p.2)4

3. O direito personalíssimo das crianças

Os Direitos Personalíssimos, também chamados de "Direitos da Personalidade", são

dispostos no capítulo II do Código Civil Brasileiro e integram os direitos fundamentais da

pessoa humana, no que tange à proteção de seu nome, imagem, honra, bem como a

integridade física, moral, intelectual e psíquica.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald os descrevem como aquelas situações

jurídicas reconhecidas à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções

sociais (ROSENVALD, FARIAS, 2013, p. 177). Tal pensamento é compartilhado por

Sidney Guerra, ao afirmar que tais direitos seriam próprios da pessoa em si (ou originários),

diante da dignidade humana ou referentes às suas projeções para o mundo externo (ou seja,

3 Tradução livre: “81% dos bebês já têm algum tipo de presença no twitter ao completer seis meses: a quarta parte já teria aparecido antes, através da pubicação da imagem de uma ecografia. 7% dos menores de dois anos têm uma conta de correio eletrônico criada por seus pais e 5% dispõem de seu próprio perfil emu ma rede social.” (PLIEGO, 2013, p. 2)

4 Tradução livre: “Nos surgem perguntas como: que consequências podem have rem compartilhar demasiada informação pessoal na internet? Como reverter ou minimizar com posterioridade os efeitos negativos das consequências e riscos analisados que podem levar à prática do “Oversharing” obsessive dos menores por terceiros, nesse caso, seus progenitors ou representantes legais ou seus respectivos parceiros são os que te sobreexpõem na rede?” (VÁSQUEZ, 2013, p. 2)

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à pessoa como ente moral e social, em suas interações da sociedade (GUERRA, 1999, p.

11).

Bittar ainda classifica tais direitos entre físicos, que compreendem o corpo, os

órgãos, os membros e a imagem, os direitos psíquicos, que compreendem a liberdade, a

intimidade e o sigilo; e os direitos morais que compreendem a identidade, a honra e as

manifestações do intelecto (BITTAR, 2003).

De maneira semelhante, para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, conceituam-se os

direitos da personalidade como

aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e de suas projeções sociais. A ideia de nortear a disciplina dos direitos da personalidade é a de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, entre outros. (GAGIALNO, PAMPLONA FILHO, 2015)

A partir dos posicionamentos expostos, aduz-se que os direitos da personalidade,

pelo fato de estarem relacionados ao princípio da dignidade humana, protegem o indivíduo

de violações contra à sua pessoa e a todos os atributos que derivam desta, tanto na sua

esfera interna, como na externa.

Na concepção de Maria Celina Bodin de Moraes,

a relevância dos chamados direitos da personalidade, no momento atual, decorre também de outros fatores sociais. De um lado, provém da explosão qualitativa e quantitativa dos meios de comunicação de massa invasores, progressivamente direcionados a desconsiderar vidas particulares; de outro lado, do fato de que numerosas relações sociais, antes entendidas como parte de sistemas extrajurídicos, foram sendo crescentemente jurisdicizadas. Possivelmente, este aumento exponencial da regulamentação jurídica deveu-se, ao minguamento de instâncias sociais outrora tidas como incontestáveis e que serviam, utilmente, a mediar os conflitos, tais como a religião, a família, a política, as corporações, os usos e etc. (MORAES, 2009, p. 16)

Nesse sentido, por consequência do princípio da igualdade, disposto no artigo 5º da

Constituição Federal, o qual dispõe que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza (...)" (BRASIL, 1988), incluem-se as crianças como sujeitos de direito

das normas que estipulam a proteção de seus atributos físicos e psíquicos, ou seja, os

direitos da personalidade também devem ser resguardados em seu favor.

Um exemplo concreto do reconhecimento dos direitos personalíssimos das crianças

pode ser ilustrado a partir da recente polêmica envolvendo a loja de roupas “C&A”, cujo

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famoso slogan comercial é a frase “abuse e use”. Ao publicar em seu site uma imagem de

crianças fazendo propaganda de roupas infantis e relacioná-las à frase “clique e abuse”, a

loja sofreu inúmeras reclamações de internautas e pessoas indignadas com a situação.

Pouco depois, o site foi alterado e a frase removida.

Conclui-se, a partir dessa situação, que as crianças envolvidas na polêmica tiveram

sua imagem gravemente violada, por estarem relacionadas ao abuso infantil. Felizmente, a

empresa envolvida reconheceu o erro cometido, realizando as alterações necessárias.

Entretanto, isso só foi possível devido ao reconhecimento das crianças como indivíduos

sujeitos de direitos.

Conforme aduzem Maria Celina Bodin de Moraes e Joyceane Bezerra de Menezes,

os interesses pessoais da criança e do adolescente devem ser levados em consideração, assim como a sua capacidade de agir, na medida de sua maturidade e discernimento, especialmente no que tange às questões existenciais. (MORAES. MENEZES, 2015)

Desta maneira, apesar de serem consideradas incapazes de exercer pessoalmente os

atos da vida civil, como dispõe o art. 3º do Código Civil, o artigo 2º do mesmo diploma

ressalva que "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (...)

(BRASIL, 2002), o que reafirma o argumento de que tais indivíduos também são sujeitos

desses direitos em questão, devendo igualar-se seu tratamento ao dos adultos, na medida de

igual proteção de sua imagem e privacidade.

Para Pietro Perlingieri,

a tutela dos direitos da personalidade não pode ser separada da consciência da unidade direito-dever, do senso de solidariedade e responsabilidade sobre os quais é construída qualquer sociedade moderna. Não será útil dilatar a tutela do dissenso, a qual pode comprometer a dignidade do consenso. Os direitos da personalidade não podem ser efetivados por meio do Estado; devem se transformar em patrimônio cultural de um povo, no conteúdo ético do ordenamento. (PERLINGIERI, 2001)

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Estando a criança inserida em seu núcleo familiar, que constitui a sua primeira esfera

de socialização e convivência, é válido ressaltar que um dos pressupostos básicos da

convivência de sujeitos autônomos, segundo Brunello Stancioli, consiste em tomar o

“outro” não como objeto, mas como um sujeito que sempre tem algo a dizer. (STANCIOLI,

1999). Tal afirmativa concretiza o pensamento supracitado ao analisar a criança como

detentora de sua vontade e possuidora dos direitos personalíssimos, que são inicialmente

exercidos em sua convivência familiar.

3.1. O direito à privacidade da criança

Segundo Alexandre de Moraes,

o direito à privacidade ou à vida privada engloba o direito à intimidade. A intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo de uma pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto privacidade ou vida privada é mais ampla e envolve todos os relacionamentos sociais. (MORAES, 2009, p.53)

Desta maneira, todas as crianças, a partir de seu nascimento, adquirem a

característica da personalidade civil, tornando-se sujeitos desse direito, como respaldado

pelo artigo 2º do Código Civil (BRASIL, 2002, p.1). Portanto, são dignas de terem

protegida sua esfera privada, no que tange à sua intimidade, assim como os demais

indivíduos.

A privacidade da criança é uma expressão ampla que envolve diversos aspectos. No

geral, pode-se descrever como seus elementos essenciais seus atributos físicos, como a

imagem, e morais, como opiniões.

Para Tércio Sampaio Ferraz Junior, a privacidade,

como direito subjetivo, manifesta uma estrutura básica, cujos elementos são o sujeito, o conteúdo e o objeto. O sujeito é o titular do direito. (…) O conteúdo é a faculdade específica atribuída ao sujeito, que pode ser a faculdade de constranger os outros ou de resistir-lhes (caso dos direitos pessoais) ou de dispor, gozar, usufruir (caso dos direitos reais). (…) O objeto é, sinteticamente, a integridade moral do sujeito. (FERRAZ JUNIOR, 1993)

Além disso, a privacidade está assegurada pelo art. 12 da Declaração Universal dos

Direitos Humanos (ONU,1948), o qual diz que ninguém será sujeito à interferência

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em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à

sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais

interferências ou ataques.

Stefano Rodotà analisa o conceito de privacidade como um aspecto que sofreu uma

longa evolução. O termo inicialmente originou-se da definição “the right to be let alone”,

ou o direito de ser deixado só, e hoje configura-se como o direito de determinar as

modalidades da construção da própria esfera privada, bem como de manter o controle sobre

as próprias informações (RODOTÁ, 2008).

Com relação à privacidade no âmbito na internet, o Marco Civil da Internet

regulamenta em seu artigo 3º, II que a disciplina do uso da Internet no Brasil tem o seguinte

princípio: II- proteção da privacidade. Ainda sobre esse aspecto, o art. 8º do mesmo

diploma afirma que a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas

comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet (BRASIL,

2014).

Ainda sobre esse aspecto, Rodotà afirma que a privacidade hoje se manifesta

essencialmente em ter como controlar a circulação das informações e saber quem as usa.

Significa adquirir, concretamente, um poder sobre si mesmo. Representa a sua concepção

como “direito à autodeterminação informativa”, o qual concede a cada um de nós um real

poder sobre nossas próprias informações, sobre nossos próprios dados (RODOTÀ, 1997).

Acerca da proteção da privacidade, Danilo Doneda aduz que

é um dos temas mais delicados na matéria dos direitos da personalidade, isto pelo potencial de ofensas à personalidade ter crescido abruptamente com o desenvolvimento tecnológico e também pela dificuldade dos instrumentos de tutela tradicionais do ordenamento realizarem adequadamente esta proteção. (DONEDA, 2002)

Portanto, é a partir desta característica que surge a dificuldade de resolução dos casos

que envolvem a colisão do direito à privacidade com outros direitos, pelo fato de ser um

tema muito recente e sobre o qual não há nenhuma legislação específica. Fato este que leva

à necessidade de uma profunda investigação e análise do caso concreto para encontrar a

solução adequada e menos danosa ao indivíduo em estado de vulnerabilidade, como a

criança, principalmente nos casos em que a violação desse direito é proveniente de seus

progenitores.

Em consonância ao pensamento de Maria Celina Bodin de Moraes e Joyceane

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Bezerra de Menezes, pode parecer estranho que a criança e o adolescente gozem de

respeito, privacidade e liberdade, dentre outros direitos, diante daqueles a quem cabe criá-

los, assisti-los e educá-los, garantindo-lhes proteção e segurança, principalmente pelo fato

de na realidade, ainda ecoar entre nós a ideia de que os filhos são sujeitos passivos na

relação com seus pais, figurando mais como “objetos de direito” da autoridade parental.

(MORAES. MENEZES, 2015).

Entretanto, é evidente a existência desses direitos da criança e do adolescente, mesmo

que em face de seus pais, visto que são direitos absolutos, e tem o condão de serem

exercidos e defendidos, independentemente de quem os tenha violado.

3.2.O direito à imagem da criança

O direito à imagem surge concomitantemente com os direitos personalíssimos, como

ramificação do direito à privacidade, e refere-se aos atributos físicos do indivíduo. Fábio

Ulhoa defende que a imagem,

para ser objeto de proteção como direito da personalidade, deve possibilitar a imediata identificação do titular do direito. Assim, o retrato do rosto, de frente ou de perfil, normalmente encontra-se sob a tutela do direito à imagem. Reprodução de outras partes do corpo também podem ser objeto de proteção, desde que, por meio dela, se possa identificar a pessoa. (ULHOA, 2014)

Nesse sentido, o nome e a imagem, para Maria Celina Bodin de Moraes

são dois aspectos fundamentais da personalidade que receberam destaque na tutela do Código, e cuja importância decorre não apenas do fato de atuarem como os sinais designativos que indicam a individualização da pessoa no meio social, mas também por constituírem manifestações intrínsecas da individualidade pessoal, dizendo respeito, portanto, ao seu interesse mais essencial. (MORAES, 2009)

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Conforme discutido anteriormente, sendo as crianças indivíduos sujeitos dos direitos

da personalidade, logicamente, tal característica também lhes é atribuída em relação aos

direitos à imagem.

Nesse sentido, María Pliego aduz que

los niños y, por supuesto los bebés, son titulares de los derechos al honor, la propia imagen y a la intimidad personal y familiar. Derechos que son elevados a la categoría de constitucionales al ser reconocidos (…) de tal manera que, además, constituyen un límite alderecho a la libertad de expresión. (PLIEGO, 2013)5

Segundo o posicionamento de Caio Mário da Silva Pereira,

o direito assegura ao indivíduo o direito à própria imagem. A lei proíbe a sua divulgação por qualquer meio – fotografia, cinema, gravação no video – e reprime a infração como atentado à privacidade, de qual cada um é senhor exclusivo (PEREIRA, 2007).

Portanto, a partir dos posicionamentos apresentados, é reforçada a ideia de que o

direito à imagem das crianças é um direito legítimo e absoluto, que provoca a relativização

do direito à liberdade de expressão, frente à sua violação.

Da mesma maneira que a utilização da imagem de um adulto necessita de sua

autorização, assim deve ocorrer em relação às crianças, vez que a sua opinião também é

valorizada como critério determinante do que seja melhor pra ela, na linha da doutrina da

proteção integral que a considera detentora da vontade que merece ser respeitada

(MEIRELLES, 2006).

4. Seria o “oversharing” uma violação aos direitos à privacidade e à imagem da

criança?

Considerando discussão realizada a respeito da prática de pais ao compartilhar

excessivamente imagens e dados de seus filhos nas redes sociais, e o direito à

imagem e a privacidade dessas crianças, é imprescindível a análise dos riscos de tal

comportamento.

A publicação e disponibilização de fotos e vídeos na rede, uma vez realizada,

5 Tradução livre: “As crianças, e também os bebês, são titulares dos direitos à honra, à própria imagem e à

intimidade pessoal e familiar. Direitos que são elevados à categoria de constitucionais ao serem reconhecidos (...) de tal maneira que, ademais, constituem um limite ao direito à liberdade de expressão. ” (PLIEGO, 2013)

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permite o fácil acesso de todos, tanto para visualizá-los, quanto para salvá-los, provocando

uma perpetuação dos dados no universo digital, uma vez que permite à pessoa que possua a

imagem ou vídeo, divulgá-lo onde quiser.

O perigo que tal mecanismo traz à criança é a utilização indevida de sua imagem, que

pode ser apropriada por outras pessoas, e até mesmo chegar ao alcance de pedófilos ou

indivíduos com intenções criminosas. Pessoas mal intencionadas podem se aproveitar da

imagem do menor.

María Pliego confirma tal raciocínio ao afirmar que

Todo lo que se comparte en las redes sociales (incluso con niveles de privacidad), twitter, blogs e internet en general, deja de ser privado y automáticamente se convierte en público, permitiendo el acceso no sólo a nuestros amigos y círculo más cercano sino a todo un público potencial desconocido, a los que mueven diferentes objetivos y fines. (PLIEGO, 2013, p.2)6

Uma pesquisa realizada pelo C.S Mott Children’s Hospital, de Massachussets, nos Estados

Unidos, acerca do Oversharenting, chegou à conclusão de que

For parents of young children, social media offers ways to seek and share advice about parenting challenges and to help friends and relatives stay in touch with their child. At the same time, a growing awareness of internet safety issues has prompted questions about whether this so-called “sharenting” may lead to breaches of private information that could put children at risk. (EUA, 2015)7

Outro problema em questão é o fato de as crianças, por não terem plena consciência

do que as rodeia, não escolhem ter ou não sua imagem disponibilizada nas redes sociais,

que é realizada pelos pais sem sua autorização.

Se a divulgação da imagem de um adulto necessita de sua autorização, por esta ser

inviolável, conforme disciplina o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, a partir do

princípio da igualdade, respaldado pelo caput do mesmo artigo, tratamento idêntico deve

ocorrer em relação às crianças, que são da mesma forma sujeitos de direitos.

A exemplo da proteção do direito à imagem oferecido aos adultos nas redes sociais é

a opção existente no Facebook que permite à pessoa reportar alguma foto em que ela esteja 6 Tradução livre: “Tudo o que se compartilha nas redes sociais (inclusive com níveis de privacidade), twitter, blogs e internet em geral, deixa de ser privado e automaticamente se converte em público, permitindo o acesso não só a nossos amigos e círculo, mas alcançam todo um público potencial desconhecido, aos que movem diferentes objetivos e fins. ” (PLIEGO, 2013, p. 2)

7 Tradução livre: “Para pais de crianças pequenas, as redes sociais oferecem formas de buscar e compartilhar conselhos sobre os desafios da paternidade e para ajudar amigos e parentes a manterem contato com a criança. Ao mesmo tempo, a crescente conscientização acerca dos mecanismos de segurança da internet suscitou questões acerca de como esse “sharenting” pode levar à brechas da informação privada que poderiam colocar a criança em risco. ” (EUA, 2015)

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presente, que foi publicada por outrem sem sua autorização, ou de alguma maneira se

mostrou ofensiva à sua imagem. A ferramenta “denunciar imagem” comunica à rede social

a insatisfação da pessoa, que deve preencher campos explicando o motivo da denúncia,

para que providências sejam tomadas e, em casos extremos, a imagem seja até removida.

Entretanto, se tratando da imagem de uma criança, que além do fato de não ser capaz

de discernir se aquilo a prejudicará futuramente, não escolheu sua publicação, essa

possibilidade de manifestação em sentido contrário inexiste, uma vez que a maioridade é

requisito para a administração de uma rede social.

Outros possíveis resultados decorrentes da exposição excessiva da criança nas redes

sociais estão interligados à formação e desenvolvimento de sua autoestima, que pode sofrer

modificações devido à prematura construção de sua imagem social, provocada pelos pais ao

praticarem o “oversharenting”.

Joviana Quintes Avanci explica que

O “eu” é construído por imagens e opiniões que os outros significativos lançam através do “espelho social” e que são incorporadas ao self desde a mais tenra infância. Nessa perspectiva, as experiências familiares, com o professor e com o grupo social mais estendido, serão o molde para as opiniões que a criança irá formando sobre si e embasarão os valores atribuídos a si mesmo. Quando essas experiências vêm acompanhadas de críticas excessivas, humilhações e depreciações, provavelmente a opinião e o valor que a criança atribuirá a si serão coerentes com essas vivências negativas. (AVANCI. ASSIS, 2004)

Portanto deve-se tomar cuidado com a construção da imagem da criança realizada

nas redes sociais, pois futuramente podem gerar ansiedade a esses indivíduos

vulneráveis, que estão em pleno desenvolvimento de sua personalidade. Rose Melo

Venceslau Meirelles enfatiza que a parentalidade patogênica potencializa o comportamento

ansioso, inseguro, superdependente e imaturo que pode levar o indivíduo, em condições de

estresse, a desenvolver sintomas neuróticos, depressão ou fobia. (MEIRELLES, 2006)

Evidenciada a vulnerabilidade do menor frente ao ataque à sua imagem, surge para os

pais o dever de tutela e proteção de seus filhos. Carlos Alberto Dabus Maluf aduz que se

deve zelar para a inocorrência de abusos cometidos pelos pais em relação aos filhos

(MALUF, 2013).

Em consonância ao argumento supracitado, é válido mencionar o princípio do

melhor interesse da criança como uma alternativa à solução dos casos em que ocorre um

abuso do direito à imagem da criança frente a prática do “oversharenting” cometida pelos

pais.

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O princípio do melhor interesse da criança, segundo Meirelles,

tem como principal suporte a condição da criança como pessoa humana, mas, além disso, merecedora de proteção especial devido à sua especial posição de pessoa em desenvolvimento. (...) Assim, inicialmente, a superioridade do interesse da criança se revela em situações nas quais é o interesse dela versus o de outrem que está em jogo. (MEIRELLES, 2006, p. 467).

Tânia da Silva Pereira complementa o referido conceito ao defender que a aplicação

do princípio do best interest permanece como um padrão considerando, sobretudo, as

necessidades da criança em detrimento dos interesses de seus pais, devendo realizar-se

sempre uma análise do caso concreto (PEREIRA, 2008).

Ainda sobre esse aspecto, Ana Carolina Brochado afirma que tal princípio,

aliado à doutrina da proteção integral, visa à proteção da criança, do adolescente, bem como de seus direitos, além de garantir-lhes as mesmas prerrogativas que cabem aos adultos. O dever de proteção não se limita ao Estado, mas também é atribuído à sociedade e à família. (BROCHADO, 2008)

Nesse sentido, para Mayra Cavalcanti

a publicação de fotos dos pequenos na rede pode acontecer, mas tem que ser uma ação dosada. “Não pode, tudo que a criança fizer, ser compartilhado com todas as pessoas, pois esta exposição exagerada pode causar danos tanto para ela, quanto para a família”, diz. Isto porque, com as publicações, as pessoas podem desenvolver uma imagem da criança que não é verdadeira e a exposição passar a ser uma fonte geradora de ansiedade para o pequeno. Segundo Cláudia, os pais precisam lembrar que os filhos, ainda bebês, não têm maturidade para interferir no que é postado. “Pode acontecer de o conteúdo das fotos vir a constranger aquela pessoa quando ela crescer. Então, é preciso que os pais façam uso do bom senso. (CAVALCANTI, 2015, p.1)

O Estatuto da Criança e do Adolescente garante em seu artigo 17 que o direito ao

respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do

adolescente, abrangendo a preservação da imagem (…) (BRASIL, 1990, p.5). Ademais, o

artigo 18 do mesmo diploma aborda que é dever de todo cidadão, respeitar a dignidade da

criança e do adolescente, não o expondo a situações vexatórias (…) (BRASIL, 1990, p. 5).

Desta maneira, surge uma espécie de limitação ao direito à liberdade de expressão

dos pais frente ao direito à imagem de seus filhos, uma vez que nenhum direito, mesmo que

fundamental, configura-se como absoluto em todas as hipóteses. No momento em que a

liberdade de um indivíduo passa a afetar direito de outrem, deve ser relativizada.

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Deve ainda ser levado em consideração o princípio do melhor interesse da criança, ao

analisar o caso concreto em que haja uma exposição excessiva de sua imagem frente à

prática do “oversharenting” para que seja realizada uma ponderação dos aspectos positivos

e negativos que circundam o conflito, levando-se em consideração a opinião da criança.

5. O papel do ministério público de tutelar o direito à imagem e à privacidade da

criança

O Ministério Público é descrito pela Constituição Federal, em seu artigo 127, como

uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, a qual é incumbida

a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis. (BRASIL, 1988)

O direito à privacidade, por configurar-se como um direito fundamental e, por

conseguinte, indisponível, enquadra-se como objeto de proteção deste órgão autônomo, que

deve fiscalizar a aplicação adequada da ordem jurídica. Além de suas diversas funções, uma

de suas atribuições especiais é a tutela dos direitos da criança e do adolescente, dos quais é

considerado o guardião.

O artigo 201, VIII, do Estatuto da Criança e do adolescente afirma que

compete ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis. (BRASIL, 1990)

Na concepção de Hugo Mazzilli,

como os direitos e interesses ligados à proteção da criança e do adolescente sempre têm caráter social ou indisponível, consequentemente não se pode excluir a iniciativa ou a intervenção ministerial em qualquer feito judicial em que se discutam esses interesses. Assim, tanto interesses sociais ou interesses individuais indisponíveis ligados à proteção da criança e do adolescente merecem tutela pelo Ministério Público; o mesmo se diga dos interesses individuais homogêneos, coletivos ou difusos ligados à infância e à juventude. (MAZZILLI, 2007)

Além desses atributos, compete ao Ministério Público, ainda, propor ação cível de

proteção dos interesses individuais, coletivos ou difusos relativos à infância e à

adolescência, conforme orientam os artigos 201, V e 210, I do ECA (BRASIL, 1990).

