amazônia recursos hídricos e sustentabilidade Val et al

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  • AMAZNIA: RECURSOS HDRICOSE SUSTENTABILIDADE

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    AMAZNIA: RECURSOS HDRICOSE SUSTENTABILIDADE1, 2

    Adalberto L. Val3, 4

    Vera Maria F. de Almeida-Val4,5

    Philip M. Fearnside4

    Geraldo M. dos Santos4

    Maria Teresa F. Piedade4

    Wolfgang Junk4

    Sergio R. Nozawa5

    Solange T. da Silva6

    Fernando Antonio de C. Dantas6

    RESUMO

    Os recursos hdricos na Amaznia afetam todos os ecossistemas naturais e alterados, incluindo

    as populaes humanas. A evapotranspirao da fl oresta amaznica fornece vapor dgua que

    transportado por ventos para outras regies brasileiras e para pases vizinhos. As quantidades

    enormes de gua envolvidas nos processos hidrolgicos na Amaznia conferem uma grande

    importncia aos seus recursos hdricos e aos impactos em potencial no caso de alteraes. A

    diversidade de peixes e de outros organismos aquticos enorme, assim como a importn-

    cia econmica e alimentar dessa fauna para a populao humana. H impactos de poluio,

    inclusive na metilao de mercrio, em reservatrios hidreltricos. As barragens bloqueiam a

    1 Texto preparado para a Academia Brasileira de Cincias para integrar o documento do Grupo de Trabalho sobre Recursos Hdricos. Este texto uma sntese preparada a partir da contribuio inicial de cada um dos autores.

    2 Agradecimento especial a Rubens Tomio Honda (CUNL, afi liado ABC), Mnica Stropa Ferreira Nozawa (CUNL), Efrem Ferreira (INPA), Jansen Zuanon (INPA) e Elizabeth Mendes Leo (INPA).

    3 Membro titular e Vice-Presidente para a Regio Norte da Academia Brasileira de Cincias.4 Pesquisadores e Professores dos Programas de Ps-graduao em Ecologia e Biologia de gua Doce e Pesca Interior do INPA, Instituto Nacional de Pesquisas da Amaznia.

    5 Professores do Programa de Ps-graduao em Biologia Urbana do CULN, Centro Universitrio Nilton Lins.6 Professores do Programa de Ps-graduao em Direito Ambiental da UEA, Universidade do Estado do Ama-zonas.

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    migrao de peixes e alteram os ciclos de inundao dos rios. As hidreltricas emitem metano,

    contribuindo para o aquecimento global. As caractersticas qumicas dos diferentes tipos de

    gua afetam processos como o transporte de carbono orgnico, o suprimento de nutrientes

    para o plncton - que forma a base da cadeia alimentar nos ecossistemas aquticos - e a quan-

    tidade de ons biodisponveis que afetam a sensibilidade dos organismos ao cobre e a outros

    elementos txicos. Vrios dos principais rios na regio drenam mais que um pas, como o caso

    do rio Madeira, cuja bacia drena partes da Bolvia e do Peru, alm do Brasil. Tratados internacio-

    nais exigem a salvaguarda dos direitos dos outros pases que compartilham os recursos hdricos

    em bacias transfronteirias. As hidreltricas em construo no Brasil no rio Madeira implicam

    em diversos impactos nos pases vizinhos, inclusive o bloqueio da migrao dos grandes bagres.

    Uma das prioridades para a tomada de decises racionais sobre os recursos hdricos amaznicos

    a expanso do conhecimento cientfi co sobre os sistemas aquticos na regio. Uma srie de

    projetos nacionais e internacionais visa a melhorar esse conhecimento e h programas de ps-

    graduao voltados a aumentar a capacidade para pesquisas na rea. A populao humana na

    regio depende do funcionamento dos ecossistemas aquticos e compartilha o destino destes

    sistemas, dos quais os seres humanos confi guram um componente central.

    Palavras-chave: gua, aquecimento global, barragem, biodiversidade, ciclo hidrolgico, desen-

    volvimento, hidreltrica, impacto ambiental, peixe, reservatrio, rio

    ABSTRACT

    Water resources in Amazonia a ect all natural and human-altered ecosystems in the region,

    including their human populations. Evapotranspiration by the Amazon forest provides water

    vapor that is transported by wind to other regions of Brazil and to neighboring countries. The

    enormous quantities of water involved in hydrological processes in Amazonia give great im-

    portance to the regions water resources and to potential impacts in the case of alteration. The

    diversity of fi sh and other aquatic organisms is enormous, as is the importance of this fauna as

    economic and food resources for the human population. There are impacts from pollution, in-

    cluding mercury methylation in hydroelectric reservoirs. Dams also block migration of fi sh and

    alter the fl ooding cycles of rivers. Hydroelectric dams release methane, thereby contributing to

    global warming. The chemical characteristics of di erent types of water a ect processes such

    as the transport of organic carbon, the supply of nutrients to the plankton that are the base of

    the food chain in aquatic ecosystems, and the quantity of bio-available ions that a ect sensiti-

    vity of organisms to copper and other toxic elements. Several of the major rivers in the region

    drain more than one country, as is the case for the Madeira River, whose basin drains parts of

    Bolivia and Peru, in addition to Brazil. International treaties require protecting the rights of other

    countries that share aquatic resources in trans-border watersheds. The hydroelectric dams un-

    der construction in Brazil on the Madeira River imply a variety of impacts in the neighboring

    countries, including blocking the migration of large catfi sh. One of the priorities for rational de-

    cision making on aquatic resources in Amazonia is expansion of scientifi c knowledge on aquatic

    systems in the region. A series of national and international projects are engaged in improving

    this knowledge, and masters and PhD programs are increasing the capacity for research in the

    area. The human population in the region depends on the functioning of aquatic ecosystems.

