Alguns Dias Todos Os Dias

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    Alguns Dias e Todos os Dias: Panoramas

    Feres Loureno Khoury

    So Paulo, 2008

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    Alguns Dias e Todos os Dias: Panoramas

    Feres Loureno Khoury

    Concurso para Livre Docncia

    Departamento de Projeto

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    da Universidade de So Paulo

    So Paulo, 2008

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    Dedicatria

    Aos meus lhos Pedro e Rodrigo, por apresentar-me uma humanidade de

    recortes inusitados,

    Luise Weiss pela compreenso e escuta,

    Berta Waldman e Leon Kossovitch pela presena constante na elaborao das

    possibilidades deste trabalho,

    a Rubens Matuck e Renina Katz por apresentar-me sempre novos olhares

    sobre o trabalho artstico,

    Daisy Khoury pela ajuda e apoio,

    Lucia Vieira pelo incentivo e apoio.

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    Agradecimentos

    a Fabio Okamoto pela pacincia e dedicao na construo do projeto grco,

    a Arnaldo Papalardo pelas fotograas das gravuras,

    a Leonardo Crescenti pelo carinho e cuidado com as fotograas dos desenhos

    e livros,

    Rosana Kurt pela leitura e correo do texto,

    a Elton Padeti, Fabio G. Liu e Rodrigo Scatena pelo trabalho digital,

    aos amigos Marcia Cirne Lima, Adriano Campos, Ricardo Ribenboim, Flvia

    e Silvio Eid e outros tambm, que nestes anos valorizaram e dialogaram com

    minha produo artstica.

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    Palavras-Chave

    Natureza Morta

    Alquimia

    Espao

    Memria/Tempo

    Gravuras em Metal

    Pinturas em Rolos

    Livros de Artista

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    Resumo

    O CONJUNTO DE TRABALHOS ARTSTICOS, AQUI APRESENTADOS, compe-se de diferentes sries,

    chamadas de territrios, cujas referncias mapeiam e recortam minha pesquisa potica. Apresento,

    neste memorial, minha produo constituda nestes ltimos vinte anos por diferentes interlocues

    entre a minha atividade como artista e professor, resultando em experincias e projetos, que

    contriburam para aprimorar as relaes e os modos de realizao do trabalho artstico e didtico.

    Os focos destes territrios identicam-se como conjuntos que especulam operaes e produes

    ordenadoras de minha linguagem. A linguagem, como uma estrutura semitica e articuladora de

    uma expresso potica, contamina-se de um universo no qual operam interlocues, procedimentos

    e prticas de realizaes produtivas, investigando as diferentes fontes do conhecimento. Assim,

    uxos culturais incidem em seu corpo, modicando-o e brotando ilaes de interesse e de dilogos

    entre a literatura, a poesia, os textos crticos ou a cincia.

    Demonstrando o processo e a construo do meu trabalho, proponho a partir dos diversos

    territrios caracterizar um projeto, onde o imaginrio criado se desenvolve, objetivando a relao

    entre texto e imagem, assim como a interveno do tempo, do ritmo e da leitura, a partir de

    diferentes modos de percepo.

    Assim, em Construes Negras: Lugares; lemos imagens desenhadas em torno de resduos

    grcos acumulados por vrias adies e subtraes de desenhos; em Transmutao do

    Livro Mudolemos o projeto fantasioso de um livro de guras da Alquimia, transmudado por

    imagens geomtricas evocando a metfora alqumica; em Construes: Arqueologia Gravada

    lemos imagens negras gravadas com a tcnica da ponta seca, evocando espaos de memriae ambigidades da relao gura-fundo; em Papis avulsos: Lugares Caligrafados; Livros

    de Artista e Kinematgrafoslemos um novo trabalho, onde a poesia caligrafada e a imagem

    dialogam em torno de pequenas ou extensas composies que, partindo da manipulao do suporte

    e da tcnica artstica, ressurgem desenhadas ou pintadas nas pginas dos livros de artista, dos

    kinematgrafos ou rolos e dos papis avulsos.

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    Abstract

    THE WORKS OF ART PRESENTED HERE COMPRISE DIFFERENT SERIES, or territories, whose references

    map and section my poetic research. In this artistic memoir, I present my output over the last twenty

    years through different interlocutions between my activity as an artist and as a teacher, resulting in

    experiments and projects that have contributed to polishing the relations and modes of artistic and

    didactic production.

    The focuses of these territories reveal themselves as conjuncts that contemplate the ordering

    operation and productions of my language. Language, as the semiotic and articulating structure of

    poetic expression, shot through with a universe in which the interlocutions, procedures and practices

    of production operate. As such, cultural inuences work upon its body, modifying it and drawing out

    illations of interest and of dialogue between literature, poetry and critical and scientic text.

    By demonstrating the process and construction of my work, my purpose is to characterize a project,

    through its diverse territories, in which the created imagination develops, aiming toward the

    relationship between text and image, as well as intervention in time, rhythm and reading, through

    different modes of perception.

    In Black Constructions: Places, we read from images drawn around graphic debris accumulated over

    the course of various additions and subtractions to the drawing; in Transmutation of the Mute Book,

    we see the fantastical project of a book of gures from alchemy, transmuted into geometrical images

    in an evocation of alchemical metaphor; in Constructions: Archaeology Engraved we encounter dark

    images made in dry point, evoking the halls of memory and ambiguities in the gure-background

    relationship; in Sundry Papers: Handwritten Places; Artist Books and Kinematographs we see a newendeavour, in which handwritten poetry and the image dialogue around small or large compositions

    that, with the manipulation of the artistic support and technique, re-emerge drawn or painted onto

    the pages of an artists book, onto kinematographs or magic lanterns, or on sundry sheets of paper.

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    NDICE

    INTRODUO:Alguns dias e todos os dias: Panoramas 13

    PRIMEIRO TERRITRIOConstrues Negras: Lugares 17

    SEGUNDO TERRITRIO

    Transmutao do Livro Mudo 20 Parte 1: CANTEIRO DE OBRA: DIRIOS DE ANOTAES 22 Parte 11: TRANSMUTAO DO LIVRO MUDO 30

    NIGREDO, ALBEDO E RUBEDO: a elaborao do projeto 35

    NIGREDO 38

    ALBEDO 46

    RUBEDO 50

    TERCEIRO TERRITRIOConstrues: Arqueologia Gravada 57 AS GRAVURAS 60

    QUARTO TERRITRIOA leitura silenciosa: aproximaes 83 PGINAS AVULSAS: LUGARES CALIGRAFADOS 88

    MONOTIPIAS 93

    PAPIS AVULSOS 115

    LIVROS DE ARTISTA 125

    CADERNO DE TODOS OS DIAS 129

    CADERNOS PARA POESIA 139 CADERNOS SANFONADOS PARA POESIA 163

    LIVROS SILENCIOSOS 172

    LIVROS DE PENSAR 175

    LIVROS PARA FOLHEAR 183

    LBUM DE GRAVURA 218

    KINEMATGRAFOS 221

    ESTUDOS PREPARATRIOS dos Kinematgrafos

    Cadernos de anotaes e pequenos rolos 226

    KINEMATGRAFOS 231

    BIBLIOGRAFIA GERAL 279

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    INTRODUO:Alguns dias e todos os dias: Panoramas

    Seria preciso um pouco mais de entendimento entre o homem e a natureza.Muitas vezes a natureza se diverte em mandar pelos ares todas as nossas engenhosas

    construes. Ciclones, terremotos... Mas o homem no se d por vencido.

    Reconstri, reconstri bichinho persistente. E tudo para ele matria de

    reconstruo. Porque tem em si alguma coisa que no sabe o que , aquilo que o

    faz forosamente construir, transformando a seu modo a matria que lhe oferece a

    natureza ignara e, quando quer, paciente. Mas se ao menos se contentasse apenas com

    as coisas, sobre as quais, at prova em contrrio, no se sabe que tenham a faculdade

    de sentir os estragos causados por nossas aes e construes! No, senhores.

    O homem tambm toma a si mesmo como matria e se constri, sim, senhores,

    como uma casa.

    Vocs acreditam que podem conhecer a si mesmos sem se construrem de algum modo?

    E que eu possa conhec-los sem constru-los um pouco a meu modo? E vocs a mim,

    sem me construrem a seu modo? Podemos conhecer apenas aquilo a que conseguimos

    dar forma. Mas que conhecimento esse? Talvez esta forma seja a coisa mesma?

    Sim, tanto para mim quanto para vocs; mas no a mesma para mim e para vocs.

    Tanto isso verdade que eu no me reconheo na forma que vocs me do, nem

    vocs, naquela que lhes dou. Alm disso, a mesma coisa no igual para todos e,

    mesmo para cada um de ns, pode mudar continuamente e de fato muda sem cessar.

    E, no entanto no h outra realidade fora desta, seno na forma momentnea que

    conseguimos dar a ns mesmos, aos outros, s coisas. A realidade que tenho para

    vocs est na forma que vocs me do; mas realidade para vocs, no para mim.

    A realidade que vocs tm para mim est na forma que eu lhes dou; mas realidade

    para mim, no para vocs. E, para mim mesmo, no tenho outra realidade seno na

    forma que consigo me dar. Como assim? Construindo-me.

    Luigi Pirandello, Um, nenhum e cem mil, p. 65

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    O DESCRITIVO DESTE CONJUNTO DE TRABALHOS ARTSTICOS, AQUI APRESENTADOS, se compe de umconjunto de territrios, cujas referncias mapeiam e recortam escolhas de uma perspectiva pessoal.

    A apresentao da minha produo nestes ltimos vinte anos se constituiu de diferentes

    interlocues entre a minha atividade como artista e professor, resultando em experincias e

    projetos, que contriburam para aprimorar as relaes e os modos de realizao do trabalho artstico

    e didtico.

    Neste universo, pude encontrar uma realidade pletora inesgotvel da substncia artstica 1,

    fenmeno caudaloso e gerador de possveis reexes,visualidades, formas, memrias, e de uma

    histria a descrever.

