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ALUNO SURDO NO ENSINO REGULAR: REFLEXÕES SOBRE A ACESSIBILIDADE E
A FORMAÇÃO DOCENTE
Ms. Juliane Adne Mesa Corradi, UNIP Araraquara – Universidade Paulista
Eixo 06: A formação de professores na perspectiva da inclusão
Introdução e contexto
O movimento inclusivista, a partir de seu marco histórico - a Declaração de
Salamanca (UNESCO, 1994) vem ao encontro do que preconiza a Constituição Federal
Brasileira (CFB) (BRASIL, 1988). Todavia, em análise detalhada da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9394/96 (BRASIL, 1996), nos deparamos com
termos e interpretações que divergem entre os referidos documentos.
Mantoan (2003) afirma que a CFB destaca a educação como um direito de todos,
sem exclusão e distante de ambientes segregados, indicando que o atendimento
educacional especializado deve ser “preferencialmente” na rede regular (Art. 208) Além
disso, afirma que este atendimento deve ser ofertado desde a educação infantil até o
ensino superior, dentro ou fora da rede regular de ensino, como um complemento ao
ensino.
Já a LDB, afirma a autora, utiliza o termo “educação especial” na seção que rege
sobre o tema, o que permite a interpretação segregacionista sobre a educação das
pessoas com deficiência (PcD). Destaca que no referido aparato legal que a educação
especial deve ser ofertada “preferencialmente” na rede regular, mas indica a possibilidade
de substituição do atendimento educacional especializado no ensino regular pelo ensino
especial (Art. 58).
Para Mendes (2006) as mudanças que envolvem o movimento de inclusão
envolvem a consciência e o respeito à diversidade, assim como o papel da escola. Para
tanto, há necessidade de reestruturação da educação especial para que ocorram
melhorias no atendimento às PcD, propondo um trabalho colaborativo (MENDES,
ALMEIDA, TOYODA, 2011).
Há a distinção entre duas propostas de movimentos inclusivistas, a partir de
Mendes (2006): um deles seria a “educação inclusiva” e o outro a “inclusão total”. Desta
forma, na Educação inclusiva (Regular Education Iniciative) teríamos parcerias entre o
ensino regular e a educação especial, com junção de recursos para o atendimento, em
especial de PcDs leves e moderadas, onde a entende-se que a escola comum não é
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adequada para todas as crianças. Aqui a educação comum é a responsável pelo ensino
dos alunos com deficiência, com a manutenção de serviços de ensino especial separado,
em classe de recursos.
Já a Inclusão total (Full Inclusion) caracteriza-se como mais radical, envolvendo
as PcD severas, com atendimento escolar em tempo integral na classe comum
apropriada à idade à todos os estudantes, mas sem a preocupação com ganhos
acadêmicos, mas sim com a socialização. Aqui prevalecia a defesa dos direitos daquela
PcD com graus mais severos de limitação intelectual. Neste contexto, todos os
estudantes inseridos na classe comum deveriam ser acomodados, considerando suas
diversidades, mas não possuíam serviços de apoio de Educação Especial.
Com isso, consta-se que Mantoan (2003) e Mendes (2006) possuem
posicionamentos diferenciados sobre o movimento inclusivista. Mantoan (2003) defende
a Inclusão Total, em que todos os alunos devem ser inseridos no ensino regular, sem
exceção ou discriminação, distante de um trabalho de apoio ou atendimento
especializado. A autora critica os impasses legislativos e afirma que o Brasil não leva a
sério seus compromissos educacionais. Já Mendes (2006) critica o modelo de inclusão
importado dos EUA pelo Brasil, assim como a prioridade à opinião dos juristas, as quais
desconsideram os anseios das PcD e demais envolvidos e/ou interessados pelo tema.