    People share the fate of these ecosystems, in which they constitute a central component.

    Key-words: biodiversity, dam, development, environmental impact, fi sh, global warming, hydro-

    logical cycle, hydroelectric dam, reservoir, river, water

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    CARACTERIZAO E EXTENSO HDRICA

    Apenas trs por cento da gua existente no mundo so guas doces correntes e destes, um

    quinto deve-se descarga do rio Amazonas no oceano. A bacia hidrogrfi ca do Amazonas a

    mais extensa rede hidrogrfi ca do globo terrestre, ramifi cando-se por todos os pases do norte

    da Amrica Latina, desde os sops andinos at o Oceano Atlntico (Eva & Huber 2005), contando

    com 25.000 km de rios navegveis em cerca de sete milhes de km2, dos quais 3,8 milhes esto

    no Brasil (IBGE 2007). Esta bacia continental se estende por todo o norte da Amrica do Sul, sen-

    do que 63 % dela se encontram em territrio brasileiro, o que traz vrias questes transnacionais

    nas reas social, econmica, da biodiversidade e ambiental, entre outras, e impe uma anlise

    plural dos espaos normativos e da diversidade cultural na regio. Esta questo de escala teve e

    ainda tem profundas implicaes nos processos de planejamento regional e, no raras vezes,

    completamente negligenciada.

    O rio Amazonas descarrega no oceano Atlntico 175.000 m3 de gua doce a cada segundo, o

    que representa 20 % de toda a gua doce que entra nos oceanos do mundo todo. O encontro

    desse imenso volume de gua com o mar resulta em um barulho de grandes propores, deno-

    minado pororoca (da lngua Tupi, grande estrondo) (revisado por Val et al. 2006). Este volume

    de gua resulta da contribuio de uma infi nidade de pequenos corpos de gua completamen-

    te anastomosados no interior da fl oresta, que tm importante papel no ciclo da gua na regio

    amaznica e demais regies adjacentes. Essa descarga equivale a cinco vezes a do rio Congo

    (frica) e 12 vezes a do rio Mississipi (Estados Unidos da Amrica). Os corpos dgua de todas

    as formas e origens criam um plano topogrfi co singular com um extensivo conjunto de reas

    de transio entre o ambiente aqutico e a terra fi rme, que (Sioli 1984) denominou de aquatic

    landscape. Mais de 20 % da regio Amaznica pode ser considerada rea mida (Junk 2000).

    As reas alagveis amaznicas associadas aos grandes rios so defi nidas como ambientes que

    recebem, periodicamente, o aporte lateral de guas desses rios devido fl utuao anual de seus

    nveis. Estas reas cobrem 6 % da Amaznia brasileira, isto , cerca de 300.000 km2, e so classifi -

    cadas, conforme sua fertilidade, em vrzeas (4 %) e igaps (2 %). As vrzeas so as reas de maior

    fertilidade e so habitadas por 90 % da populao rural do Amazonas (Junk 2000). Os igaps

    so, em contraste, pobres em nutrientes inorgnicos, ricos em material orgnico dissolvido e

    suas guas so extremamente cidas, com cor clara ou, mais freqentemente, preta (Sioli 1975,

    Furch 2000). O contraste entre esses dois ambientes se estende tambm fl ora.

    A diversidade ambiental na Amaznia ampliada pelos diferentes tipos de gua, como as guas

    pretas do rio Negro, as brancas do rio Amazonas e as claras do rio Tapajs. Tambm, do ponto

    de vista biolgico, a conexo com a bacia do Orinoco tem papel relevante. Essa conexo se d

    por meio do canal de Cassiquiare, na parte superior do rio Negro. Os principais afl uentes do

    rio Orinoco tm sua origem nos Andes, que tambm trazem de l signifi cativas quantidades

    de sedimentos. Contudo, uma quantidade de sedimentos ainda maior, da ordem de 1,2 x 109 t,

    transportada pelo rio Amazonas para a costa Atlntica (revisto por Lara et al. 1997), onde se

    localiza uma extensa zona de interface.

    A diferena de densidade e o volume de gua fazem com que a gua doce se mova por sobre a

    gua salgada por centenas de quilmetros, transportando o sedimento diretamente para den-

    tro do oceano Atlntico, em vez de permitir o depsito na entrada do esturio. A circulao

    nessa zona costeira infl uenciada por fortes correntes locais. Aproximadamente a metade do

    sedimento acumulada na costa, enquanto que a outra metade dispersa no oceano. Assim,

    essa zona de interface, uma das maiores do mundo, fortemente infl uenciada pela prpria di-

    nmica do rio Amazonas, com seu fl uxo mximo no fi nal de maio e o mnimo em novembro.