    Os focos destes territrios identicam-se como conjuntos que especulam operaes e produes

    ordenadoras de minha linguagem. Sendo a linguagem como uma estrutura semitica, articuladora de

    uma expresso potica, contamina-se de um universo no qual operam interlocues, procedimentos e

    prticas de realizaes produtivas, que investiga as diferentes fontes do conhecimento. Assim, uxos

    culturais incidem em seu corpo modicando-o, onde brotam ilaes de interesse e de dilogos entre a

    literatura, a poesia, os textos crticos ou a cincia.

    neste lugar territorializado da produo de linguagem que aspectos tericos e prticos se

    confundem, e as experincias, entendimentos e empreendimentos ganham uma particularidade

    especca de qualidade. Desta maneira pode-se entrelaar objetivamente a troca de experincias

    entre os trabalhos de arte e a docncia, que, articulados, compem-se para unicar a experincia

    do discurso artstico e educacional. Divulgadoras de informao e formao, so territrios abertos

    para a experincia da construo e representao da imagem, que, aplicadas a um determinado m,

    resultam em sistemas plenos de vitalidade e potncia.

    PASSAGEM

    Os efeitos de uma obra nunca so uma conseqncia simples das condies de sua

    gerao. Ao contrrio, pode-se dizer que uma obra tem como objetivo secreto fazer

    imaginar uma gerao dela mesma to pouco verdadeira quanto possvel.

    As cincias e as artes diferem, sobretudo pelo fato de que as primeiras devem visar a

    resultados certos ou enormemente provveis; as segundas s podem esperar resultados

    de probabilidade desconhecida.

    Paul Valry, Introduo ao Mtodo de Leonardo da Vinci, p.19

    1Jos Ortega y Gasset, Ado no Paraso, p. 29

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    Na cincia, tem-se de representar a realidade; na arte, proclamar o contedo da vida(Lebensinhalt) durante a poca.

    Werner Heisenberg, A unidade de Picasso, p.146

    As consideraes que ora apresento iro descrever etapas de um caminho pessoal, cujos resultados

    vo ao encontro das investigaes que venho desenvolvendo ao longo destes anos, como um barco

    que, navegando, movimenta-se, impulsionando as diferentes nuances do meu aprendizado, cujo

    espao de realizao vem perambulando em diferentes fontes e processos.

    Circunavegar em torno destes territrios possibilita experincias diversas, includas no recorte

    de minhas atividades de Arte e de Educao, a saber, o dilogo entre o campo da linguagem e o

    da produo de idias, de prticas e de investigaes, que produzem uxos e possibilidades de

    construo, impulsionando uma prxis de uma potica visual.

    PASSAGEM

    Pois a poesia a minha explicao com o universo, a minha convivncia com as

    coisas, a minha participao no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.

    Por isso o poema no fala de uma vida ideal, mas sim de uma vida concreta: ngulo da

    janela, ressonncia das ruas, das cidades e dos quartos, sombras dos muros, silencia

    distncia e brilho das estrelas...

    Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte potica II, p.189

    As descobertas, os saberes, as dvidas, povoam calmamente o campo de ao do trabalho e da

    vida, o que aproxima a investigao artstica, tornando-a autntica. J que unicada no possibilita

    diviso, inteira e em movimento.

    O recorte que interessa nesta descrio de um s projeto: desenhos, gravuras, pinturas, cadernos

    de artista, docncia, planos de aula: dilogos.

    Dilogos estes que se organizam em projetos, enquanto conjuntos de idias, relaes e

    possibilidades, colocando-nos diante das questes sobre a natureza da linguagem, da imagem, de

    seus signicados e sua insero no mundo scio-cultural, cujos matizes diferenciados estimulam

    novas organizaes, que operam na sua reelaborao, como imaginrio potico.

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    Para tal, tenho enfatizado pesquisas entre desenho e gravura ou desenho e pintura, associando-oscom suas tcnicas de representao, em projetos que expandem a expresso para uma totalidade

    artstica. Assim a imagem de um mundo abrangente, especulativo, sensvel e intertextual, vista

    e composta por experincias de representao, onde um imaginrio de natureza grco-pictrica,

    afortunadamente, sinaliza, nas superfcies do papel, a construo de minha potica pessoal.

    Na seqncia deste mapeamento, sinaliza-se primeiramente o projeto Construes Simblicas,

    em que o valor construtivo e organizacional da imagem e do espao se d atravs de uma memria

    residual, produzida por diferentes intervenes grcas, sintaxe de registros, marcas e histria, que

    iro organizar uma tessitura potica na visualidade nal do projeto.

    Assim a noo do palimpsesto, como forma de procedimento, alimenta as articulaes entre os

    signos visuais, condensando, atravs de sua natureza, sobreposies de material grco, que

    agenciam problemas de expresso e potica.

    Demonstrando o processo e a construo do meu trabalho, proponho, a partir de diversos

    territrios, caracterizar um projeto. Assim: Construes Negras: Lugares; Transmutao do

    Livro Mudo; Construes: Arqueologia Gravada; Papis avulsos: Lugares Caligrafados;

    Livros de Artista e Kinematgrafos.

    A seqncia acima ser exibida ao longo da dissertao, como territrios, onde se localizam ncleos

    de projeto, explicitando sua construo, suas estratgias, recortes de pensamentos plsticos,

    montando, assim, a arquitetura de uma expresso e de uma potica pessoal.

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    PRIMEIRO TERRITRIO

    Construes Negras: Lugares

    O espao no o ambiente (real ou lgico) em que as coisas dispem, mas o meio

    pelo qual a posio das coisas se torna possvel. Quer dizer, em lugar de imagin-

    lo como uma espcie de ter no qual todas as coisas mergulham, ou de conceb-lo

    abstratamente com um carter que lhe seja comum, devemos pens-lo como potncia

    universal de suas conexes.

    Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepo, p.322

    NESTE CONJUNTO DE DESENHOS QUE DENOMINEI LUGARES, os procedimentos construtivos

    comparecem em forma de palimpsestos ou de apagamentos, ou mesmo de sobreposies, que

    ordenam o relacionamento entre registros, textos, geometrias e material empregado, objetivandosituaes de espao, luz e sombras.

    O resultado procurado se pauta por um conjunto de composies onde o imaginrio percorre um

    caminho, que envolve sugestes de espao, representado por uma espcie de arquitetura, por uma

    geograa de lugares ou mesmo fragmentos de textos e pginas de livro.

    Neste trnsito contnuo de sugestes, a memria residual habita as representaes ensaiadas pelas

    idias, pelas caligraas e pelos riscos, que ora so registros, ora so tentativas, que doravante

    faro parte deste universo intertextual das composies desejadas. Valoriza-se a a presena de

    intervenes de registros iniciais, constituindo-se, desta maneira, um procedimento por acrscimo

    na formulao das imagens.

    Os procedimentos assim reunidos operacionalizam uma sintaxe especca, e em seu conjunto daro

    sentido s formas desenhadas. O universo resultante um conjunto de espaos/lugares, em que

    se conguram as relaes entre luz e sombra, entre o explcito e o oculto, de modo a proporcionar

    exemplos de encontros entre o acaso e o deliberado desenho das coisas.

    Os espaos, ora inteiramente fechados, ora rtmicos, armam composies que operacionalizam

    sinalizaes poticas de natureza grca e tambm pictrica, formando um conjunto que atribui uma

    desejada dramaticidade aos negros de tinta e carvo que ali se inserem.

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    Os negros, os brancos e a grisaille se presenticam como base expressiva e de signicado,

    donde se extraem o valor das geometrias fantasiosas, dos ldicos caminhos das linhas e, sobretudo,

    a presena forte de uma geograa que mapeia poeticamente os espaos e seus formatos:

    as horizontalidades.

    A presena de registros, rastros de pensamento ou escritas, sugere um trajeto possvel que se

    especica para o autor como um lugar-gnese de reservas poticas, como nos explica Ceclia de

    Almeida Salles referindo-se ao estudo de manuscritos literrios, em seu texto Arte e Conhecimento,

    na revista Manuscrtica.

    Para esta autora as reservas poticas ou a linguagem em larva so conceitos que denem um

    lugar de possibilidades, de desejos, de impulsos, onde diferentes estruturas so procuradas e

    co-habitam visualmente o mesmo espao, ou listas de sinnimos so fabricados, ou pargrafos so

    condensados e ampliados, o escritor vai conhecendo, neste processo de adequao, os limites das

    palavras, suas possibilidades e potencialidades e, assim, vai materializando seu grande projeto 2.

    No contexto dos Lugares, a reserva potica o conjunto de cadernos de desenho ou anotaes,

    poemas ou mesmo msicas, onde se registram formas de elaborao de linguagens que canalizam

    matria-prima para o projeto potico, desta maneira pode-se extrair procedimentos e processos de

    criao e conhecimento cuja reserva potica, a residente, se explicita e provoca a imaginao,

    penetrando em trilhas que auxiliam a construo de uma linguagem especial e articulada para este m.

    Sobre os desenhos apresentados, decorre ainda que, em sua gnese, o valor da materialidade se

    enfatiza, ao relacionar a estrutura tecida pelo processo de construo (desenho) com os materiais.

    Neste sentido, os apagamentos e a adio sucessiva de material nos trabalhos presenticam-se,

    como possibilidades de um vir a ser.

    2Ceclia Almeida Salles, Arte e Conhecimento, p. 114

    Construes negras: lugares, pastel seco sobre papel - 36 x 100 cm (1995)

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    Assim, o valor do material, que especica a materialidade, intensica-se no sentido plstico e

    expressivo, trata-se da escolha de carvo, pastel e tintas base de gua, que se mostram, revelando

    plenamente sua materialidade e expressividade.

    Denindo-se o formato horizontal, to comum s pinturas tradicionais de paisagem, estava-se

    denindo tambm a direo das composies e de todo o tratamento dado ao projeto Lugares.

    Neste trabalho, procurei ainda retratar espaos, que ora so superfcies bloqueadoras de

    perspectivas, ora lugares onde transita a luz, movimentos de linhas, de poucas palavras, ou restos de

    grasmos e, principalmente, o rastro de uma memria potica.

    Considere-se, enm, a utilizao do relacionamento entre a idia de gnese e obra que, por

    sua natureza interativa, essencializa, atravs de procedimentos, fontes, tcnicas e, sobretudo

    fundamenta um universo potico, construdo a partir da nfase no processo de fabricao,

    observado tal como na literatura por Maiakvski, que diz: A prpria essncia do trabalho literrio

    no reside na apreciao das coisas j feitas, partindo do gosto, mas antes de um estudo preciso do

    processo de fabricao 3.