Explica que a resistência para que se efetive a inclusão escolar decorre das mazelas da
Educação Especial e dos dados estatísticos não confiáveis sobre o tema. Afirma que o
Ministério da Educação (MEC) reforça o ideário da Inclusão Total, considerando o baixo
custo desta. Todavia, para Mendes (2006), o sucesso da inclusão depende da história da
luta da própria comunidade, marcada pelo coletivo.
No que se refere à educação de surdos, a Declaração de Salamanca (UNESCO,
1994) destaca que as
19. Políticas educacionais deveriam levar em total consideração asdiferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signoscomo meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria serreconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir quetodas as pessoas surdas tenham acesso à educação em sua línguanacional de signos. Devido às necessidades particulares decomunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educaçãodeles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiaisou classes especiais e unidades em escolas regulares. (UNESCO,1994, p. 7, grifo nosso).
Por meio do Decreto n. 5.626/2005, que regulamenta a Lei no 10.436/2002 (que
dispõe sobre a Libras) e o Art. 18 da Lei no 10.098/2000, a garantia do direito à educação
pode ocorrer por meio da organização de escolas e classes de educação bilíngue (alunos
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surdos e ouvintes), assim como por meio de escolas bilíngues ou escolas comuns da
rede regular de ensino (alunos surdos e ouvintes). Desta forma, tem-se
Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educaçãobásica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiênciaauditiva, por meio da organização de:I - escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos eouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anosiniciais do ensino fundamental;II - escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino,abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensinofundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes dasdiferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade lingüísticados alunos surdos, bem como com a presença de tradutores eintérpretes de Libras - Língua Portuguesa. (BRASIL, 2015, Art. 22).
Desta forma, em conformidade com o Decreto n. 5.626/2005, as escolas ou
classes de educação bilíngue utilizam a Libras e a escrita da Língua Portuguesa como
línguas de instrução em todo o processo educativo. Constata-se, portanto, que é indicado
para a educação infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental escolas e classes de
educação bilíngue, enquanto para os anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio,
Educação Profissional é recomendada a escola bilíngue ou escolas comuns da rede de
ensino regular, com ênfase à presença de tradutores e intérpretes de Libras – Língua
Portuguesa (TILSP), com o intuito de viabilizar o acesso à comunicação, à informação e à
educação.
Para Santos e Campos (2013) ao refletirem sobre a escolaridade dos surdos,
afirmam que
É lamentável que a maioria das escolas contrate intérpretes de Libras,acreditando que isto basta para uma inclusão efetiva; esquece-se deoutras questões de extrema relevância: professores bilíngues; criação deum currículo específico para alunos surdos e de provas especializadasna língua de sinais; oferta da disciplina de Libras como primeira língua(para alunos surdos) e segunda língua (para alunos ouvintes) e doportuguês como segunda língua na grade curricular [para os surdos].(SANTOS; CAMPOS, 2013, p. 31).
Diante da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015) –
Estatuto da Pessoa com Deficiência, novas discussões ter permeado o contexto do
ensino inclusivo para surdos, uma vez que há lacunas na LDB quanto à educação de
surdos. Com isso, no que se refere ao direito à educação encontramos menção a oferta
de ensino em escolas e classes bilíngues, assim como em escolas inclusivas, o que vem
ao encontro da Declaração de Salamanca (UNESCO 1994).
Em conformidade com Brasil (2015), para atender à demanda de alunos surdos
deve haver pesquisas voltadas para métodos e técnicas pedagógicas, materiais
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didáticos, equipamentos e recursos de tecnologia assistiva e sua usabilidade pedagógica,
assim como o atendimento educacional especializado; recursos e serviços de
acessibilidade; apoio ao desenvolvimento de aspectos linguísticos e culturais; a adoção
de práticas pedagógicas inclusivas; formação e disponibilização de TILSP (conforme
descrito no § 2º, Art. 28 da referida lei); oferta de ensino da Libras; provas acessíveis aos
candidatos com deficiência em processos seletivos; avaliação de provas escritas que
considerem as singularidades linguísticas das pessoas com deficiência; tradução
completa do edital e de suas retificações em Libras, entre outros aspectos. Algumas
destas ações complementam o que preconiza o Decreto n. 5.626/2005.
De acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a pessoa com deficiência é
aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental,intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras,pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade emigualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2015, Art. 2º).
Para Lodi (2013) é possível elencar três modelos inclusivos implantados no país,
ao problematizar a discussão sobre os documentos oficiais: 1) salas regulares de ensino
nos anos iniciais de escolarização, em escolas públicas, em que a Libras é utilizada como
língua de instrução nos processos de ensino-aprendizagem dos alunos nelas
matriculados; 2) alunos surdos incluídos em salas regulares de ensino com ouvintes, com
a presença de intérprete de Libras-Língua Portuguesa em todos os níveis de
educacionais; 3) alunos surdos incluídos em salas regulares com ouvintes sem
acompanhamento do intérprete de Libras-Língua Portuguesa.
Para Lacerta de Bernardino (2009) o TILSP aparece como um profissional ainda
pouco conhecido na academia. Sua atuação surge como uma forma de solucionar os
problemas de comunicação enfrentados pelos surdos, oportunizando a este receber e
partilhar informações em sinais. Todavia, as autoras enfatizam que a presença do
intérprete de língua de sinais não assegura que todas as necessidades da criança surda,
inserida na escola inclusiva, sejam atendidas. Além de um ambiente linguístico favorável
à construção do conhecimento, há necessidade de se pensar o currículo, a cultura e a
questão da identidade surda, a preparação do profissional (seja intérprete ou professor
ouvinte),
Enfatizam as autoras que, em conformidade com o Decreto n. 5.626/2005, assim
como com os resultados das pesquisas nacionais e internacionais sobre a atuação do
intérprete na educação infantil e no ensino fundamental, há equívocos que precisam ser
refletidos quanto às formas de inserir a língua de sinais na educação destes alunos.
Nesta linha, destaca-se como deve ser vista a inclusão, de forma significativa, de
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crianças surdas no contexto escolar, em especial nas séries iniciais do Ensino
Fundamental.
É neste contexto que o presente artigo busca refletir sobre a acessibilidade de
crianças surdas no ensino regular, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, associada
a formação/capacitação docente.
A investigação caracteriza-se como qualitativa, de orientação sócio-histórica e
etnográfica. Assim, a pesquisa qualitativa de orientação sócio-histórica envolve questões
de pesquisa que se orientam pela compreensão do fenômeno em sua complexidade e
acontecimento histórico; a coleta de dados caracteriza-se pela compreensão (FREITAS,
2007). Para a autora, “a observação não pode se prender apenas em descrever os
eventos, mas procurar as suas possíveis relações, integrando o individual com o social.”
(FREITAS, 2007, p. 32).
Como uma pesquisa de caráter etnográfico, para Chizzotti (2014, p. 71-72) esta
se caracteriza pela “descrição ou reconstrução de mundos culturais originais de
pequenos grupos”, registrando fenômenos e visa “revelar comportamentos, interpretar os
significados e as ocorrências nas interações sociais entre membros do grupo em estudo”.
A descrição dos dados, de acordo com Chizzotti (2014, p. 73) requer uma descrição
densa, detalhada e extensiva do fenômeno estudado, “descrevendo os comportamentos
em seu ambiente natural, extraindo as estruturas reveladoras de significado do fenômeno
estudado”.
Inclusão de um aluno surdo no ensino regular: discussões sobre acessibilidade
O presente relato de experiência foi motivado pelo trabalho de assessoria
realizado em uma escola particular localizada no interior do Estado de São Paulo, região
de São Carlos. Familiares de uma criança surda de seis anos procuraram orientações
pedagógicas e legais perante a não alfabetização e desempenho esperado desta ao
participar das atividades do primeiro ano do Ensino Fundamental. As exigências
escolares decorrentes do ingresso acadêmico, o que envolve comunicação, expressão
oral e escrita, leitura e cálculos não estavam sendo supridas. A escola cobrava dos
familiares um melhor desempenho do aluno e os familiares exigiam da escola o melhor
atendimento às demandas da criança surda.