Ademais, compete-lhe ainda conduzir procedimento para apuração de infração

administrativa à normas de proteção à criança e ao adolescente, de acordo com o art. 194 do

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TURRA, k. k. Seria o “oversharenting” uma violação

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ECA, bem como zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às

crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, como

estabelece o art. 201, VIII.

6. Conclusão

Partindo da análise dos argumentos apresentados, conclui-se que a prática do

“Oversharenting” dos pais em relação aos filhos consiste em uma ofensa ao direito à

privacidade e o direito à imagem das crianças, uma vez que estas, assim como os adultos,

são dignas de gozarem dos referidos direitos, a partir do princípio da igualdade, respaldado

na Constituição Federal.

A lesão dos direitos citados funda-se na justificativa de que essas crianças podem

sentir-se prejudicadas ou constrangidas futuramente, com uma imagem que foi

disponibilizada ao acesso público das redes sociais sem sua autorização.

Além da ausência de autorização dos menores, ou de sua incapacidade de

discernimento para decidir se querem ou não a divulgação de sua imagem, outro fato que

merece relevância é o risco ao qual essas crianças ficam expostas, ao se tornarem potenciais

alvos de pessoas má intencionadas.

Destaca-se também a importância do princípio do melhor interesse da criança para

ser aplicado em situações nas quais há uma disputa entre o interesse dela versus o de

outrem. Da mesma maneira, é importante ressaltar a relevância da opinião da criança, como

dona de sua vontade, na medida em que exerce sua posição de sujeito de direitos.

Por fim, conclui-se que o Ministério Público, como guardião dos direitos da criança e

do adolescente, possui a competência de tutelar o direito à imagem e à privacidade dos

mesmos, respaldado nos artigos do ECA que estabelecem suas funções protetivas e atitudes

cabíveis frente a violação desses direitos.

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SILVA, L. S. A (in)consistência da divisão

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A (in)consistência na distinção kantiana entre deveres de direito e deveres de virtude

The (in)consistency in Kant’s distinction between duties of justice and duties of virtue

Lorena Soares Silva1

Resumo: O presente trabalho empreende uma análise crítica acerca dos três principais critérios

conformadores da distinção kantiana entre deveres de direito e de virtude, a saber: coercibilidade, latitude e possibilidade de exceções. Objetiva-se demonstrar que apenas os dois primeiros dispõem de coerência suficiente para caracterizar uma divisão substancial entre os deveres estudados, ao passo que a possibilidade de exceções contém sérias obscuridades. Ademais, discute-se a figura da equidade enquanto exceção ao conceito de direito, o qual – de acordo com Kant - vincula-se analiticamente à coerção pelo princípio da não contradição. Procura-se demonstrar que, embora a aequitas de fato se encontre em contradição com a coercibilidade, ela respeita o critério da latitude, em atenção à ideia de que o direito exige precisão matemática.

Palavras-chave: Direito. Virtude. Coercibilidade. Latitude.

Abstract: This paper undertakes a critical analysis towards the three main criteria which conform

the kantian distinction between duties of justice and virtue, namely: coercibility, latitude and possibility of exceptions. The aim is to demonstrate that only the first two have enough consistency to characterize a substantial division between the analyzed duties, while the possibility of exceptions contains serious obscurities. Further, it discusses the figure of equity as an exception to the concept of law, which - according to Kant – is analytically linked to coercion by the principle of non-contradiction. It seeks to demonstrate that, although aequitas indeed contradicts coercibility, it respects the criterion of latitude, in keeping with the idea that law requires mathematical precision.

Key words: Right. Virtue. Coercibility. Wideness.

1 Graduanda do curso de Direito (UFMG). Bolsista de Iniciação Científica patrocinada pelo programa PROBIC/FAPEMIG, edital 02/14. Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Av. João Pinheiro, 100, 30130180, Belo Horizonte, MG, Brasil.

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1. Introdução

A Metafísica dos Costumes, obra kantiana tardia, é composta pela Doutrina do Direito e

pela Doutrina da Virtude, igualmente precedidas por princípios metafísicos relativos a cada

uma delas, “como contraparte dos princípios metafísicos da ciência natural” (KANT, 2003,

p.49). Ambas se referem às leis da liberdade e delas derivam deveres éticos que podem ser de

direito ou de virtude, conforme o motivo que os relaciona à lei. A distinção entre as duas

espécies se encontra à base do sistema de deveres e envolve, segundo Travessoni Gomes (2007,

p. 122), três critérios:

(a) Coercibilidade (deveres que não podem ser impostos pela força e deveres que podem)

(b) Amplitude [ou latitude]2 (deveres amplos ou estritos)

(c) Possibilidade de exceções (deveres perfeitos ou imperfeitos)

Assim, deveres de direito deveriam ser sempre coercíveis, estritos e perfeitos, ao passo que

os de virtude seriam não coercíveis, latos e imperfeitos. Contudo, a aplicação das supracitadas

características se revela deveras problemática, pois na prática elas “[...] são introduzidas

casualmente, e nem sempre consistentemente em vários pontos dos escritos sobre a ética,

especialmente na Metafísica dos Costumes” (O’NEILL, 2014, p. 112, tradução minha).3 Se por

um lado o sistema foi pensado para ser completo, por outro, o uso dos critérios que norteiam a

divisão entre deveres se encontra eivado de ambiguidades, especialmente em relação àqueles

que são elencados na Doutrina dos Elementos. Várias são as dificuldades: em uma primeira

análise, a (b) latitude oferece problemas porque não pode ser aplicada a alguns deveres de

virtude (como ocorre com os limitativos ou negativos), embora Kant ressalte que a ética trata

sempre de latas obrigações. Um segundo problema é que não resta claro se a (b) latitude e a (c)

possibilidade de exceções referem-se a uma mesma característica ou se são distintas, imprecisão

que ocorre em razão da falta de maiores elucidações sobre a última. Conforme será

demonstrado, a correspondência entre elas tornaria ambas inadequadas, pois a perfeição é um

elemento que não pertence exclusivamente aos deveres de direito, mas também caracteriza

alguns dos deveres de virtude. Finalmente, a coercibilidade oferece uma distinção clara entre

deveres de direito e de virtude, mas há em relação a sua regra uma exceção de especial

relevância: trata-se da equidade. Por ser um direito apenas lato, esta figura não admite

imposição externa, colidindo frontalmente com o próprio conceito de direito.

2 Utilizarei o termo latitude (Spielraum) no lugar de amplitude, conforme a tradução de Edson Bini (2003). (NT). 3 The features are introduced casually, and not always consistently, at various points in his writings on ethics, though chiefly in the Metaphysik der Sitten (O’NEILL, 2014, p. 122).

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SILVA, L. S. A (in)consistência da divisão

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Por consequência, importa investigar quais atributos de fato integram uma discriminação

substancial entre deveres de virtude e de direito, pois que estas são categorias fundamentais

para compreensão da filosofia prática de Kant. Para tanto, será empreendida uma análise crítica

relativa a cada um dos três critérios separadamente, a fim de verificar sua consistência lógica.

Objetiva-se demonstrar que pelo menos a coercibilidade e a latitude podem atuar como critérios

de distinção, ao passo que a possibilidade de exceções realmente oferece problemas.

Posteriormente discute-se em que medida a equidade, enquanto direito que não admite coerção,

apresenta coerência com os critérios estudados. Por hora, basta dizer que os deveres de direito

admitem cumprimento via coerção externa, porque são obrigações dirigidas a ações ou

omissões específicas. Deveres de virtude, por sua vez, estão voltados a máximas de fins e

admitem apenas o autoconstrangimento da razão.

2. Deveres latos e deveres estritos

Conquanto seja fundamental na Metafísica dos Costumes, a distinção entre deveres latos

e estritos não está livre de dificuldades, especialmente quando conectada ao confuso critério da

perfeição. Mas de que forma ela se relaciona aos deveres de virtude e de direito?

Basicamente, deveres jurídicos dizem respeito apenas ao cumprimento de ações ou

omissões específicas, quase sempre negativas. Isto porque a doutrina do direito, em Kant,

"deseja estar certa de que aquilo que pertence a cada um foi determinado (com precisão

matemática)" (KANT, 2003, p. 79). Também porque ela trata apenas da liberdade exterior: O

ius, em Kant, é uma relação formal entre escolhas, tal como indica o próprio Princípio Universal

do Direito: "qualquer ação é justa [...] se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um

puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal." (KANT, 2003, p.

76-77). Assim, não interessa quais sejam os fins do sujeito ao cumprir determinado dever, mas

somente a conformidade externa de suas ações à lei jurídica. Não cabe ao direito, enfim,

investigar motivações internas, que configuram exigência da ética.

Deveres de virtude, no entanto, são dirigidos apenas a máximas de fins. “Uma máxima

corresponde ao princípio subjetivo do querer” (ALMEIDA, 2009, p. 129); é a regra prática que

o sujeito toma para si, mas não possui a objetividade da lei. Fim, por sua vez, consiste naquilo

que determina a escolha de um ponto de vista material. Formalmente, a ética exige que o

respeito à lei seja o motivo do cumprimento de seus deveres, mas isto não se trata ainda de um

dever de virtude: é antes uma “disposição virtuosa” (KANT, 2003, p. 227). Deveres de virtude

necessariamente têm a ver com o aspecto material das máximas, ou seja, com um fim que é em

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si mesmo um dever possuir. São dois estes fins mencionados na Introdução à doutrina da

Virtude: “a própria perfeição de cada um e a felicidade dos outros” (KANT, 2003, p. 229).

Em síntese, deveres de direito exigem o cumprimento de ações, ao passo que os de virtude

relacionam-se apenas à adoção de máximas. Dessa característica decorre a latitude:

[...] pois se a lei somente pode prescrever a máxima das ações e não as próprias ações, isto constitui um

indício de que deixa uma folga (latitudo) para a livre escolha no seguir (conformar-se com) a lei, isto é, que a lei

não pode especificar precisamente de qual maneira alguém deve agir e quanto alguém precisa fazer através da ação

para o fim que é também um dever (KANT, 2003, p. 233).

Isto significa que a adoção de um fim funciona mais como um princípio geral, não

especificando exatamente o que o sujeito deve fazer para cumpri-lo, uma vez que as ações não

se encontram embutidas a priori na lei. Adotar como máxima própria a perfeição de cada um

não significa fazer absolutamente tudo para o autoaprimoramento, pois isso seria impossível.

Há, neste caso, uma margem que permite o cumprimento do dever de várias formas: posso

estudar um novo idioma, aprender a pintar, dançar ou melhorar minhas habilidades em

matemática, etc. Qualquer uma dessas ações seria válida, mas não estou obrigado a empreendê-

las todas, pois há também outros deveres que devo cumprir e um ser finito jamais teria

capacidade de se aperfeiçoar em tudo. Uma das condições de validade de um dever, afinal, é

que ele seja possível. Deveres estritos, ao contrário, prescrevem uma ação ou omissão específica

e obrigatória, como é o caso da obrigação jurídica de cumprir um contrato: aqui não há que se

falar em fazer mais ou menos, mas exatamente aquilo (e da maneira) que foi determinado.

Como deveres de virtude têm a ver com máximas, eles deveriam envolver sempre latas

obrigações. Deveres de direito, por sua vez, seriam necessariamente estritos, pois tratam de uma

relação apenas entre leis e ações externas. Mas aqui surge uma dificuldade, “porque o dever de

adotar máximas de ação é também um dever que exige a prática de certas ações (ou abstenções)

em determinados contextos” (TRAVESSONI GOMES, 2007, p. 125). Por consequência, nem

todos os deveres de virtude parecem se adequar à definição de latitude oferecida por Kant.

Alguns deles se assemelham, na verdade, às obrigações estritas. Faz-se necessário então

analisar mais detidamente alguns aspectos que envolvem os deveres de virtude presentes na

Metafísica dos Costumes.

A Doutrina dos Elementos (KANT, 2003, p. 259), em que é introduzida a casuística

peculiar à Doutrina da Virtude - inicia-se pelo tratamento dos deveres consigo mesmo em geral.

Neste ponto, é estabelecida uma divisão objetiva, quanto ao que é formal e quanto ao que é

material nestes deveres:

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Deveres negativos proíbem um ser humano de agir contrariamente ao fim de sua natureza e, assim, têm a ver meramente com a sua autopreservação moral; deveres positivos, que lhe ordenam a fazer de um certo objeto de escolha o seu fim, concernem ao seu aperfeiçoamento de si mesmo. Ambos pertencem à virtude, quer como deveres de omissão (sustine et abstine), quer como deveres de execução (viribus concessis utere), mas ambos pertencentes aos deveres de virtude. (KANT, 2003, p. 261)

Alguns deveres negativos ou limitativos oferecem dificuldades porque além de exigirem

que a escolha do sujeito seja materialmente determinada por um fim que é em si mesmo um

dever (pois de outra forma não seria um agir moral), também proíbem condutas externas

bastante específicas, tal como fazem os deveres de direito. Nesses casos, o critério da latitude

fica comprometido, pois o comando que emana da razão não deixa nenhum espaço para que a

livre escolha decida de que forma ou com que intensidade será executado o dever, tornando o

cumprimento da obrigação, por assim dizer, estrito. Tome-se o primeiro dos deveres

apresentados, que consiste em preservar a si mesmo em sua natureza animal. A ele opõem-se

o suicídio, a degradação de si mesmo pela concupiscência e o entorpecer-se através do uso

excessivo de alimento ou bebida. No caso da proibição ao suicídio – para dar um exemplo – a

lei prescreve exatamente de que maneira o dever tem de ser cumprido: abstendo-se de tirar a

própria vida.

Em suma, a estrutura de algumas obrigações – como as negativas ou limitativas - parece

indicar a existência tanto de deveres de virtude latos quanto estritos, já que alguns deles tratam

não apenas de máximas, mas também de ações. Se este raciocínio for verdadeiro, a latitude não

será adequada para distinguir deveres éticos e jurídicos, pois não os caracterizará

essencialmente. Kant segue insistindo, no entanto, que “o dever ético deve ser pensado como

lato dever e não estrito” (KANT, 2003, p. 252). A meu ver, existe uma razão de ser para isto.

A latitude é definida por Kant (2003, p. 233) como uma (i) “folga para a livre escolha no

seguir (conformar-se com) a lei”, e isto significa que “ela não pode especificar precisamente de

qual maneira alguém deve agir e quanto alguém precisa fazer através da ação para o fim que é

também um dever”. Imediatamente após essa observação, Kant (2003, p. 233) conclui ainda

que (ii) “um dever lato não é para ser tomado como permissão para efetuar exceções à máxima

das ações, mas somente como permissão para restringir uma máxima de dever por uma outra”.

Tentarei demonstrar que as duas afirmações por vezes levam a consequências distintas. Se elas

realmente não forem idênticas, haverá dois sentidos em que se pode compreender a latitude e,

por consequência ainda será possível sustentar que se trata de uma característica dos deveres de

virtude em geral.

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O que se deve entender, então, por possibilidade de restrição de uma máxima por outra?

Isto significa, antes de mais nada, que os deveres latos não podem ser limitados ao bel-prazer

de cada um. Aqui, a incidência de uma máxima pode ser apenas afastada com base em outra, a

depender do caso concreto. Importante notar que Kant (2003, p. 67) não admite a possibilidade

de colisão de deveres, mas apenas de fundamentos de obrigação.4

Ele exemplifica a possibilidade de restrição de uma máxima por outra utilizando o “amor

ao semelhante em geral pelo amor aos próprios pais” (KANT, 2003, p. 234) sem, no entanto,

oferecer maiores explicações. De acordo com essa afirmação, poderia se imaginar um cenário

em que duas pessoas precisam de ajuda (havendo aí um dever de beneficência, que figura entre

os deveres de amor para com os outros), sendo uma delas minha própria mãe e outro um

desconhecido. Poderia eu restringir a máxima de ajudar o desconhecido, neste caso em

específico, pois há um fundamento de obrigação mais forte como justificativa, qual seja, de

auxiliar minha mãe? É certo que não posso tomar a decisão de não ajudar nenhum deles se estou

em condições de fazê-lo, simplesmente porque não desejo ou porque isto vai contra minhas

inclinações. Não há, no entanto, indícios de como estes fundamentos de obrigação podem ser

efetivamente aplicados e sobre como determinar qual deles prevalece. Neste sentido, nem

sempre o teste do imperativo categórico fornece uma solução clara.

A Doutrina dos Elementos traz, na verdade, vários exemplos da casuística em que há

conflitos de fundamentos de obrigação, para os quais Kant não oferece uma resposta. Um deles

será particularmente útil neste momento: diz respeito à degradação de si mesmo pela

concupiscência, conduta violadora de um dever limitativo que, em tese, não é compatível com

a latitude (enquanto espaço para se determinar de que maneira agir) por envolver a proibição

de uma conduta externa específica. A princípio, Kant argumenta que a natureza possui como

meta a procriação e que, portanto, não se pode contra ela atuar. Ele questiona, no entanto, se

em alguns casos concretos seria possível manter relações sexuais sem levar em conta esta meta.

Vejamos:

4 Um conflito de deveres (collisio officioum, s. obligationum), seria uma relação recíproca na qual um deles cancelasse o outro (inteira ou parcialmente). Mas visto que dever e obrigação são conceitos que expressam a necessidade prática objetiva de certas ações, e duas regras mutuamente em oposição não podem ser necessárias ao mesmo tempo, se é um dever agir de acordo com uma regra, agir de acordo com a regra oposta não é um dever, mas mesmo contrário ao dever, por conseguinte, uma colisão de deveres e obrigações é inconcebível (rationes obligandi), sendo que um ou outro desses fundamentos não é suficiente para submeter o sujeito à obrigação (rationes obligandi non obligantes), de sorte que um deles não é um dever. Quando dois fundamentos tais conflitam entre si, a filosofia prática diz não que a obrigação mais forte tem precedência (fortior obligatio vincit), mas que o fundamento de obrigação mais forte prevalece (fortior obligandi ratio vincit) (KANT, 2003, p. 67).

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Se, por exemplo, a mulher é fértil ou estéril (devido à idade ou enfermidade), ou se ela não experimenta desejo para manter relações sexuais – não é contrário à meta da natureza, e assim, também contrário ao dever de cada um para consigo mesmo, para um ou os outros, fazer uso de seus atributos sexuais - tal como na concupiscência não natural? Ou há, neste caso, uma lei facultativa de razão moralmente prática, que na colisão de seus fundamentos determinantes torna permitida alguma coisa que é em si mesma não permitida (indulgentemente, por assim dizer), a fim de prevenir uma violação ainda maior? A que ponto pode a limitação de uma lata obrigação ser atribuída ao purismo (um pedantismo relativo ao cumprimento do dever no que concerne à largueza da obrigação), e ser permitida uma folga à inclinação animal ao risco de se abandonar a lei da razão? (KANT, 2003, p. 268)

Nesta passagem, Kant se refere ao dever da preservação de si mesmo enquanto animal

como lato, de forma contraditória ao que já foi aqui argumentado, pois deveres limitativos como

este parecem não comportar o critério. Contudo, acredito que a latitude não foi utilizada no

sentido de que (i) “a lei não pode especificar precisamente de qual maneira alguém deve agir e

quanto alguém precisa fazer através da ação para o fim que é também um dever” (KANT, 2003,

p. 233), pois o que está em questão (fazer ou não uso dos atributos sexuais) é uma conduta

externa obrigatória e determinada. Na verdade, por latitude Kant quis remeter-se justamente à

(ii) possibilidade de restrição de uma máxima de dever por outra. Apesar de não haver uma

resposta para o problema, esta hipótese certamente envolve a colisão entre dois fundamentos

de obrigação por causa das peculiaridades do caso concreto. É nesse sentido, pois, que todos os

deveres de virtude são latos.

Podem eles, no entanto, variar em sua latitude. Assim, alguns se aproximam mais das

obrigações estritas, porque tem a ver com fins que prevalecem sobre outros. Quanto mais

determinado é o dever, menos ele concederá espaço para a restrição entre máximas, como em

geral ocorre com os deveres limitativos. À medida, no entanto, que se torna mais lato e também

mais indeterminado, surge uma maior quantidade de casos em que tais restrições serão

possíveis. 5

Entretanto, de que o dever de respeito em relação aos outros seja considerado estrito em

comparação ao dever de amor não se segue que ele seja um dever completamente estrito, tal

como os que pertencem ao direito. Somente nestes “o que é meu e o que é teu têm que ser

determinados na balança da justiça com exatidão [...], e desse modo, com uma precisão análoga

à matemática [...]” (KANT, 2003, p. 219).

5 “Ademais, um dever de livre respeito em relação aos outros é, a se expressar com rigor, tão só negativo [...] e é assim análogo ao dever de direito de não usurpar o que pertence a quem quer que seja. Consequentemente, embora se trate de um mero dever de virtude, é considerado estrito em comparação a um dever de amor e é este último que é considerado um lato dever” (KANT, 2003, p. 293).

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Em síntese, temos o seguinte: todos os deveres de direito são estritos, no sentido de que

não há possíveis variações acerca do que ou do quanto se deve fazer para seu cumprimento, até

porque eles não têm relação com máximas, mas exclusivamente com ações externas. Há, no

entanto, dois sentidos em que os deveres de virtude podem ser latos: (i) a lei não especifica

exatamente de que forma se deve agir ou o quanto se deve fazer para seu cumprimento e/ou (ii)

eles permitem a restrição de uma máxima de dever por outra. Apesar de (i) sempre implicar (ii),

o inverso não é verdadeiro.

Assim, alguns deveres de virtude dispõem de diversos meios pelos quais podem ser

cumpridos e nenhum deles é realmente obrigatório, porque seu comando envolve a promoção

de uma máxima cujo fim poderá ser observado de várias maneiras. O exemplo clássico é a

beneficência. No entanto, outros – deveres limitativos - não podem ser entendidos desta forma.

O único sentido em que a latitude se aplica a eles é de que, nos casos concretos, surgirão colisões

entre fundamentos (como nos exemplos da casuística) que (ii) permitirão restrições de uma

máxima por outra, e isto não há de ser cogitado nos deveres de direito. Como a latitude varia

em graus, certos deveres permitirão menos restrições, aproximando-se mais do conceito de

deveres estritos. Assim, é possível dizer que a latitude, pelo menos no segundo sentido,

caracteriza os deveres de virtude em geral, em maior ou menor grau.