    3Ceclia Almeida Salles, Crtica Gentica, p. 21

    Construes negras: lugares III, pastel seco sobre papel - 36 x 100 cm (1995)

    Construes negras: lugares II, pastel seco sobre papel - 36 x 100 cm (1995)

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    SEGUNDO TERRITRIO

    Transmutao do Livro Mudo

    O PROJETO TRANSMUTAO DO LIVRO MUDO DESCREVE E APRESENTA VISUALMENTE um trajeto

    que, metaforicamente utilizando-se da Alquimia e dos seus processos de transformao da matria,

    fala sobre problemas da criao de geometrias, de lugares imaginrios, em que a situao formal

    resultante gerava tenses entre as formas, canalizando o processo de signicao.

    Primeiramente apresentei um conjunto de cadernos de anotaes denominados de Canteiro de

    Obra: Dirios de Anotao. Estes renem organicamente um labirinto de possibilidades a serem

    descobertas, onde todos os registros exploraram a noo operacional de um projeto: possibilidades,

    viabilidades de acontecimentos poticos e restauro da memria, prontamente expostos

    elaborao. Nestes cadernos, h a espontaneidade de escolhas e de coletas.

    O resultado nal do projeto foi apresentado em forma de um memorial e de uma exposio.

    A exposio foi construda no formato de instalao de uma grande biblioteca expositiva, onde os

    desenhos/folhas, dispostos em planos inclinados, mostram um grande livro de folhas soltas que

    ilustram um percurso dialogante de superfcies negras, prata/branco, culminando em ouro prpuro

    (processo de representao alqumico).

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    Transmutao do Livro Mudo, Exposio/ instalao, Pao das Artes -So Paulo (1998)

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    Parte 1:CANTEIRO DE OBRA: DIRIOS DE ANOTAES

    Em todo momento de atividade mental acontece em ns um duplo fenmeno de

    percepo: ao mesmo tempo em que temos conscincia dum estado de alma, temos

    diante de ns, impressionando-nos os sentidos que esto virados para o exterior, uma

    paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para convenincia de frases, tudo o que

    forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepo.

    Todo o estado de alma uma paisagem, isto , todo o estado de alma no s

    representvel por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. H em ns um

    estado interior onde a matria da nossa vida fsica se agita. Assim uma tristeza um

    lago morto dentro de ns, uma alegria um dia de sol no nosso esprito. E - mesmo que

    se no queira admitir-se que todo o estado de alma uma paisagem - pode ao menos

    admitir-se que todo estado de alma se pode representar por paisagem. Se eu disser

    H sol nos meus pensamentos, ningum compreender que os meus pensamentos

    esto tristes.

    Fernando Pessoa, Cancioneiro, p. 101

    OS CADERNOS DE DESENHOS, QUE PROPONHO MOSTRAR, ABREM-SE PARA ESTE TRABALHO, como

    uma ocina de signos, que, perambulando por tempos e lugares diferentes, produzem-se como

    sistemas sgnicos verbais e no-verbais, cujos registros rascunham, desatando o dilogo intertextualdestes sistemas.

    Nestes, os conceitos-chave do projeto Transmutao do Livro Mudoforam revelando-se

    expressivos e associativos. Apesar da descontinuidade de seus registros, tornaram-se a tnica

    do trabalho. Dialogantes, tais conceitos-chave desencadearam o aclaramento do projeto,

    possibilitando assim a interligao com outros, cujas nuances estilsticas movimentaram-se na

    forma de gravura, desenvolvida nos projetos Construes: Arqueologia Gravadaou mesmo nos

    Livros de Artista. Esta atividade de registro e memria, constante e diria em meu trabalho,sendo

    referencial e sistemtica, forjar o futuro dos Cadernos, Livros e muitos outros, resultando nos

    meus projetos artsticos.

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    Nos cadernos, a presena fortssima dos estudos para as gravuras, f-los intervir com vigor

    conceitual no projeto de desenhos, que, como se v em ambas as anotaes, de gravuras e desenhos,

    so viajantes de um mesmo barco, com destinos diferentes.

    Nessa rede descontnua de presenas do material gentico, o dilogo do artista com esta

    multiplicidade de vozes o da prontido do encontro no tnel, cuja luz brilha na sada. So decises

    objetivas de escolhas e exigncias de recorte, que vivicam as futuras criaes.

    Assim, os cadernos deste trabalho situam-se como lugar-gnese, onde se lem, como em geologia,

    espessas camadas de registros que se aprofundam na formulao do projeto Transmutao do Livro

    Mudo, assim como Construes ou Livro de Artista. A partir destes projetos, novas possibilidades se

    apresentaro ao longo deste memorial, no captulo Quarto Territrio.

    Como no processo alqumico de transmutaes, os desenhos, anotaes, referncias e outros

    indicadores, alegorizam os embates do desejo, enquanto este se constitui nos modos da linguagem.

    Pensar por palavras, pensar por desenhos: uxos interminveis de aes e decises que consagram o

    caderno como dirio-lugar, se expressando em energia e vida.

    A matria-prima grca, paginada nestes cadernos, dialoga com a necessidade de expresso,

    sentimento e observao. Em diversas oportunidades admirei a liberdade que estrutura as

    Caderno Vermelho de anotaes - 33 x 36 cm (1996-1997)

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    montagens e anotaes, organizadas a partir de textos e imagens, de agendas de alunos jovens ondea escrita de um poema convive com recortes de jornal, rtulos ou marcas de roupa, mas tambm

    com nmeros telefnicos e linguagens cifradas. Nos dirios, sonham-se lugares para devaneios.

    Descendo pela estratigraa dos lugares, os cadernos so jogos de referncias verticais, em que

    caligraas de poemas, desenhos de observao ou imagens de imagens montam sintagma de projeto.

    As anotaes problematizam as atividades cotidianas que, registrando modicaes de ponto de

    vista, refazem a histria da criao. Os estudos para o projeto de gravura, por exemplo, como se

    v em todos os cadernos, aqui mostrando alguns exemplos, alinhavam-se com outros projetos, em

    metamorfose metamrca de espelhos. Tambm, o imaginrio deste projeto, mostrando o embate

    de tenses entre forma/gura, matria/textura, luz/sombra, opacidade/brilho, refaz-se nos cadernos

    em potica, que se metaforiza como processo alqumico (paradigma de Nigredo, Albedo e Rubedo).

    A anidade com os cadernos garante a presteza, arrombando espaos, gerando atalhos, que,

    compelindo, realiza os processos a um tempo formadores e detonadores de linguagem.

    No artigo Arte e Conhecimento, apresentando o processo de criao da obra de arte como

    ordenao de informaes, Ceclia Almeida Salles diz que os dirios e todos os tipos de registros

    de carter eminentemente pessoal ou prestaes de contas que o artista faz a si mesmo deixam,

    muitas vezes, ndices relativos sua percepo. O artista vai tateando o mundo com olhar sensvel

    e singular - ele vai conhecendo o mundo, ou, vai conhecendo seu mundo 4. Disto decorre que esta

    atividade singular alude a um lugar, que seguramente abriga graus de interlocuo afetiva e criadora.

    4Ceclia Almeida Salles, Revista Manuscrita, n 4, p. 110

    Caderno cinza listrado- 26 x 35 cm (1996-1998)

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    Caderno de estudos dos Kinematgrafos46 x 33 cm (2002/2004)

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    Parte 11:TRANSMUTAO DO LIVRO MUDO

    O sensvel, carne do mundo, interioridade e exterioridade, lao que nos enlaa s

    coisas enlaando nossa mobilidade delas e nossa visibilidade delas. comunidade

    originria de onde nascemos por segregao e diferenciao. O que o talism da

    cor?indaga Merleau-Ponty em O visvel e o invisvel. Por que Valry falava num

    branco to branco que s o negrume do leite mais branco? ou Claudel, num verde

    to verde que somente o mar mais azul? Uma cor no coisa, no tomo colorido

    nem comprimento de onda luminosa, mas concreo de visibilidade, pura diferena

    e diferenciao entre cores. Quando o vermelho tecido vermelho, pontua o campo

    dos vermelhos; a roupa dos cardeais, a bandeira da revoluo, um fssil de mundos

    perdidos, o cafezal antes da colheita, o vestgio da ao policial deixado pelas ruas.

    Cada vermelho um mundo e h um mundo do vermelho entre as cores. modulao

    do sensvel, cristalizao momentnea do colorido. As coisas so conguraes abertas

    que se oferecem ao olhar por pers e sob o modo do inacabamento, pois nunca nossos

    olhos vero de uma s vez todas as faces (totalidade visual que o olho do esprito

    imagina ver porque dela se apropria pelo conceito). As coisas so profundas, enlace de

    cor, volume, rugosidade ou lisura, dureza ou moleza, superfcies mveis que se cruzam

    com odores, sabores, toques. Visveis tecidas de invisibilidade, aquilo sem o que no

    vemos e sem o que nada seria visvel; as faces do cubo que no vemos so o invisvel

    do cubo, aquilo pelo que ele se faz uma coisa visvel. O invisvel no um negativo

    positivo que dublaria a positividade do visvel, mas aquilo pelo que o visvel visvel,seu avesso e estofo, uma de suas dimenses, uma ausncia que conta no mundo. Oco e

    cavidade da abboda; poro por onde transitam zonas claras e obscuras, sustentando a

    concordncia e a convenincia entre as coisas, sua pura diferenciao. O invisvel o

    forro que atapeta o visvel.

    Marilena Chau, O Olhar, p. 58

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    Mutus Liber, O Livro Mudo da Alquimia- Autus / Jos Jorge de Carvalho

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    O TTULO TRANSMUTAO DO LIVRO MUDOREMETEAO LIVRO ALQUMICO MUTUS LIBER - O Livro Mudo da

    Alquimia(La Rochelle, 1677), cuja estrutura narrativa visual

    e contedo potico, tematizados por Nigredo, Albedo e

    Rubedo, desencadearam a visualidade deste projeto.