Alguns familiares, ao tomarem ciência de que a Libras poderia ser uma alternativa
mais apropriada para viabilizar o processo comunicacional e ampliar as possibilidades de
aprendizagem do aluno procuraram, com urgência, alguém que lhes ensinasse a Libras.
Todavia, diante do contexto inicial apresentado, não era esta a única estratégia que
poderia resolver a situação, uma vez que a criança estava inserida no ensino regular,
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mas distante de qualquer processo de ensino que atendesse às suas peculiaridades,
enquanto surdo. Diante disto, a sugestão foi realizar uma parceria entre escola, família e
assessoria educacional especializada, cujo foco central era orientar sobre as
peculiaridades linguísticas da criança surda, discutir estratégias visuais de ensino que
pudessem atrair a atenção da mesma, quebrar paradigmas quanto ao desenvolvimento
da criança surda, orientar sobre a aquisição de língua e linguagem, introduzir a Libras no
ambiente escolar (sala de aula, professores, funcionários, colegas de sala de aula).
Nota-se, portanto, que a problemática por ora apresentada recai sobre as
orientações médicas passadas à família, que se distanciavam do aprendizado e uso da
Libras como forma de acesso ao mundo à pessoa surda, assim como a ênfase ao
aprendizado da fala por meio de atendimentos fonoaudiológicos. A referida criança era
acompanhada por diferentes profissionais da fonoaudiologia desde os seus três anos de
idade. No entanto, ao ingressar no primeiro ano do Ensino Fundamental não possuia o
conhecimento linguístico necessário para acompanhar as aulas, ler e se comunicar. Com
isso, na escola, os profissionais responsáveis pelo seu desenvolvimento acadêmico
desconheciam as peculiaridades, linguísticas e cognitivas, inerentes ao processo de
ensino-aprendizado da criança surda, o que exigiu a formação continuada.
A docente responsável pelo primeiro ano procurou cursos para poder atuar de
forma mais apropriada no processo ensino-aprendizado da criança, o que demandou
tempo insuficiente para realizar um trabalho centrado em suas necessidades. A formação
continuada é uma necessidade no contexto da educação inclusiva, mas nem sempre tal
formação ocorre em tempo hábil para viabilizar uma prática docente que atenda, de fato,
as demandas das pessoas com deficiência.
Neste caso, já no segundo semestre letivo, o trabalho de introdução à Libras à
docente, aos colegas e ao próprio aluno surdo foi considerado adequado para viabilizar
uma melhor acessibilidade e socialização entre este, seus colegas, professora e contexto
escolar. Os encontros ocorriam uma vez por semana durante trinta minutos,
aproximadamente e visavam investigar a aceitação da Libras pela criança surda, assim
seu uso como forma de interação e socialização em contexto escolar regular, esta
primeira etapa ocorreu de agosto a dezembro em caráter investigativo e voluntário.
As narrativas da docente eram ora motivadas pelos avanços paulatinos da
criança, ora pela dificuldade em realizar um contato com a mesma e até de avaliar seu
desempenho acadêmico. Sabe-se que a alfabetização por meio da escrita em crianças
surdas apresenta diversas lacunas e especificidades. Aqui não era diferente, o aluno não
indicava conhecimentos mínimos da Língua Portuguesa escrita, tinha dificuldades em se
comunicar oralmente (embora tentasse pronunciar algumas palavras, estas eram
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incompreensíveis), além do conhecimento incipiente da Libras (filho de pais ouvintes e
com nenhum contato com outros surdos).