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    QUALIDADE E ACOMPANHAMENTO DOS SISTEMAS HDRICOS

    Alm da colorao, as guas da Amaznia apresentam profundas diferenas qumicas, fsicas e

    biolgicas que, tambm, esto fortemente relacionadas com as reas de drenagem. De fato, as

    guas barrentas do sistema Solimes-Amazonas apresentam pH prximo ao neutro, uma gran-

    de quantidade de material em suspenso proveniente dos Andes e das margens dos rios, baixos

    nveis de carbono orgnico dissolvido e nveis de nutrientes relativamente mais altos do que os

    encontrados nos demais tipos de gua da regio. Em contraste, as guas pretas so cidas, com

    pH entre 3,2 e 5, ricas em carbono orgnico dissolvido, particularmente em cidos hmicos e

    flvicos, so muito pobres em ons, com concentraes prximas s da gua destilada. Alm dis-

    so, as guas da Amaznia apresentam, em geral, freqentes episdios de baixa disponibilidade

    de oxignio (Furch 1984, Val et al. 2006). A existncia de uma rica ictiofauna nesses ambientes

    possvel graas a uma diversidade sem paralelos, de ajustes morfolgicos, bioqumicos e fi sio-

    lgicos para manter a homeostase inica, bem como para garantir a transferncia de oxignio

    para os tecidos (Val & Almeida-Val 1995). Esse conjunto de caractersticas biolgicas pode ser

    utilizado para o acompanhamento da qualidade ambiental, j que se correlaciona diretamente

    com as variaes naturais do ambiente. Ressalte-se, entretanto, que mudanas das caractersti-

    cas ambientais para alm das amplitudes naturais podem refl etir em outros nveis da organiza-

    o biolgica (Val et al. 2003).

    O modelo do ligante bitico (BLM Biotic Ligand Model) prediz a quantidade de ons biodispo-

    nveis, que podem causar toxicidade aos organismos aquticos. Para isso, o modelo considera

    vrias caractersticas fsico-qumicas do ambiente aqutico incluindo, diferente de seus precur-

    sores, a varivel quantidade de carbono orgnico dissolvido. A aplicao deste modelo para

    peixes em trs diferentes ambientes da Amaznia revelou que a sensibilidade desses animais

    ao cobre est fortemente relacionada com os nveis de clcio e carbono orgnico dissolvido na

    gua (Bevilacqua 2009). Modelos desse tipo, bem como a defi nio de biondicadores molecu-

    lares para acompanhamento da qualidade ambiental, so importantes para a Amaznia, que j

    experimenta diversos pontos de presso antropognica.

    FUNCIONAMENTO DOS SISTEMAS HDRICOS

    Devido sazonalidade da precipitao, os grandes rios da regio apresentam pulsos de inun-

    dao, com ciclos de cheia e vazante, que constituem a principal funo de fora para o sistema

    amaznico. A inundao pode durar vrios meses. Nas reas alagveis, a interao entre o cor-

    po dgua e a biota marginal decisiva. A produo primria alctone das fl orestas marginais

    tem grande importncia para as teias alimentares dos corpos dgua e das plancies marginais.

    Quando as guas baixam, as reas inundadas podem ser reduzidas a apenas 20 % da rea to-

    tal da fase aqutica, o que tem importantes implicaes ecolgicas. A supresso de ambientes

    rompe a conectividade e confi na e isola organismos de muitas espcies. Essas comunidades res-

    pondem, adaptativamente, s condies peculiares determinadas pelos pulsos de inundao.

    Muitas rvores nas reas alagveis formam anis de crescimento (pela reduo da taxa de cres-

    cimento) como resposta inundao (Worbes 1997), o que permite o uso de tais informaes

    para o manejo adequado dessas reas ameaadas pela agropecuria e uso inadequado de seus

    recursos naturais (Junk 2000).

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    Figura 1. Vertedouro da barragem de Tucuru, no rio Tocantins, Estado do Par. gua sai

    do reservatrio a uma profundidade de 20 m, onde carrega grandes quantidades de me-

    tano. A pulverizao em gotculas libera este gs de efeito estufa para a atmosfera, contri-

    buindo para o aquecimento global (Fotografi a por Philip M. Fearnside).

    Figura 2. Local originalmente escolhido para a hidreltrica de Jirau, rio Madeira, Estado

    de Rondnia (na poca de baixa vazo). O rio Madeira carrega grandes quantidades de se-

    dimentos, fato que agrava a formao de um remanso superior, causando inundao em

    Bolvia, no trecho do rio acima do reservatrio propriamente dito (Fotografi a por Philip

    M. Fearnside).

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    Figura 3. Reservatrio de Samuel, no rio Jamari, Estado de Rondnia. Decomposio das

    rvores mortas libera CO2, contribuindo para o aquecimento global (Fotografi a por Philip

    M. Fearnside).

    As mudanas do clima global tambm afetaro a Amaznia, com previso de diminuio signi-

    fi cativa das chuvas pelo menos na parte leste e nos bordos da bacia, bem como ampliao dos

    efeitos de eventos como El Nio e La Nia. Alm disso, as previses indicam (Junk et al. 2009):

    (a) que as reas midas costeiras sero afetadas pela subida do nvel do mar e que a incidncia

    de fogo tender a aumentar de forma alarmante, (b) que os pequenos igaraps e suas reas ala-

    gveis podero secar completamente durante as pocas secas, com graves conseqncias para

    a fauna e a fl ora, (c) que as reas desconectadas nos interfl vios, nas veredas e nos buritizais,

    especialmente em reas de cerrado, experimentaro impactos de signifi cativa amplitude, com

    efeitos sobre a biodiversidade desses locais.