3. Possibilidade de exceções: deveres imperfeitos e deveres perfeitos

A distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos (possibilidade de exceções) é nebulosa,

pois há poucas informações a este respeito nos textos kantianos. Apesar de utilizada com

frequência na Metafísica dos Costumes, a única passagem em que o filósofo apresenta uma

breve elucidação se encontra na Fundamentação (KANT, 2009), precisamente em uma breve

nota de rodapé:

Cumpre notar aqui que me reservo inteiramente a divisão dos deveres para uma futura Metafísica dos Costumes, encontrando-se esta aqui, portanto, tão-somente como uma divisão a meu bel-prazer (para ordenar os meus exemplos. De resto, entendo aqui por um dever perfeito aquele que não dá vênia a qualquer exceção em proveito da inclinação, e tenho então não apenas deveres perfeitos externos, mas também internos, o que vai contra a terminologia adotada nas escolas, mas que não tenciono advogar aqui, porque tanto faz para meu objetivo se isso me é concedido ou não. (KANT, 2003, p. 217)

Em tal passagem, Kant faz três afirmações importantes: (i) que deveres perfeitos não

admitem exceções em proveito da inclinação, que (ii) existem tanto deveres perfeitos externos

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quanto internos e, finalmente, que (iii) a terminologia utilizada vai contra a adotada nas escolas.

Apesar de parecer que ele mesmo não conferiu muita importância a esta explicação,

inegavelmente é um dos poucos dados disponíveis sobre o sentido em que emprega os termos.

Ao contrário do que expressa O'Neill (2014, p. 120), que entende haver Kant colocado pouco

peso nesta distinção6, acredito que ele levou o critério a sério, pelo menos na Metafísica dos

Costumes.

Começarei pela afirmação (iii) de que a terminologia utilizada não condiz com aquela

adotada pelas escolas. Com isto, Kant parece referir-se aos filósofos escolásticos, que “[...]

tradicionalmente equipararam deveres perfeitos aos deveres coercíveis (de direito) e os

imperfeitos aos deveres não coercíveis (éticos) ” (ROSEN, 1993, p. 97, tradução minha)7. Um

indício de que a perfeição não tem a ver com a coercibilidade se encontra justamente na

possibilidade de (ii) existirem tanto deveres perfeitos externos quanto internos.

Deveres internos, objetos tão somente da legislação ética, são aqueles que se dirigem

também ao motivo fundamentador da ação, em si mesmo um dever, enquanto deveres externos

relacionam-se às próprias ações. Ora, não é possível obrigar alguém a tomar para si um motivo,

a adotar um fim. Portanto, o cumprimento de deveres internos pela via da coerção externa é

contraditório, de forma que se a distinção entre os deveres imperfeitos e perfeitos

correspondesse à coercibilidade, um dever perfeito não poderia ser interno.

Há uma discussão mais complexa, no entanto, em relação à característica segundo a qual

(i) deveres perfeitos não admitem exceções em proveito da inclinação. Kant não diz

expressamente, mas através do raciocínio a contrario sensu deduz-se que se deveres perfeitos

não admitem tais exceções, os imperfeitos o fazem. Esta conclusão é problemática em razão do

próprio conceito de dever: como uma obrigação que possui necessidade objetiva, a priori, pode

abrir espaço para exceções a posteriori? Em uma ética deontológica como a de Kant, um dever

que não obriga em determinadas situações parece ser uma verdadeira contradição.

Na Metafísica dos Costumes, Kant não oferece uma definição explícita dos deveres

perfeitos e imperfeitos, mas dá evidências textuais de sua relação com os deveres estritos e

latos, que inclusive suscitaram a discussão sobre a correspondência entre as duas distinções.

Com o intuito de esclarecer a obscuridade, Mary Gregor (1963), citada por Rosen, argumenta

que há duas versões distintas em relação aos deveres perfeitos e imperfeitos:

6 I shall argue that though these terms were traditionally used to mark an important distinction of philosophical ethics, Kant places little weight on the distinction (O’NEILL, 2014, p. 120). 7 The schools had traditionally equated perfect duties with enforceable (juridical) duties and imperfect ones with unenforceable (ethical) duties (ROSEN, 1993, p. 97).

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Há na Fundamentação uma visão não-rigorista que trata deveres imperfeitos como permitindo uma escolha arbitrária e subjetiva de não agir segundo um fim moralmente obrigatório. Em contraste há a visão rigorista da Metafísica dos Costumes que não permite escolhas arbitrárias e subjetivas de abandonar fins moralmente obrigatórios, mas, ao invés disso, permite apenas que indivíduos limitem uma máxima de dever por outra (ROSEN, 1993, p. 96-97, tradução minha).8

Ainda que Kant realmente tenha empregado a possibilidade de exceções nos dois sentidos

sugeridos por Gregor, a versão “não rigorista” parece contradizer o próprio conceito de dever

ao permitir que o sujeito abandone a obrigação em função de alguma escolha arbitrária. É difícil,

pois, imaginar que ela possa se sustentar dentro da filosofia kantiana. Nesse sentido, Allen

Rosen (1993) busca uma interpretação que resulte na coerência entre as passagens da Metafísica

e da Fundamentação e chega a resultados, a meu ver, mais adequados. Ele argumenta que a

versão não rigorista de Gregor carece de fundamentação, pois é Kant mesmo quem afirma que

o dever exclui completamente a influência das inclinações. Ao invés disso, conclui o autor que

deveres imperfeitos são aqueles que permitem aos indivíduos fazer exceções fundamentadas

em face das próprias necessidades. Como qualquer dever possui origem apriorística, todas essas

exceções precisam ser reinvindicações racionais da natureza sensível. 9

Esta é, de fato, uma interpretação interessante. Primeiro porque esclarece a aparente

contradição de se admitir exceções a posteriori para deveres dados a priori e também porque

não precisa recorrer à suposição de que teriam sido empregadas duas visões distintas sobre um

mesmo termo. Entretanto, parece haver nela um pequeno problema, pois nem todas as exceções

admitidas têm realmente de ser fundamentadas racionalmente. Por vezes esta fundamentação

a priori não é possível, sem que reste prejudicada a obrigatoriedade do dever.

Suponhamos que haja várias pessoas igualmente carentes que precisam de um prato de

comida. No entanto, eu só disponho de dinheiro para comprar um único prato, porque o restante

será utilizado em minha própria alimentação. Decerto eu não estou obrigado a deixar de comer

8 According to Gregor, Kant employs two different versions of this distinction. The Groundwork, she argues, contains a nonrigoristic view that treats imperfect duties as permitting an "arbitrary and subjective choice not to act toward" a morally obligatory "end". (apud GREGOR, 1963, p. 111) Contrasting with this is the rigoristic view of the Metaphysik der Sitten, which allows no such arbitrary and subjective decisions to abandon morally obligatory ends, but instead permits individuals only to limit one maxim of duty by another" (ROSEN, 1993, p. 96-97). 9 We are not called upon to ignore our own basic needs in order to fullfill all of our other duties. At least some other duties are limited by the condition that they cannot require us to ignore our duty to attend to our own needs. I suggest that imperfect duties are concerned with the interplay between one’s duty to provide for one’s own needs and all other wide/ethical duties to adopt ends. If an imperfect duty is one that permits an individual to make reasoned exceptions for the sake of his own needs to the ends whose adoption is required by other wide/ethical duties, then it is reasonable to suppose that imperfect duties are just duties that allow an individual some leeway (Kant’s word is Spielraum) to lance his duty to satisfy his own needs against his other wide/ethical duties (ROSEN, 1993, p. 96-97).

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para ajudar mais pessoas, porque há um dever de zelar pela minha saúde que justifica

racionalmente a restrição à máxima de contribuir para o bem-estar alheio. Porém, admitindo

que todos esses indivíduos me são desconhecidos, terei de fazer uma escolha arbitrária de quem

ajudar, pois não há como estabelecer uma justificativa a priori sem violar a ideia de que todo

ser humano é um fim em si mesmo. Esta escolha se dará, portanto, em função do arbítrio da

inclinação, mas nem por isso prejudicará o cumprimento da obrigação. Como ensina Merle

(2003), citado [e traduzido] por Travessoni Gomes (2007, p. 108-109), o imperativo categórico

não determina o dever a priori, seja no caso de uma ação particular, seja no caso de uma máxima

de ação, pois pressupõe, em ambos os casos, o conhecimento das características da situação.

Este conhecimento só pode advir razão considerando a experiência, que não deixa de conceder

alguma margem para a arbitrariedade.

A imperfeição, portanto, consiste em uma característica que permite exceções ao

cumprimento da obrigação em face do dever de atender às próprias necessidades sensíveis. Mas

nem sempre estas exceções precisam ser racionalmente justificadas, porque às vezes elas

realmente dependem da arbitrariedade das inclinações. Por óbvio, isto não significa que o

indivíduo possa simplesmente abandonar fins moralmente obrigatórios. As exceções aqui

tratadas, pelo contrário, são permitidas porque não implicam a negação do fim que é em si

mesmo um dever.

Deveres de direito, porque têm a ver apenas com ações externas, são exclusivamente

perfeitos. Aqui não há que se falar em exceções quaisquer, visto que a lei determina

precisamente o que deve ser feito ou não e não há máxima alguma em questão. O caso dos

deveres de virtude é mais complexo: se eles estivessem relacionados apenas às máximas de

fins, seriam sempre imperfeitos. Mas como alguns deles também prescrevem ações ou omissões

específicas - tal como os deveres jurídicos – nem sempre é assim. Por meio da comparação

entre latitude e possibilidade de exceções é possível concluir que, de fato, este critério não é

adequado para a distinção entre deveres de direito e de virtude.

4. A relação entre a latitude e a possibilidade de exceções

Não há realmente um consenso sobre como o critério da latitude se relaciona ao da

possibilidade de exceções. A maioria dos intérpretes sugere haver correspondência entre as duas

distinções, como é o caso de Paton (PATON, 1953), Mary Gregor (GREGOR, 1963), Eisenberg

(EISENBERG, 1966) e Travessoni (TRAVESSONI, 2007). Esta interpretação sustenta-se

principalmente em dois argumentos: (i) há evidências textuais na Metafísica dos Costumes que

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levam a tal associação e (ii) Kant não oferece maiores explicações sobre a possibilidade de

exceções, de modo que é lícito supor que seja correspondente à latitude. Minha hipótese, porém,

é de que se não assumirmos essa identidade, evitaremos mais incoerências do que se o fizermos.

Na Introdução à Doutrina da Virtude, Kant (2003, p. 234) explica que:

Quanto mais lato o dever [...], mais imperfeita é a obrigação de um homem para com a ação, à medida que ele, contudo, mais aproxima do dever estrito (deveres de direito) a máxima de conformar-se com o lato dever (em sua disposição), tanto mais perfeita é sua ação virtuosa.

O que se parece concluir é que um dever lato será necessariamente imperfeito, ao passo

que um dever estrito será sempre perfeito. De fato, os exemplos dados pelo filósofo ao longo

da Introdução indicam pelo menos uma coincidência entre os dois critérios, que são sempre

mencionados aos pares (lato/imperfeito; estrito/perfeito).10 Se a perfeição for compreendida

como impossibilidade de fazer exceções em proveito da inclinação, um dever que exige a

prática ou abstenção de ações (dever estrito) terá que ser sempre perfeito, como ocorre com

todos os deveres de direito. Consequentemente, diz Kant (2003, p. 234), “deveres imperfeitos

são apenas deveres de virtude”. Nesse sentido, observa Travessoni Gomes (2007, p. 126):

A folga para a livre escolha (que existe no caso dos deveres amplos) mencionada por Kant poderia ser identificada com a possibilidade de fazer exceções (embora fazer exceções não signifique aqui fazer exceções arbitrárias, mas, antes, que a razão deve levar em conta necessidades sensíveis dos seres humanos e limitar uma máxima do dever por outra), então ser amplo teria de ser correspondente a ser perfeito.

À existência de (i) evidências textuais e a aparente ausência de exemplos que contrariem a

correspondência entre os dois critérios soma-se ainda o fato de que (ii) não há maiores

explicações sobre o conceito de perfeição além da breve nota de rodapé na Fundamentação.

Assim, seria razoável supor que, pelo menos na Metafísica dos Costumes, Kant emprega ambos

os critérios (possibilidade de exceções e latitude) em um mesmo sentido. De outra forma,

restaríamos com um conceito pouco significativo, pois, como explica O’Neill (2014, p. 17,

tradução minha), “se assumirmos que as duas distinções não são as mesmas, então não sabemos

10 Mas o dever de um ser humano para consigo mesmo no tocante à sua perfeição natural é apenas um dever lato e imperfeito, pois, a despeito de conter efetivamente uma lei para a máxima das ações, nada determina sobre o tipo e a extensão das próprias ações, permitindo sim uma folga para o livre arbítrio (KANT, 2003, p. 287). E ainda: Este dever para consigo mesmo é um dever estrito e perfeito do ponto de vista de sua qualidade, mas é lato e imperfeito do ponto de vista de seu grau (fragilitas) da natureza humana (KANT, 2003, p. 288).

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a base da distinção entre perfeitos/imperfeitos e também não podemos conectá-la a outras

distinções que Kant faz naquele trabalho11”.

Mas ao mesmo tempo em que a correspondência entre deveres perfeitos/estritos e

imperfeitos/latos está de acordo com algumas passagens da Metafísica, ela enseja conflitos

dentro da mesma obra.

Após uma breve introdução à seção dos deveres consigo mesmo em geral, Kant (2003,

p. 263) inicia a Doutrina da Virtude pelo Livro I, que se apresenta como “dos deveres perfeitos

consigo mesmo”. Os deveres imperfeitos, por sua vez, são mencionados no livro seguinte. Não

é difícil perceber que esta estrutura provoca uma confusão séria, pois os deveres de virtude

deveriam ser todos latos e imperfeitos, em contraposição com os deveres de direito, que são

perfeitos e estritos.

Como Kant expressamente reconhece a existência de deveres de virtude perfeitos e

imperfeitos, restam duas opções: (a) ou assume-se que a possibilidade de exceções e a latitude

são correspondentes e que, portanto, alguns deveres de virtude são totalmente estritos (e então

a latitude não serviria para distinguir entre deveres de direito e de virtude) (b) ou aceita-se a

independência entre as duas distinções, de forma que seria possível haver deveres de virtude

simultaneamente latos e perfeitos. Argumentarei a favor da segunda opção.

Simplesmente admitir a existência de alguns deveres de virtude completamente estritos -

tais como os jurídicos - traria prejuízo à divisão originalmente pensada por Kant na Metafísica

dos Costumes, porque segundo ele, “a doutrina do direito tem a ver somente com deveres

estritos, ao passo que a ética tem a ver com latos deveres” (KANT, 2003, p. 253). Assim, “ o

dever ético deve ser pensado como lato dever e não estrito”. (KANT, 2003, p. 252)

Embora alguns deveres de virtude sejam menos latos do que outros, isto não significa que

sejam estritos como os deveres de direito. A latitude enquanto possibilidade de restringir uma

máxima por outra decerto varia em graus, mas é característica de todas as obrigações cujo objeto

é um fim que em si mesmo é um dever. Se ela pudesse ser identificada com a possibilidade de

exceções, nenhum dos dois critérios serviria para diferenciar deveres de virtude e de direito.

Ademais, como sugere Rosen:

11If we assume that thw two distinctions are not the same, then we do not know the basis for the perfect/imperfect distinction in the Metaphysik der Sitten, nor can we link up with any of the other distinctions which Kant makes in that work (O’NEILL, 2014, p. 17).

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“A distinção entre perfeitos/imperfeitos seria redundante, simplesmente outra forma de falar da distinção

entre estritos/latos, caso em que não nos diria nada sobre deveres de direito ou de virtude, pois já sabemos que

todos os primeiros são estritos e todos os últimos são latos” (ROSEN, 1993, p. 96, tradução minha).12

Deveres imperfeitos podem ser compreendidos como aqueles que permitem exceções

ao cumprimento da obrigação em face do dever de atender às próprias necessidades sensíveis,

embora essas exceções nem sempre tenham de ser fundamentadas racionalmente. Deveres latos,

por sua vez, são aqueles cujas máximas podem sofrer restrições em detrimento de outras. Mas

o fato de um dever possibilitar a restrição de uma máxima por outra, como ocorre aos deveres

latos, não significa que ele permitirá necessariamente tais exceções em benefício das próprias

necessidades, ainda mais quando não puderem ser fundamentadas racionalmente. Assim, pode

haver um conflito entre dois fundamentos de obrigação cuja solução seja dada sem levar em

consideração o dever para consigo mesmo de atender às necessidades da inclinação.

Ao tratar do dever de não cometer suicídio, Kant (2003, p. 265) pergunta se seria

“assassinato de si mesmo lançar-se a uma morte certa, com o propósito de salvar a pátria” ou

mesmo se “deve o martírio deliberado, em sacrifício de si mesmo pelo bem de toda humanidade,

também ser considerado um ato de heroísmo”. Neste exemplo, o sacrifício de si mesmo tem

como base a máxima do amor à humanidade, a qual não tem que ver com nenhuma necessidade

da inclinação. Seria antes um agir contrário a ela, pois há em praticamente todos os seres

humanos um forte impulso de manter-se vivo. Por consequência, a possibilidade de exceções é

uma característica que não se confunde com nenhum dos dois sentidos que a latitude pode

assumir. Porém, ela não é apropriada como critério de distinção entre deveres de virtude e de

direito, porque não os caracteriza essencialmente, visto que os primeiros podem ser tanto

perfeitos quanto imperfeitos.

5. Coercibilidade

Desde a primeira página da Introdução à Doutrina da Virtude, Kant explica que “o

próprio conceito de dever já é o conceito de um constrangimento da livre escolha através da

lei” (KANT, 2003, p. 233). Assim, todos os deveres envolvem alguma forma de

constrangimento, seja ele possível apenas para a lei interna, ou também para a lei externa. O

resultado disto é especialmente importante para a delimitação entre deveres de virtude e de

direito.

12 “The perfect/imperfect distinction is redundant, merely another way of talking about the narrow/wide distinction, in which case it tells us nothing about the either juridical or ethical duties, for we already know that all of the former are narrow and that all of the latter are wide” (ROSEN, 1993, p. 96).

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A todo dever corresponde um direito, porém “não se trata de a todo dever corresponder

direito de outrem de exercer coação sobre alguém” (KANT, 2003, p. 227). Como os deveres

que emanam exclusivamente da ética dizem respeito à determinação interna da vontade, a única

imposição compatível com a liberdade da escolha é aquela que advém apenas da representação

da lei, ou seja, a coação proveniente da pura razão prática. Em outras palavras, um dever de

virtude envolve não apenas um fundamento formal determinante da escolha, mas também um

material; um fim que é em si mesmo um dever possuir. Assim, diz Kant (2003, p. 225), “posso

efetivamente ser constrangido por outro a executar ações que são dirigidas como meios a um

fim, porém não posso jamais ser constrangido por outros a ter um fim [...]”. Trata-se, portanto,

de uma espécie de dever fundamentalmente ligada ao autoconstrangimento. Deveres jurídicos,

ao contrário, são marcados pela possibilidade de coerção externa em caso de sua violação. Mas

como isso é possível sem que se cause prejuízo à liberdade da escolha?

O direito envolve apenas uma relação formal, na qual “a escolha de alguém pode ser

unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal da liberdade” (KANT, 2003, p. 76).

Em outras palavras, se a minha ação puder coexistir com a liberdade de todos os outros segundo

uma lei universal, então ela é justa. Aqui não importa o fim que o sujeito adote, desde que suas

ações externas possam ser universalizadas, ou seja, desde que não prejudiquem a condição de

outrem.

Por consequência, toda ação que represente resistência à liberdade de alguém (se este

não faz mal a ninguém) produz injustiça e só pode estar em contradição com uma lei universal.

Neste caso, é possível que a liberdade de quem produz tal ação seja ativamente limitada – de

forma externa – porque este constrangimento atua contra um obstáculo que se encontra em

desconformidade com o próprio conceito de direito. 13

Dentre todas as distinções feitas na Metafísica dos Costumes, esta é a que corresponde mais

nitidamente à dicotomia entre deveres de virtude e de direito. Kant, afinal, reconhece o traço da

coerção como característica central na doutrina dos deveres quando afirma que

O que essencialmente distingue um dever de virtude de um dever de direito é que o constrangimento externo a este último tipo de dever é moralmente possível, enquanto o primeiro é baseado somente no livre autoconstrangimento. (KANT, 2003, p. 227).

13 É claro, segundo o princípio de contradição, que se o constrangimento externo obsta o embaraço da liberdade externa de acordo com leis universais (e constitui assim um embaraço das barreiras da liberdade), pode coexistir com fins em geral. (KANT, 2003, p. 240).

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Há, no entanto, uma exceção que não pode ser subsumida a esta regra. Trata-se da equidade,

modalidade de direito lato para qual não é possível a imposição externa. Passo a discorrer sobre

ela.

6. Coercibilidade: a exceção

A coercibilidade não somente é peculiar, como também é essencial ao próprio conceito de

direito, confundindo-se, aliás, com ele. Kant (2013, p. 77) compara a lei da “coerção recíproca

necessariamente em harmonia com a liberdade de todos” 14 com a própria lei da igualdade da

ação e reação, evidenciando o caráter matemático dos deveres jurídicos quanto a sua precisão.

Assim como os corpos podem se mover livremente sob esta lei da natureza, também a liberdade

externa de todos deve coexistir de acordo com uma lei universal e, para tanto, uma ação que

obste tal liberdade por ser ativamente limitada por outrem sem qualquer contradição. Assim,

direito e coerção são concebidos como uma única coisa.

O desenvolvimento de tal raciocínio não apresentaria maiores dificuldades caso toda a

área abrangida pelo direito de fato estivesse ligada à competência de exercer coerção. No

entanto, Kant vincula a faculdade de limitação recíproca da liberdade externa segundo leis

universais apenas ao direito em sentido estrito. Há outra categoria, denominada direito lato ou

equívoco, que figura como exceção à regra da coercibilidade. Por se tratar de uma entidade –

por assim dizer – anômala, a breve explicação sobre o direito lato localiza-se inteiramente no

Apêndice à Introdução à Doutrina do Direito. O primeiro dos casos, que aqui nos interessa – a

equidade – é tratado como um verdadeiro direito, para o qual não é possível, no entanto, a

imposição externa.

7. Equidade

Kant disserta sobre a equidade em apenas quatro parágrafos, distinguindo-a logo dos

deveres de virtude. Nesse sentido, diz ele que não se trata de “uma base para meramente intimar

outrem a cumprir um dever ético (ser benevolente e bondoso) ” (KANT, 2003, p.80). Ela

realmente diz respeito a um direito, o qual não pode ser imposto coercitivamente, entretanto,

14“O direito não deveria ser concebido como constituído por dois elementos, a saber, uma obrigação de acordo com uma lei e uma competência de quem, por meio de sua escolha, submete outrem à obrigação para coagi-lo a cumpri-la. Ao contrário, pode-se localizar o conceito de direito diretamente na possibilidade de vincular coerção recíproca universal de todos [...]” (KANT, 2003, p. 78).

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por ausência de “condições necessárias a um juiz para determinar em quanto ou de que maneira

sua reinvindicação poderia ser satisfeita” (KANT, 2003, p. 80). Em outras palavras, trata-se de

um direito que não possui a principal característica do ius - a coercibilidade – e que, portanto,

contraria seu conceito. São três os exemplos fornecidos no Apêndice à Introdução à Doutrina

do Direito.

