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1 XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia Análise de dados: tecendo o diálogo entre escolhas epistemológicas, modelos de análise e pesquisa qualitativa (TEXTO PARA DISCUSSÃO) Marilis Lemos de Almeida PPGS/UFRGS GT29 - Sociologia do conhecimento e metodologias qualitativas Coordenação: Wivian Weller (UnB) e Hermilio Santos (PUCRS) Salvador, Bahia 10 a 13 de setembro de 2013

Analise de Dados: tecendo o dialogo entre escolhas epistemológicas

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Paper apresentado no GT de sociologia do conhecimento e metodologias qualitativas (SBS 2013)

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XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia

Análise de dados: tecendo o diálogo entre escolhas epistemológicas, modelos

de análise e pesquisa qualitativa

(TEXTO PARA DISCUSSÃO)

Marilis Lemos de Almeida

PPGS/UFRGS

GT29 - Sociologia do conhecimento e metodologias qualitativas

Coordenação: Wivian Weller (UnB) e Hermilio Santos (PUCRS)

Salvador, Bahia

10 a 13 de setembro de 2013

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Análise de dados: tecendo o diálogo entre escolhas epistemológicas,

modelos de análise e pesquisa qualitativa

Marilis Lemos de Almeida1

1 – Introdução

A pesquisa em sociologia, no Brasil, desenvolveu-se fortemente orientada

pela metodologia qualitativa, é ainda recente a difusão de uma literatura crítica e

reflexiva sobre o tema. Contudo, o ensino de regras e procedimentos não pode se

desenrolar descolado de reflexões sobre os princípios que originam tais regras, bem

como suas implicações. Compreender as ideias e os princípios que estão na origem

dos diferentes métodos e técnicas utilizados na pesquisa qualitativa permite jogar luz

sobre as conexões entre as escolhas aparentemente mais simples, realizadas

cotidianamente, durante o processo de pesquisa com as concepções teóricas acerca

do processo de conhecimento, garantindo maior consistência e consciência acerca

das opções realizadas.

Segundo o princípio bachelardiano, a objetividade é socialmente construída e

fundada no olhar do outro, e deve ser conquistada pelo pesquisador na prática da

pesquisa, desde o momento inicial da designação do objeto até o estabelecimento

das interpretações sobre o mesmo (Bachelard, 1996). Este olhar do outro é exercido

pela comunidade científica por meio dos saberes compartilhados acerca de métodos

de pesquisa, estratégias de produção de dados e métodos de análise e interpretação

dos dados.

A articulação entre a discussão metodológica e epistemológica e o aumento

do rigor no desenvolvimento das pesquisas e das interpretações propostas revela-se

fundamental em nossa área, pois além de conferir vitalidade ao pensamento, a

sociologia e em particular a pesquisa social de cunho qualitativo, ainda carente de

legitimidade acadêmica, poderiam beneficiar-se significativamente de uma

objetividade construída.

1 Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Email: [email protected]

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Paulatinamente vem se dando um fortalecimento da metodologia da pesquisa

qualitativa nas ciências sociais, especialmente no que tange aos métodos e às

técnicas utilizadas para a produção de dados por parte dos pesquisadores. Nestas

áreas, é notável a sofisticação dos métodos, a busca por um maior rigor e o

refinamento no uso das técnicas, bem como a ampliação das estratégias de

investigação que os pesquisadores lançam mão no decorrer de seus estudos. No

entanto, permanece como momento crítico da pesquisa qualitativa a fase de análise

dos dados. É frequente deparar-se com trabalhos cujos problemas de pesquisa são

bem construídos e os campos realizados com dedicação e rigor, trazendo à tona

fenômenos ricos em conteúdo e diversidade, mas que são frágeis do ponto de vista

interpretativo por carecerem de métodos de análise bem conduzidos e,

especialmente, consistentes com os problemas de pesquisas que guiaram a

investigação.

Tais considerações feitas até aqui visam introduzir e, se possível, demonstrar

ao leitor a pertinência dos objetivos deste artigo, que são o de, inicialmente,

problematizar as relações entre o problema de pesquisa e a escolha dos métodos de

interpretação dos dados e, na sequência, entre técnicas de produção de dados (termo

que prefiro à coleta de dados) e métodos de interpretação dos dados e, por fim,

apresentar estratégias de análise qualitativa de dados, consistentes com epistemes

interpretativistas, compreensivas e construtivistas.