    As reas midas ao longo dos grandes rios so relativamente fl exveis, porm, so necessrios

    sistemas de proteo para as populaes humanas locais como, por exemplo, programas ro-

    bustos de previso do nvel do rio (Schngart & Junk 2007), para que as atividades econmicas

    como a pesca, a agricultura e o extrativismo madeireiro, feitos em consonncia com as fl utua-

    es de nvel do rio, possam ser ajustadas a esses fenmenos. Entretanto, muito antes que os

    impactos das mudanas climticas se faam sentir, o manejo inadequado do ecossistema de

    reas alagveis causar signifi cativo desequilbrio (Junk et al. 2009).

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    DIVERSIDADE DE ORGANISMOS AQUTICOS DA AMAZNIA

    Em linhas gerais, a diversidade aqutica amaznica composta pelos mesmos grupos ampla-

    mente distribudos pelo mundo, ou seja, por algas, plantas superiores, porferos, rotferos, in-

    setos, moluscos, crustceos, anfbios, aves, peixes, rpteis e mamferos, lembrando que alguns

    desses grupos vivem na gua, mas passam algum tempo em terra fi rme e vice-versa. Pela

    conspicuidade e biomassa que representam, merecem destaque os trs ltimos e as plantas

    aquticas.

    Os peixes da Amaznia se destacam pelo elevado nmero de espcies, isto , constituem cerca

    de 10 % da ictiofauna de gua doce do mundo ou 80 % da ictiofauna brasileira. Mais importante

    do que isso, os peixes constituem a principal fonte de alimentao, trabalho, lazer e renda da

    populao local, cujo consumo per capita da ordem de 100 kg ano-1, isto , mais de seis vezes

    a mdia mundial. Sem dvida, a atividade pesqueira, incluindo tambm os recursos da pesca

    esportiva, da pesca de peixes ornamentais e da piscicultura, constitui um dos maiores sustent-

    culos da economia amaznica e brasileira, gerando mais de 100 mil empregos diretos (Cabral Jr

    & Almeida 2006) e cerca de 10 vezes esse nmero se forem considerados os empregos indiretos.

    Os quelnios, especialmente as tartarugas, se destacam pela importncia histrica e cultural na

    alimentao humana, tanto na forma de ovos quanto de carne. Por causa da presso da pesca e

    da destruio dos hbitats aquticos onde vivem e nidifi cam, uma das 14 espcies amaznicas,

    o tracaj Podocnemis uni lis, se encontra na lista da IUCN (International Union for Conservation

    of Nature) como animal vulnervel. Os jacars, representados por quatro espcies (Caiman cro-

    codilus, Melanosuchus niger, Paleosuchus palpebrosus e P. trigonatus), tm um papel de destaque

    no ecossistema como topo da cadeia alimentar e predadores vorazes. So caados h dcadas

    por sua pele e sua carne utilizada na culinria local.

    Os mamferos se destacam pelo porte avantajado e pelo fato de que uma das cinco espcies

    existentes nos ecossistemas aquticos da regio, a ariranha Pteronura brasiliensis, se encontrar

    na lista da IUCN como ameaada de extino. As outras quatro espcies (peixe-boi Trichechus

    inunguis, lontra Lontra longicaudis, boto-tucuxi Sotalia uviatilis e boto-vermelho Inia geo ren-

    sis) so listadas como insufi cientemente conhecidas. Apesar disso, continuam sendo caadas.

    As macrfi tas se destacam por serem produtores primrios, a partir dos quais se origina a ma-

    tria orgnica, constituindo o principal elo da cadeia alimentar. Elas so particularmente impor-

    tantes nos sistemas de vrzea, entre as quais predominam os capins silvestres Paspalum repens

    e Echinochloa polystachia, sendo esta ltima uma das plantas com mais alta produtividade co-

    nhecida, cerca de 100 t ha-1 e fator de converso de energia solar de 4 % (Piedade et al. 1992).

    Alm da alimentao, essas plantas provem refgio para uma infi nidade de organismos que

    vivem na gua ou fora dela.

    O ambiente de cada espcie um conjunto complexo de fatores qumicos, fsicos e biolgi-

    cos que interagem ao longo dos processos evolutivos, proporcionando as condies de vida

    e determinando a rea de distribuio das espcies. Tambm por meio das interaes entre

    espcies, populaes e comunidades que se desenvolvem as relaes de predao, competio,

    parasitismo e simbiose, que na Amaznia assumem expresso maiscula.

    Apesar da importncia da biodiversidade aqutica, ou talvez por isso mesmo, ela vem sofrendo

    signifi cativa presso, alterao e perdas. H perigo de que seu equilbrio, j fragilizado, possa

    ser rompido. Entre as muitas causas, o desmatamento e a srie de problemas dele decorrentes,

    tais como assoreamento, alteraes e eliminao de hbitats e a poluio de crregos, especial-

    mente daqueles que banham as cidades, se destacam e carecem de avaliao e aes para sua

    completa eliminao.

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    FUNO, VALORAO E QUESTES SOCIAIS

    Na Amaznia, a gua primordial para o homem porque, alm de sua funo fi siolgica, ela re-

    presenta o principal meio de transporte, o principal meio de obteno de energia e de produo

    de alimento. No entanto, o uso e a explorao da gua podem causar diversos impactos sociais.

    O clculo de valorao desse recurso em grandes projetos deve incluir os custos sociais.

    O consumo domstico de gua pelas populaes humanas da Amaznia muito pequeno

    quando comparado com o volume de gua existente na regio. No obstante, na Amaznia,

    gua prpria para consumo pode escassear por poluio e pela ocorrncia de infeces e para-

    sitas em populaes rurais e urbanas.