    Sendo denominaes de um processo simblico de

    transformao e transmutao de uma matria-prima

    vulgar, matria bruta, mescla aleatria de metais vulgares

    encontrada em qualquer lugar e condio, e que dever

    ser trabalhada alquimicamente para converter-se em

    pedra losofal, ou alquimicamente a mistura inicial de trs

    elementos o enxofre, o mercrio e o sal 5 em pedra

    losofal, Nigredo (Obra em Negro), Albedo (Obra em

    Branco) e Rubedo (Obra em Vermelho ou Ouro), verteram

    suas coloraes em novas qualidades plsticas, que, afastando-se da alegorese do livro original,

    transmutaram-se em Livro outro.

    A cultura circulao, portanto, percebemos o mundo atravs de redes entrelaadas de signos que,

    intensamente ativos, agarram alvos e articulaes. Neste sentido, o projeto artstico aponta para

    o znite, permitindo circular no ddalo de idias e realizaes. Aqui, subentende-se que circular

    circunavegar o orbe.

    A multiplicidade de eventos no espao da cultura presentica a transao do conhecimento; pensar

    o orbe conrmar formas. O trabalho do artista se insere nesta circulao pois, seguindo rotas que

    tramam eventos, seu esforo o projeto, que, relanando-se no mundo, ordena-se como linguagem

    potica.

    A premissa deste trabalho desenvolver um poema visual, construdo em torno de questes onde sevalorizam uma potica e uma gramtica, cuja sintaxe se elabora em torno da contnua modicao

    da matria e de materialidades que, organizadas atravs de diferentes densidades e de luminosas

    intensidades, inscrevem-se em espaos que dialogam com estratigraas. Tais estratigraas so

    constitudas de geometrias sensveis, onde a matria-prima transmutante, nascida do universo

    alqumico, mostra-se em trs fases fundamentais: a obra em negro (Nigredo), como transformao da

    matria calcinada, que, seguida de sua dissoluo, caracteriza-se como obra em branco (Albedo)e,

    depois de sua sublimao, como ouro (Rubedo).

    A alegorese alqumica toma corpo no desenho do projeto almejando ao mesmo tempo aberturas e

    5Jos Jorge de Carvalho, Mutus Liber, o Livro Mudo da Alquimia, p. 88 e 133

    Ilustraes do livro Mutus Liber:O livro mudo da Alquimia

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    clausuras de imaginrio, onde a chave, do branco e do negro, do branco e da prata, do ouro e daprpura, alegorizam francamente um livro silente.

    Neste trabalho potico, explicita-se, portanto, o Mutus Liber, edio original de Altus (La Rochelle,

    1677), importantssimo escrito, cuja estrutura narrativa e visual alegoriza o processo de elaborao

    da pedra losofal.

    A arte de Hermes e sua alegorese oculta tornam muda a matria gravada na edio de Altus,

    provocando, na ausncia do texto, um rduo trabalho de desvendamento de seu imaginrio, que,

    exigindo iniciao, impe crescimento espiritual.

    As gravaes sobre cobre da iconograa silenciosa do Mutus Liberencontram paralelo em outros

    monumentos do imaginrio alqumico, como Splendor Solisde Salomon Trismosin (1582) ou Atalanta

    Fugiensde Michael Maier (1618). Neles, exibem-se conjuntos de pranchas de onde se desprende uma

    espiritualidade desenvolvida, que se enraza no ensinamento da manipulao da matria-prima.

    Como desfecho, este relato de sonho, tratado da losoa hermtica, enigma expresso em

    imagens 6, mostra o percurso de um neto no orbe de alegorias decifratrias, cujas imagens

    contm as operaes que objetivam atingir a obra mxima desta cincia: a pedra dos lsofos (lapis

    philosophorum), cujo dom a transgurao generalizada dos seres.

    Nas gravaes de Altus para o MUTUS LIBER, etapas e estgios, representados por intricadas imagens

    alegricas, se tornam acontecimentos iniciticos. Assim, as transmutaes de matrias percorrem

    ciclos, onde deuses e signos, homens e animais, trabalho e decifrao, recolhimento e concentrao

    enumeram aos pares os momentos de extrema tenso espiritual.

    A consumao da Obra (pedra losofal) realizada por etapas, segundo formas de acontecimentos

    inevitveis em processo alqumico bem sucedido: a nigredo ou melanosis(trata-se da to humana e

    facilmente assimilvel opus nigrum ou putrefactio); a albedo ou leukosis( a condio de prata, ouda lua) e, nalmente a rubedo, ou esses, condio do rubi, do ouro, do sol, gran naleda Obra 7.

    O negro, o branco e o ouro neste projeto so outras alegorias mudas destas etapas.

    Nesta trade potica se estrutura o projeto Transmutaes de um Livro Mudo que, recriando

    analogicamente a narrativa muda tradicional na visualidade dos textos alqumicos, abre-se em uma

    nova tintura potica, que se tinge de tonalidades, corporicando um outro olhar e, ao interpretar

    Altus, d-lhe outro sentido.

    6Jos Jorge de Carvalho, Mutus Liber, o Livro Mudo da Alquimia, p.13

    7Jos Jorge de Carvalho, Mutus Liber, o Livro Mudo da Alquimia,p. 107

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    Como ricochete, o trabalho desvenda o Mutus Liber, fazendo-o falar, e, falando, rompe seu silncio

    alqumico, transpassando-o e desmontando-lhe a alegoria fechada de texto hermtico.

    Neste jogo de transformaes tambm colaboram os materiais como o carvo ou a tinta, que

    permitem recriar diferentes valores intensivos; constroem-se superfcies, cujos limites regionais

    tornam o olhar vagante, na transformao da tonalidade noturna em tensa solaridade do rubro.

    Neste sentido, enquanto Altus provoca a elaborao desta obra, esta a revela, embora a decifrao

    grca proposta no se entenda como absoluta, , como doadora de sentido, viajora e, assim,

    hermtica. Do lado da comunicao, Hermes tambm personica a interpretao: o projeto situa-se

    no mbito, nem do fechado, nem do aberto, mas no do meio ou, como anota o erudito Heinrich

    Lausberg, da permixta apertis allegoria. Assim, ela vem e vai da luz noite e naliza no ouro, que,

    luminosssima luz, institui o Nous, j inteligncia hermtica.

    Ilustraes do livro Mutus Liber: O livro mudo da Alquimia

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    NIGREDO, ALBEDO E RUBEDO: a elaborao do projeto

    Ai de mim se revelo e ai de mim se no revelo!

    Se digo o que sei, os maus aprendero a cultuar

    seu Mestre; se no digo, os companheiros continuaro

    ignorantes da verdadeira sabedoria.

    Rabino Simeon in Sepher-ha-Zohar ( Livro do Esplendor)

    NIGREDO, ALBEDO E RUBEDOFORMAM UMA TRADE EM QUE SE TRANSMUTA a matria em sombra

    e luz. Partindo-se de uma narrativa hermtica, que recorre s alegorias supostamente fechadas,

    apresenta-as abertas em uma transordenao potica.

    A narrativa alqumica apresenta-se incompreensvel ao leigo, pois, sendo embaralhada a ordem

    das guras, estas olham, menos intrigantes do que malvolas. Compreendida apenas pelos cultores

    da tradio, o artista, autntico invidiosus, joga, segundo Michael Maier, com um curioso duplo

    sentido: isto , cioso dos seus segredos, guarda para si parte do que sabe; ao faz-lo, torna-se

    invejado, pois seu silncio provoca inquietao; afastando os invejosos leigos, atrai a curiosidade

    (portanto, a inveja) dos cultores, que devero munir-se de pacincia para montar o quebra-cabea

    proposto 8.

    Invidiatraduz-se por inveja, assim, por extenso, em ver. Na inveja opera um olhar fulminante,

    que desejando a morte do Outro, f-lo proteger-se, ocultar-se desse olhar.

    Exigindo a anulao da gurao velada, alegrica, do Mutus Liber, este trabalho lana para o vedor

    uma outra inventiva, inveno de uma narrativa que combina, ars inveniendi, tambm ars invidiandi,

    transformaes da qualidade da matria que operam nas superfcies, provocando a atrao e a

    repulso de uma gramtica visual autnoma, estrutural e nua de artifcios gurativos. Ser, pois,

    invejada como o original alqumico do poema visual: Transmutao do Livro Mudo. O que se v o

    que importa: no se inveja o artista, mas a obra, a inveja o desejo de deciframento mesmo.

    A nova tintura potica do Mutus Liberprope tambm outra referncia conceitual, que envolve o

    confronto das noes de intensidade e tenso de materialidades visuais. Esses dilogos estabelecem,

    8Jos Jorge de Carvalho, Mutus Liber, o Livro Mudo da Alquimia, p. 14

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    no relacionamento das regies onde se inscrevem, as escalas de valores tonais, cromticos,acromticos e as matrias resultantes do trabalho de desenho e pintura. Qualitativamente, os

    elementos de sintaxe estabelecem um campo visual anlogo s estratigraas, como verticalizao de

    camadas, onde valores grcos se contaminam, engendrando espectros, cujos limites se esbatem.

    As composies tensivas vibram na intruso de elementos diversos que so, ora tramas, ora

    grandes massas, ora ainda situaes de passagem tonal ou de confronto de diferenas qualitativas,

    formalizadas por somas e subtraes de matria. Desta forma, os procedimentos se desdobram na

    efetivao dos desenhos, que se espelham, transmutados pictoricamente, desenho e pintura tm a o

    mesmo estatuto expressivo.

    No papel, o procedimento, que fere a superfcie, aciona foras vivas de matrias, que por vezes

    atingem seu claro, produzindo negruras, e por outras contaminam o resto da superfcie de densa

    matria negra ou passagem de baixas zonas tonais, a exemplo da srie Nigredo. Por serem

    composies de reas ora retesadas, ora enviesadas, ora equilibradas pela gravidade composicional,

    os resultados propem deslocamentos no percurso do olhar para regies onde qualidades controlam

    quantidades, que se apagam na erupo de matrias elaboradas.

    O olhar atrado pela imagem e tenta penetrar em sua geomorfologia; prescreve um trajeto de

    possibilidades de sentido, mas lenta e, invejosamente, expulso dela. Neste trnsito, o movimento,

    a suspenso e o estranhamento estabelecem uma tenso que nasce dos confrontos da tonalidade, do

    brilho, da cor e sobretudo da matria que a se instala, exibindo, em sua cartograa, universo, aqui,

    cosmo, assim, beleza.