O primeiro deles trata de um sócio, que tendo contribuído mais do que os outros dentro de

uma companhia, teve de arcar também com maiores prejuízos quando ela se deparou com uma

crise. Kant (2003) admite que este sócio possuiria, de fato, o direito de demandar mais do que

uma simples partilha igual, mas nenhum juiz disporia de informações suficientes para decidir

acerca da questão. No segundo exemplo, um servo doméstico recebeu seus salários em dinheiro

que sofreu depreciação, de modo que restou com menos do que deveria. Apesar de ser justo

obter a correção monetária de acordo com a equidade, uma demanda assim não poderia ser

atendida por falta de previsão no contrato, ou seja, “um juiz não poderia fazer seu

pronunciamento em conformidade com condições indefinidas” (KANT, 2003, p. 80). Uma

“corte de equidade”, na qual tais direitos pudessem ser observados, para Kant consiste em uma

contradição. Em seu terceiro exemplo, ele explica que apenas quando o caso envolve os direitos

do próprio juiz é que se pode dar voz à equidade, como quando “a própria Coroa suporta os

danos aos quais outros incorreram a seu serviço e em relação aos quais eles solicitam a ele que

os indenize” (KANT, 2003, p. 80-81).

A razão pela qual Kant não posiciona a equidade no domínio da ética, apesar de ela carecer

da principal característica do direito, é que deveres de virtude estão sempre relacionados a uma

máxima de fins, mas “alguém que apela à equidade não quer que o outro adote um fim, quer,

na verdade, que ele realize certa ação” (TRAVESSONI GOMES, 2007, p. 139). Sem dúvidas,

perante a razão, trata-se de uma reinvindicação justa, mas que não pode ter lugar diante do

direito civil porque lhe falta precisão suficiente para que um juiz determine de que forma a

demanda deverá ser satisfeita. Ora, o direito deve determinar exatamente o meu e o teu na

balança da justiça, pois o espaço para exceções compete somente à ética.

Porém, em uma primeira análise, a equidade não parece dizer respeito a direitos

imprecisos, em relação aos quais não há como determinar quanto é devido. Como observa

Travessoni Gomes (2007, p. 140), “nos exemplos fornecidos por Kant a equidade parece

mostrar o valor exato que alguém deve pagar”. Se um dos sócios fez mais do que o outro,

certamente ele deveria receber de forma proporcional ao seu trabalho, e isto poderia ser

demonstrado, por exemplo, por meio de cálculos. O mesmo vale para o dinheiro depreciado,

pois não seria difícil chegar a um valor exato através da correção monetária. Com isso, o autor

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conclui que a impossibilidade de coerção não está ligada realmente à imprecisão do direito, mas

sim a sua falta de previsão escrita no contrato.

Valeria este raciocínio para todos os casos ou em alguns deles a equidade poderia de fato

gerar imprecisão? Kant parece prezar pela segurança jurídica, sem admitir para o juiz qualquer

poder de discricionariedade, em conformidade com o seu conceito de direito. A meu ver, em

algumas hipóteses, de fato o julgador precisaria utilizar de seu bom senso para determinar o que

é devido segundo a equidade. Tomemos o caso da companhia como exemplo: Kant diz que se

um dos sócios fez mais do que os outros, teria direito também a demandar mais posteriormente.

Mas o que se entende por fazer mais? No caso de uma contribuição monetária, não seria difícil

mensurar um valor exato a ser cobrado da companhia. Nem todas as contribuições, entretanto,

podem ser avaliadas precisamente e sem certa discricionariedade, como é o caso da prestação

de determinados serviços. Talvez não haja condições para que se determine objetivamente o

valor da participação de cada sócio, pois teria de ser levado em consideração um número muito

extenso de fatores e detalhes. A sentença dependeria, então, de uma avaliação aproximada que

nem sempre seria a mesma se fossem diferentes os julgadores. É isso que Kant parece não

admitir: a possibilidade de que o juiz tenha espaço para decidir sobre algo que não tem como

ser definido em termos exatos.

Embora se trate de um verdadeiro direito, a equidade possui características que a

aproximam da ética. Segundo a visão kantiana, todo dever corresponde a um direito. Só os

deveres jurídicos, no entanto, correlacionam-se ao direito de coagir alguém, ao passo que os de

virtude não dão ensejo a esta faculdade. Ainda que, enquanto ser humano, eu tenha direito a ser

respeitado em minha dignidade, não posso forçar ninguém a fazê-lo, pois esta é uma obrigação

exclusivamente ética. Por outro lado, se alguém furta algo que é de minha propriedade,

limitando minha liberdade externa, a coação que obsta sua ação estará de acordo com leis

universais segundo o princípio da contradição. Assim, deveres de virtude correspondem a

direitos não coercíveis e deveres de direito aos coercíveis.

Então onde se encaixa a equidade? Enquanto direito a alguma coisa, certamente ela

corresponde a um dever. Ora, se deveres de direito são todos ligados à faculdade de coerção e

um dever só pode ser de virtude ou de direito, então parece que ela se relaciona mais aos

primeiros. Mas como Kant insiste em seu caráter jurídico (até porque não há uma máxima de

fim em questão), a aequitas – se admitisse coerção - estaria ligada na verdade a um dever de

direito lato (segundo o qual nem sempre é possível determinar exatamente quanto fazer), cuja

existência não é admitida, pois todos os deveres de direito são necessariamente estritos. Como

não há vinculação a um tal dever, (e, portanto, não se pode exigi-la por meio de força externa),

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a equidade consiste uma figura que, embora esteja em contradição com a coercibilidade,

respeita o critério da latitude.

No campo dos deveres de virtude há sempre a possibilidade de colisão entre

fundamentos de obrigação, hipótese em que uma máxima poderia ser afastada em detrimento

da outra. No caso do direito, Kant não concede nenhum espaço para tais colisões, mas o fato é

que por vezes elas acontecem. A aequitas é indício disso: por um lado há a obrigação de

proceder equitativamente (por exemplo, pagando o salário corrigido em decorrência da

desvalorização monetária). Por outro, há a obrigação estrita de pagar a prestação pactuada.

Como a renúncia forçada ao direito estrito não pode estar de acordo com a liberdade de todos

segundo uma lei universal, é preciso então que ele prevaleça.

Decerto o que se requer por meio da equidade é justo. Em grande parte dos

ordenamentos jurídicos atuais, que trabalham com princípios (como por exemplo, o da boa-fé),

esta demanda poderia ser atendida de forma relativamente fácil, até mesmo a partir de leis que

regulam questões relativas à correção monetária e demais assuntos. Mas como o filósofo insistiu

na exigência de precisão matemática para o direito, ele não pôde conferir à equidade nenhum

espaço perante a corte. A meu ver, a figura do direito lato é um indício de que Kant percebeu

como a estreiteza do ius é problemática e por vezes gera situações de injustiça. Contudo, para

ele nada poderia ser feito diante desses casos. Nas palavras de Thadeu Weber (2013, p. 127),

“a equidade será considerada direito, para Kant, embora, por definição, seja ela a negação da

definição de direito. Kant criou com a equidade, pode-se dizer, o espaço de um direito que não

é direito”.

8. Conclusão

Na Metafísica dos Costumes, Kant desenvolve uma complexa tipologia dos deveres,

cuja principal divisão se dá entre aqueles que pertencem ao direito e os que emanam da virtude.

Todas as demais classificações apresentadas remetem-se a esta dicotomia, embora apenas

algumas delas de fato sirvam para distinguir entre as duas espécies. Em princípio, o filósofo

apresenta três critérios para tanto: coercibilidade, latitude e possibilidade de exceções. Nem

sempre são eles utilizados de forma coerente, principalmente quando aplicados à casuística

presente na Doutrina dos Elementos.

Ao longo deste trabalho, procurou-se demonstrar que apenas a latitude - quando

compreendida como possibilidade de restringir uma máxima por outra – e a coercibilidade

dispõem de uma aplicação suficientemente uniforme para que possam figurar como verdadeiras

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bases de distinção entre deveres éticos, sejam eles de virtude ou de direito. Por outro lado, a

possibilidade de exceções, na qual incluem-se os deveres perfeitos e imperfeitos, dá margem a

ambiguidades indesejáveis, porque sobre ela há quase nenhuma informação. Embora não se

sustente como critério de distinção, trata-se de uma classificação autônoma, que não se

confunde com a latitude. Esta constatação é importante, pois, do contrário, ambos os critérios

restariam prejudicados.

Ademais, se por um lado a coercibilidade revelou-se como atributo mais essencial na

distinção entre deveres de direito e de virtude, há em relação a ela uma complexa exceção,

apresentada no Apêndice à Introdução à Doutrina da Virtude: trata-se da equidade, “um direito

sem coerção”. Esta definição colide frontalmente com o próprio conceito de direito, pois que

este está ligado analiticamente à faculdade de coagir e, na verdade, corresponde mesmo a ela.

Cuida-se, pois, de uma opção pela estreiteza do ius, ou seja, por sua segurança, visto que aqui

Kant não abre mão da inexistência de deveres de direito latos. Neste sentido, a equidade respeita

o critério da latitude, embora se contradiga inevitavelmente com a coercibilidade. É ela produto

do fato de que um direito demasiadamente estrito gera injustiça e de que mesmo os fundamentos

de deveres jurídicos podem colidir entre si, embora o filósofo prussiano não o admita. Ao

mesmo tempo, trata-se solução insuficiente em termos do que é justo de acordo com a razão

prática, em homenagem à exigência kantiana de um direito matematicamente preciso.

Em síntese, a disciplina dos deveres de virtude e de direito é, sem dúvida alguma, matéria

de grande complexidade e fonte de discussões ainda acesas em sede da literatura pertinente.

Embora seja possível aclarar o uso de alguns conceitos à primeira vista problemáticos, como o

da latitude, diversas perplexidades permanecem em aberto. É dizer: por mais que se opere um

esforço interpretativo, certos traços da distinção entre deveres de direito e de virtude não se

sustentam logicamente quando entram em contato com o resto do sistema. Ora, nenhum projeto

filosófico pode ser completo. Movimentar indagações constantes e provocar desconforto é

característica daqueles sistemas profundos, inesgotáveis, como é toda a obra de Immanuel Kant.

9. Referências Bibliográficas

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SILVA, L. S. A (in)consistência da divisão

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ANDRADE, L. S. Entre o direito e a ficção

Alethes | 145

Entre o direito e a ficção: Uma releitura do fenômeno jurídico na perspectiva de Franz Kafka

Between the law and fiction: A reinterpretation of the legal phenomenon from the perspective of Franz Kafka

Lucas Silva Andrade1

Resumo: Uma abordagem estrita da Ciência Dogmática do Direito tem sido insuficiente para

delimitar alguns conceitos importantes que estão além da esfera deontológica de qualquer ordenamento jurídico. Este trabalho buscou uma relação entre o Direito e Franz Kafka para compreender o fenômeno jurídico nos limites do Estado, da sociedade e dos indivíduos. A partir de uma investigação predominantemente zetética e usando o método dialético analítico, foi possível extrair características e qualidades relevantes dos conceitos perquiridos. Considerando a amplitude e vagueza desses conceitos, eles foram relacionados: pelas condições internas e externas de autodeterminação dos indivíduos, pela necessidade de proteção das liberdades individuais e coletivas, pela democracia como condição para a realização de mudanças sociais.

Palavras-chave: Direito. Literatura. Kafka. Sociedade. Estado

Abstract: A strict approach of the Dogmatic Science of Law has been insufficient to define some

important concepts that are beyond the deontological sphere of any legal system. This work sought a relation between the Law and Franz Kafka to understand the legal phenomenon in the limits of the State, the society and the individuals. From a predominantly zetetic research and using the analitical dialectical method, it was possible to extract relevant characteristics and qualities of the respondent concepts. Considering the ampleness and vagueness of these concepts, they were related by: the internal and external conditions to the self-determination of the individuals, the need for protection of individual and collective freedoms, by the democracy as a condition for the realization of social changes.

Keywords: Law. Literature. Kafka. Society. State.

1 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)

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1. Do direito à literatura. Uma abordagem não dogmática do fenômeno jurídico

A Ciência Dogmática do Direito2, apesar de ter sido de grande importância para

sistematizar e dar condições de controle, pragmatismo e instrumentalidade ao Direito, se

mostrou ineficiente para traçar e delimitar determinados conceitos importantes que estão além

de uma análise deontológica do ordenamento jurídico. Para dar uma resposta satisfatória para

problemas decorrentes da vida em sociedade que estão além dessa deontologia, é necessário

expandir os limites dogmáticos do Direito e propor uma investigação zetética

Com grande rigor, Tercio Sampaio traça uma diferenciação entre zetética e dogmática:

Zetética vem de zetein, que significa perquirir, dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. Embora entre ambas não haja uma linha divisória radical (toda investigação acentua mais um enfoque que o outro, mas sempre tem os dois), sua diferença é importante. O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado como um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve ser algo?). Por isso, o enfoque zetético visa saber o que é uma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão orientar ação. (FERRAZ JÚNIOR, 2001)

Optando por uma predominância zetética na investigação, através de um método

dialético, que compreenda a convergência ou a refutação de argumentos hipotéticos ou fáticos,

este trabalho propõe uma análise filosófica das obras de Franz Kafka, buscando extrair critérios

e características do direito nos limites do Estado, da sociedade e dos indivíduos. Como proposta

metodológica, foram escolhidos textos que carregam os elementos e características essenciais

presentes nas obras do escritor.

Trazer a literatura ao Direito talvez nos ajude a elucidar algumas questões que ainda

permanecem sem respostas3. A completa abstração do que é real, e a criação de um plano

hipotético dentro da esfera e do contexto da realidade de cada história, muitas vezes parte de

inquietações e críticas dos literatos às circunstâncias de sua própria vida. Franz Kafka extrapola

essa possibilidade, e o realismo problemático, que é a marca de seu estilo, cria realidades

distópicas que evidenciam (e ironizam) os nossos problemas decorrentes da vida em sociedade. 2 Tércio Sampaio recorre ao termo “Ciência Dogmática do Direito” para tratar das doutrinas que buscaram sistematizar (criar um estatuto teórico para) o fenômeno jurídico, orientadas sempre à resolução de conflitos sociais. Em sua obra Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, decisão e dominação, o autor faz uma análise histórica e sistêmica da evolução do estudo do fenômeno jurídico e suas tendências na contemporaneidade, com base, principalmente, nas teorias de Niklas Luhmann, Theodor Vieweg e Hannah Arednt. 3 Lênio Streck atenta para a importância do estudo da literatura no direito: “Não tenho dúvida de que a literatura pode ensinar muito ao direito. Faltam grandes narrativas no direito. A literatura pode humanizar o direito. Há vários modos de dizer as coisas“(STRECK, 2013).

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ANDRADE, L. S. Entre o direito e a ficção

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Alude Modesto Carone sobre o estilo literário de Kafka: “o realismo kafkiano é, sem dúvida,

'problemático', uma vez que colide com a expectativa do leitor sobre o que o realismo é —

mimese ou imitação da realidade, para simplificar as coisas” (CARONE, 2008).

Compreende-se que a leitura de Kafka, por sua amplitude e abrangência de conteúdos e críticas,

permite análises que podem ocasionalmente se distanciar da esfera do tema proposto. Mesmo

que apareçam referências a outras obras, para uma maior objetividade analítica e pertinência à

finalidade deste trabalho, foram enfatizadas as seguintes obras: O veredicto, Diante da Lei e O

Brasão da Cidade.

A análise de O veredicto partiu da perspectiva do indivíduo, dentro da estrutura

narrativa de Kafka, e compreendeu a liberdade e a autodeterminação daquele perante a coerção

social. Em Diante da Lei, novamente colocando o indivíduo como tema central, foram

desenvolvidas as suas relações com o poder e com a autoridade do Estado e das leis (ou em

sentido amplo, do direito). E por fim, em O Brasão da Cidade retomou-se a análise conflituosa

entre o individuo e o coletivo, a relação da democracia com a liberdade e com as mudanças na

sociedade e a importância da educação para alcançar esse fim.

2. O veredicto e as condições internas e externas de autodeterminação

O veredicto, segundo Modesto Carone, é a obra em que Franz Kafka “descobre a sua

forma específica de narrar” (CARONE, 2011). O texto contém toda a estrutura básica que é

desenvolvida nas demais obras do autor. Ler Kafka ultrapassa a barreira do cognoscível,

criando situações absurdas, inconcebíveis do ponto de vista ontológico, mas muito próximas da

realidade. A relação de um narrador e um protagonista, ambos alienados, numa trama que é

construída a partir da falta de informação, em um realismo problemático, traz ao leitor a

sensação de dúvida, de questionamento e o sentimento de participar da mesma alienação que

tanto o narrador quanto o protagonista se deparam. Adorno traçando um paralelo entre as

situações fictícias e absurdas nas obras de Kafka e a realidade, expõe:

“Pela janela aberta, se via outra vez a velha senhora, que com uma curiosidade verdadeiramente senil agora havia passado para a janela que ficava defronte para continuar vendo tudo”, lemos na cena da prisão no início de O processo. Quem já não se sentiu observado da mesmíssima forma pelo vizinho em uma pensão qualquer; quem já não teve a intuição de um destino repugnante, incompreensível e inevitável? O leitor que conseguisse decifrar tais cenas saberia mais de Kafka do que quem encontra nele uma ilustração da ontologia. (ADORNO, 1998)

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No universo kafkiano, onde o sonho se relaciona com a realidade, onde a realidade se

fantasia no absurdo, a ideia plantada no protagonista é refletida em todas as suas ações4. Talvez

nos romances O processo, O castelo ou A metamorfose estejam o ápice desse absurdo. Quem

plantou a acusação de Joseph K.(protagonista de O processo)? Qual a origem desse processo?

E K. (protagonista de O castelo), como ele foi designado para exercer a função de agrimensor?

É apenas um sonho? Uma realidade criada? O fato de todos dizerem a Joseph K. que ele era

acusado e deveria ser processado condizia com a realidade? E a realidade de K. poderia ser

comprovada com base apenas em um “contrato”, em uma solicitação vinda de um local

inalcançável, pertencente a um Conde “todo poderoso”, onipresente, onisciente e onipotente?

Joseph K. se confunde com K, que se confunde com Gregor Samsa (A metamorfose), que se

confunde com Georg Bendemann (O veredicto), que se confunde finalmente com Franz Kafka

e aquilo que ele sentia no seu interior. E que traz ao leitor toda essa angústia paradoxal de agir e

ao mesmo tempo ser alvo de consequências que não necessariamente tenham nexo causal com

suas ações.5

Em O veredicto, Georg Bendemann se depara com uma situação complexa: em meio ao

seu sucesso profissional e amoroso (visto que está prestes a se casar), decide enviar uma carta a

um amigo distante – que deixou a cidade para viver em São Petersburgo – mas se sente receoso

pelo fato de não se comunicar com o amigo a bastante tempo. Ao revés de Georg, o tempo foi

cruel para o seu amigo, que não teve o sucesso esperado em sua viagem à Rússia. Por que

Georg sente tanto receio de se comunicar com o amigo? Seria por medo de trazer tristeza maior

ao amigo, pelo medo de mostrar que tudo aquilo que o amigo não tinha conquistado ele obteve

com êxito? Georg estaria realmente preocupado com o amigo ou essa seria apenas uma

imagem criada pela sua mente para lhe mostrar que nada mais importava em sua vida, apenas

as suas conquistas?

Após a morte da mãe, Georg apoderou-se da empresa de seu pai. Tal situação restringiu

a forma como Georg e o pai passaram a se relacionar, a ponto de limitarem os seus encontros.

4 O filme Inception (2010), dirigido por Cristopher Nolan, consegue criar uma atmosfera muito próxima do universo kafkiano. Vale a reflexão acerca de algumas ideias do filme: “Uma vez que a ideia ganha força no cérebro, é quase impossível erradicá-la. Uma ideia que se forma totalmente é tão compreendida, que permanece para sempre.”; “Bem, deixe-me plantar uma ideia na sua mente. Eu digo, não pense em elefantes. No que pensa? Em elefantes.”; “Eles vêm aqui para acordar. porque o sonho tornou-se realidade para eles. As emoções positivas têm mais poder.” (INCEPTION, 2010) 5 Günther Anders, em seu livro Kafka: Pró e contra. Os autos do processo, explora as relações entre a aparente loucura e falta de nexo do universo kafkiano, e suas possíveis relações com a realidade. Discorre o autor: “Aqui entramos em Kafka. A fisionomia do mundo kafkiano parece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo seja considerado normal” (ANDERS, 1993)

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Na descrição dessa situação, Kafka mostra a decadência do pai, abandonado por Georg, que

transparecia se preocupar apenas com os seus interesses e com os interesses da empresa.

Quando Georg decide conversar com o pai sobre a possibilidade de comunicar-se com o amigo,

acontece o ponto de virada da história. Se Georg, antes parecia temer a reação do amigo, a

conversa com o pai traz dois momentos que modificam todo o desenvolvimento da trama.

O primeiro momento se traduz com a possibilidade do amigo distante ser uma desculpa

para a desconsideração de Georg com tudo aquilo que não fazia mais parte do seu reduto e de

suas conquistas, que compreendiam: o sucesso profissional e a noiva. O pai de Georg,

amargurado por ter sido abandonado em uma situação decadente (e talvez delirando) atribui ao

filho um caráter egoísta. E ainda coloca em evidência a possibilidade do amigo de Georg nunca

ter existido: “Você não tem nenhum amigo em São Petersburgo. Você sempre foi um trapaceiro

e não se conteve nem mesmo diante de mim. Como iria ter justamente lá um amigo? Não posso

de maneira alguma acreditar nisso”. (KAFKA, 2011)

No decorrer do diálogo, o segundo momento surge e Georg é colocado novamente em

uma situação paradoxal: a existência de seu amigo passa a ser questionada não mais por ele não

existir, mas por ele não ser mais seu amigo. O pai mostra a Georg que tinha todo o domínio

sobre a amizade do filho, que ele julgou ter desprezado por tanto tempo. O pai havia

supostamente trocado correspondências por todos esses anos com o amigo de São Petersburgo:

De entusiasmo, arremessou o braço sobre a cabeça. — Ele sabe de tudo mil vezes melhor! — gritou. — Dez mil vezes! — disse Georg para ridicularizar o pai, mas já na sua boca as palavras ganharam uma tonalidade mortalmente séria. — Estava aguardando há anos que você viesse com essa pergunta. Você acha que eu me preocupava com qualquer outra coisa? Você acha que leio jornais? Olhe aí — e atirou na direção de Georg uma folha de jornal que de algum modo tinha sido carregada para a cama, um jornal velho, com um nome já completamente desconhecido de Georg. — Quanto tempo você levou para amadurecer! Sua mãe precisou morrer, não pôde viver o dia da alegria, o amigo se arruinando na Rússia — três anos atrás ele já estava amarelo de jogar fora — e quanto a mim você está vendo como vão as coisas. É para isso que tem olhos! — Então você ficou à minha espreita — bradou Georg. Compassivamente disse o pai, de passagem: — Provavelmente você queria dizer isso antes. Agora já não dá mais. (KAFKA, 2011)

Qual a verdadeira índole de Georg? Será ele alguém, que pelo acaso, se distanciou dos

seus verdadeiros amigos e não conseguiu enxergar a situação em que se encontrava o pai? Ou

será que todo o seu questionamento do início estava coberto de uma névoa, que transcrevia por

meio de metáforas a sua verdadeira índole egoísta e, segundo o pai, diabólica?