    O transporte por gua o nico meio de alcanar grande parte da Amaznia. A grande maioria

    dos assentamentos humanos est situada ao longo de rios navegveis e as hidrovias so impor-

    tantes para o acesso dessas populaes s suas moradias. Apesar de parecer uma atividade no

    prejudicial ao meio ambiente, as ondas criadas pelo trfego de barcaas podem afetar reas nas

    margens dos rios.

    No que tange gerao de energia, o potencial hidreltrico da Amaznia brasileira grande

    graas s quedas topogrfi cas nos afl uentes do rio Amazonas a partir do Escudo Brasileiro (na

    parte sul da regio) e do Escudo Guianense (no lado norte). A escala de desenvolvimento hidre-

    ltrico planejada para a Amaznia enorme: 68 hidreltricas esto previstas no Plano 2010.

    Entretanto, os problemas sociais e ambientais causados pelas hidreltricas tambm so enor-

    mes. O deslocamento de populaes rurais e indgenas das reas dos reservatrios pode ser

    um impacto severo em alguns locais. A UHE Tucuru no rio Tocantins inundou parte de trs re-

    servas indgenas (Parakan, Pucuru e Montanha) e sua linha de transmisso passou por outras

    quatro (Me Maria, Trocar, Krikati e Cana Brava). H uma disparidade na magnitude dos custos

    e benefcios com grandes desigualdades entre quem paga os custos e quem desfruta dos be-

    nefcios. Populaes locais freqentemente recebem os principais impactos, enquanto que as

    recompensas benefi ciam, principalmente, grandes centros urbanos e, no caso da maior represa

    (Tucuru), outros pases (Fearnside 1999, 2001).

    A energia gerada por represas amaznicas faz, freqentemente, pouco para melhorar a vida das

    pessoas que vivem perto dos projetos. A UHE de Tucuru fornece energia subsidiada para usi-

    nas multinacionais de alumnio em Barcarena, Estado do Par (ALBRS e ALUNORTE, da Nippon

    Amazon Aluminum Co. Ltd. ou NAAC, um consrcio de 33 empresas japonesas) e em So Luis,

    Estado do Maranho (ALUMAR, da Alcoa), enquanto que as populaes que vivem no local do

    projeto tm iluminao por lamparinas a querosene.

    As hidreltricas tambm causam problemas de sade s populaes que ali vivem com malria

    e arboviroses. A malria endmica nas reas onde so construdas as represas, aumentando

    a incidncia quando populaes humanas migram para essas reas. O desequilbrio ambiental

    pode causar aumento dessas doenas pelo aumento nas populaes dos vetores (Tadei et al.

    1983, Tadei et al. 1991). Outro problema a metilao do mercrio, que ocorre em reservat-

    rios de hidreltricas como foi indicado por seus altos nveis em peixes e em cabelos humanos

    em Tucuru (Leino & Lodenius 1995). Altas concentraes de mercrio ocorrem nos solos e na

    vegetao da Amaznia e podem ter sido originadas ao longo de milhes de anos (Roulet et al.

    1996, Silva-Forsberg et al. 1999). Outros usos da gua tambm podem resultar em assimetrias

    sociais e econmicas. Recursos hdricos so essenciais na produo de comida, tanto em terra

    quanto em ecossistemas aquticos. A irrigao, entretanto, ainda afeta s uma parte pequena

    da agricultura na Amaznia, embora isto possa mudar no futuro. A mais conhecida iniciativa em

    grande escala na Amaznia foi o projeto de irrigao de arroz em Jari, atualmente abandonado

    (Fearnside & Rankin 1985, Fearnside 1988). A proviso de gua para gado representa uma alte-

    rao signifi cante de recursos hdricos em paisagens desmatadas. Esta gua principalmente

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    provida por pequenos reservatrios (audes) criados por meio do represamento de igaraps

    que passam por pastagens. A falta de gua j uma limitao pecuria em anos secos. Por

    outro lado, na interface entre ambientes aquticos e terrestres, as deposies de nutrientes por

    sedimentao durante perodos de inundao so fundamentais agricultura na vrzea ama-

    znica (Junk 1997).

    Por fi m, importante citar o papel das guas da Amaznia no clima e na manuteno da hidro-

    logia de diversas regies do pas. Os sistemas aquticos na Amaznia so ligados ao ciclo dgua

    regional e ao transporte de vapor dgua para regies vizinhas, inclusive o centro-sul do Brasil

    (Fearnside 2004). A gua entra na regio como vapor advindo do oceano Atlntico. Ventos pre-

    valecentes na regio sopram de leste para oeste e muito da gua que cai como chuva na regio

    devolvida ao ar por meio da evapotranspirao (Salati 2001). Quando o ar alcana os Andes,

    uma parte signifi cativa direcionada para o sul, levando vapor dgua para o centro-sul brasilei-

    ro e para os pases vizinhos. Modelos indicam que aproximadamente metade do vapor dgua

    que entra na Amaznia transportada para fora da regio em direo ao sul, por meio de ventos

    (Marengo et al. 2004, Correia et al. 2006, Marengo 2006, DAlmeida et al. 2007).

    Sistemas aquticos amaznicos tambm tm papis importantes no ciclo de carbono global.