    Neste trabalho, ainda se conceitua a noo de passagem por massas contrastantes ou tnues

    fmbrias, com capacidade e efeitos de intensidades regionais, estabelecendo um mapeamento

    exterior geometria geolgica. Deslocando a geometria, o efeito obtido conjura a fenomenologia de

    intensas presenas sgnicas, quer no mbito das linhas, quer no das superfcies matricas.

    Nos limites do campo plstico, as bordas acompanham a geologia proposta e passam a ser, porexemplo, fronteiras de retilnea construtividade, participando ativamente no contedo de seu

    corpo recipiente onde, na sua ortogonalidade, o permetro ser constantemente umbral de jogos de

    tonalidade.

    O presente processo de construo no abandona a sobreposio de tempos registrados na

    superfcie, mas os reaproveita, elaborando nova composio e desenho novo. A mtrica euclidiana

    pode estar sugerida no trao das trs direes, contudo prevalece a presena macia dos dilogos

    da contigidade e separao que se do atravs de atitudes mais diretas de organizao, assim,

    sucesso, proximidade, interioridade ou exterioridade so mltiplos caminhos na operao

    elaborativa e, sobretudo, no olhar.

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    Na tcnica, os usos se ordenam em funo das exigncias do realce das regies, onde um efetiva osentido do outro, criando simultaneidade de expresso. Se o carbonato de silcio adorna a base das

    argnteas folhas metlicas (na srie Albedo), o mesmo se faz no brilho ruidoso do rubro ouro

    (na srie Rubedo), que nas tintas tambm se refaz em tonalidades, brilhos, confrontos e diferenas.

    O jogo da seduo dos materiais minimaliza-se, pois se submete ao sentido restritivo das tramas

    compositivas, onde os materiais que habitam as diversas geograas geram, na materialidade, a fuso

    de alegorias abertas (originalmente ocultas no paradigma do MUTUS LIBER), cobrando do olhar um

    percurso no seu corpo bidimensional. Assim, na srie Nigredo,a situao de baixa luminosidade vara

    a putrefao simblica da morte, o preto; no Albedo,a luz coagula a lunar ressurreio da matria,

    branqueando a prata que, seguido pela Rubedo, coroa a prpura vitalidade do ouro.

    Nas superfcies, a matria-prima embutida luta com valores lisos e iridescentes, com espessuras

    e densidades, com brilhos e opacidades, propondo um jogo constante de contradio sgnica,

    circunscrito no mesmo espao. Desta forma, a trade (Nigredo, Albedo e Rubedo), por seu carter,

    suscita uma tcnica que explicita a expresso dos valores conceituais propostos.

    Aqui, tcnica e execuo fundem-se na exibio das vrias pranchas, eliminando prioridades entre

    os elementos, mas acentuando diferenas que atuam na escolha da simplicao formal. Deste fato,

    decorre que a presena ntida de elementos visuais primrios, como fragmentos de curvas, retas ou

    geometrias similares, se transformam em lugares que emitem pulsaes de tonalidades e contrastes

    de valor.

    Nas trs sries apresentadas, vem-se diferentes superfcies dialogando insistentemente com

    recursos simplicados de formas e fragmentos de geometrias, no dando prioridade gura ou ao

    fundo, mas antes os fazendo dialogar.

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    NIGREDO

    Tudo isto me parece tudo.

    E uma noite a ter um m

    Um negro astral silncio surdo

    E no poder viver assim

    Tudo isto me parece tudo.

    Mas noite, frio, negror sem m,

    Mundo mudo, silncio mudo -

    Ah, nada isto, nada assim!.

    Fernando Pessoa, Obra Potica, p.163

    NIGREDO, OU MELANOSIS, A PRIMEIRA CHAVE DO PERCURSO

    Neste conjunto inicial, conguram-se situaes de visualidade em que a experincia amalgama

    diferentes qualidades grcas e pictricas que se traduzem, primeiramente, num desenho de feio

    inacabada, sugestivo de memria, para, posteriormente, transmudar-se em desenho de feio

    compacta.

    As velaturas escuras, aplicadas s superfcies, mostram, inicialmente, atravs da transparncia

    de seus lmes, os modos de construo dos trabalhos, atualizando uma memria grca latente.

    Vestgios que, reconstrudos, redelineiam horizontes, que, gracamente e pictoricamente, modicam-

    se no tempo do projeto. Os contornos priorizaram os limites e a diviso entre os campos gura/fundo.

    A matria transparente lentamente d lugar compacidade da matria escura, e esta, circulando em

    diferentes lugares estabelecidos no desenho, vai ganhando magnitude. s vezes retilneos, s vezes

    curvos, outras vezes combinados entre si, os desenhos expem uma geologia inventada; vestindo as

    superfcies, as epidermes lisas ou matricas expandem-se como tonalidades combinadas dos negros.

    Em tal gramtica, a sintaxe visual-tctil, que articula os planos, as linhas, os limites, as tonalidades, a

    matria, a textura, libera-os em arranjos que, alisando o alegrico, valorizam a linguagem pura.

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    Nigredo, pastel seco,tinta acrlica e folhas metlicas s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    O que alegoriza o incio da obra a putrefao da matria-prima, traduzida pelo opus nigrum,

    putrefactioou caput corvi, em que o negro mais negro que o negro. Apenas a negrura interessa

    como apario, pois aqui no se descreve uma alegoria original, vampiriza-se o potico da arte pelo

    negro.

    O que se produz o rompimento da alegoria, vertendo-se sobre ela interpretaes que, negrssima

    luz, espalham no olhar vagante o olhar provocativo e, ainda, o olhar invejoso.

    Nigredo, tinta acrlica e folhas metlicas s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

    Nigredo, tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Nas efetuaes aqui produzidas, pressupem-se diferentes tcnicas e procedimentos, cujo regente a tenso constante entre elementos, sedimentados por valores tonais.

    Estranhamento e silncio das grandes reas.

    A escolha de materiais secos, como pastel ou carvo na sua poeirenta matria, inclui, na mesma

    chave dos materiais, os molhados e iridescentes que, mantidos unidos no dilogo entre opaco e

    brilhante, tornam as superfcies doadoras de um mapeamento de regies intensamente sgnica.

    Quanto matria e textura, que se consagram pelo material empregado, existem atravs da

    vestimenta que as qualica sobre a superfcie, e se personicam nas relaes visuais implicadas.

    No caso da Nigredoou Melanosis, as tcnicas secas como grates ou carvo, por serem apenas

    negras, reduzem excessos e evidenciam expressividades especcas: provocam estranho efeito de

    profunda obscuridade.

    A matria a mesma como conceito mas diversa como realizao; com ela que os olhos desvendam,

    no a mudez alqumica de Altus, mas o silncio do conjunto de imaginaes.

    Imposto o sistema de tcnicas na realizao da trade (Nigredo, Albedo e Rubedo), as composies

    entram na planura geomtrica, ordenando-se na simplicidade dos seus paradigmas expressivos.

    O uso insistente da diferena, da repetio e da economia de meios expressivos implanta-se nas

    superfcies de material e matria.

    Convite e expulso, num dilogo de planos, geograas ou geometrias travestidas de valores

    matricos, onde brilho e opacidade, densidade e espessura, p e gua anulam a alegorese alqumica,

    exibindo o negror enquanto vivo, dispensando a alegorese da putrefao.

    A presena inicial das vinte pranchas escolhidas, abrindo-se folha por folha at s outras sries,convida o vedor a ser, como nos escreve Marilena Chau, em Janela da Alma, Espelho do Mundo, o

    spectator(o que v, espectador), que no apenas se v no espelho e v o espetculo, mas ainda

    capaz de voltar-se para o speculandus (a especular, a investigar, a vigiar,a espiar) e de car em

    speculatio(sentinela, vigiar, espreitar, estar de observao, pensar vendo) por que exerce a spectio

    (a vista, a inspeo pelos olhos, a leitura dos agouros) e capaz de discernir entre as species(forma

    de coisas exteriores, aparncia, forma e gura formada pelo intelecto, esplendor, semelhana,

    correspondendo ao grego eids, a idia) e o spectrum(fantasma, espectro, viso irreal). 9

    9Marilena Chau, O Olhar, p. 37

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    Nigredo, pastel seco,tinta acrlica e folhas metlicas s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Nigredo, tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Nigredo/Albedo: transmutaes, pastel seco,tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Albedo: transmutaes, pastel seco,tinta acrlica e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x104 cm (1999)

    Nigredo/Albedo: transmutaes, pastel seco,tinta acrlica e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x104 cm (1999)

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    ALBEDO

    Se phos a fonte luminosa, da raiz leuk vir lknos (a lmpada, o iluminado).

    Leuks o brilhante, o iluminado, o esplendoroso, claro, branco, puro e lmpido;

    leukino, em branquear, clarear, tornar brilhante; lukonakaia, a iluminao, e

    leukophas, o esplendor da brancura. No latim, lux, a fonte luminosa (correspondente

    a phos) e lumen, o iluminado (correspondente a leuks e lknos). O lume recebido da

    luz para que vejamos faz com que os olhos sejam ditos, agora, lumina.

    Marilena Chau ,O Olhar, p.35

    A SEGUNDA CHAVE ALBEDO, OULEUKOSIS , QUE, BRANQUEANDO, percorre, como Nigredo,

    geometrias smiles. Na sua apresentao, Albedo mostra suas regies forjadas de prata, cinza ou

    branco. So universos intensamente sgnicos, pressupostos de leitura atenta e condio de um olharvagante.

    Sentinela

    A concepo das composies desta srie aproxima-se das negras: folhas por folhas tratadas e

    feridas por materiais e representaes com base em uma geologia. Na planura de suas superfcies,

    aguardando a plenitude da luz, esta se exalta, porm ofuscada; no arrebenta o leuks, mas

    desmonta-o em sua alegoria alqumica, tingindo as superfcies de brancuras opacas, s vezes com

    brilho apagado.

    Tenso

    Albedo no permite que se penetre na profundidade de suas superfcies, mantm-se suspenso, sem a

    transparncia do vidro. Oferece somente recursos mnimos de expresso. Seduo? Talvez a da luz.

    Convite e expulso

    Intensidade

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    Parodiando a imagem reetida, os trabalhos no reetem como os espelhos, apenas sugerem o

    brilho, opacamente exposto.

    Branco e prata

    Folhas de prata

    Nas superfcies, a presena de uma falsa simetria exibe muitas vezes, nas pranchas, um jogo

    de tonalidades modicadas: ora mais claras, ora mais cinzas, sugere diferenas tonais como

    contraponto.