2 - Opacidade do empírico

Seguimos aqui a proposta de Bachelard de uma instalar uma “dúvida prévia –

e acrescento, contínua – que atinge tanto os fatos quanto suas ligações, tanto a

experiência, quanto a teoria e a lógica, que são crenças compartilhadas por meio de

nossa socialização científica.

O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é ‘o que se poderia achar’ mas é sempre o se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. (Bachelard, 1996, p. 17)

Esta citação conclama a apurar os sentidos e estar alerta contra as adesões

imediatas, aos achados rápidos, aos dados evidentes e às confirmações fáceis de

nossas ideias. Como adverte Goldemberg (1997), um dos principais problemas da

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pesquisa está relacionado à certeza do próprio pesquisador com relação aos seus

dados, pois quanto mais nos sentimos familiarizados com o universo pesquisado, mais

temos que empreender esforços para questionar a nós mesmos e à nossa prática de

pesquisa sociológica.

O controle a ser exercido é tanto em relação aos pressupostos inconscientes,

que justamente por não estarem explícitos ficam protegidos de uma vigilância, quanto

da tendência a produzir precocemente, a partir de pequenos fatos e fragmentos de

vida, uma representação completa acerca do mundo. Impelidos pela urgência em dar

sentido a informações truncadas, o olhar interpretativo preenche lacunas a partir das

experiência pessoais do pesquisador ou de imagens preestabelecidas, construídas a

partir das crenças teóricas compartilhadas. Como diz Becker (2007) “na ausência de

um conhecimento real, nossas representações assumem o controle”.

O ônus do rigor fica com o autor: é a possibilidade de explicitar as normas que regem a coleta e análise dos dados; os pressupostos teóricos e metodológicos que o orientam na interpretação; e o posicionamento no debate epistemológico que garantem o rigor na polissemia que marca o fazer em ciência na contemporaneidade. Spink (SPINK, 1996, p.158)

Não há um único caminho para o exercício deste controle, mas um deles

passa pelo resgate do sujeito epistemológico, capaz de promover uma crítica teórico-

metodológica contínua, do seu processo de pesquisa. Se as opções epistemo-

metodológicas do pesquisador, o conduz a construir um percurso indutivista de

pesquisa, ou seja, partir do que Becker (2007) chama de “escavações do dia a dia”,

como base para construir hipóteses e teorias, isso não o afasta da necessidade de

exercer uma rigorosa reflexão teórica e metodológica. A reflexão sistemática evitar

tomar os dados da observação como expressão da realidade objetiva e uma resposta

ingênua a uma problematização que implica justamente a superação da visão

primeira. O que seria um retorno improvável a uma episteme positivista que toma o

dado independente do sujeito que o produz. De outra parte, se as opções epistemo-

metodológicas do pesquisador o levarem a um percurso dedutivista, na qual as

opções teóricas orientam as problematizações e a construção de hipóteses que o

guiarão no decorrer do processo de investigação; estas opções deverão ser

constantemente confrontadas com a observação para que o dado incomode, perturbe

a teoria, levando à sua reformulação.

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3 – Relação entre abordagens epistemológicas e métodos de pesquisa e

análise de dados

O trabalho de campo, a produção de dados e a observação dos fenômenos

que constituem o núcleo de interesse da pesquisa devem ser pensados e conduzidos

articuladamente. Não se pode ter pressa em finalizar a pesquisa de campo, pois o real

se revela muito lentamente. Mas é preciso, sobretudo, dialogar com os dados, indagar,

observar as diversas possibilidades, mesmos as mais improváveis. É necessário

organizar e formalizar o pensamento, criar hipóteses acerca dos fenômenos

investigados e confrontar com a observação, para provocar o estabelecimento de

conexões que poderiam passar despercebidas. Para isso, a maneira como

interrogamos o fenômeno é crucial. Os dados não são autoexplicativos, eles não

fornecerão respostas e certezas, pois são eles mesmos o resultado de uma

construção do pensamento, que organiza e atribui sentido ao real.

Neste processo de aproximação do real se transita de uma pergunta inicial,

empírica, que tateia e expressa uma intuição de que há algo ali que merece ser

conhecido, até a elaboração de uma problematização desta pergunta de partida.