    Os sedimentos dos Andes e da eroso do solo dentro da regio amaznica so transportados

    ao oceano pelos rios amaznicos, especialmente pelos rios Madeira, Solimes e Amazonas. Es-

    tes sedimentos, que podem ser depositados e remobilizados na vrzea, levam uma quantidade

    signifi cativa de carbono. O carbono orgnico dissolvido entra nos rios a partir do escoamento

    terrestre e da gua do solo ao longo da regio, tambm representando um fl uxo de carbono im-

    portante ao oceano. So emitidas quantidades grandes de CO2 da gua no rio Amazonas (Richey

    et al. 2002). Nutrientes tambm transportados pelo rio Amazonas sustentam a alta produtivi-

    dade do plncton no esturio do Amazonas e a conseqente remoo de CO2 atmosfrico por

    sedimentos ocenicos (Subramaniam et al. 2008). Hidreltricas podem causar o rompimento

    destes fl uxos e aumentar a emisso de outros gases de efeito estufa como o metano (Kemenes

    et al. 2007).

    GUAS DA AMAZNIA E DIREITO AMBIENTAL INTERNACIONAL

    A Bacia Hidrogrfi ca do Amazonas a mais extensa rede hidrogrfi ca do globo terrestre e es-

    tende-se dos Andes at o delta no oceano Atlntico (Eva & Huber 2005) e fi gura, portanto, como

    uma bacia de dimenses continentais atingindo vrios pases da Amrica do Sul, como j foi

    mencionado1. Refl etir sobre a questo das guas na Amaznia e o direito ambiental interna-

    cional conduz a uma anlise da pluralidade de espaos normativos e da diversidade cultural na

    regio. Tal qual relata o poeta Thiago de Mello, o regime das guas corresponde a um elemento

    no clculo da vida do homem, determinando os ciclos econmicos: grandes vazantes, fartas

    colheitas (tempo de grandes pescarias e de bom plantar), grandes cheias, duras calamidades e

    amargas misrias (o peixe deixa o rio, as plantaes so destrudas) (Mello 2002). No que tange

    ao direito ambiental internacional na bacia amaznica, devemos considerar trs perspectivas:

    (1) o carter multinacional da bacia, (2) as migraes biolgicas e (3) o uso compartilhado e

    sustentado dos recursos nela contidos.

    1 No h que confundir a bacia hidrogrfi ca do Amazonas (bacia hidrogrfi ca internacional) com a Regio Hidrogrfi ca Amaznica, que constituda pela bacia hidrogrfi ca do rio Amazonas situada no territ-rio brasileiro, pelas bacias hidrogrfi cas dos rios existentes na Ilha de Maraj, alm das bacias hidrogr-fi cas dos rios situados no Estado do Amap, que desguam no Atlntico Norte, perfazendo um total de 3.870.000 km, de acordo a Diviso Hidrogrfi ca Nacional (Resoluo do Conselho Nacional de Recursos Hdricos, CNRH n 32, de 15 de outubro de 2000).

  • 104

    CAPTU

    LO 6

    A noo de rio internacional, ou seja, de rios navegveis que atravessam ou separam os terri-

    trios de dois ou mais Estados, mudou com o reconhecimento do conceito de curso de gua

    internacional e de bacia hidrogrfi ca internacional sem, todavia, existir, quer na teoria quer na

    prtica, um consenso em relao ao alcance de tais expresses. As Regras de Helsinque referen-

    tes utilizao das guas dos rios internacionais adotadas em 1966 pela Associao de Direito

    Internacional e revistas em 2004 por meio das Regras de Berlim tiveram o objetivo de regu-

    lamentar a proteo e uso das guas continentais. Seu papel foi fundamental na formulao

    da regra da utilizao equitativa das guas transfronteirias, bem como no desenvolvimento

    de regras de proteo das guas continentais e recursos naturais compartilhados (Silva 2008a),

    havendo, no contexto de reviso dessas regras, o reconhecimento da integridade ecolgica das

    guas em trs dimenses: (1) biolgica, (2) qumica e (3) fsica, sem dissoci-las das dimenses

    sociais e econmicas.

    A Conveno das Naes Unidas sobre a Utilizao dos Cursos de gua Internacionais para fi ns

    Distintos da Navegao de 1997 no adotou os conceitos de rio internacional ou de bacia hidro-

    grafi a internacional (McCa rey 2001). Adotou, entretanto, o conceito de curso de gua interna-

    cional como um sistema de guas de superfcie e de guas subterrneas que constituem, pelo fato

    de suas relaes fsicas, um conjunto unitrio e chegam normalmente a um ponto comum2. Nesta

    Conveno estabeleceu-se: (1) a utilizao e participao equitativas e racionais; (2) a obrigao

    de no causar danos signifi cativos; (3) a obrigao geral de cooperar, fundada na igualdade

    soberana, integridade territorial e vantagem mtua; (4) a troca regular de dados e informaes

    sobre a qualidade das guas; e (5) o princpio de igualdade entre todos os usos.

    O Tratado de Cooperao Amaznica (TCA) assinado em 3 de julho de 1978 pelas repblicas

    de Bolvia, Brasil, Colmbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com o objetivo de

    promover o desenvolvimento harmnico dos respectivos territrios amaznicos e afi rmar a so-

    berania nacional sobre os recursos naturais, entrou em vigor a 2 de agosto de 1980. A noo

    de bacia amaznica abrangeu no apenas a bacia hidrogrfi ca internacional, mas, igualmente,

    suas eco-regies (Silva 2008b) e o TCA tratou, em seus dispositivos, da funo que as guas do

    Amazonas e demais rios amaznicos internacionais exercem na comunicao entre os pases e

    da utilizao racional dos recursos hdricos, sem, contudo, estabelecer critrios especfi cos para

    uma utilizao racional. O Protocolo de Emenda ao Tratado de Cooperao Amaznica, adotado

    em Caracas a 14 de dezembro de 1998 e em vigor a 2 de agosto de 2002, instituiu a Organizao

    do Tratado de Cooperao Amaznica (OTCA), dotada de personalidade jurdica competente

    para celebrar acordos com as partes contratantes, com Estados no membros e com outras or-

    ganizaes internacionais (Silva 2008c). TCA e OTCA tm como funo primordial a produo e

    a difuso de informaes e funcionam como um frum poltico internacional. No tendo uma

    regra de resoluo de disputas ou de delegao para a OTCA, as normas jurdicas domsticas em

    matria ambiental tm um papel fundamental na regulamentao dos modos de apropriao e

    uso dos recursos naturais na regio.