    Cinzas matizados, ruidosamente texturados ou lisos

    A slica pintada de branco, o p de alumnio, a folha argntea riscada tambm dirige o trabalho na

    coagulao destes materiais diferentes; o que em opus argnteo alqumico deveria brilhar sobre

    Nigredo, aqui, apenas acena, perversa, com a iluminao.

    A tenso permanente das composies, fortemente recurvas e formalmente compactas, substantiva

    a materialidade inscrita, tecendo nesta srie, no o profundo, abissal negrume, mas o desejo de uma

    iluminao sem fonte de luz.

    Albedo, pastel seco,tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Albedo, lunar, pastel seco,tinta acrlica e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Albedo, pastel seco,tinta acrlica,grate, p de silcio e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x 104cm (1999)

    Albedo, pastel seco,tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas de prata s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    RUBEDO

    Se at a erva ch-sheng pode prolongar a vida,

    Por que no tentas pr o Elixir em tua boca?

    O ouro, por sua natureza, no causa dano;

    Por isso, ele o mais precioso de todos os objetos.

    Quando o artista o inclui em sua dieta,

    Torna-se eterna a durao da sua vida...

    Quando o p dourado penetra nas cinco entranhas,

    A nvoa dissipada como as nuvens de chuva pelo vento...

    As cs transformam-se em cabelos pretos;

    Os dentes cados so recolocados em seus lugares.

    O velho amolecido volta a ser um jovem cheio de desejos;

    A anci em runas torna-se de novo jovem.Aquele cuja forma mudou e que escapou aos perigos da vida

    Tem por ttulo o nome de Homem Real.

    Wei Po-yang in Tsan Tung Chi , 1 Tratado de Alquimia, 142 .D.C.

    A TERCEIRA CHAVE, RUBEDO, OU IOSIS

    Procedimentos e interseces similares dirigem a elaborao dos desenhos das sries anteriores,

    deixando para Rubedoo desejo ureo, como nalizante de uma luz tensiva, luz esta, oculta ou

    explcita, opaca ou difusa, Rubedose apresenta como a mais estranha experincia da trade.

    Dos cdigos do ornamental, do decorativo, como nas superfcies orientais, a tintura vermelha e

    urea sofre elaboraes e reelaboraes na apresentao de suas qualidades cromticas e matricas,

    caracterizando outra dimenso expressiva delas.

    No se trata, aqui, do opus nalede Hermes, mas do coroamento das outras duas dimenses

    sgnicas (Nigredoe Albedo), em que o visto a leitura de uma decifrao aberta, em que geologias

    demarcadas como simplicao de uma geometria imaginria pulsam em passagens tonais, que

    intensicam e deslocam o olhar.

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    Rubedo, tinta acrlica, p de silcio e folhas metlicas de ouro s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Cada folha inscreve-se em uma dimenso sgnica.

    As aproximaes da arquitetura e dos desenhos qualicam a diferena estampada na imagem

    viajora da srie Rubedo. Circulando por muitos orbes, as estratigraas evidenciam a transmutao

    das geologias pretas e brancas em uma terceira dimenso qualitativa: a da tenso solar, que,

    movimentando a matria, tensiona as superfcies e torna vivo e dialogantes os rigores dos estratosprecedentes.

    As composies vermelhas, transferidas das anteriores, repetem-se e recriam-se sob outras

    condies. Como nas sries preta e branca, movimentam-se os princpios de Albedoe Nigredo:

    carbonato de silcio, p de alumnio, folhas metlicas, tinta e tcnicas secas.

    Diferenciando a colorao e o desdobramento dos signos formais nas superfcies entintadas, por

    exemplo, no uso da slica ou do p de alumnio, se oculta a matria-prima na iluminadssima ao do

    ouro. Como nos procedimentos anteriores, as planuras exigiram a mesma intimidade construtiva da

    operante em materiais que, cobertos de tons diversos, situam diferenas.

    Rubedo, tinta acrlica e folhas metlicas de cobre e ouro s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    VERMELHO ESCURO E CLAROMATRIA FINA E GROSSA

    PRPURA

    OURO

    FOLHA DE OURO

    VERMELHO METLICO DE COBRE

    BRILHANTE/OPACO

    Constante em todo o percurso do projeto, a gurao alegrica do livro de Altusca agora

    inexistente, pois a alegoria fechada abre-se, enm, para diferentes qualidades visuais: diferena de

    coisas, diferena de reas, contraste de plano e linha de preto e branco, de branco e vermelho, de

    preto e vermelho ou de todas, ao mesmo tempo. Nas transordenaes poticas, surge outra obra:

    Transmutao do Livro Mudo.

    Geologias, geograas, regies de geometria imaginada em superfcies circulares, deslam em Rubedo

    como nalizao. No lume vermelho intenso ou no obscurecido contraste tonal. Rubro ou ureo,

    prpuro ou carmim: fonte de luz, que, no sendo luz que ilumina o dia, luz tensa, distante, no

    limite do inacessvel.

    Rubedo, tinta acrlica e folhas metlicas de prata e ouro s/ papel - 75 x 104cm (1999)

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    Rubedo, tinta acrlica e folhas metlicas de prata e ouro s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Rubedo, pastel dourado,p de silcio,tinta acrlica e folhas metlicas de cobre e ouro s/ papel - 75 x 104 cm (1999)

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    Feno, gravura em metal: ponta seca e buril - 15 x 18 cm (1987)

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    TERCEIRO TERRITRIOConstrues: Arqueologia Gravada

    Se a paisagem do poeta um estado dalma, a paisagem do gravador um carter, um

    mpeto de vontade, uma ao impaciente por agir sobre o mundo. O gravador pe um

    mundo em andamento, suscita foras que inam as formas, provoca foras adormecidas

    num universo plano. Provocar seu modo de criar.

    Gaston Bachelard, O Direito de Sonhar, p. 55

    O CONJUNTO DE GRAVURAS EM METAL TEVE O OBJETIVO DE REMETER a tipos de gravao que

    destacassem relacionamentos possveis entre o acontecimento gravado, o valor expressivo da

    tcnica e a idia de espaos poticos, congurados em forma de palimpsesto e memria.

    Na produo deste conjunto de obras, valorizou-se a construo de uma linguagem, que pudesse

    ser ordenada atravs de sucessivas intervenes numa mesma superfcie. Nesta arqueologia de

    incises, as respostas produzidas pelas tcnicas, aliadas a uma inteno, permitiram extrair um tipo

    de memria residual.

    Procurando situar dentro da minha produo as referncias e as possibilidades construtivas e

    poticas desses trabalhos, e tendo em vista seu desmembramento em funo de novas realizaes,

    tomei como ponto de partida a gravura Feno(1989), da srie Espectros(1989), cuja concepo se deu

    em torno do tema de uma mancha negra de aparncia cnica, sobreposta a uma malha linear.Aqui havia se estabelecido um dilogo intenso entre as cadeias de signos evocados pelos negros e

    sua explicitao no carter expressivo dos instrumentos: o buril e a ponta-seca.

    Na realizao do projeto Construes: Arqueologia Gravada, os registros, os sulcos, as tramas,

    ou desvios, apontavam para um alvo: o desejo do texto gravado, que lentamente surgia entre as

    camadas tecidas pelas sucessivas gravaes, criando intertextualidades visuais que apontavam para

    um sedimentar da arqueologia de superfcie sobre o cobre, a m de construir uma memria que

    provocasse novas modalidades do corpo potico.

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    Semente, gravura em metal: ponta seca, berceau e buril - 24 x 35 cm (2006)

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    PASSAGEM

    As matrizes, apesar de duras, so muito sensveis. Registram denitivamente os golpes

    recebidos. As marcas do acaso somam-se ao deliberada do artista. Tudo que a

    matriz sofreu permanece visualmente registrado. Gravar construir uma memria.

    Marco F. Buti, Estruturas Inevitveis: Continuidade do Gravar Anterior, p.68

    Sua concretizao se deu na escolha, no fortuita, de instrumentos para estruturar a ao do gesto,

    e de sua construo no desenho da gravura. Os ritmos secos do ataque do buril ou o sutil deslizar de

    brunidores articularam uma sintaxe de intensa qualidade grca, transformando as situaes assim

    inscritas em valores, ora grcos, ora pictricos.

    Da resultou um trabalho onde os negros, com seus formatos, constituram-se em arquiteturas que

    geraram, ao seu redor, e em si, ambigidades espaciais entre gura e fundo ou cheio e vazio.

    Agindo como intensicadores, o buril e a ponta-seca determinaram um tipo de materialidade na

    execuo onde as reivindicaes do desejo so atendidas pelos instrumentos ou segundo diz G.

    Bachelard em seu O Direito de Sonhar, Toda gravura um devaneio da vontade, uma impacincia da

    vontade construtiva. 10

    A reutilizao de matrizes manipuladas por procedimentos de sobreposio e de apagamentos

    geraram impacientes palimpsestos. Assim, enfeixaram-se trs direes de pesquisa: a materialidade,

    quanto a gesto e suporte; os apagamentos - palimpsestos - que as sucessivas impresses produzem; o

    estranhamento, enm, que decorre, como efeito e efetivao, das duas distines supracitadas e que

    produz na gravura a suspenso do sentido banal de sua signicao.

    10Gaston Bachelard, O Direito de Sonhar, p. 56

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    AS GRAVURAS

    O processo de gravao, de aparncia exclusivamente tcnica, na verdade reexivo.

    As vrias operaes envolvidas, alm do instante da gravao, so momentos em que

    o processo continua muito mais no nvel mental, ao aspecto visvel da manipulao

    de tintas, vernizes, cidos corresponde uma face invisvel: a formao do pensamento

    plstico. A elaborao da imagem, sua reinveno a partir dos resultados obtidos, as

    vrias possibilidades de alterao, a articulao na potica, o signicado no universo

    cultural, a descoberta do inesperado.