Por fim, o pai condena Georg à morte como reflexo da deturpação do caminhar de sua

vida: “- Agora portanto você sabe o que existia além de você, até aqui sabia apenas de si

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mesmo! Na verdade você era uma criança inocente, mas mais verdadeiramente ainda você era

uma pessoa diabólica! Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!” (KAFKA,

2011)

Ao final, Georg reconhece que estava distanciando de quem ele realmente era, que

estava perdendo a sua identidade6. Theodor Adorno, com grande categoria, compreende que a

tomada de consciência e a percepção da perda de identidade, é um núcleo comum em toda a

obra de Kafka.

Em sua obra, tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam consciência que não são eles mesmos, são coisas. As longas e fatigantes seções desprovidas de imagens têm por objetivo, desde a conversa com o pai em O veredito, demonstrar aos homens o que nenhuma imagem seria capaz de fazer: a sua falta de identidade, o complemento de sua similaridade copiada.(ADORNO, 1998)

Pela análise dessas passagens, foi possível identificar que as dimensões internas de

autodeterminação de Georg não foram apenas condicionadas pelo seu eu interior, pelo seu

psicológico. Existiu em todo momento um respeito ao externo. Uma vontade intersubjetiva que

relaciona a coerção externa à autodeterminação interna. Mesmo que externamente exista uma

realidade limitada pelos ditames fisiológicos ou coercitivos da coletividade, não se pode

descartar que exista um critério interior que determine as ações do indivíduo. Essa esfera

interna responde negativamente à sua autodeterminação, quando existir uma ameaça de

violência, ou a própria sanção pela transgressão.

Gilles Deleuze e Félix Guattari trabalham a influência dessa dupla dimensão sobre a

autodeterminação interna e externa do indivíduo em Kafka através do conceito de duplo

agenciamento. “Um agenciamento, objeto por excelência do romance tem duas faces: é

agenciamento coletivo de enunciação, é agenciamento maquínico de desejo”. (DELEUZE,

GUATTARI, 1977)

Em O veredicto, Georg se encontra diante dessas duas faces do agenciamento: a) o

agenciamento coletivo da enunciação, que dita as regras da coletividade que ele deveria seguir,

reconhecer e que restringem a sua liberdade; b) o agenciamento maquínico do desejo, que se

encontra em constante conflito com o coletivo, e envolve a tendência cognitiva de transgressão

constante da enunciação coletiva. No caso de Georg, o agenciamento maquínico do desejo

sucumbe ao agenciamento coletivo de enunciação, trazendo como consequência a inaptidão de

agir e a perda de identidade.

6 (...)Segurou-se ainda com as mãos que ficavam cada vez mais fracas, espiou por entre as grades da amurada um ônibus que iria abafar com facilidade o barulho da sua queda e exclamou em voz baixa: — Queridos pais, eu sempre os amei — e se deixou cair. Nesse momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável. (KAFKA, 2011)

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Portanto, relacionando esta análise aos objetivos zetéticos desse trabalho, conclui-se que

só é possível que as coerções externas criem condições internas (subjetivas) de obediência, se

causarem certa limitação às liberdades do indivíduo (por uma força natural ou ameaçadora).

Por exemplo, o Estado só atinge a sua finalidade de ordem pública, se impor pelas leis (ou

qualquer outra forma institucionalizada da vontade estatal) uma coerção que impeça ou tente

impedir uma transgressão natural do indivíduo, criando o respeito ou obediência (condições

internas) necessários.

3. Diante da Lei e as dimensões ético-políticas do Estado

A parábola Diante da Lei é basilar para compreender a questão da autoridade no

universo kafkiano; como também o temor e a resignação do indivíduo perante o poder

inexorável do Estado. O texto foi escrito em 1915 e, nas palavras de Modesto Carone, se

configura como “o centro nervoso do romance O processo7”. (CARONE, 2011).

Como de praxe em toda obra kafkiana, a compreensão da parábola está na estrutura e no

simbolismo da linguagem, essencialmente na metáfora. Esta translada as três figuras-chave do

texto: o portão, o porteiro e o indivíduo. A figura do portão representa a lei (as leis positivas

como convergência da vontade do Estado); o porteiro representa a coerção, a autoridade para o

uso da força na proteção da lei (ou do Estado); e o indivíduo é aquele que se depara com a lei

na restrição de sua liberdade.

A leitura deve partir sob a ótica do indivíduo, que ao mesmo tempo que é a figura mais

frágil, é o único capaz de desafiar a autoridade, e consequentemente ultrapassar os limites

estabelecidos pela lei, desobedecendo a intimidação que o porteiro (a autoridade) impõe como

forma de coerção. Buscando uma referência sobre a relação das ações do ser humano e o

respeito às leis, na base grega da cultura ocidental, encontramos uma indissociação entre a

esfera ética e a esfera política. Ambas teriam como finalidade a construção de um ethos que

estivesse associado à razão (logos) na busca incessante do bem; a política como uma

transcrição racional desse bem sob a égide do Estado (ou da pólis) e de suas boas leis (que

configuram aquilo que os socráticos chamaram de politeia); e a ética na esfera da conduta

humana, que seria construída sob a aretê, a adaptação perfeita à excelência e às virtudes

essenciais para a vida em sociedade.8

7 O filme Le Procès (1963), dirigido por Orson Welles, é a adaptação mais fiel da obra O processo aos cinemas. A genialidade de Welles conseguiu trazer à sétima arte a sensação de estar imerso ao universo kafkiano, e o desespero e a aflição de compartilhar o sentimento de alienação com Joseph K. 8 "O homem justo e sábio é capaz de produzir boas leis e boas leis uma cidade justa. A boa lei educa o cidadão para a justiça”. (BELINI, 2009)

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Disserta Vaz sobre o conceito de ethos:

O ethos como costume, ou na sua realidade histórico social, é princípio e norma dos atos que irão plasmar o ethos como hábito. Há, pois uma circularidade entre os três momentos: costume (ethos), ação (práxis), hábito (ethos-hexis), na medida em que o costume é fonte das ações tidas como ética e a repetição dessas ações acaba por plasmar os hábitos. A práxis, por sua vez, é mediadora entre os momentos constitutivos do ethos como costume e hábito. (...) Ao expor a circularidade dialética do ethos, Hegel indica a diferença entre o costume (ethos) e a lei (nómos) como dupla posição do universal ético que é o conteúdo próprio da liberdade ou na forma da vontade subjetiva (o conteúdo da ação ética é, então, virtude), ou na forma da vontade objetiva como poder legiferante válido (o conteúdo da ação ética é, então, lei). A passagem do costume à lei assinala justamente a emergência definitiva da forma de universalidade e, portanto, da necessidade imanente, que será a forma por excelência do ethos, capaz de abrigar a praxis humana como ação efetivamente livre. O ethos como lei é, verdadeiramente, a casa ou a morada da liberdade. (VAZ, 2002)

Na parábola talvez seja possível analisar a lei como uma transcrição racional (visto que

o portão simboliza uma obra humana, que demonstra o domínio do homem, da racionalidade,

sobre a natureza), mas o finalismo se perde. Qual o bem comum? Por que o individuo é

constantemente coagido a não ultrapassar a lei? Se a lei é a morada da liberdade, por que ela

restringe os limites dessa liberdade?

Maquiavel e Hobbes rompem com essa associação entre ética e política. Para

Maquiavel, o Estado surge somente como um meio efetivo para a manutenção da ordem, para

evitar a anarchia (objetivo que deve ser alcançado sem fazer avaliações morais sobre os meios

que o governante, como representante do Estado, utilizar; apenas os fins alcançados)

(MAQUIAVEL, 2010). Aprofunda-se, então, a discussão sobre a necessidade da força e do

poder como meio efetivo para o controle social, e Hobbes vai mais além. Para o filósofo, na

ausência de um poder soberano prevalece o caos, a guerra de todos contra todos (HOBBES,

1971). Em sua análise, o Estado surge de um consenso entre os homens para a proteção de suas

vidas.

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homem concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes dos homens. (HOBBES, 1974)

Esse rompimento da dimensão ética talvez se aproxime da discussão que a parábola

propõe. Como na seguinte fala do porteiro:

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Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem, eu sou poderoso e sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro. (KAFKA, 2011)

Quando o porteiro adverte o individuo a não ultrapassar o portão (ou a lei), ele usa dois

argumentos: o primeiro expressa o temor psicológico e o segundo expressa a segurança. A

argumentação do porteiro é o corolário do Estado na obra kafkiana. Uma entidade que impõe o

temor, subjuga e aliena o indivíduo com seu poder absoluto, controlando a liberdade deste e

deixando para ele apenas uma certeza: a proteção da vida. O porteiro não garante que nas

demais salas, para além da lei, o indivíduo tenha segurança, pois trabalha fora da

previsibilidade daquela, e em certo momento, dependendo da transgressão, o próprio Estado se

torna inimigo do indivíduo, caso esse coloque em risco o que está estabelecido. E fora dessa

proteção legal do indivíduo, a autoridade pode alcançar uma força ilimitada.

Mas em algum momento o indivíduo poderia ter ultrapassado o portão? Sim, ele

poderia. E essa passagem fica bem clara na fala final do porteiro, quando o indivíduo está em

seu leito de morte: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada

só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.” (KAFKA, 2011). Essa passagem cria uma

possibilidade interpretativa a partir dos argumentos utilizados na primeira fala do porteiro

apresentada. Ou seja, a lei tem uma força psicológica, que impera sob a conduta do indivíduo.

O temor à morte, faz com que ele se resguarde na esfera de proteção da lei, e não desrespeite a

autoridade do porteiro, que nesse sentido pode ser visto também apenas como o símbolo do

efeito da lei sobre o indivíduo (a coerção e o temor que o desrespeito da lei exerce sobre ele).

O fato do indivíduo temer a morte e encontrar na lei (ou nas leis do Estado) a única

proteção à sua vida, fornece um grande poder ao Estado. A partir disso, aqueles com autoridade

para exercer, sob a representação legal do Estado, o monopólio dessa segurança (como os três

poderes dos Estados Modernos e os órgãos de controle e fiscalização desses poderes) passam a

possuir uma grande força, capaz de coagir e minimizar o individuo a uma engrenagem sob seu

controle. Amplamente discutido em Hobbes é a natureza humana: “egoísta e ávida por poder”

(HOBBES, 1974). Quando essa autoridade passa a ser exercida por um indivíduo, ou por um

grupo de indivíduos, essa natureza sobressai e muitas vezes esse poder pode ser direcionado

apenas para os interesses desses; que muitas vezes agem sob uma falsa perspectiva de

legalidade, ou mesmo se disfarçando como protetores da legalidade, da ordem e da vida de

todos.

Agamben, ao refletir sobre a natureza epistemológica do poder, expressa a tensão

existente entre a potência (que é a capacidade de exercer a força) e o próprio poder.

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O prazer… é aquilo cuja forma é completa em cada instante, perpetuamente em ato. Desta definição, resulta que a potência é o contrário do prazer. Ela é aquilo que nunca está em ato, que sempre falha o seu objetivo, em suma, é a dor. E se o prazer, de acordo com esta definição, nunca se desenrola no tempo, já a potência se inscreve essencialmente na duração. Estas considerações permitem lançar luz sobre as relações secretas que ligam o poder à potência. A dor da potência, desvanece-se, de fato, no momento em que ela passa ao ato. Mas existem por toda parte – também dentro de nós – forças que obrigama potência a permanecer em si mesma. É sobre essas forças que repousa o poder: ele é o isolamento da potência em relação ao seu ato, a organização da potência. Apropriando-se de sua dor, o poder fundamenta sobre ela a sua própria autoridade: e deixa literalmente incompleto o prazer dos homens. (AGAMBEN, 1985)

A metáfora proposta pelo filósofo, traz ao conflito entre poder e potência a ideia de

temporalidade. A legitimidade do poder se sustenta na contenção da potência, na limitação da

força. A força desmesurada perde sua autoridade, e passa a ser violência. Valendo-se da

metáfora de Agamben, uma das funções do Estado deveria ser o controle da dor (como

manifestação da contínua coerção psicológica), para que ela continue contendo a expressão

desmesurada da força, a violência. A partir dessa fundamentação, é possível comparar como

deveria e como não deveria agir o sujeito em posição de autoridade. Como a autoridade está

fundamentada sobre a potência, esta não deve ser confundida com prazer. Se alguém, em

posição de autoridade, expressa a sua potência como forma de prazer, deslegitima a sua própria

autoridade. A sua força, ou capacidade de agir, se torna violenta.

Portanto, torna-se indispensável no atual paradigma, com as crescentes desigualdades

sociais, com a crescente violência (institucionalizada ou não), a retomada das discussões dos

antigos. A ética não pode se desvirtuar da política, visto que essa é realizada por seres humanos

que podem deixar a sua natureza (a natureza segundo Hobbes) sobressair no contato com o

poder, e exercer a sua autoridade como forma de dominação. Basta recorrer aos eventos dos

séculos XX e XXI: as atrocidades cometidas pelos Estados Totalitários (nazistas, fascistas e

socialistas), os genocídios, as guerras, as respostas violentas às diferenças, os discursos de ódio,

as decisões arbitrárias daqueles que deveriam promover a Justiça, entre outros. E Kafka nos

mostra que quando estamos diante da lei, haverá sempre essa figura da autoridade responsável

por protegê-la, e se as vaidades e arbitrariedades desta não corresponderem à finalidade da lei,

a qualquer momento poderemos ser vítimas de um poder inexorável e arbitrário vindo do

Estado, como aconteceu com Joseph K em O processo.

4. O Brasão da Cidade e os limites da liberdade na democracia

Em O Brasão da Cidade, Kafka trata das relações conflituosas entre o libertarismo e o

comunitarismo. Se pudermos ampliar mais ainda a célebre frase de Karl Marx: “A história de

todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX, ENGELS,

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1998), sem uma interpretação restrita à disputa entre oprimidos e opressores, podemos dizer

que a história das sociedades é a história dos conflitos de interesses, e que ocasionalmente pode

existir um interesse que irá superar o outro (por meios pacíficos ou não). Dentro dessa relação

conflituosa, a narrativa do conto O Brasão da Cidade foi edificada contrastando: do lado

libertário a defesa das liberdades e das individualidades de cada um; e do lado comunitário a

defesa pelo interesse coletivo e pelo bem comum. Sempre que um dos lados se expande, o

outro se retrai. Se aumentarem as liberdades individuais, os interesses coletivos são

prejudicados e destoam-se as desigualdades sociais; se ampliarem os interesses coletivos, os

indivíduos perdem na mesma proporção as suas liberdades individuais.

No conto, Kafka traz uma situação hipotética da construção da Torre de Babel, que a

priori, foi sendo construída em perfeita harmonia e ordem. Nas suas palavras:

No início tudo estava numa ordem razoável na construção da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até excessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação como se à frente houvesse séculos de livres possibilidades de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao ponto de que não se podia trabalhar com lentidão suficiente, ela não precisava ser muito enfatizada para que se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essencial do empreendimento todo é a idéia de construir uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é secundário. Uma vez apreendida na sua grandeza, essa ideia não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de construir a torre até o fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanidade aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um ano será dentro de cem anos realizado talvez em meio e além disso melhor, com mais consistência. (KAFKA, 2012)

Por que então questionar essa perfeita harmonia? Deveriam todos se submeterem a uma

concepção naturalística do progresso, ou serem orientados apenas a uma finalidade única e

incontestável do bem comum? Talvez essa seja uma perfeita alusão que Kafka trouxe sobre a

concepção metafísica do progresso que vem sendo construída desde a antiguidade, e talvez uma

das maiores referências dessa perspectiva seja a obra “A República” de Platão. Tal viés de

organicidade perdurou durante muito tempo, perpassando pela Idade Média, até encontrar nos

movimentos renascentistas e racionalistas uma ruptura com essa concepção. Posteriormente,

como um dos grandes precursores do Iluminismo, John Locke reforma a filosofia individualista

e liberal, e cria uma nova situação conflitante dentro do aspecto metafísico das ideias. Como

atenta Norberto Bobbio:

Locke — que foi o principal inspirador dos primeiros legisladores dos direitos do homem — começa o capítulo sobre o estado de natureza com as seguintes palavras: “Para entender bem o poder político e derivá-lo de sua origem, deve-se considerar em que estado se encontram naturalmente todos os homens; e esse é um estado da perfeita liberdade de regular as próprias ações e de dispor das próprias posses e das próprias

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pessoas como se acreditar melhor, nos limites da lei de natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de nenhum outro. Portanto, no princípio, segundo Locke, não estava o sofrimento, a miséria, a danação do “estado ferino”, como o diria Vico, mas um estado de liberdade, ainda que nos limites das leis. Precisamente partindo de Locke, pode-se compreender como a doutrina dos direitos naturais pressupõe uma concepção individualista da sociedade e, portanto, do Estado, continuamente combatida pela bem mais sólida e antiga concepção organicista, segundo a qual a sociedade é um todo, e o todo está acima das partes. (BOBBIO, 2004)

Kafka, talvez por tratar o argumento do bem comum como um argumento criado pelos

próprios homens, levando em conta que o progresso naturalístico, ou a própria chegada ao céu

(que é o objetivo de construção da torre), não compreendesse uma possibilidade que estivesse

dentro do plano material, e da temporalidade que corresponde à vida, fez desse reconhecimento

o despertar da individualidade no homem. E consequentemente o despertar dos sentimentos de

autoproteção, já que quando cada um busca ao máximo suas realizações dentro da esfera

material, pode em algum momento atingir a liberdade do outro de fazer o mesmo. E isso –

assim como todos os contratualistas, desde Hobbes a Rosseau e até mesmo Locke,

preconizaram na concepção do estado de natureza – geraria grandes e intensos conflitos. Em

Hobbes esse fator era intrínseco ao homem como um sentimento de preservação da própria vida

(HOBBES, 1974). Em Locke, com a intensificação das relações comerciais e,

consequentemente, da perda de valor real dos bens devido ao câmbio de moedas, a proporção

da desigualdade entre os homens aumentou e intensificou os conflitos sociais (LOCKE, 1998).

Já para Rosseau, a partir da usurpação por meio do cercamento da terra, o homem atentou

contra a liberdade natural do outro gerando discórdias, e para se preservar fez um primeiro

contrato ilusório com os desfavorecidos para garantir sua posição de poder, o que propulsionou

todos os conflitos sociais, pois cerceou a liberdade de todos, inclusive dos que estavam em

posição de dominância (ROUSSEAU, 1996).

Na seguinte passagem, Kafka traz o ponto de virada em que o indivíduo desaliena-se de

uma finalidade a ele imposta, e começa a buscar os seus próprios objetivos no plano material

(em conjunto com aqueles que buscam o mesmo):

Por que então se esforçar ainda hoje até o limite das energias? Isso só teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço de uma geração. Mas não se pode de modo algum esperar isso. Era preferível pensar que a geração seguinte, com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da geração precedente e arrasará o que foi construído, para começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se preocupavam com a construção da cidade dos trabalhadores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais bonito; resultaram daí as disputas que evoluíram até lutas sangrentas. Essas lutas não cessaram mais; para os líderes elas foram um novo argumento no sentido de que, por falta da concentração necessária, a torre deveria ser construída muito devagar ou de preferência só depois do armistício geral. As pessoas porém não ocupavam o tempo apenas com batalhas; nos intervalos embelezava-se a cidade, o que entretanto

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provocava nova inveja e novas lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes foi diferente; sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos muito ligados entre si para abandonarem a cidade. (KAFKA, 2012)

É possível traçar um paralelo entre a tomada de consciência retratada no trecho acima e

a análise da democracia americana por Alexis de Tocqueville no século XIX. Segundo o

filósofo, a cultura americana foi construída em cima de bases seculares. A distinção entre o

plano terreno e o plano divino possibilitou que os americanos enxergassem a política como o

meio para a resolução dos conflitos sociais e se preocupassem com questões pragmáticas, que

dessem suporte ao convívio harmonioso dos cidadãos9, e conseqüentemente uma participação

mais efetiva destes. A passagem abaixo ilustra essa perspectiva de Tocqueville:

Escapar do espírito de sistema, do jugo dos costumes, das máximas familiares, das opiniões de classe e, até certo ponto, dos preconceitos nacionais; não tomar a tradição mais que como uma informação e os fatos presentes como um estudo útil para fazer de outro modo e melhor; procurar por si mesmo e em si mesmo a razão das coisas, tender ao resultado sem se deixar acorrentar ao meio e visar o fundo através da forma: são estes os traços principais que caracterizam o que chamarei de método filosófico dos americanos. (TOCQUEVILLE, 2004)

Entretanto, a democracia retratada nesse período era uma democracia formal. Norberto

Bobbio, em seu livro Liberalismo e Democracia traça uma definição de democracia levando

em conta os aspectos formais e substanciais. Na perspectiva de Bobbio, as doutrinas liberais

foram importantes para criar as condições para a democracia, no que tange a igualdade formal,

ou seja, a igualdade perante a lei.

A única forma de igualdade que não só é compatível com a liberdade tal como entendida pela doutrina liberal, mas que é inclusive por essa solicitada, é igualdade na liberdade: o que significa que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto compatível com a liberdade dos outros, podendo fazer tudo o que não ofenda a igual liberdade dos outros. (BOBBIO, 2000)

Entretanto, para complementar uma efetiva democracia, não basta apenas a proteção da

lei, é necessário que todos tenham a oportunidade de buscar os seus direitos e participar na

edificação dessas leis. Nesse ponto, as teorias libertaristas e comunitaristas devem se encontrar.

A primeira como condição de emancipar os indivíduos de sua condição alienante, e a segunda

para criar condições substanciais de ampla participação política de todos.

9 Convém lembrar que o conceito de democracia surgiu limitado, com direitos políticos restritos a uma pequena parcela da sociedade. A ampliação desses direito foi sendo conquistada desde meados do século XIX e continua até os dias atuais. Uma boa análise dessa luta pela ampliação de direitos está bem representada na obra Capitalismo e Social Democracia de Adam Przeworski

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A democracia moderna envolve a ampla participação política com a igualdade na

liberdade de todos, ou seja, a ampliação da condição de cidadão a todos os indivíduos. Destarte,

a cidadania, na perspectiva de Thomas Marshall, envolve três elementos imprescindíveis. O

elemento civil: que é composto pelos direitos necessários à liberdade individual, de ir e vir, de

imprensa, de pensamento e de fé, pelo direito à propriedade e à justiça; o elemento político

composto pelo direito de participar como um todo na esfera política, como membro dotado de

autoridade política ou como eleitor; e o elemento social que “se refere a tudo o que vai desde o

direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo

na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem

na sociedade” (MARSHALL, 1967).

Em uma síntese do conceito de democracia de Bobbio em comparação com o conceito

de cidadania de Marshall, entende-se que é impossível pensar em democracia em uma

sociedade onde os cidadãos ainda estão alienados e não buscaram questionar a ordem imposta.

Kafka, com primazia, consegue retratar, em O Brasão da Cidade, esse contraste entre uma

ordem imposta e a gradativa tomada de consciência dos indivíduos, que é o primeiro passo para

a única condição de mudança da dominação tradicional, que é a democracia.