    Dentre as migraes biolgicas nas guas da bacia hidrogrfi ca do Amazonas destacam-se a

    dos grandes bagres, principalmente a dourada e a piramutaba, cujos estoques so economica-

    mente importantes notadamente para o Brasil, Colmbia e Peru, alm da Bolvia e do Equador.

    Ao longo de sua vida, os bagres migradores percorrem os principais rios de gua branca da ba-

    cia amaznica, ultrapassando tanto as fronteiras estaduais como as internacionais (Vieira 2005).

    O atual conhecimento das migraes dessas espcies sugere que elas migram desde o Brasil, ao

    longo do rio Amazonas rea de criao at o Alto Solimes em territrio brasileiro, colom-

    2 Dois tipos de aqferos esto excludos dessa defi nio, quais sejam: os que no so recarregveis e os que no esto ligados a um corpo de gua.

  • 105

    CAPTU

    LO 6

    biano e peruano rea de desova (Ru no 2000). Embora se possa identifi car acordos informais

    para o perodo de defeso de certas espcies como o pirarucu na regio de fronteira com o Bra-

    sil, Colmbia e Peru (Vieira 2005) h, ainda, necessidade de adoo de normas jurdicas para o

    manejo dos recursos pesqueiros compartilhados, bem como alocao de meios fi nanceiros e

    humanos para o controle da atividade pesqueira.

    Os dispositivos do Tratado de Cooperao Amaznica estabelecem a preservao das espcies

    na regio por meio da promoo da pesquisa cienti ca e o intercmbio de informaes e de pesso-

    al tcnico entre as entidades competentes dos respectivos pases, a m de ampliar os conhecimentos

    sobre os recursos (...) da fauna de seus territrios amaznicos, as quais sero matria de um relat-

    rio anual apresentado por cada pas (art. VII). Ademais, a Comisso de Pesca Continental para a

    Amrica Latina em sua X Reunio, realizada no Panam, no perodo 7-9 de setembro de 2005,

    recomendou: (a) o reconhecimento pelos governos da Amrica Latina do valor social, econmi-

    co e ambiental das pescas continentais; (b) o fortalecimento das capacidades institucionais e lo-

    cais (comunitrias) para o manejo ecossistmico das pescas; (c) o fortalecimento da cooperao

    entre pases para o manejo e uso sustentvel de bacias compartilhadas; (d) o desenvolvimento

    de avaliaes integradas para otimizao da pesca recreativa em bacias compartilhadas; (e) a

    melhoria na coleta de informao e desenvolvimento de ferramentas para facilitar o manejo das

    bases de dados; e (f ) a criao de reas de conservao biolgica em bacias compartilhadas. Por

    fi m, projetos de infra-estrutura e atividades potencialmente poluentes que coloquem em risco

    os recursos migratrios devem ser submetidos a estudos prvios de impacto ambiental3.

    O conceito de recurso natural compartilhado foi introduzido no direito internacional com a Carta

    dos direitos e deveres econmicos dos Estados que estabeleceu, por um lado, o dever de coo-

    perar na explorao dos recursos naturais compartilhados e, por outro, o princpio da soberania

    permanente dos Estados sobre os recursos naturais que se encontram em seu territrio. A natu-

    reza, o espao e as aes humanas sobre este, constituem objetos de profcuos e densos estu-

    dos no mbito das cincias, especialmente das naturais, das humanas e das sociais. A regulao

    desses espaos e das relaes humanas que os transforma so objetos de estudos, refl exes e

    normatizaes jurdicas, aqui centradas no campo do direito.

    Ao longo da histria, a Amaznia sempre foi palco de paradoxais e, na maioria das vezes, equivo-

    cadas vises, conceituaes, processos, lutas e disputas pelo, aqui muito certo, controle e apro-

    priao dessas riquezas. neste sentido, no campo do controle e da apropriao das riquezas,

    dentre as quais aquilo que se encontra em suas guas ou com elas interagem, que as preocupa-

    es sobre a Amaznia tomam o carter poltico, considerando-se a totalidade biolgica que o

    espao amaznico confi gura e, portanto, formal e juridicamente sujeito a diferentes incidncias

    normativas, tanto no plano interno dos estados nacionais, quanto no mbito externo, da comu-

    nidade internacional de estados soberanos.