    Marco F. Buti,id., p.66

    ENTRE AS REFERNCIAS MAIS OPERANTES NO TRABALHO CONSTRUES: ARQUEOLOGIA GRAVADAest a

    obra grca de Odilon Redon(1840-1916), em Hommage a Goya(1885), Tentation de Saint-Antoine de Gustavo

    Flaubert (1889), Les Origines(1883), cujas litograas provocaram uma reexo importante para a realizaodestas gravuras em metal, assim como as gravuras sobre Iceland de Richard Serra(1939- ) ou as gravuras

    noturnas e impactantes de Marcelo Grassmann(1925-), o imaginrio lrico e interiorizado, nas litograas dos

    Crceres, nas xilogravuras da srie Retirantes deRenina Katz

    (1025 -),ou mesmo a srie Rio de Janeiroou as Mulatas de Livio

    Abramo (1903 -). Meu interesse pela pesquisa de tonalidades, em

    especial para a construo dos tons negros, permitiu o dilogo

    com a obra destes artistas, no terreno das concepes mais

    intrigantes de seu imaginrio gravado, onde permeia um renado

    relacionamento entre desenhos dos negros e dos brancos...

    Nessas gravuras interessa precisamente a profundidade construtiva

    das composies erigidas pela presena constante de massas negras

    e luzes brancas, com guras evocando presenas misteriosas onde

    segundo Redon, em seu de Soi-mme, trata-se, de estarem sempre

    no equvoco, na dvida, aspectos trplices, aspectos de aparncias

    (imagens em imagens), formas que sero, ou que o sero segundo

    o estado de esprito do observador. Coisas mais do que sugestivas,

    uma vez que aparecem. Mas este sentido aplicado pintura exige do

    artista um tato, uma medida, mais do que nunca innita, e o pblicoIlustraes - Livio Abramo,xilogravura, Rio de Janeiro (1951)

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    nem o suspeita. uma arte que, mais do que qualquer outra, exigeum artista consciente em todos os minutos de sua gestao. 11

    Observando esta forma de atuar sobre a construo da linguagem

    e ainda no terreno das referncias para as gravuras em metal,

    importa apontar sua aproximao com as formas de constituio

    dos negros matizados na pintura de Manet(1832-1883). A mesma

    economia e individualidade expressiva dos negros na obra grca

    de O. Redonest presente tambm na obra pictrica de Manet,

    onde os mesmos negrumes constituem o papel de um princpio

    unicador do colorismo do quadro, muito bem analisado por

    Jorge Coliem seu texto Manet: O Enigma do Olhar.

    Na srie Construes: Arqueologia Gravada, a presena e a

    natureza do negro e seus valores resultam de um raciocnio

    construtivo, cujo eixo mais importante a conjugao das partes e o uso constante das mesmas matrizes e

    suas possveis sobreposies.

    Aqui os procedimentos construtivos e as tcnicas no se isolam como convenes para representar

    guraes, mas explicitam os prprios conceitos plsticos, tais como massas negras, linhas, tramas e todos

    os outros registros locados na superfcie da placa, entendidos como imbricaes do mesmo universo potico.

    Abandonando uma temtica externa, que em um primeiro momento parecia importante organizar-me diante

    das possibilidades do trabalho, voltei-me exclusivamente para a elaborao de uma gramtica de gravao.

    A direo foi para um universo de signicaes, com foco na sintaxe, constitudo pelas articulaes das

    conguraes ou registros.

    Dentro de uma premissa multivetorial, desenvolvi ncleos de gravuras com as seguintes denominaes:

    Arquitetura(1994-1995) que indicava direes expressivas de espaos, aberturas ou situaes estruturais deuma geometria sensvel; Sementes (1994-1995) que evocava ritos de passagem ou metforas da vida (Ovo,

    Semente ou tomo),e ao longo destes anos sries diversas foram realizadas, podendo destacar a srie

    Utriusque Cosmi/Aurora Consurgense outros.

    Para concluir, citaria uma declarao de O. Redonsobre a escolha do negro, que diz: preciso respeitar

    o negro. Nada o prostitui. No agrada aos olhos e no revela nenhuma sensualidade. agente do esprito

    muito mais do que a mais bela cor da palheta ou do prisma. 12

    11Jean Cassou, Odilon Redon, p. 32

    12Jean Cassou, Odilon Redon, p. 71

    Homenagem a Goya: O Ovo, OdilonRedon, litograa (1885)

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    Semente, gravura em metal, ponta seca e berceau - 29 x 59 cm (1993)

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    Ovo, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1993)

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    Arquitetura, gravura em metal, ponta seca ,brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1992)

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    Arquitetura, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1993)

    Arquitetura, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1993)

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    Portal, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1993)

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    Arquitetura, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1994)

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    Construes Negras, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1994)

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    Construes Negras, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1994)

    Construes Negras, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (1999)

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    Seqncia 2, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 59cm (1998)

    Seqncia 1, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 59 cm (1999)

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    Seqncia 4, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 59 cm (1999)

    Seqncia 3, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 59 cm (1998)

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    Aurora Consurgens 1, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (2005/2006)

    Aurora Consurgens 3, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (2005/2006)

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    Aurora Consurgens 2, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (2005/2006)

    Aurora Consurgens 4, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (2005/2006)

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    Utriusqui Cosmi, gravura em metal, ponta seca, brunidor e raspador - 30 x 60 cm (2006)

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    A Casa do Surdo 1, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60 cm (2005)

    A Casa do Surdo 2, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60 cm (2005)

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    A Casa, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60 cm (2004)

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    Conjunctio, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60cm (2005)

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    Utriusqui Cosmi, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60 cm (2006)

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    Utriusqui Cosmi, gravura em metal, ponta seca - 30 x 60 cm (2006)

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    Sutra da Grande Virtude da Sabedoria,manuscrito sobre seda (China, sc. V)

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    QUARTO TERRITRIOA leitura silenciosa: aproximaes

    O artista deve julgar apenas aquilo que entende; seu crculo to limitado quanto o

    de qualquer outro especialista o que repito e no que insisto sempre. Que em sua

    esfera no haja questes e sim apenas respostas, s quem nunca escreveu e no lidou

    com imagens capaz de dizer. O artista observa, escolhe, adivinha, arranja: apenas estas

    operaes j pressupem, em sua origem, um problema. Se o problema no foi colocado

    desde o incio, no haver nada a adivinhar nem a escolher.

    A. P. Tchekhov, Cartas para uma potica, p. 103

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    NO PRINCPIO FOI A VONTADE DE REGISTRAR E EXPRESSAR OS SINAIS do dia a dia, o tempo e umanarrativa sobre a superfcie contnua, determinada como plano innito. Riscar caracteres, garatujas

    e formas foi,a priori, o modo de capturar eventos em forma de imagens ou graas.

    Na superfcie do papel, passa, assim, a residir um espao existencial, onde espessuras construdas

    pelo olhar e pelo desenho das coisas desfolham-se, silenciosamente, no movimento de linhas,

    formas, cores, assegurando possibilidades de expresso.

    Pressupe-se o deslocamento de conceitos e procedimentos estticos. O rompimento com a no-

    gurao da geometria, que conduziu os uxos no trabalho Transmutao do Livro Mudo, modica-se

    agora a favor de outras imaginaes, neste prenhe de atos e imagens. Explicita-se, neste movimento,

    a combinao da palavra, da gura e de seus grasmos, que, entrelaados, orientam-se na alegorese

    de mltiplas apresentaes.

    No plano plstico, os horizontes expandem-se dando lugar a novos argumentos, como o do

    suporte, que, em um campo contnuo, enfatiza a

    horizontal panormica, a qual, rememorando o livro,

    desenvolve o rolo.

    A escolha da dimenso dos rolos, na escala humana,e a maquinaria que os movimenta realada e

    contrastada por uma realidade sgnica, distinta dos

    rolos menores, como os das pinturas chinesas.

    Na escala da ordem visual, a narrativa agiganta-se,

    exigindo a ao do corpo em sua leitura.

    A investigao produziu novas guraes e

    topograas. Da sensvel partilha entre a emoo e

    a razo, transparece uma imbricada topograa de

    desejos, onde se insinua a ruidosa caa ao tema,

    Sutra da Grande Virtude da Sabedoria,manuscrito sobre seda - sc. V, China

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    tal o Aleph de Borges, labirinto, tempo, narrativa, construo de cidade, jogo de palavras, velhacaligraa, simbolizao alqumica, imagstica, poesia. No encontro das falas, soma-se a escuta

    musical, que opera sentidos nos conjuntos apresentados. Neste espao, tecem-se e desfazem-se

    arranjos que espreitam a aproximao material dos os da linguagem.

    No mbito das representaes, dois sistemas se inscrevem e se contaminam: regem este espao

    os dois princpios da representao, como expostos por Michel Foucault, em seu Ceci nest pas

    une pipe, de Magritte. Comparando suas proposies com as de Klee e relacionando-as com as de

    Kandinsky, Foucault escreve: dois princpios reinaram, eu creio, sobre a pintura ocidental, do sculo

    quinze at o sculo vinte. O primeiro arma a separao entre representao plstica (que implica

    a semelhana) e referncia lingstica (que a exclui). Faz-se ver pela semelhana, fala-se atravs da

    diferena... O segundo, que durante muito tempo regeu a pintura, coloca a equivalncia entre o fato

    da semelhana e a armao de um lao representativo. Basta que uma gura parea com uma coisa

    (ou com qualquer gura), para que se insira no jogo da pintura um enunciado evidente.

    Os sistemas de representao determinam o modo de construo e funcionamento da imagem, ora

    como semelhana, ora como rompimento do lao representativo, no que resulta um espao incerto,reversvel, utuante(Michel Foucault, p. 40). No orbe, em que desenhos, livros, gravuras, pinturas

    se interceptam, situa-se o trabalho. Dialogantes nas fontes do mundo, poesia, caligraa e gura

    apresentam-se historicamente como registros de construes em forma de rolo, ento volumen, ou

    livro, ento codex.

    Assim, no recorte do factvel, a trade referida se declara no campo da representao em papis

    avulsos, onde se representam o desenho e a caligraa sobre papis imaculados. Por isso, as

    monotipias e escritas caligrafadas denominam-se Papis Avulsos: Lugares Caligrafados. No arco

    da tradio do mundo, o rolo, ou volumen, narra imaginrios, maneira da pintura chinesa ou da

    Tor. O volumenvisualiza-se nos Kinematgrafos, enquanto o codexl-se nos Livros de Artista.