Nestes atendimentos procurou-se trazer o aprendizado da Libras contextualizado
aos conteúdos escolares, a partir de temas como meios de transporte e profissões,
alimentos e lugares, por exemplo. Os alunos ouvintes apresentaram amplo interesse em
conhecer a Libras e se comunicar com a criança surda, mas havia certa dificuldade nas
dinâmicas propostas e abertura de um espaço mais apropriado para as mesmas por
parte da docente responsável pela turma, que também deveria aprender a Libras. Além
disso, o aluno ausentava-se das aulas com frequência, além de chegar exausto e
atrasado, dormindo sobre a carteira. Neste momento, orientações quanto à importância
de hábitos saudáveis direcionados à rotina da criança tiveram que envolver os
atendimentos, uma vez que a participação da família implica no bom desempenho da
criança na escola.
Neste momento de introdução à Libras em sala de aula a docente da turma já
havia uma melhor compreensão sobre as necessidade da criança surda, pois havia
realizado um curso teórico sobre o assunto. Com isso, a formação continuada marca um
processo de aprimoramento profissional significativo no âmbito escolar.
Todavia, a formação inicial de docentes deve abrir espaços consistentes para
discussões sobre a educação de crianças com deficiência e seu processo de
alfabetização e letramento. No caso das crianças surdas, considerando que a Libras é
disciplina curricular obrigatória dada pelo Decreto n. 5.626/2005, o tópico alfabetização e
letramento de surdos deve compor o rol de conteúdos a ser explorado, o que requer uma
carga horária que favoreça tal discussão sobre adequações curriculares, postura
docente, a presença da Libras no ambiente escolar de surdos sinalizadores.
Santos e Campos (2013, p. 240) afirmam que
De fato, a atual legislação traz inúmeras conquistas para a populaçãosurda, que até recentemente sequer tinha o direito de se comunicar emsua própria língua. A inserção da disciplina de Libras na grade curriculardos cursos de licenciatura marca uma nova visão acerca do indivíduosurdo, a partir da divulgação de sua língua em um ambiente privilegiadoe de acesso restrito a uma pequena parcela da população; a presençada Libras no espaço acadêmico eleva seu status e desmistifica algunspreconceitos. (SANTOS; CAMPOS, 2013, p. 31).
Desde espaço reduzido semanal de trinta minutos, a instituição de ensino
entendeu que a Libras era necessária para o melhor desempenho dos alunos, tanto
surdos quanto ouvintes, ampliando este espaço para duas horas, uma vez por semana.
Entretanto, este espaço foi conseguido somente no semestre posterior, com outra
docente e já no segundo ano do Ensino Fundamental. Ou seja, a formação continuada e
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as orientações propostas para a docente do primeiro ano tiveram que se iniciar no zero
agora no segundo ano. Com isso, questiona-se: quanto perde o aluno surdo com este
despreparo docente e não planejamento prévio para o melhor atendimento de suas
necessidades acadêmicas, linguísticas e metodológicas? Por que a docente que estaria
assumindo a sala de aula do segundo ano não participou do curso de capacitação em
Libras? Aqui a escola já não se deparava com o “novo” diante da presença de um aluno
surdo no ambiente escolar que se propôs ser inclusivo.
Embora a instituição de ensino mantivesse o trabalho com a Libras esta era algo
extra-curricular, não prioritário e deixado para último plano mediante a necessidade de
cumprir o conteúdo programado, o ensaio para festividades (momentos que o aluno
surdo fingia cantar músicas em Língua Portuguesa e em Inglês). Ora, qual o espaço que
a Libras poderia ter nestes momentos? A resposta poderia ser: - Diversos, mas não
concedidos, uma vez que a compreensão de bilinguismo, neste âmbito inclusivo, era da
Língua Portuguesa – Inglês. A Libras não foi entendida, apesar de inúmeros esforços e
iniciativas, como uma língua privilegiada e significativa para os alunos daquela instituição,
ou melhor, daquela turma que se propôs a acolher uma criança surda.
O que se verifica é, ainda, um distanciamento quanto ao status de língua para a
Libras no contexto escolar, assim como uma audiência para com a criança surda que a
desloca do lugar de surdo, não considerando suas especificidades, a visualidade da
Libras, a cultura linguística bilíngue fundamental para a sua construção identitária, o que
reforça a concepção ouvintista (SKLIAR, 1998).