    Nesse ambiente dos espaos lquidos amaznicos, o estabelecimento de fronteiras fsicas para

    uso dos recursos biolgicos transfronteirios encontra o primeiro obstculo material na prpria

    natureza da Amaznia, onde a gua predomina, domina e determina o universo de relaes so-

    ciais e polticas (Tocantins 2000). Em primeiro lugar, porque as fronteiras amaznicas envolvem

    3 possvel citar o Complexo Madeira um conjunto de obras de infra-estrutura envolvendo quatro barra-mentos, formando um complexo de quatro usinas hidreltricas e uma malha hidroviria de 4.200 km nave-gveis, no mbito de um futuro programa de integrao de infra-estrutura e energia de transportes entre Brasil, Bolvia e Peru, alm da linha de transmisso associada ao trecho (DAlmeida 2008). Nem o Peru, nem a Bolvia foram consultados em relao a esse projeto e, apesar dos impactos transfronteirios negativos, foi expedida a licena ambiental prvia para o Complexo Madeira, com 33 condicionantes impostos pelo IBAMA, sendo que, em sua maioria, eles versam sobre as trs questes que anteriormente embasaram a negao da mesma licena, a saber: (a) questes relacionadas sedimentao, (b) questes que indicam a possibilidade de contaminao por mercrio e (c) questes sobre os efeitos das usinas sobre ictiofauna da regio (Silva 2008b).

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    CAPTU

    LO 6

    aquelas relacionadas s diferentes espacialidades estatais e as dos povos indgenas e das popu-

    laes tradicionais; em segundo, porque os diferentes modos de relao com as guas implicam

    em diferentes formas e naturezas de regulao. No campo jurdico, o uso dos recursos biolgi-

    cos transfronteirios regulado pela Conveno da Diversidade Biolgica, CDB, adotada pelo

    Brasil e promulgada por meio do Decreto n 2.519, de 16 de marco de 1998. A CDB confi gura, no

    plano hierrquico das normas, um tratado internacional que objetiva promover a conservao

    da diversidade biolgica, a utilizao sustentvel dos seus componentes e a repartio justa e

    eqitativa dos benefcios derivados da utilizao dos recursos genticos, estabelecendo princ-

    pios, normas e mbitos de jurisdio.

    Assim, a proteo e a conservao das guas na Amaznia demandam uma viso da bacia

    hidrogrfi ca em toda sua extenso, bem como da intrnseca relao do ciclo hidrolgico das

    guas, fl orestas, scio e biodiversidade no respeito s diferentes vises da gua e dos modos de

    viver e usar. Devem ser consideradas, tambm, as normas jurdicas dos pases da regio, bem

    como as fontes do direito internacional dentre as quais se encontram os tratados internacionais

    ambientais dos quais os pases da regio so parte.

    FUTURO DOS SISTEMAS HDRICOS DA AMAZNIA

    As guas da Amaznia representam um bem ambiental, econmico e social que demanda am-

    plos estudos em todas as dimenses, que possibilitem intervenes mais seguras, de tal forma

    a viabilizar seu uso e sua conservao. Alm disso, no h como considerar o bioma de forma

    fragmentada. H necessidade de aes integradas em todo o sistema, o que demanda um con-

    junto de entendimentos com outros pases e, portanto, intervenes das esferas especfi cas dos

    governos desses pases. O avano desses entendimentos depender de informaes robustas,

    que permitam acordos de amplo espectro. Sem dvida, aqui reside um dos principais gargalos:

    h uma tmida capacidade instalada nas instituies da regio, brasileiras e dos demais pases

    amaznicos para produo dessas informaes.

    Na Amaznia brasileira, h apenas um programa de ps-graduao especfi co, voltado para a

    capacitao de pessoal para o estudo da gua na regio, o de Biologia de gua Doce e Pesca

    Interior (INPA). Os estudos da gua da Amaznia, nas suas mais variadas vertentes, so tambm

    realizados no mbito deste e de outros programas como os de Ecologia (INPA), Recursos Pes-

    queiros (UFAM) e Clima e Ambiente (INPA-UEA). Estes programas, ainda que com uma ampla de-

    manda, tm sua capacidade limitada pelo nmero de orientadores disponveis. Mesmo assim,

    um bom conjunto de profi ssionais foi capacitado e atua no s em vrios estados brasileiros,

    mas tambm nos pases vizinhos. A cooperao cientfi ca com outros pases tem tido papel rele-

    vante, como o caso do quase cinqentenrio acordo de cooperao entre o INPA e o Instituto

    Max-Planck.

    A demanda atual por informao envolve, alm dos estudos bsicos de dinmica ambiental,

    os de modelagem avanada. Estes estudos devem subsidiar a tomada de decises acerca

    das novas hidreltricas planejadas para a Amaznia, das atividades de minerao, incluindo

    petrleo, da abertura de novas estradas, do manejo de espcies aquticas de importncia

    comercial e do uso dos cursos de gua para transporte e comunicao. Alm disso, vital a

    utilizao de tecnologias modernas para o desenvolvimento de novos produtos e proces-

    sos, com base na diversidade biolgica e na qumica dos ambientes aquticos da Amaznia.

    Testes iniciais revelaram a existncia de milhares de compostos orgnicos dissolvidos ape-

    nas nas guas do rio Negro, que precisam ser analisados quanto s suas origens e proprie-

    dades orgnicas. A expanso desses estudos para outras tipologias aquticas da Amaznia

    necessria.

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    CAPTU

    LO 6

    Portanto, o homem da regio precisa estar no centro dos estudos dos ambientes aquticos da

    Amaznia. Apenas na Amaznia brasileira so cerca de 25 milhes de pessoas que tm na gua

    as bases de comando de suas vidas, de suas interaes com o ambiente, na obteno de seus

    alimentos dirios, no ir e vir. Enfi m, o homem da Amaznia parte central dos ambientes aqu-

    ticos dessa vasta regio.

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