    17 IRR, Paul Klee(1923) Os Dois Mistrios, Ren Magritte(1966)

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    Kinematgrafo das Vaidades Humanas, pintura e desenho sobre papel -1,50 x 10 m (2000)

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    Kinematgrafo das Vaidades Humanas, pintura e desenho sobre papel -1,50 x 10 m (2000)

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    PGINAS AVULSAS: LUGARES CALIGRAFADOS

    Entre duas notas de msica existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre

    dois gros de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espao, existe

    um sentir que entre o sentir nos interstcios da matria primordial est a linha

    de mistrio e fogo que a respirao do mundo, e a respirao contnua do mundo

    aquilo que ouvimos e chamamos de silncio.

    Clarice Lispector, A Paixo Segundo GH, p.98

    Palomar imaginando-se pssaro. S depois de haver conhecido a superfcie das coisas,

    conclui, que se pode proceder busca daquilo que est embaixo. Mas a superfcie das

    coisas inexaurvel.

    talo Calvino, Palomar, p. 52

    NESTE PRIMEIRO RECORTE, A PERAMBULAO EM TORNO DOS PAPIS ORIENTAIS feitos mo

    fundamental, pois, como superfcies inexaurveis, esses propem histrica e culturalmente um seu

    uso: a grca como signos artsticos.

    Assim, o papel com seu unidimensional corpo broso dispe, consente com intervenes incisivas;

    a gua, como escolhida, o principal veculo dos pigmentos e dos agregadores. Na escolha dos

    suportes, os diferentes papis e bras produzem, em meu projeto, o embate constante entre a

    matria desenhada e a estrutura do suporte, podendo, no raro, estabelecer-se um dilogo que aos

    dois integre ou separe, gracamente. Na diversidade temtica das paisagens, guras, arquiteturas,

    abstraes mundanas ou mesmo atmosferas celestiais, cooperam gracamente o controle e o acaso.

    PASSAGEM

    A msica, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo,

    certos crepsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que no

    deveramos ter perdido, ou esto prestes a dizer algo; essa iminncia de uma revelao,

    que no se produz, talvez o fato esttico.

    Jorge Luis Borges, A Muralha e os Livros, v. 2, p. 11

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    A tcnica e seus atributos evidenciam novos parmetros para o sentido construtivo do projeto.A monotipia, semelhante s estampas das modalidades gravadas, apesar de nica, surge nas mesas

    entintadas de impresso, exibindo novos recursos de interpretao grca, distinta da gravura e da

    matriz.

    Levando em conta a natureza sensvel dos papis feitos mo, sem cola para a xao das tintas,

    estas mudam de base, que, sendo tradicionalmente, no leo, aqui gua. A espessa matria

    aquosa, a um tempo, dinmica e plstica, valorizada como meio e veculo, embebe-se das tcnicas

    tradicionais como tambm das experimentais. Escolheu-se, aqui, a monotipia base de gua como

    tcnica principal, devido sua facilidade no s em dinamizar, como tambm em registrar os estados

    fsicos das imagens de mesma cepa, traduzindo-as diferencialmente pela ao da gua e das esponjasdo mar, so imagens que se vestem de apagamentos e de adies, heterclitos em que a memria da

    matria grca aora, como na srie de gravuras de Arqueologia Gravada(ver pgina 57).

    PASSAGEM

    O desenhista molda as condies da natureza segundo a sua capacidade de expresso.

    Ele se apossa das coisas com as suas idias. Consegue isolar objetos, deixando-os

    de lado e deixa assim atuar sua fantasia. Os objetos e as suas qualidades materiais

    transformam-se em material de concepo e combinao poticas.

    Max Klinger, Catlogo de Exposio, p.4

    A sada do banho , Edgar Degas, monotipia epastel sobre papel japons - 21 x 15 cm (1879)

    A Anunciao dos Pastores, Gionvanni B. Castiglione,monotipia leo subtrativa - 37 x 24 cm (1610)

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    Entre os espaos das impresses, alude-se a possibilidades de interpretao e construo deimagens, que, deslando uma a uma como matrizes, indiciam volteis seu prprio desaparecimento,

    o que constri uma tcnica de procedimentos que clareia as decises; retirar ou adicionar material

    grco implica um procedimento esttico: declara-se o jogo em que dialogam, entre os valores

    imprevistos na tcnica, acasos que interferem na construo potica; trata-se tambm da evoluo

    de uma gramtica pessoal, pois, retirar ou adicionar matrias dinmico, sendo as inesperadas

    aparies de guras, intrnsecas tcnica de monotipia.

    Tecnicamente, a impresso permite,considerada a estrutura do papel, diferentes registros que se

    conguram na uidicao da gua ou no espessamento da matria grca. Assim, so impressas asdiversas fases da imagem, como se v nas sries das Cidades Orientais, Csmicasou mesmo na srie

    do Aucareiro Azul (ver pgina 110), que, sobrevm insero da caligraa.

    A caligraa, prestigiosa e iluminadssima, gura, representa e ensina, nos textos de cdices ou,

    rolos. Europia, asitica, crist, rabe e judaica, a caligraa combinatria do sagrado e do profano,

    atravs de uma estrutura sgnica composta de imagens e escritas.

    Cidades Orientais, monotipia base de gua s/ papel chins - 80 x 140 cm (2008)

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    Alcoro, pergaminho - 33 x 23 cm (Oriente Prximo, sc. VII/VIII)Rolo de Esther, pergaminho - 29 x 295 cm (Itlia, sc XVII)

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    PASSAGEM

    Os fatos so sonoros, mas entre os fatos h um sussurro.

    Clarice Lispector, A hora da Estrela, p. 24

    Os efeitos do gesto e do trao na gura e na escrita desenhada podem esconder-se da leitura, como

    compreenso do texto, acentuando, assim, resultados que valorizam o grco da composio;

    dialogando assim, escrita e imagem, desencadeando associao de guras.

    No se trata aqui de apreciar somente os aspectos do texto e seu sentido, mas, sobretudo, de

    enfatizar os atributos formais de sua estrutura, gurados sob diversos ngulos de sua disposio,

    como ritmo, escala, espao do papel, colorao deste, etc... Na conuncia das imagens e

    da caligraa, formaliza-se uma narrativa visual, composta dos registros de impresses de

    seqencialidade.

    Pginas Avulsas: Lugares Caligrafados composto de dois conjuntos: o primeiro, o conjunto

    constitudo por trs sries de Monotipias (explicadas anteriormente), e intituladas: Csmicas,

    derivadas de poemas de Haroldo de Campos, de T.S.Elliot, de Wallace Stevens,de Czslaw Miksz,

    de Qolet - Eclesiastes,de G. Ungaretti,de Konstantinos Kavas, e O Bule Japonse as Cidades

    Orientaiscom texto de Tahar Bem Jelloun, Sophia de Mello B. Andresen , Giorgos Sferis.

    O segundo, o de grupos de pequenos desenhos, realizados com a tcnica da aquarela e caligraas

    de poemas, chamado de Papis Avulsos.

    Escrevendo sobre meus trabalhos, no livro Mapas de um Mundo, Berta Waldman diz: O texto

    caligrco encoberto/descoberto oculta e mostra, ao leitor-espectador-intruso, seus segredos. A

    impossibilidade de ler tudo lana-os ao ponto cego dos sentidos, torneando graa desenhada

    em silncio inexes mudas que perderam seu ponto de articulao, mas esto ali gravados, nopalimpsesto, como marca da memria. A escrita se d a ver de modo intermitente e, como no se

    mostra inteira, faz saltar a noo de sua prpria incompletude: seu limite.13

    13Berta Waldman. Mapas de um Mundo, 2

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    MONOTIPIAS

    CsmicasMonotipia base de gua sobre papel chins - 80 x 140 cm (2007/08)

    (Ver CD-ROM anexo)

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    Cidades Orientaismonotipia base de gua sobre papel chins - 80 x 140 cm (2008)

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    Bule Japonsmonotipia base de gua sobre papel chins - 60 x 92 cm (2006)

    (Ver CD-ROM anexo)

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    PAPIS AVULSOS

    DA SRIE PAPIS AVULSOS, DESTACA-SE UM CONJUNTO DE PEQUENOS DESENHOS, com objetos

    circunjacentes, geometrias inventadas, e a caligraa que, associadas, ora se ilustram, ora apenas se

    alimentam ordenadas pela nalizao da imagem.

    Os textos, subordinados s imagens impressas (monotipia) e relacionados com o espao do papel,

    tecem signicados, lidos e vistos como imagem nica. Destacando algumas escolhas temos:

    Paul Celan, Wilhelm Mller in Die Schne Mllerin D795 (A Bela Moleira) de Franz Schubert, Pina

    Bausch, Wallace Stevens, Fernando Pessoa, Sepher Yezirah (Babilnia,sc.VI).

    Para este conjunto foram escolhidos desenhos que exemplicam os alicerces da construo do projeto.

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    1- AXcara Azul , com motivo oriental e a poesia Salmode Paul Celan:como em outros, este conjunto

    volta natureza-morta, gnero tradicional da pintura,assim a lembrana do objeto familiar, o

    silncio dos objetos comuns e principalmente como adgio, a poesia, vertida na pele do papel.

    Ningum nos molda de novo com terra e barro,

    Ningum evoca o nosso p.

    Ningum.

    Louvado seja, Ningum.Por ti queremos

    Florescer.

    Ao teu

    Encontro.

    Paul Celan 14

    14Paul Celan, Cristal, p. 95

    Xcara Azul, Poesia: Salmo de Paul Celan, aquarela e caligraa sobre papel japons - 21 x 25 cm (2000)

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    2- As questes da mstica da Cabala comparecem neste desenho, evocando os Serot,

    inclusos na geometria de um quadrado e dela exclusos,a irradiar, dentro de si, rizomas de

    circunferncias:evocao de uma rvore sertica, ilustrada por uma citao da Babilnia do sculo

    VI, que convida meditao do assunto divino. Segundo Zev bem Shimon Halevi Os msticos

    descreveram-nas (as Serot) como as dez Faces, as dez Mos ou mesmo as dez Tnicas de Deus.

    Todos coincidem, no entanto, em considerar que as Serot expressam os Atributos Divinos, os quais,

    desde o primeiro momento da Emanao, so eternamente mantidos numa srie de relaes at

    que por vontade divina voltem ao Nada, fundindo-se de novo no Vazio. A este ato de Zimzum, oucontradio, diz o