Theodor W. Adorno enriquece a concepção de desalienação do indivíduo ao retratar a

importância de uma educação democrática para reforçar as próprias bases democráticas da

sociedade:

Pessoas que se enquadram cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se como sujeitos dotados de motivação própria.(...) Inclui-se ai a postura de tratar os outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas. Só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados.(...) A única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem to da a sua energia para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência. (ADORNO, 1995)

Na passagem acima, Adorno atenta para a importância da educação10 nesse processo de

desalienação. Para além da tomada de consciência, é imprescíndivel que se crie bases

educacionais na sociedade, para que se expanda essa condição de contestar a tradição e a ordem

social vigente para todos os demais. Se essa condição não for satisfeita, cria-se uma nova

10 Karl Popper faz uma alusão muito interessante a respeito da importância da desalienação eda educação, que tem como corolário as diversas perspectivas acerca de um mesmo tema e, consequentemente, transcreve uma maior gama de possibilidades dentro do horizonte racional: “Creio que podemos afirmar que uma discussão foi tanto mais proveitosa quanto mais os participantes com ela puderam aprender. Significa isto que quanto mais interessantes e difíceis tenham sido as questões levantadas tanto mais induzidos eles foram a pensar respostas novas, tanto mais abalados terão sido nas suas opiniões, pois foram levados a ver essas questões de forma diferente após a discussão - em resumo, os seus horizontes intelectuais alargaram-se" (POPPER, 2009).

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ANDRADE, L. S. Entre o direito e a ficção

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ordem vigente, com um novo tipo de dominação, que demandará um novo tempo para que se

retome a tomada de consciência dos indivíduos, e possibilite uma nova mudança social.

As nossas relações sociais são pautadas em uma naturalidade convencionada apenas

para atingirmos os nossos interesses? A ideia da ficção de um contrato social, ou de um Estado

garantidor de direitos e deveres, tendo como base valores convencionados, atendem aos

clamores de todos? Apesar da construção histórica dos Estados, seriam eles reflexos apenas

daqueles que estão no poder? Depois da concepção do povo como soberano (inspirada por

Rosseau) essa realidade se alterou? A democracia representativa cumpre os clamores populares,

ou apenas serve de contenção da população e como instrumento de controle que atende apenas

a uma parcela do todo? Kafka termina O Brasão da Cidade deixando uma imagem que mostra,

que apesar de estarmos em uma construção imposta e que serve de normatividade social,

quando esta não mais atende aos clamores do povo, a democracia mostra a sua força. E o povo

combate as injustiças e clama para que seus direitos estejam presentes na edificação das novas

leis. “Tudo o que nela surgiu de lendas e canções está repleto de nostalgia pelo dia profetizado

em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida

sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão.” (KAFKA, 2012) Como já

pensava Rousseau, a democracia é a condição de libertação do homem dos grilhões de uma

sociedade injusta (ROUSSEAU, 1996). Sempre que a ordem social se degenera, a democracia

externaliza toda a potência acumulada pela tentativa de contenção ilegítima das autoridades

que deturparam o poder. O ato democrático é a mais legítima expressão de um poder soberano.

E para que se crie as condições de uma democracia efetiva, as suas bases educacionais devem

estar enraizadas na cultura da sociedade. Apenas em uma sociedade onde a mudança e a

contestação das injustiças se tornaram culturais, é possível uma verdadeira democracia.

5. Para além da literatura e do Direito: Considerações finais

Com o aumento da intensidade e quantidade das relações sociais na contemporaneidade,

problemas cada vez mais complexos tendem a surgir. Nessa realidade, uma boa análise não

deve partir somente de uma perspectiva unilateral, restrita somente ao âmbito científico a que

ela pertence. O caso do Direito é ainda mais complicado, visto que as suas diferentes áreas de

abrangência demandam conhecimentos complementares diferentes.

Para pensar e refletir a natureza do fenômeno jurídico, essa análise não deve ser

direcionada para um sentido oposto à integração das esferas do conhecimento. O máximo de

conceitos e de áreas de conhecimento distintos devem ser levados em consideração, e o direito

deve buscar a convergência dessas esferas na finalidade da resolução harmoniosa dos conflitos

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sociais. Partindo desse pressuposto, conversar entre a literatura e os fundamentos filosóficos do

direito tendem a dar uma boa sustentação às diferentes análises.

No caso específico desse trabalho, foi possível reconhecer que para uma análise crítica

devemos sempre recorrer a um viés um pouco distante da tradicional abordagem que se resume

a uma perspectiva estritamente dogmática do Direito. A Literatura, como demonstrado, pode

nos ajudar a trazer respostas diferentes para problemas recorrentes.

Por fim, buscando uma convergência analítica entre o Direito, o Estado, o indivíduo e a

sociedade, sob o prisma de Franz Kafka, podemos concluir os seguintes pontos:

a) O indivíduo, na vida em sociedade, se vê constantemente coagido nas dimensões

externa e interna. A dimensão interna é condicionada pelo respeito às leis, aos costumes, à

moral e às condições psicológicas, que impedem a motivação do indivíduo em agir livremente.

A dimensão externa é condicionada pela coerção a partir da força e pelas limitações físicas: a

primeira impedindo o indivíduo de transgredir as leis e as regras sociais pelo risco de sofrer

sanções, e a segunda pelas próprias limitações ambientais e fisiológicas.

b) O Estado é uma criação humana para proteger os interesses sociais e dos indivíduos,

porém em contradição à sua essência, muitas vezes leis que diminuem essa dimensão protetiva

são edificadas e instituídas, restando apenas uma coerção psicológica e uma repressão física,

que protege uma parcela da sociedade em detrimento de outra. Atenta-se para a necessidade da

retomada da ética na gestão do Estado, para que este não seja distorcido.

c) A democracia é a condição dos indivíduos, na capacidade de se libertarem dos

grilhões impostos por uma ordem opressiva, lutarem pelos seus direitos. É a síntese da vontade

coletiva orientada ao bem comum. Entretanto, a democracia demanda uma base cultural e

educacional solidificada, que desperte nos indivíduos essa capacidade de se desalienarem, e que

ela se torne estrutural na sociedade.

6. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Lisboa: Cotovia, 1985. ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra – os autos do processo. São Paulo: Perspectiva, 1993. BOBBIO, Norberto. Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier Brasil, 2004.

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ANDRADE, L. S. Entre o direito e a ficção

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BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1993. BELINI, Luiz Antonio. A Justiça na República de Platão (427-347 aC). Sarandi: Humanitas Vivens, 2009. CARONE, Modesto. O realismo de Franz Kafka. Novos Estudos-CEBRAP, n. 80, p. 197-203, 2008. CARONE, Modesto. Prefácio. In: KAFKA, Franz. Franz Kafka essencial. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011 FERRAZ JÚNIOR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003. GUATTARI, Félix; DELEUZE, Gilles. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. HOBBES, Thomas. Leviatã, São Paulo: Abril Cultural. 1974. KAFKA, Franz. Franz Kafka essencial. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011 KAFKA, Franz. O processo. Trad: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. KAFKA, Franz. O Castelo. Trad: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MARSHALL, Thomas Humprey. Cidadania, classes sociais e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MARX, Karl; ENGELS, Frederich. O manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. POPPER, Karl. O Mito do contexto: em defesa da racionalidade da ciência. Lisboa: Edições, 2009. PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e democracia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989. ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. São Paulo: Martin Claret. 1996. STRECK, Lênio Luiz. Faltam grandes narrativas no e ao direito. In: Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p. 227-231. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2004. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Fenomenologia do Ethos. São Paulo: Loyola, 2002.

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7. Outras produções bibliográficas INCEPTION. Longa-Metragem. Direção e produção: Cristopher Nolan. Música: Hans Zimmer. Reino Unido, Estados Unidos, 2010, 148 minutos. LE PROCÈS. Longa-Metragem. Direção: Orson Welles. Produção: Alexandre Salkind. Música: Jean Ledrut, Tomaso Albinon. Alemanha Ocidental, França, Itália, 1962, 118 minutos.

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PAIVA, B.F.B; MARTINS, P.K.R.. Imunidade tributária e a possibilidade

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Imunidade tributária e a possibilidade de sua aplicação aos livros eletrônicos

Tax immunity and the possibility of its application to e-books

Bruno Felipe Barboza de Paiva1 Priscilla Karla Roseno Martins2

Resumo: Esse artigo busca discutir acerca da possibilidade de extensão do artigo 150, VI, “d”,

da Constituição Federal para os chamados livros eletrônicos por meio de uma interpretação mais abrangente de tal dispositivo. Para tanto, analisa-se a imunidade tributária de uma forma mais ampla e, logo após, foca-se na imunidade cultural propriamente dita, buscando um conceito jurídico de livro a fim de delimitar o material que é objeto da pretensão constitucional. Destacam-se as características do livro eletrônico e como o mesmo pode reunir os requisitos para fazer jus à imunidade tributária, tendo em vista que trata-se de mais uma forma de comercialização do livro, trazendo, ainda, os posicionamentos doutrinários favoráveis e contrários acerca do assunto e o entendimento jurisprudencial, buscando aplicar o máximo da lei na nova realidade social para a efetivação dos preceitos fundamentais.

Palavras-chave: Direito Tributário. Imunidade tributária. Livro eletrônico.

Abstract: This article seeks to discuss about the possibility of extension of article 150, VI, "d",

of the Federal Constitution to so-called electronic books through a broader interpretation of such a device. To do so, the tax immunity of a more wide and, soon after, focuses on cultural immunity itself, seeking a legal concept of book in order to delimit the material that is the subject of the constitutional claim. Highlight the characteristics of electronic book and how it can reunite the requirements to do justice to the tax immunity, since it is more a way of marketing the book, bringing the doctrinal and contrary positions on the subject and the understanding case law, seeking to apply as much of the law on the new social reality for the effectuation of the fundamental precepts.

Keywords: Tax Law. Tax immunity. Electronic book.

1 Aluno da Graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 2 Aluna da Graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 06, n. 10, pp. 163-178, jan./abr., 2016.

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1. Introdução

As mudanças por que vem passando a sociedade são mais do que fundamentais para que o

Direito se renove constantemente, já que seu objeto de estudo é a interação que ocorre nesse meio,

suas implicações e consequências. Muitos veículos que eram utilizados como fonte principal de

informação, como o rádio e o jornal, foram sendo substituídos, gradativamente, por ferramentas

que não poderiam ser tocadas fisicamente, mas, por outro lado, possibilitavam o acesso de toda

pessoa que ingressasse na internet, de qualquer lugar do mundo. Assim, para que não ficassem

excluídos do mercado, diversos produtos que antes eram comercializados apenas física e

pessoalmente, passaram a integrar o meio eletrônico e com os livros não foi diferente. Hoje, a

quantidade de material que podemos encontrar com apenas um clique é impressionante e acaba

colocando em risco os livros físicos que passam a ser menos procurados, principalmente pela

parcela jovem da população.

Como uma forma de incentivar a venda e leitura de livros em nosso país, os legisladores

acharam por salutar incluir, dentre outras coisas, os livros no rol de imunidades presentes no artigo

150, VI, “d”, da Constituição Federal, estruturando, assim, a imunidade cultural, que seria uma

das medidas fomentadas em nossa Carta Magna para facilitar a expressão artística, científica e

intelectual, sendo abarcada nesse dispositivo como forma de baratear o acesso à cultura, como se

constata no referido dispositivo constitucional:

Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI – instituir impostos sobre: d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (BRASIL, 1988).

Após essa decisão foi preciso estabelecer o conceito jurídico de livro para se saber,

exatamente, até onde iria tal imunidade e quais seriam os componentes relacionados aos livros que

ficariam livres da carga tributária.

Atualmente, existe uma problemática, pois, os livros eletrônicos vêm ganhando mais

espaço no mercado e isso acaba gerando questionamentos quanto à abrangência de tal imunidade,

ou seja, se ela poderia ou não ser estendida aos livros impressos.

Muitos posicionamentos doutrinários se mostram a favor de tal interpretação, alegando que

a norma não é estática e que deve acompanhar as mudanças sociais, para que melhor se adeque na

proteção dos bens jurídicos. Em sentido contrário, certos autores, como Saraiva Filho (1998) e

Torres (2005), alegam que o texto constitucional é expresso e bastante claro ao afirmar que apenas

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PAIVA, B.F.B; MARTINS, P.K.R.. Imunidade tributária e a possibilidade

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os livros feitos de papel gozam de imunidade tributária, não havendo espaços para discussões

acerca da inclusão de outros meios que não esses.

Desta forma, cabe à jurisprudência, já que essa é o resultado de várias decisões judiciais

que tiveram parecer sobre determinados temas de forma similar, balizar seu entendimento entorno

do assunto para que, juntamente com a doutrina, possamos ter um entendimento concreto sobre o

tema, o que ainda não ocorre, tendo em vista que apesar dos Tribunais Regionais se posicionarem

favoráveis à imunidade dos livros eletrônicos, parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal

(STF), que já analisaram o tema, não concorda com tal inclusão, demonstrando a divergência de

pensamentos em torno de tal problemática.

2. Imunidade tributária

A Constituição Federal de 1988 atribui a cada ente federativo (União, Estados,

Municípios e Distrito Federal) a competência para legislar sobre seus respectivos tributos, sejam

eles de natureza exclusiva, concorrente ou comum. Assim, não há que se falar em conflito

aparente de normas no processo de tributação como elucida o próprio texto constitucional:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; […] Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; […] (BRASIL, 1988).

Por outro lado, o mesmo dispositivo que delega competência, é o responsável por limitar o

poder estatal na arrecadação tributária. Mas cabe, antes de tudo, diferenciar a imunidade tributária,

dos institutos da não incidência e da isenção.

A não incidência ocorre quando não há previsão legal para a tributação, não cabendo ao

contribuinte arcar com qualquer valor, tendo em vista a situação em que o legislador não previu

fato que seria, em regra, tributável.

A isenção configura hipótese em que o ente possui competência para instituir o tributo,

entretanto, por determinadas situações previstas em lei, ocorre uma espécie de benefício fiscal

onde o contribuinte pratica o fato gerador que origina o pagamento do tributo, mas é dispensado

de pagar o mesmo, encontrando base no texto constitucional:

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Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g (BRASIL, 1988)

Além de ser expressamente tratado no Código Tributário Nacional:

Art. 175. Excluem o crédito tributário: I – a isenção; II – a anistia. Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela consequente (BRASIL, 1966).

Por fim, na imunidade tributária há a hipótese de incidência e o contribuinte pratica o fato

gerador do tributo, porém, uma previsão constitucional e aqui se tem a grande diferença da

isenção, onde esta é prevista na legislação infraconstitucional, enquanto aquela vem disposta na

própria Constituição Federal, afasta o pagamento do tributo e a ocorrência do fato gerador,

tamanha é a força de sua imunidade:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros; b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 75, de 15.10.2013). (BRASIL, 1988)

Assim, as isenções podem ser conferidas aos contribuintes de uma forma muito mais

simplificada, por virem expressas em leis infraconstitucionais. Por outro lado, as imunidades

tributárias por estarem expressas na Constituição, além de precisarem de um processo mais solene

para sua implementação, afastam o pagamento de qualquer tipo referente ao tributo.

2.1 Imunidade tributária cultural

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PAIVA, B.F.B; MARTINS, P.K.R.. Imunidade tributária e a possibilidade

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Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 150, VI, “d”, a vedação tributária sobre os

livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. Tem essa norma a finalidade de

facilitar o acesso à cultura e à manifestação de pensamento em todas as suas formas,

consubstanciando-se em uma importante forma de acesso à informação e de transmissão de

pensamentos, independentemente de seu conteúdo.

É aqui fundamental citar o posicionamento de Torres (1995) para quem essa

intributabilidade dos livros, jornais e periódicos relaciona-se à ideia de justiça fiscal, na medida

em que visa diminuir o custo dos livros e das publicações em geral. Para ele, não há uma relação

direta entre essa imunidade e o direito fundamental de liberdade de expressão.

Vale ainda a ressalva de que tal imunidade é tipicamente objetiva, pois nas palavras de

Paulo de Barros:

Imunidades tributárias são aquelas conferidas em razão de determinado fato, bem ou situação e não pelas características ou atividades da pessoa que será, indiretamente, beneficiada com a imunidade. A imunidade dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (art. 150, VI, d da CF) é um exemplo de imunidade objetiva. (CARVALHO, 2008, p. 363).

A discussão que se firma acerca desse tema diz respeito à extensão de tal imunidade e se

ela engloba ou não, outras formas de livros que não são feitos de papel, já que a Constituição

Federal de 1988 é clara ao mencionar da versão física do livro. Sobre essa questão, formaram-se

duas correntes, onde a primeira adota uma interpretação mais restritiva e tradicional do conceito

de livro, não considerando as mídias eletrônicas como integrantes de tal grupo.

Por outro lado, a segunda corrente concorda com a ideia de que o livro e sua

comercialização passaram por significativas mudanças nos últimos tempos, não se podendo deixar

de considerar tais circunstâncias na aplicação do direito, tendo em vista que estamos falando de

uma ciência social aplicada, por se preocupar não apenas com o ponto de estudo partindo da

sociedade, mas também, com foco na interação entre os seres humanos que fazem parte dela e,

como tal, deve acompanhar as mudanças por que passa a sociedade e seus integrantes. Nesse

sentido, Aldemário Araújo Castro leciona:

À toda evidência, o constituinte decidiu proteger o livro como conceito, como idéia, como instrumento de divulgação de informações e de cultura de uma forma geral. O livro referido na Constituição não pode ser entendido somente como um conjunto de folhas impressas em papel e reunidas num volume encadernado. Aquele livro representa uma organização ou sistematização de dados ou conhecimentos, em prosa ou verso, materializadas em qualquer meio hábil de acesso. O meio físico ou substrato material será definido pelos costumes e recursos técnicos da época. Não raciocinar assim é afrontar o sentido da imunidade, que merece interpretação generosa. Por outro lado, significa violentar as melhores técnicas de hermenêutica, notadamente constitucional, engessando o conteúdo da norma ou regra de direito, não adaptando-a às mudanças sociais e tecnológicas. (CASTRO, 2001, p. 208).

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3. Conceito jurídico de livro

Ao falar sobre a imunidade dos livros eletrônicos, inicialmente, deve-se buscar o real

alcance da palavra livro, para a análise que aqui se pretende ter, não sendo das funções mais

simples, já que: “[...] ao conceituar uma palavra, devemos extrair dos signos que formam seu

enunciado a essência capaz de criar em nossa mente uma significação que nos remeta ao objeto

cujo conjunto de signos se refere” (WANDERLEY, 2010, p. 164).

Para um conceito mais técnico da palavra aqui tratada, traz-se o conceito expresso no

Dicionário Aurélio:

Livro [Do lat. libru.] S.m. 1. Reunião de folhas ou cadernos, soltos, cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados, e enfeixados ou montados em capa flexível ou rígida. 2. Obra literária, científica ou artística que compõe, em regra, um volume. [...] 3. Seção do texto de uma obra, contida num tomo e que pode estar dividida em partes: [...] 4. Registro para certos tipos de anotações [...] (destacado no original). (HOLANDA, 1986, p. 1042).

Como se percebe, o conceito trazido pelo dicionário é bastante tradicional e reflete,

apenas, a forma mais comum de produção desse meio de transmissão de pensamentos e, aqui, é

importante ressaltar que não são todos os tipos de livros que fazem jus a imunidade tributária, mas

tão somente, os que, de alguma forma, possibilitam a transmissão de ideias, sejam elas quais

forem. Assim, livros em branco, que são aqueles que não transmitem qualquer tipo de

pensamento, informação ou que são usados para um posterior preenchimento são excluídos do rol

das imunidades culturais.

Dessa forma, a obrigação de ir além do atrelamento tradicional à palavra é uma

necessidade para a garantia do próprio direito, pois mesmo que algumas normas permaneçam

engessadas em sua forma escrita, o que se deve buscar é uma interpretação que melhor se adeque

ao contexto social da época. Nessa espreita, Celso Ribeiro Bastos menciona, in verbis:

A Constituição não é nem pode ser um documento estático. É próprio da vida social o estar em constante mutação. Seus diversos aspectos (econômicos, políticos, culturais, morais etc.) entrelaçam-se para dar lugar a uma amálgama de elementos que reciprocamente se estimulam no campo da evolução. O fenômeno jurídico não poderia ficar de fora. Mesmo quando ele não tenha condições de se antecipar ou de propiciar essa evolução, ele não pode deixar de, ao menos, acompanhá-la. São duas realidades que dialeticamente se inter-relacionam: a Constituição formal e a material. Esta última acaba por configurar novas situações, e o Direito, na parte deste que nos interessa, a Constituição, não pode deixar de utilizar as vias pelas quais possa atualizar-se e pôr-se em dia com a realidade social (BASTOS, 1997, p. 129).

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Com base em tal perspectiva é de se considerar que, com os avanços tecnológicos por que

passa a sociedade, principalmente com a inclusão dos meios eletrônicos, nada mais natural que os

livros também passem a utilizar tais ferramentas para a publicação, sem contar na questão

ambiental, cada vez mais evidente, pois as publicações eletrônicas economizam material precioso

para a natureza, sendo ainda uma forma ecológica de ajudar o meio ambiente.

4. O livro eletrônico

A ideia que se tem de livro atualmente é apenas uma, das muitas versões por que passou

tão importante meio de conhecimento. Com uma história que perpassa por cerca dos últimos seis

mil anos, o livro pode ser as pinturas rupestres da Idade da Pedra, os papiros egípcios, os diários

dos navegantes que registravam todo tipo de informação em seus cadernos pessoais ou até mesmo

aqueles que não podemos pegar fisicamente, como os disponíveis em versões eletrônicas, sendo os

últimos, a forma mais atual e prática de manuseio que a tecnologia nos permite até o momento.

Levando em consideração as diversas formas que podem vir a veicular os livros, cabe a

análise acerca da possibilidade de se estender o entendimento de livro presente na Constituição

Federal de 1988 para o que faz parte da nossa realidade nos dias atuais. Machado se posiciona

sobre o tema:

Embora não verse a questão do livro eletrônico, o certo é que o Poder Judiciário já cunhou a extrema amplitude da imunidade versada no art. 150, VI, ‘d’, verbis: “[...] visando a difusão da cultura, educação, liberdade de pensamento e comunicação, constituiria injustificável contradição do constituinte alijar da abrangência tributária apenas parcela do processo de difusão da cultura e da educação, da liberdade de pensamento e de comunicação, através de jornais e periódicos. Restaria, evidentemente, frustrado o alvo constitucional” (MACHADO, 2003, p. 14).

Seria um grande retrocesso e até desinteresse não considerar uma interpretação extensiva

do que o legislador, em 1988, quis se referir quando concedeu imunidade aos livros e ao papel

destinado a sua impressão. É conveniente ressaltar que, naquela época, tal recurso ainda era pouco

difundido, pois suas primeiras formas datam da década de 70 no Estados Unidos e, como se sabe,

nosso país ainda está longe de ser um polo tecnológico, fazendo com que as inovações demorem

para chegar em território nacional, ainda possuindo preços elevados e inviáveis para a parcela

maior e mais pobre da população e, por isso seria incoerente exigir que nossos representantes

pudessem abarcar uma situação imprevista e futura. É oportuno transcrever o que ensina o mestre

Sacha Calmon Navarro Coelho, in verbis:

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Essa imunidade filia-se aos dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de expressão e opinião e partejam o debate de idéias, em prol da cidadania, além de simpatizar com o desenvolvimento da cultura, da educação e da informação, de forma que a interpretação que se deve fazer da Constituição, in casu, é muito mais teleológica do que literal (COELHO, 1997, p. 378).