Assim, ao estabelecer um problema de pesquisa define-se o centro de interesse do

pesquisador, evitando ser capturado pelo olhar do outro acerca do fenômeno a ser

investigado. Sendo que este “outro olhar” pode ser tanto dos nossos interlocutores,

sejam eles nossos pares cientistas ou nossos sujeitos investigados, ou podem advir

de outros campos, como o da política, o da mídia, ou das próprias estatísticas sociais.

Definir um problema de pesquisa é delimitar a forma como abordaremos a

questão proposta, é escolher um jeito de construir um sistema de atribuição de

sentido, ou de explicação, que julga-se capaz de proporcionar uma contribuição para

a compreensão da questão a ser investigada. Desta forma escapa-se da armadilha

de uma interrogação direta ao empírico, que é estéril, que se encerra em si mesma e

não oferece possibilidades de ir além da descrição. Mas principalmente, estabelece-

se uma forma de controlar o próprio pensamento e proceder as escolhas de métodos

e técnicas de pesquisa.

O desafio é construir a consistência interna entre abordagem epistemológica,

desenho da pesquisa, estratégias de investigação, técnicas de produção de dados e

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métodos de análise dos mesmos. É neste sentido que o problema pode operar como

um instrumento poderoso de ruptura com a sociologia espontânea, permitindo, como

defende Berthelot (1990) “inscrever um conjunto de fatos em um sistema de

inteligibilidade”. Os esquemas interpretativos são úteis por permitir, de um lado,

organizar um conjunto de fatos a priori dispersos em um esquema coerente e, de

outro, por apontar para um métodos de investigação e de análise. Tais esquemas de

intelegibilidade implicam um ponto de vista sobre a realidade social e sobre o processo

de produção do conhecimento, ou seja, são fundados em perspectivas ontológicas e

epistemológicas. Berthelot distingue seis esquemas explicativos nas ciências sociais:

o causal, o funcional, o estrutural, o hermenêutico, o actancial e o dialético, integrados

por um núcleo lógico, uma forma lógica e por programas e subprogramas de pesquisa

(BERTHELOT, 1990; CAPELLER, 2010).

Perspectivas fundadas em uma ontologia realista partilham a crença em uma

realidade existente, observável ou não, que independe de nossa capacidade de

apreendê-la. A partir deste enunciado geral, dois polos podem ser identificados, entre

os quais situam-se um espectro tão amplo, quanto diverso de posições intermediárias.

De um lado, a afirmação de um real passível de ser apreendido e disponível para ser

explicado e elucidado, desde que bem estabelecidas as regras do conhecer. Do ponto

de vista epistemológico, seja por uma vertente empirista, seja por uma vertente

racionalista, o alcance da verdade, aqui entendida como correspondência ao real em

um caso e coerência em outro, depende do papel ativo do sujeito cognoscente e do

cumprimento das regras metodológicas pactuadas na comunidade científica. No outro

extremo, assume-se que o real somente adquire significado mediado pela percepção

que os indivíduos têm sobre o mundo que o cerca, admitindo-se uma pluralidade de

sentidos. Não se trata de negar a existência de um real, tangível ou intangível, mas

sim da possibilidade de apreensão imediata do mesmo.

Enfoques interpretativistas presentes em abordagens fenomenológicas,

interacionionistas e hermenêuticas, compartilham a ênfase no significado da ação,

buscando apreender os processos de produção de sentidos, o contexto interpretativo

e o compartilhamento de sentidos construídos intersubjetivamente. Para estas

perspectivas, os objetos, os eventos e as pessoas não possuem significados em si,

apenas aqueles que lhes são atribuídos interpretativamente e em conexão com o

mundo vivido compartilhado, portanto sendo passíveis de mudanças de sentido e

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ressignificações. A análise compreensiva supõe que o investigador coloque-se no

espaço referencial dos atores para que os sentidos possam ser apreendidos. Neste

caso, as representações sociais constituiriam o locus privilegiado para a busca dos

sentidos e a interpretação, permitiria apreender, pela triangulação, as múltiplas

significações concomitantes e seus respectivos contextos interpretativos,

reintegrando-as em um todo coerente.

De outra parte, perspectivas não realistas questionam a existência de uma

coisa-em-si, independente do sujeito que a observa, ou ao menos deslocam o centro

de interesse para os objetos fenomenais. Não haveria como acessar objetos em si,

apenas o mundo fenomenal que aparece organizado por nossa maneira de ver.