Neste momento o aluno surdo já havia um repertório linguístico em Libras
melhorado, ampliando sua comunicação por meio desta. Além disso, os funcionários e
colegas de sala já o conheciam e estavam familiarizados com suas demandas,
personalidade, prazeres e frustrações. Se havia a preocupação em inserir a Libras no
ambiente escolar, algo que no segundo ano foi solicitação de pais de crianças ouvintes
acatada pela direção da escola, por que não propor que esta fizesse parte das
festividades, dos momentos extra-classe que compõem o universo acadêmico?
Em alguns encontros direcionados ao aprendizado da Libras, o aluno surdo
assumia o protagonismo das aulas e, de forma mediada, ensinava seus colegas alguns
sinais da Libras. Neste momento, o aluno tinha atendimento educacional especializado
contraturno para ampliar seu repertório linguístico em Libras e apoiar sua escolarização,
o qual era financiado pela família. Dar este protagonismo ao aluno contribuiu para elevar
sua auto-estima, socializar-se com os colegas, interagir de forma autônoma, promovendo
sua alteridade e autoconfiança.
No terceiro ano, matriculado na mesma escola, uma TILSP foi contratada para
atuar em sala de aula. O aluno apresentou resistência quanto a presença desta
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profissional, uma vez que sua fluência na Libras era incipiente para acompanhar a
intérprete educacional. Além disso, a instituição contratou como estagiária uma pessoa
sem formação específica, a qual possuía um domínio escasso da Libras. A docente da
turma do terceiro ano apresentou-se resistente diante das orientações propostas pela
assessoria e uma ampla ansiedade para que o aluno surdo lesse e escrevesse como os
alunos ouvintes, o que indica um distanciamento de olhar, uma audiência desfocada e
descentralizada diante das necessidades da criança surda. O trabalho colaborativo, neste
momento, tornou-se improdutivo, considerando a resistência da docente, o despreparo da
auxiliar de sala para acompanhar o aluno surdo, a relação entre família e direção escolar
desgastadas pelas cobranças e resultados esperados acima das possibilidades indicadas
pela criança surda, diante do contexto em que estava inserido.
A sugestão, neste momento da vida escolar da criança surda, foi encaminhá-la a
uma escola de atendimento à crianças surdas em contraturno ao ensino regular, uma vez
que tornou-se notória a necessidade de contato com outros surdos, principalmente
adultos surdos que pudessem assegurar o desenvolvimento linguístico apropriado para o
desenvolvimento desta criança.
Para Martins, Albres e Sousa (2015, p. 112)
[...] é importante destacar que a atuação do Tradutor e Intérprete deLíngua de Sinais Educacional (TILSE) tem sido alvo de discussão naspolíticas educacionais que tensionam a educação inclusiva de surdos.Ele tem sido convocado a atuar, inclusive, na Educação Infantil e nosanos iniciais do Ensino Fundamental [...], uma vez que sua atuação semostra melhor nos anos finais do Ensino Fundamental e nas demaisetapas de escolarização. Todavia, vale destacar que a presença dointérprete passa a ser garantida pelo Decreto 5.626/05, que regulamentaa Lei n°10.436/02 e o artigo 18 da Lei no10.098/2000, respondendo aquestões de acessibilidade linguística amplamente discutida. Assim,vemos o fortalecimento e uma maior procura pela atuação de intérpretesde língua de sinais educacional. De algum modo, essa movimentação sereflete na regulamentação da profissão do tradutor/intérprete na Lei n°12.319/2010, que passa a ter um campo maior de atuação profissional.
Contudo, estratégias voltadas ao processo ensino-aprendizagem de crianças
surdas permeiam discussões sobre a formação docente (formação inicial e continuada),
as possibilidades de atuação dos tradutores e intérpretes de Libras-Português, dos
instrutores/professores surdos, de professores bilíngues e as metodologias de ensino
voltadas para a aprendizagem destes alunos, seja em contextos escolares bilíngues ou
inclusivos.