Dessa forma, faz-se necessário aderir ao pensamento que defende a imunidade tributária

dos livros comercializados virtualmente e de seus suportes, tendo em vista que, da mesma forma

como os livros físicos necessitam de papel, tinta e todo um maquinário para sua fabricação, a

versão eletrônica também possui necessidades específicas no ato de sua formação, já que são

arquivos operacionalizados através de softwares, ou seja, programas de computador que possuem

as características dos livros convencionais, mas que são lidos por meios eletrônicos.

Outro ponto que merece destaque é o fato dos livros eletrônicos possibilitarem uma maior

inclusão literária por trazem consigo uma gama de recursos, como a leitura do que está escrito em

braile ou a possibilidade de ampliação do tamanho das letras para pessoas com algum grau de

deficiência visual, pessoas idosas, analfabetos e o incremento do texto com figuras e animações

que ocasionam um maior interesse por parte das crianças. Desconsiderar tais possibilidades seria

uma ofensa ao princípio da isonomia, porque as minorias excluídas da alfabetização teriam que

arcar com o ônus de pagar tributos pelo mesmo material por que pagam os alfabetizados, por

exemplo.

Sobre o tema, notável é a lição do Professor Roque Antonio Carrazza:

Uma pessoa alfabetizada, em perfeitas condições físicas e mentais, adquire uma Bíblia convencional (isto é, impressa em papel) e não suporta no preço deste Livro Sagrado, o ônus financeiro de nenhum imposto. É o que literalmente dispõe o art. 150, VI, d, da Constituição Federal. Já - se prevalecer a absurda e restritiva interpretação deste dispositivo constitucional - um deficiente (analfabeto, cego, idoso, etc.), ao adquirir o mesmo Texto Sagrado, só que, agora, adaptado a sua excepcional condição (por exemplo, uma Bíblia em vídeo), teria que suportar a carga econômica dos impostos que a precitada alínea d profiga. (CARRAZZA, 2006, p. 117).

Assim, tendo em mente a evolução que a sociedade passa diuturnamente, seria ilógico

não considerar avanços nas técnicas interpretativas para incluir o livro eletrônico como imune

graças à Constituição de 1988, em outras palavras, estaríamos engessando as transformações

sociais em que se pauta o Direito para atuar em prol da sociedade. Conforme conclui e coaduna

Yoshiaki Ichihara:

Não reconhecer a imunidade tributária dos livros eletrônicos é o mesmo que parar no tempo e no espaço, preso a interpretação literal e retrógrada, sem enxergar a realidade atual e do futuro, pois, em termos de conteúdo, função, objetividade; recursos para pesquisa, copiagem, transporte, divulgação, rapidez na localização dos textos, etc., os

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CD-Roms superam em muito os tradicionais livros, jornais, periódicos, etc. (ICHIHARA, 2001, p. 326).

5. Posicionamentos contrários à concessão de imunidade tributária aos livros

eletrônicos

Mesmo boa parte da doutrina sendo adepta da tese de que não se deve restringir a

imunidade cultural destinada aos livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão,

previstos na Constituição Federal de 1988, cabe expor posicionamentos relevantes em contrário

para uma melhor apreensão do tema em análise.

Oswaldo Othon (1998), que já foi Procurador da Fazenda Nacional, afirma que, talvez, o

constituinte ao conceder tal imunidade aos livros impressos, não tivesse a intenção de estender o

mesmo benefício fiscal aos livros eletrônicos, tendo em vista que para sua leitura, se faz necessária

a presença de um computador ou objeto similar e, os mesmos, são objetos de posse de pessoas

com um poder aquisitivo mais elevado, não podendo assim, deixar de tributar àqueles que podem

contribuir com um valor superior à maior parcela da população. Dessa forma, delineia o

doutrinador que não pode fazer uma integração analógica do texto constitucional, pelo simples

fato de o mesmo ser expresso quanto à necessidade de papel na composição do livro para que se

aplique a imunidade garantida por nosso legislador originário. Para ele, interpretar mais do que já

está na Constituição seria violar os preceitos nela contidos, sendo a solução, a elaboração de uma

emenda constitucional para sanar a omissão em nosso texto legal quanto à inclusão dos livros

eletrônicos no rol de imunidades concedidas no art. 150, VI, “d”, da Magna Carta, expondo seu

posicionamento como:

O que está amparada, portanto, pela imunidade tributária é, apenas, a mídia escrita tipográfica, tendo, pois, como suporte o papel, não tendo sido acolhida a mídia falada ou vista, nem alcançada a mídia eletrônica — o software ou o também só metaforicamente chamado livro eletrônico, ou seja, DVD, CD-ROM ou disquetes que, em conjunto com um programa, armazenam, com a técnica digital, o conteúdo de um livro, originariamente impresso em papel, necessitando, para ser utilizável, de hardware, conjunto de componentes mecânicos, elétricos e eletrônicos com os quais são construídos os computadores e equipamentos periféricos de computação, ao contrário, aliás, do verdadeiro livro, que basta por si mesmo (SARAIVA FILHO, 1998, p. 136).

Outro doutrinador que coaduna com a tese nesse ponto explicitada é Ricardo Lobo Torres

(2005), para quem a imunidade tributária até aqui tratada seria um privilégio constitucional,

trazendo uma ideia de justiça fiscal, pelo fato de o Brasil ter uma instaurada crise na educação e tal

medida serviria para ampliar o número de alfabetizados, sendo uma das formas de se atingir as

metas de desenvolvimento humano estabelecidas pelo Governo Federal que estão contidas no

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Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, além de não possuir o art. 150, VI, “d”, a

liberdade de expressão como maior característica por já o ser explícito. Quanto à extensão aos

livros eletrônicos da imunidade aqui tratada, o autor também aponta a necessidade de papel

impresso para a fruição da imunidade, sendo a garantia constitucional para a “cultura impressa” ou

“cultura tipográfica”, ou seja, uma vedação para as ideias transmitidas por meio de papel, não

tendo espaço para se incluir os meios digitais ou cibernéticos. Sob o prisma da interpretação

histórica, frisa o autor que no momento da elaboração constitucional já se poderia ter incluído as

publicações por via eletrônica, não sendo, portanto, essa a intenção do legislador.

Nesse sentido, disserta Ionete de Magalhães Souza:

O livro é suporte imediato de comunicação, diretamente com o homem, sem a necessidade da máquina — computador —, para efetivar uma leitura informatizada de um CD-ROM. Caso contrário, a comunicação não se efetuará. Dessa forma, parece que não há que se falar que CD-ROM seja livro, mesmo quando naquele contiver o mesmo e único conteúdo de um livro. O acesso, a forma e a durabilidade distanciam o livro e o CD-ROM. Se CD-ROM fosse livro, não seria necessário outro nome para designá-lo, o signo “livro” bastaria e o enquadraria (SOUZA, 2002, p. 21-22).

Na mesma linha, Heleno Taveira Torres ao falar sobre a possibilidade de se estender a

imunidade aos livros eletrônicos afirmou:

[...] o uso da interpretação extensiva não deve ser utilizado para pretender abarcar, no preceito imunitório, toda e qualquer forma de acesso, uso e gozo da liberdade de informar e ser informado. Com a regra do artigo 150, IV, “d”, limitando-se o seu alcance apenas aos livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão, já encontra-se satisfeito o objetivo e garantido o valor desejado pelo Constituinte. Tudo o mais que de aperfeiçoamento técnico, para o uso cibernético, possa surgir, não será mais que uma exploração de bens de consumo (computadores), cuja utilização demonstra evidente capacidade econômica, devendo, pois, o respectivo produto (livro eletrônico) ser tributado, sem que isto concorra para afetar qualquer liberdade individual vinculada com a difusão da informação e da cultura (TORRES, 1998, p. 81).

Luís Eduardo Schoueri se posiciona da seguinte forma:

Parece correto afirmar que a imunidade concedida aos livros consiste em privilégio constitucional destinado a um conjunto específico e limitado de situações, razão pela qual o contribuinte, por encontrar-se no campo do Domínio Econômico, está sujeito ao Princípio da Livre Concorrência. Em tal situação, tendo em vista a presença de vetor indicativo da existência de capacidade contributiva e a ausência de um fundamento para a concessão de um privilégio constitucional, uma interpretação ampla da abrangência da referida imunidade torna-se amplamente criticável. Essa interpretação ampla, típica dos direitos humanos, seara na qual prevalece o princípio do in dubio pro libertate, é dotada de exagero, apresentando analogia ingênua entre a cultura tipográfica e a eletrônica. A imunidade sob análise, como de resto ocorre com qualquer outro privilégio constitucional, deve ser interpretada de acordo com a letra da lei e com os objetivos e a finalidade da concessão, observando-se o postulado da razoabilidade. Nesse sentido, não há razão para estender esta imunidade para além do que o constituinte expressamente protegeu. (SCHOUERI, 2011, p. 404).

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6. Entendimento jurisprudencial

Com as discussões acerca da possibilidade ou não de se estender a imunidade prevista no

art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal, aos livros eletrônicos, torna-se uma consequência

natural que tais explanações cheguem até os níveis mais elevados de nossa justiça.

De fato, podemos observar que as opiniões contrárias que se encontram sobre o assunto

são de datas antigas em relação ao alastramento da tecnologia que se deu a partir dos anos 90.

Desde então, o fenômeno tecnológico que possibilita a leitura de livros por meio eletrônico se

alastrou irreversivelmente, fazendo com que os tribunais emitissem novos entendimentos frente à

nova ordem em que a sociedade se encontra.

Embora ainda haja controvérsias sobre o tema, os Tribunais Federais têm se posicionado

a favor da inclusão dos livros eletrônicos no rol dos abrangidos pelo artigo supra, sob o

fundamento de que a norma presente neste artigo visa garantir a livre liberdade de expressão,

pensamento e difusão de cultura. Nesse sentido, se posicionou o Tribunal Regional da 3ª região:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. LIVROS ELETRÔNICOS E ACESSÓRIOS. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA E EVOLUTIVA. POSSIBILIDADE. 1. Na hipótese dos autos, a imunidade assume a roupagem do tipo objetiva, pois atribui a benesse a determinados bens, considerados relevantes pelo legislador constituinte. 2. O preceito prestigia diversos valores, tais como a liberdade de comunicação e de manifestação do pensamento; a expressão da atividade intelectual, artística e científica e o acesso e difusão da cultura e da educação. 3. Conquanto a imunidade tributária constitua exceção à regra jurídica de tributação, não nos parece razoável atribuir-lhe interpretação exclusivamente léxica, em detrimento das demais regras de hermenêutica e do "espírito da lei" exprimido no comando constitucional. 4. Hodiernamente, o vocábulo "livro" não se restringe à convencional coleção de folhas de papel, cortadas, dobradas e unidas em cadernos. 5. Interpretar restritivamente o art. 150, VI, "d" da Constituição, atendo-se à mera literalidade do texto e olvidando-se da evolução do contexto social em que ela se insere, implicaria inequívoca negativa de vigência ao comando constitucional. 6. A melhor opção é a interpretação teleológica, buscando aferir a real finalidade da norma, de molde a conferir-lhe a máxima efetividade, privilegiando, assim, aqueles valores implicitamente contemplados pelo constituinte. 7. Dentre as modernas técnicas de hermenêutica, também aplicáveis às normas constitucionais, destaca-se a interpretação evolutiva, segundo a qual o intérprete deve adequar a concepção da norma à realidade vivenciada. 8. Os livros são veículos de difusão de informação, cultura e educação, independentemente do suporte que ostentem ou da matéria prima utilizada na sua confecção e, como tal, fazem jus à imunidade postulada. Precedente desta E. Corte: Turma Suplementar da Segunda Seção, ED na AC n.º 2001.61.00.020336-6, j. 11.10.2007, DJU 05.11.2007, p. 648. 9. A alegação de que a percepção do D. Juízo a quo ingressa no campo político não merece acolhida, haja vista que interpretar um dispositivo legal é exercício de atividade tipicamente jurisdicional. 10. Não há que se falar, de outro lado, em aplicação de analogia para ampliar as hipóteses de imunidade, mas tão-somente da adoção de regras universalmente aceitas de hermenêutica, a fim de alcançar o verdadeiro sentido da norma constitucional. 11. Apelação e remessa oficial improvidas. (AMS 200061040052814, DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA, TRF3 - SEXTA TURMA, 01/09/2004).

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Como é percebido, o Tribunal considerou a evolução por qual passou o livro, nas últimas

décadas, para dar um parecer positivo, ao aplicar uma interpretação que englobe os livros

eletrônicos e seus acessórios para declarar as imunidades respectivas. Até mesmo o já citado

Ricardo Lobo Torres (2005) que se mostra fiel em seu pensamento de não estender as imunidades

tributárias para os livros eletrônicos, defende a ideia de que tais obras acompanhadas de materiais

eletrônicos são imunes se houver a preponderância da publicação, como se pode aferir: “Parece-

nos que tais mercadorias são imunes, desde que haja preponderância econômica e intelectual do

texto sobre o disco compacto”.

Em outra esfera da justiça brasileira, o STF não possui entendimento pacífico acerca da

imunidade dos livros eletrônicos, porém, as decisões de alguns de seus ministros até aqui

proferidas apontam pelo não acatamento da Corte para as referidas imunidades, sendo que tais

decisões se sustentam na tese de que apenas filmes fotográficos e papel fotográfico, por exemplo,

que são insumos assimiláveis ao papel, poderiam ser incluídos na norma imunizante do artigo 150,

VI, “d”, da CF.

Por outro lado, seguindo uma linha intermediária, alguns ministros do STF entendem que,

primeiramente, a questão não deve ser pautada na incidência ou não da imunidade, mas sim, na

correta interpretação que deve ser dada ao dispositivo. Tanto o é, que foi reconhecida a

repercussão geral da extensão da norma imunizante aos livros eletrônicos.

Confirma-se:

DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. PRETENDIDA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA A RECAIR SOBRE LIVRO ELETRÔNICO. NECESSIDADE DE CORRETA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL QUE CUIDA DO TEMA (ART. 150, INCISO IV, ALÍNEA D). MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE TODA A SOCIEDADE. TEMA COM REPERCUSSÃO GERAL. Decisão. O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. Não se manifestaram os Ministros Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Ministro DIAS TOFFOLI Relator (Supremo Tribunal Federal - RE 330817 RG / RJ - Rio De Janeiro - Rel. Min. Dias Toffoli - J. 20/09/2012).

Posto isto, a discussão deve ser pautada em qual norma hermenêutica é a mais apropriada

para a análise do caso, se restritiva ou extensiva e, por consequência, a admissibilidade dos livros

eletrônicos na norma imunizante. Nesse sentido, destaca-se o voto do ministro Marco Aurélio,

relator do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 46:

Interpretar significa apreender o conteúdo das palavras, não de modo a ignorar o passado, mas de maneira a que este sirva para uma projeção melhor do futuro. Como objeto cultural, a compreensão do Direito se faz a partir das pré-compreensões dos intérpretes. Esse foi um dos mais importantes avanços da hermenêutica moderna: a percepção de que qualquer tentativa de distinguir o sujeito do objeto da interpretação é falsa e não corresponde à verdade. A partir da idéia do “Círculo Hermenêutico” de Hans Gadamer, evidenciou-se a função co-autora do hermeneuta: na medida em que este compreende,

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interpreta as normas de acordo com a própria realidade e as recria, em um processo que depende sobremaneira dos valores envolvidos. Nesse sentido, o jusfilósofo Richard Palmer assevera que a tarefa da interpretação é a de construir uma ponte sobre a distância histórica a separar o sujeito do objeto da interpretação. Assim, quando o intérprete analisa um texto do passado, não deve esvaziar a sua memória, nem abandonar o presente, mas levá-los consigo e utilizá-los para compreender e projetar um futuro. (STF, ADPF nº 46, rel. min. Marco Aurélio, DJ 20/8/09).

7. Considerações finais

Em razão de o fisco ocupar um lugar superior em relação ao contribuinte por representar

o Estado na função de recolhimento dos tributos, faz-se necessário limitar esse poder e uma das

formas para que isso ocorra é por meio das imunidades tributárias. Uma das espécies daquelas é a

imunidade cultural que abrange, dentre outras coisas, os livros e que está prevista no art. 150, VI,

“d”, da Constituição Federal.

A polêmica que gira em torno do referido dispositivo é se este abrange ou não os livros

eletrônicos, pois as mudanças por que passou a sociedade passaram a permitir o acesso à

informação de uma maneira muito mais rápida e ampla pelas novas ferramentas de busca e

armazenamento de dados.

Para que a situação seja resolvida, há a necessidade de uma intepretação constitucional

que consiga assegurar os direitos pretendidos pelo legislador constituinte originário. Para tanto,

partindo-se do preceito de que a imunidade cultural visa possibilitar uma maior inserção social no

meio dos livros e propagar a cultura, nada mais condizente com tal pensamento do que aplicar a

imunidade tributária prevista, também aos livros eletrônicos.

A doutrina ainda mostra-se dividida sobre o assunto, existindo alegações que coadunam

com o pensamento de englobar os livros eletrônicos dentre as imunidades culturais e outras que

não veem tal possibilidade por acreditarem na expressa recomendação do texto constitucional para

abarcar, apenas, os livros veiculados por meio de papel.

Na mesma esteira, a jurisprudência ainda não é pacífica no assunto, deixando que

posicionamentos sejam formandos sem que decisões basilares possam fundamentar de maneira

mais plena os argumentos expostos, esperando-se que as futuras decisões possam aplicar,

efetivamente, a norma constitucional, se essas considerarem de uma forma mais privilegiada, as

mudanças sociais dos últimos tempos.

Resta, pois, enquadrar nosso entendimento com a última corrente e utilizá-la para

discorrer sobre a possibilidade de aplicação da imunidade tributária aos livros eletrônicos, por

entendermos que, independentemente da forma como é veiculado, o livro, seja ele físico ou não,

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ainda transmite pensamentos, devendo ser incluído no rol dos imunes, cabendo ainda uma análise

mais detida do que abrangeria o conceito de livro eletrônico.

8. Referências Bibliográficas BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1997. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 46. Plenário. Relator: Ministro Marco Aurélio. Sessão de 20/08/2009. Diário da Justiça Eletrônico, Brasíla, 20 ago. 2009. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 330817 RG / RJ. Plenário. Relator: Ministro Dias Toffoli. Sessão de 20/09/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 2012. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. AMS 5281 SP 2000.61.04.005281-4. Sexta Turma. Relatora: Desembargadora Federal Consuelo Yoshida. Sessão de 01/09/2004. Diário Oficial da União, São Paulo, 01 set. 2004. CARRAZZA, Roque Antonio. Importação de Bíblias em Fitas - sua Imunidade - Exegese do art. 150, VI, d, da Constituição Federal. Revista Dialética de Direito Tributário, nº. 26, maio/2006. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e Método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2008. CASTRO, Aldemário Araújo. Os meios eletrônicos e a tributação. Direito em Ação. Brasília, v.2, n.1, Set./2001. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: Sistema tributário. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense. 1997. HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ICHIHARA, Yoshiaki. Imunidades tributárias. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Imunidades tributárias. Revista dos Tribunais, Pesquisas tributárias. São Paulo, Nova série – 4, 2001. MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Imunidade tributária do livro eletrônico. São Paulo: Atlas, 2003. SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. A não-extensão da imunidade aos chamados livros, jornais e periódicos eletrônicos. Revista Dialética de Direito Tributário. nº. 33, Jun/98. SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. SOUZA, Ionete de Magalhães. Imunidade tributária e “livro eletrônico”. Informativo Jurídico Consulex. Ano XVI, nº. 26, jul/2002.

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PAIVA, B.F.B; MARTINS, P.K.R.. Imunidade tributária e a possibilidade

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Entrevista

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Entrevista

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Entrevista

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Entrevista

Marcílio Franca é Pós-Doutorado em Direito pelo Instituto Universitário Europeu

(Florença, Itália), onde foi Calouste Gulbenkian Post-Doctoral Fellow no Departamento de

Direito (2007/2008). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

(Portugal, 2006, bolsa FCT). Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade

Federal da Paraíba (1999). Atualmente é Professor do Centro de Ciências Jurídicas da

Universidade Federal da Paraíba, Professor do quadro permanente do Programa de Pós-

Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, Professor do quadro permanente do Programa de

Pós-Graduação em Gestão de Organizações Aprendentes da UFPB, Professor colaborador do

Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE e líder do LABIRINT (Laboratório

Internacional de Investigações em Transjuridicidade). Desde 1997, é Procurador do Ministério

Público junto ao Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, aprovado em primeiro lugar no

concurso público (já ocupou as funções de Procurador-Geral e Subprocurador-Geral). É ainda

membro do UNDP Democratic Governance Roster of Experts in Anti-Corruption. Foi aluno da

Universidade Livre de Berlim (Alemanha), estagiário-visitante do Tribunal de Justiça das

Comunidades Européias (Luxemburgo), Consultor Jurídico (Legal Advisor) da Missão da ONU

em Timor-Leste (UNOTIL) e Senior Legal Advisor do Programa de Construção de Capacidades

em Gestão de Finanças Públicas do Ministério das Finanças de Timor Leste e do Banco Mundial

(PFMCBP). Participou de eventos e cursos na UNCTAD (Genebra), na Faculdade de Direito

da Universidade de Harvard (EUA), no Programa MOST/UNESCO (Sofia, Bulgária), no

SciencePo/Bordeaux (França) e no World Trade Institute (Berna). É membro da International

Association of Constitutional Law (IACL), da International Society of Public Law (ICONS),

do Instituto Hispano-Luso-Americano de Derecho Internacional (IHLADI), da Rede Brasileira

Direito e Literatura (RDL) e da International Law Association (ILA), organização de cujo Ramo

Brasileiro é o atual Presidente. Foi Professor Visitante do Mestrado em Relações Internacionais

da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Tem vários livros, artigos e capítulos publicados

no Brasil e no exterior sobre temas jurídicos. Suas áreas de interesse são o Direito Público e a

Teoria Geral do Direito. Nos últimos anos tem desenvolvido extensa pesquisa a respeito das

relações entre Direito & Arte. Em 2011, o seu livro “A Cegueira da Justiça – Diálogo

Iconográfico entre Arte e Direito” (ed. Fabris) foi finalista do Prêmio Jabuti. Em 2015,

coordenou, junto com outros colegas, o manual “Direito da Arte” (ed. Atlas), primeiro livro do

gênero no país.

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Entrevista

Alethes | 182

Alethes: Levando em consideração seu

trabalho na pós-graduação (mestrado,

doutorado etc), como você avalia a

produção científica no Direito, atualmente,

marcada por metas de confecção de artigos

e um produtivismo exacerbado? E, mais

especificamente, qual a sua percepção da

produção realizada pelos graduandos?