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Considerações finais
O relato de experiência que se apresentou envolve um trabalho de assessoria
educacional realizada em uma instituição de ensino particular, localizada no interior do
Estado de São Paulo. O aluno foi acompanhado durante aproximadamente três anos e
diversas foram as conquistas durante este percurso: as docentes começaram a lançar
olhares diferentes quanto as potencialidades da criança surda, houve interesse em
capacitar docentes e funcionários quanto ao aprendizado e uso da Libras no ambiente
escolar, a Libras passou a ter um espaço cada vez maior no processo de ensino-
aprendizado, a direção da escola apoio as iniciativas consideradas favoráveis para o
melhor desenvolvimento linguístico-cognitivo e emocional da criança.
No entanto, diversas foram as problemáticas e barreiras encontradas quanto a
acessibilidade efetiva da criança surda inserida no ensino regular, entre as quais
destacaram-se: resistência de docentes quanto a mudanças atitudinais e metodológicas
de ensino (as atividades deveriam ser adaptadas, considerando a diferença linguística da
criança); distanciamento em relação a uma audiência que priorizasse a presença da
Libras e da visualidade no ambiente de sala de aula (o uso da Libras não deveria ser
esporádico); a formação continuada deveria contar a preparação de docentes que
assumiriam as turmas subseqüentes a que o aluno estava frequentando (independente
da confirmação de matrícula do mesmo e a saída desta do corpo docente, o que seria
uma outra discussão); necessidade de ampliar os conhecimentos quanto ao processo de
apropriação da Libras pela criança surda e o domínio da Língua Portuguesa escrita como
segunda língua; reconhecimento efetivo do Português como segunda língua nas
produções escritas da Libras; distanciamento quanto ao real status de língua fundamental
para a Libras no ambiente escolar; presença de profissionais TILSP com saberes,
competências e domínios inerentes a profissão.
A presença do TILSP na Educação Infantil e Ensino Fundamental (primeira etapa)
torna-se discutível, considerando-se o aparato legal vigente. Tais aspectos envolvem o
lugar deste profissional no âmbito educacional, valendo-se da perspectiva inclusiva de
ensino e/ou da educação bilíngue para surdos; as metodologias e estratégias de ensino
utilizadas nestes diferentes contextos educativos; a relação professor ouvinte-aluno
surdo, aluno surdo-intérprete, professor ouvinte-intérprete de língua de sinais; atividades
de ensino propostas; apropriação de língua e de uso da linguagem; consonância entre
legislações vigentes e práticas inclusivas de alunos surdos no ensino regular; adaptações
curriculares e acessibilidade à informação, de forma significativa e com construção de
sentidos pelos surdos, respeitando-os enquanto minoria linguística.
1057
Desta forma, o modelo inclusivo vivenciado pelas escolas atualmente diferem do
que se considera como ideal para o real desenvolvimento de crianças surdas, em
especial, diante do seu processo de aquisição da Libras e construção de sentidos,
significados por meio desta.
Diante do exposto, consideram relevante repensar as adequações que se fazem
necessárias em um ambiente educacional que se propõe ser bilíngue para surdos, assim
como o currículo e as práticas metodológicas desenvolvidas em ambientes educativos
que se dizem inclusivos.
O que se verifica é a ausência de uma educação bilíngue para atendimento das
necessidades das crianças surdas (linguísticas, cognitivas e sociais), e um processo de
inclusão excludente, quem marginaliza e não valoriza as especificidades de educandos
surdos, em especial. Mesmo diante das legislações vigentes, a inclusão de crianças
surdas no ensino regular é insuficiente para que esta possa ter assegurado seus direitos,
o que envolve integridade e respeito a sua condição humana.
Referências
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República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 out. 1988.
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10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS,
e o art. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e
critérios básicos para a promoção da acessibilidade. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 dez. 2005.
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