Marcílio Franca: Guardo com muita

reserva o nosso modelo atual de avaliação

acadêmica, a tal “epistemometria”, afinal

quantidade nunca foi sinônimo de

qualidade. De fato, nos últimos anos, se tem

verificado a valorização de um certo tipo de

docente “cabeça-de-planilha” que domina

com perfeição a matemática dessas

produções em série: quanto vale um artigo,

quanto vale um livro, onde é melhor

publicar, em que congresso é mais

vantajoso falar... É uma lástima, porque isso

não quer dizer uma ciência melhor, mais

rigorosa e mais profunda. Criticidade,

criatividade, inovação, antidogmatismo se

diluem em meio a números que pouco ou

nada dizem. Um efeito colateral perverso

dessa situação é a indústria que se criou para

dar vazão a essa produção em massa: quem

está disposto a se autofinanciar ou conta

com o beneplácito de ricas instituições

privadas pode editar o próprio livro,

publicar o próprio artigo, participar do

evento que julgar mais pop, no Brasil ou no

exterior... Outro efeito colateral danoso

dessa onda de produtivismo é o enorme

dispêndio de tempo e esforço docentes em

atividades “meio”, como o preenchimento

de fichas, relatórios, papéis e documentos,

que retiram do professor um tempo precioso

em que poderia dedicar-se à reflexão, à

pesquisa, ao ensino, à extensão ou mesmo

ao lazer – com graves repercussões para sua

saúde. Quanto à minha percepção a respeito

da produção realizada pelos graduandos,

sou um entusiasmado apoiador do ensino e

da pesquisa na Graduação! Nunca me

imaginei longe dos meus alunos de

graduação, quer como professor de

disciplinas ligadas ao Direito Público quer

como orientador de iniciação científica ou

de trabalhos de conclusão de curso. Todas

elas são atividades que me proporcionam

grandes e constantes alegrias, pois tenho

visto brotar dali produções de inegável

qualidade. Fui um dos primeiros alunos do

programa de iniciação científica do CNPQ

na Faculdade de Direito da UFPB e tenho

aquela experiência como uma das mais

relevantes para o meu percurso profissional.

Tento reproduzir isso hoje. Depois, em

minhas andanças por faculdades de direito

no exterior, vi muitas iniciativas de

estudantes de graduação, como revistas

acadêmicas, editoras, associações temáticas

e eventos, alcançarem estrondoso sucesso.

Recordo, especialmente, o caso da Harvard

Law Review, uma típica publicação

“student-run”. Lembro ainda das bem

editadas obras da Associação Académica da

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Entrevista

Alethes | 183

Faculdade de Direito de Lisboa e os eventos

promovidos pela European Law Students'

Association... Todos de inquestionável

qualidade. Todas essas iniciativas merecem

muitos aplausos e todo apoio.

Alethes: Nós no Brasil estamos vivenciando

um estado de coisas na educação

extremamente entristecedor. Medidas de

fechamento de escolas em São Paulo

(revertida pela força popular); catracas

sendo implementadas na Faculdade de

Direito da UFMG; parecer no sentido da

implementação de ponto eletrônico na

UFJF, carta de repúdio de deputado à turma

do Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária (Pronera) na UFPR etc.

Diante disso, teríamos escapatória? Como

podemos lutar pelo direito a educação, em

especial a educação democrática ?

M.F.: Concordo que estamos vivendo um

período muito triste em nossa educação.

Todos esses cortes orçamentários na

Universidade Pública e a forte subvenção

do setor privado me deixam muito

pessimista quanto ao próprio futuro da

educação superior no Brasil... Nunca havia

visto uma penúria tão grande. Parece-me

óbvio que os recursos públicos devem servir

à expansão e melhoria do ensino público,

nunca do setor privado. Note que a

educação é um setor muito sensível em

qualquer sociedade. E não é de hoje que

causa grandes polêmicas. Recordo que, em

1901, por exemplo, o paraibano Epitácio

Pessoa (que depois viria a ser Ministro do

STF, Presidente da República e juiz na

Corte Internacional de Haia) era o Ministro

da Justiça de Campos Sales e causou grande

revolta popular ao tentar implementar uma

reforma do ensino com medidas que

buscavam eficiência e moralização, mas

haviam sido pouco discutidas com a

sociedade. No começo de 1901, Epitácio

aprovara um novo “Código do Ensino” que

regulava em detalhes e racionalizava a

chamada “instrução pública”, revogando o

código anterior, de 1892, que permitia

manobras pouco adequadas à educação. Por

conta da impopularidade das medidas,

Epitácio acabou por ser exonerado do

Ministério pelo Presidente Campos Sales.

Não posso fazer, porém, um juízo de valor

pontual sobre todos esses fatos que você

relata, pois entendo que eles compõem parte

da própria autonomia universitária

insculpida constitucionalmente. Não

conheço as circunstâncias em que a

Faculdade de Direito da UFMG decidiu

implementar as tais catracas. A única coisa

que eu poderia informar, nesse particular, é

que o prédio histórico da velha Faculdade

de Direito da UFPB, no centro da cidade de

João Pessoa, onde estudei, sempre foi

qualificado, à luz do Direito

Administrativo, como um bem público de

uso especial, e manteve durante décadas –

com bom senso e razoabilidade – um bedel,

um porteiro e, depois, um guarda ou

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Entrevista

Alethes | 184

segurança (como, aliás, vi em muitas

faculdades pelo mundo a fora), que limitava

as entradas de turistas ou transeuntes, de

modo a garantir o sossego e o silêncio

adequados à atividade acadêmica.

Tampouco me é lícito julgar o ponto

eletrônico na UFJF – outra manifestação da

autonomia universitária – embora a UFPB o

tenha implementado e, como em todo

controle que privilegia mais o meio (a mera

presença) do que o fim (a qualidade do

trabalho desempenhado), os seus resultados

são relativos. Por fim, também por meu

desconhecimento, não posso falar da turma

do Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária (PRONERA) na UFPR,

uma faculdade muito bem gerida, onde

tenho competentes amigos e de excelência

reconhecida internacionalmente! Apenas

sublinho que, à primeira vista, o tal

programa federal parece partir de premissas

controversas, talvez caudilhescas e

certamente bacharelescas, na medida em

que – num país com tantas faculdades de

direito e com tantos bacharéis (de todas as

classes sociais, níveis econômicos e padrões

de qualidade) – o que menos precisamos

para uma reforma agrária real e sustentável

é de mais bacharéis em direito. O

bacharelismo brasileiro não é novo e nós, os

juristas, temos o dever de combatê-lo: mais

leis e mais bacharéis não significam um

Estado de Direito melhor ou mais justo, por

mais paradoxal que pareça... E quanto a

isso, uma educação jurídica aberta, crítica,

plural e inconformada tem um papel

fundamental! Uma educação jurídica que

reconheça com mais humildade o papel do

jurista. Ele não é o super-homem que, por

decreto, vai mudar a realidade. Nesse ponto,

viva Paulo Leminski e seu poema “Bem no

Fundo”, que diz o seguinte: “no fundo, no

fundo,/ bem lá no fundo,/ a gente gostaria/

de ver nossos problemas/ resolvidos por

decreto/ [...] mas problemas não se

resolvem,/ problemas têm família grande,/ e

aos domingos saem todos passear/ o

problema, sua senhora/ e outros pequenos

probleminhas”.

Alethes: Professor, dentro do vasto âmbito

de atuação acadêmica que o Sr. ocupa, um

deles é muito interessante para nós da

ALETHES, qual seja: o modo de expressar

as formas jurídicas contemporâneas por

meio de metáforas, pois elas nos convidam

a interpretar e a pensar. Dentro dessa

concepção de se expressar por meio de

metáforas e/ou parábolas, como podemos

pensar novos métodos para romper com os

moldes de um ensino arcaicos nas

Faculdades de Direito? Nesse meio, poderia

a arte se mostrar como elemento da

criatividade e aprendizagem dos alunos e

das alunas?

M.F.: O escritor argentino Jorge Luís

Borges, de quem gosto muito, em um conto

chamado “A Esfera de Pascal”, diz que a

história universal inteira talvez fosse apenas

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Entrevista

Alethes | 185

a história de umas tantas metáforas. O

direito sempre foi muito imagético e, por

isso mesmo, a utilização de metáforas é tão

frequente e tão útil no direito. Lembro-me

de algumas boas metáforas do sistema

jurídico: a pirâmide de Kelsen, o

arquipélago de Timsit, o rizoma de Delmas-

Marty, a hidra de Teubner, a rapsódia de

Vogliotti, o camaleão de Boaventura de

Sousa Santos, o barroco de Sherwin, a rede

de Ost e, em particular, o labirinto, um dos

temas centrais da minha pesquisa. Na

verdade, nem sempre as manifestações

jurídicas foram manifestações

exteriorizadas por palavras, mas por

símbolos, gestos, cores, rituais, liturgias,

cânticos, pinceladas ou traços. Durante

muito tempo, o direito foi o que chamamos

hoje de “multimídia”... O reputado Instituto

Max Planck para a História da Arte, em

Florença (Itália), tem uma longa pesquisa

com esse objetivo. O direito antecipou em

muitos séculos o que, hoje, os adolescentes

chamam de “entendeu ou quer que eu

desenhe?”... Ao longo da história, em

muitas ocasiões, o direito valeu-se de

símbolos e imagens para ser difundido e

compreendido, tanto assim que importantes

manuscritos jurídicos medievais foram

ricamente ilustrados, formando um

relevante conjunto pictórico que ficou

conhecido como “iurisprudentia picturata”.

É desse caldeirão cultural que surgem as

antigas e estáveis relações entre as artes e o

direito. De novo, há apenas a disciplina

jurídica que começou a se delinear a partir

da Áustria, da Suíça e da Alemanha, no

início deste séc. XXI, para estudar essas

relações: a “Rechtsvisualisierung” ou

“visualidade jurídica” (ou “BilderRecht” ou

ainda “Visuelle Rechtskommunikation”),

com especial destaque para a minha amiga,

a Profa. Dra. Colette R. Brunschwig, de

Zurique.

Alethes: A arte é capaz de despertar a

sensibilidade do indivíduo e, sabemos que,

uma formação jurídica pautada apenas na

dogmática, insensível à realidade que nos

cerca, é capaz de perpetuar injustiças. Por

que o Direito é tão “frio” e, por vezes, a

técnica se sobrepõe?

M.F.: Penso que o direito é tão frio e

técnico, como você bem pondera, porque é

mais simples e menos complexo trata-lo

assim. Só que a nossa sociedade vem em um

processo de complexificação crescente e

essa linguagem técnica, reduzida, lógica e

fria do direito já não consegue muitas vezes

dar conta de toda a complexidade social.

Daí, tantas vezes, o meu apelo às gramáticas

da arte para tentarmos compreender e

explicar melhor o direito. Recorro com

frequência em sala de aula, nas disciplinas

de Direito Constitucional e Direito

Administrativo, nos meus pareceres como

membro que sou do Ministério Público, na

pós-graduação e nas minhas pesquisas a

obras de arte visuais, literárias e musicais.

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Entrevista

Alethes | 186

A arte e o direito têm uma raiz comum, a

cultura, e o que eu tento mostrar aos meus

alunos é que devemos recuperar essa raiz

comum que durante os séculos XVIII, XIX

e XX foi deliberadamente ecanteada. Há

algum tempo dirijo na UFPB o Laboratório

Internacional de Investigação em

Transjuridicidade, o LABIRINT. Nas

pesquisas que desenvolvo ali, procuro

quotidianamente expandir esse diálogo do

direito com outras manifestações artísticas:

a arquitetura, a ópera, o ballet, a poesia, a

gastronomia... Estamos sempre, eu, meus

colegas professores e meus alunos,

radicalizando nesses formas de diálogo

transjurídico, para além do direito.

Alethes: Muitas pessoas consideram que o

direito é uma ciência mais objetiva e que a

arte esta no campo da subjetividade, como

o senhor ver essa questão? Quais as

semelhanças entre o direito e a arte? O

direito pode ser considerado arte?

M.F.: Há alguns anos, passeando por Porto

Alegre, deparei-me com um cartaz no

Museu de Arte Contemporânea do Rio

Grande do Sul que dizia o seguinte: "Difícil

de entender é o mundo contemporâneo. A

arte contemporânea nem tanto." Tento

desmistificar o receio que muitos dos meus

alunos têm da arte contemporânea tentando

mostrar-lhes esse tipo de visão de mundo. É

fato que o direito tem muito de ficcional e

narrativo também, criando as suas próprias

verdades. Arte e direito são linguagens!

Assim como a arte diz o que é arte e quem

é o artista, o direito também diz o que é

jurídico e que são os seus sujeitos! Sendo

linguagem, arte e direito exigem

interpretação, hermenêutica. Não há

ato/fato jurídico ou artístico que possa

prescindir de interpretação. Além do mais,

como produtos culturais que são, arte e

direito têm sempre a vida como seu único

tema! Em outras palavras, não há quadro,

filme, poema, samba ou escultura que não

tenha um tema “jurídico”: morte, vida,

casamento, assassinato, traição, nu,

perversão... E isso ocorre porque os temas

da arte, assim como os temas do direito, são

os temas da própria vida... Aliás, como diz

o Prof. Meyer Schapiro, até mesmo a

pintura abstrata tem uma dimensão

humana!

Alethes: O jurista Roberto Ernani, afirma

que o direito e a arte são produções sócio-

culturais que, vertem das mesmas raízes – o

substrato humano. Que contribuições a arte

pode dar ao direito, em sua aplicação e no

seu estudo ?

M.F.: É verdade que o direito já foi definido

como “a arte do bom e do justo” (“Ius est

ars boni et aequo”, segundo o jurista

romano Celso) e essa aproximação

dialética, de mútua interferência, entre

direito e arte foi particularmente intensa em

algumas das linguagens artísticas como a

literatura. Quanto à poesia, em especial, não

se pode esquecer que, durante muito tempo

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Entrevista

Alethes | 187

e em muitas civilizações, o jurisconsulto foi

o poeta e o poeta, o único jurisconsulto.

Direito e poesia gozaram de grande

intimidade por séculos. Goethe, por

exemplo, foi funcionário do

Reichskammergericht, o histórico tribunal

alemão. Em Esparta, as leis eram escritas

em verso e os atenienses costumavam

cantar as suas normas em forma de longos

poemas para fixá-las. Além de Goethe, não

foram poucos os grandes literatos da

humanidade que tiveram formação em

direito –Balzac, Flaubert, Tolstoi, Kafka e

mais uma longa lista de bacharéis que

compõem a história de muitas Academias

de Letras em toda o mundo. A arte – por

conta do seu não-dogmatismo, da sua

dinâmica complexidade, da sua refinada

compreensão do mundo, da sua abertura e

da sua criatividade – têm sempre muito a

dizer ao direito, mesmo não se valendo da

palavra. Não é à toa que os maiores juristas

romanos, por exemplo, estavam sempre em

busca da “elegantia juris” – esse sentido

estético da juridicidade, norteado por uma

componente de beleza e elegância para as

formas jurídicas. Além do mais, romances,

poemas, peças de teatro, pinturas, gravuras,

esculturas, cinema e arquitetura podem,

também, criar argumentos e conteúdos

jurídicos novos, ao por em desordem as

convicções, ao suspender as certezas, ao

liberar os possíveis, ao antecipar o futuro.

Não é casual, portanto, que tenha sido

justamente um ilustre jurisconsulto

renascentista o autor do mais antigo livro

publicado sobre a eloqüência muda das

imagens, o “Emblematum Liber” (ou Livro

dos Emblemas), de Andreas Alciatus (1492-

1550), publicado ainda em 1531.

Alethes: No último número que

publicamos, entrevistamos o prof. Lênio

Streck. Ao pergunta-lo sobre quais seriam

os entraves à produção e utilização da

metodologia Direito e Literatura,

respondeu-nos que “não há possibilidade de

institucionalização disso. Nós não somos

suficientemente humanizados para tal.

Digamos assim, não sei se não somos

humanizados porque não temos Literatura

ou se não temos Literatura no Direito

porque não somos humanizados

suficientemente”. O que o Sr. acha desse

pensamento?

M.F.: Todas essas manifestações do

movimento “Law & ...” nasceram de uma

constatação: sozinho, o direito já não é

capaz de oferecer muitas respostas às

perguntas que formulamos. Tentar, assim,

encontrar essas respostas com auxílio das

artes visuais, da arquitetura, da poesia, da

gastronomia ou da ópera, porém, requer um

tipo de saber que há muito tempo é

menosprezado ou mesmo ignorado nas

escolas sedundárias e também nas

faculdades de direito e nas agência de

fomento. Esse tipo de saber humanístico,

transjurídico, requer um tipo de

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Entrevista

Alethes | 188

sensibilidade e esforço que, de fato, não é

encontrado com frequência, mas é possível

desenvolvê-lo, aperfeiçoá-lo. Por outro

lado, encontram-se hoje nas faculdades de

direito alguns alunos que – pouco

entusiasmados com a dogmática jurídica

tradicional – reencontram-se com o direito

quando vêem que o direito também pode ser

estudado no cinema, numa exposição de

Picasso ou na obra do poeta de Manuel de

Barros.

Alethes: O campo da pesquisa em Direito e

Arte ainda pouco explorado no Brasil,

principalmente pelos juristas. Como você

analisa essa questão?

M.F.: O tal campo da pesquisa em Direito e

Arte é muito extenso e está longe de ser

unívoco... Para fins didáticos, costumo

dividir empelo menos cinco grandes eixos

os modos de interação entre arte e direito.

São eles: 1) o direito como objeto da arte,

ou seja, todos aqueles episódios em que a

justiça e o direito se prestaram a ser temas

de obras de artistas na pintura, na literatura,

no cinema, no teatro, na música etc.; 2) a

arte como objeto do direito, ou seja, os

inúmeros casos em que o próprio direito

procurou regular, disciplinar, proteger,

limitar ou moldar os temas, as obras, as

liberdades ou os direitos dos artistas; 3) a

arte como um direito, em que pontificam as

muitas discussões sobre o direito à cultura,

o direito à proteção do patrimônio artístico

e sobre a fruição da liberdade de expressão

artística , 4) o direito como uma arte, de

onde emerge a tal definição do direito como

“a arte do bom e do justo” de Celso e as suas

eventuais implicações com as gramáticas do

direito como ciência e como tecnologia; e,

finalmente, 5) aquele conjunto e obras de

arte (visuais, literárias, arquitetônicas,

culinária etc.) que falam AO direito sem

falar direta e especificamente DO direito,

como pode ser o caso, por exemplo, de uma

peça de jazz ou uma escultura abstrata...

Juntando esses cinco campos de interação

entre o artístico e o jurídico vejo que já

temos um diálogo sólido no Brasil. O

número de publicações, eventos, teses e

disciplinas de graduação e pós-graduação é

crescente nos últimos anos. Tenho sido

convidado a falar sobre esses temas

específicos da arte e do direito com grande

frequência.

Alethes: Por fim, na sua visão, quais são as

dificuldades e desafios na produção

acadêmica sobre o Direito & Arte?

M.F.: Uma das grandes dificuldades, eu

diria que é o fato de, tanto no direito como

na arte, estarmos longe da ambivalência do

certo e errado. Normalmente, as pessoas

querem segurança, certeza, previsibilidade.

Esse, porém, não é o cenário de nossa

sociedade atual, cada vez mais complexa.

Ao contrário do que pensa o senso comum,

não trabalhamos, nesses dois campos, com

códigos binários: certo/errado,

branco/preto, bom/mau... A potência do ato

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Entrevista

Alethes | 189

hermenêutico, na arte e no direito, está na

sua coerência, na sua profundidade, na sua

historicidade, na sua consistência. Nesse

ponto, aliás, permita-me chamar à memória

aquela inesquecível noite de 6 de abril de

1962, quando a prestigiosa Filarmônica de

Nova York iria tocar o Concerto nº 1 em Ré

Menor de Brahms, tendo como solista o

gigantesco pianista canadense Glenn

Gould. Afinados os instrumentos, entrou no

palco apenas o eminente regente americano

Leonard Bernstein, titular da Filarmônica

de Nova York, para uma explicação

preliminar. Era muito estranho que

Bernstein não estivesse acompanhado do

solista Glenn Gould naquela entrada. Com

singular franqueza, Bernstein pronunciou

algumas palavras que entrariam para a

história da música erudita. E da própria

teoria da interpretação. Em seu discurso a

uma plateia estupefata, Bernstein disse que

eles ouviriam ali um desempenho “bastante

heterodoxo” do Concerto em Ré Menor de

Brahms, uma performance bem diferente de

qualquer outra que ele já tinha escutado ou

regido, ou até mesmo sonhado para aquela

peça, com seus tempos extraordinariamente

amplos e os seus freqüentes

distanciamentos das indicações dinâmicas

de Brahms. E então perguntou ao público:

"Em um concerto, quem é o ‘boss’, o chefão

da partitura– o solista ou o maestro?" E

ponderou que as discrepâncias entre os

pontos de vista dele e de Glenn Gould,

naquela peça, eram enormes, mas mesmo

assim regeria naquela noite. Faria o

concerto porque estava estou fascinado,

feliz por ter a chance de presenciar um novo

olhar sobre aquela partitura, “com

surpreendente frescor e convicção”. É esse

tipo de abertura interpretativa que é difícil

de encontrar muitas vezes, o que dificulta

em grande medida o diálogo entre arte e

direito... Penso que uma outra grande

dificuldade que o movimento “Law & Art”

enfrenta é uma certa pré-compreensão

equivocada de que arte é coisa de elite ou

algo esnobe... Isso é falso! Nada mais

subversivo, emancipador e libertário que ter

acesso à cultura de forma ampla e plural.

Conhecer diferentes manifestações

culturais; depararmos-nos com obras de

estilos, autores ou períodos diferentes do

que estamos habituados a ver – isso tudo é

democratizar o acesso à cultura e valorizar

a diversidade.

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Entrevista

Alethes | 190

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Normas de Publicação

Alethes | 193

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Normas de Publicação

Alethes | 194

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Normas de Publicação

Alethes | 195

1. Regras Gerais 1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo restrições

com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a temática jurídica. 1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho como

primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3 (três) no total.

1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo, filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada diretamente no trabalho.

1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico: http://periodicoalethes.com.br/.

1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações substanciais. 2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos.

2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a dois pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da avaliação duplo-cega por pares.

2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a temática do artigo a ser avaliado.

2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações: Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.

2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.

2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas, elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela revista.

2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.

2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.

2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.

2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso. 3. Estrutura e Formatação dos artigos.

3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm). 3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman, tamanho

12. 3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm. 3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto justificado.

Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos.

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Normas de Publicação

Alethes | 196

3.5 Texto. 3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman, tamanho 14, destacado em negrito 3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita. 3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a Instituição e o curso do graduando 3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português – antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12. 3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto e finalizadas também por ponto. 3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento justificado. 3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado. 3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman, tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da ABNT.

3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser apresentadas, em ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da ABNT. 4. Disposições Finais

4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus autores, de modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que publica.

4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de remuneração aos autores, especialmente financeira.

4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão concedendo do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.

4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão imediato abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto divulgando e justificando o cancelamento da publicação.