A noção de real parece funcionar como uma maneira de anunciar uma interpretação privilegiada; assim se dirá que um sonho não é ‘real’...Tentar dizer o que é o real em última instância é procurar um discurso, uma interpretação à qual se daria um estatuto privilegiado. Dizer que ‘isso realmente é isso’ é privilegiar a segunda interpretação (isso) sobre a primeira (isso). (FOUREZ, 1995, 55)

A verdade é considerada relativa às estruturas conceituais que cada um

possui, uma vez que as observações são dependentes das teorias e não refletiria a

coisa em si, nem as representações sociais seriam o locus da busca do sentido

compartilhado intersubjetivamente. A verdade em termos pragmáticos não é definida

a partir do objeto, mas dos projetos aos quais se vincula, aceitando-se portanto uma

multiplicidade de interpretações igualmente válidas.

Uma vez que o empírico é sobre-determinado pela teoria, ou pelos projetos

que orientam a ação, as observações sempre permitirão múltiplas significações, pois

“Para qualquer conjunto de dados, inúmeras teorias que impliquem naqueles dados

podem ser construídas; para todo conjunto de pontos experimentais sobre um gráfico,

qualquer número de curvas pode ser desenhado sobre eles” (LABURU et al, 2001, p.

158). Trata-se da construção de sistemas de intelegibilidades concomitantes e

distintos e, portanto, incomensuráveis, igualmente sustentados por observações

empíricas e dados seletivamente potencializados ou minimizados em função da

indagações elaboradas. Para Bloor (2009), em consonância com esta perspectiva, a

verdade é estabelecida socialmente pois, quando determinadas crenças passam a ser

aceitas pela coletividade, devido à credibilidade social conquistada e a sua

capacidade de funcionar com o grau de precisão esperado, as mesmas são

institucionalizadas.

Rodrigo
Destacar
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Cada uma destas perspectivas proporciona formas distintas abordar o real e,

portanto, de definir a problemática a ser analisada. O delineamento do problema de

pesquisa, orientado por uma abordagem, permite fazer escolhas mais adequadas

sobre como proceder nas fases de produção e de análise dos dados, pois aponta a

maneira como apreendemos a realidade, o que nos interessa observar na mesma, o

que inclui definir questões de amostragem e como nos posicionamos frente aos

modos de conhecer.

Se o fenômeno analisado é problematizado à luz de uma perspectiva

relacional, por exemplo, o desenho de pesquisa deve permitir apreender o espaço de

relações no qual o fenômeno que se quer conhecer está inserido e qual a posição

ocupada por ele, e com que efeitos. A análise não se restringirá ao exame das

entidades e seus atributos, sejam organizações ou indivíduos, mas privilegiará o

espaço de relações na qual as mesmas, estão situadas, as posições por elas

ocupadas neste espaço, os laços que os vinculam e os conteúdos que circulam como

fluxo entre os integrantes do campo.

De outra feita, se a abordagem escolhida é a crítico-explicativa o ponto de

partida é a busca de superação das aparências mais imediatas e a identificação de

relações, processos e variáveis ocultas àqueles que lançam um olhar mais rápido. É

preciso esclarecer, que não se trata de desqualificar o conhecimento que os sujeitos

possuem acerca de suas vidas, mas de estabelecer um desenho de pesquisa que

permita reunir múltiplas e distintas perspectivas acerca do mesmo objeto, que supere

o que Becker (2007) denomina de distribuição diferencial do conhecimento.

Poderíamos ir adiante nos exemplos, mas acredito não ser necessário, para

ilustrar o meu argumento de que um tempo dedicado a explicitação das opções

teóricas e dos pressupostos epistemológicos, nem sempre conscientes, apontaria

com maior facilidade os caminhos de investigação a serem seguidos. Estas definições

vão além do desenho da pesquisa, elas orientam igualmente o tipo de técnicas de

produção de dados que utilizarei e também os métodos de análise dos dados assim

obtidos. Supondo, por exemplo, a opção por uma abordagem interpretativista, cujo

pressuposto é de que a compreensão adequada dos fenômenos sociais se dá pela

apreensão das relações de sentidos postas pelos sujeitos da ação, as técnicas de

pesquisa mais pertinentes seriam entrevistas pouco estruturadas, do tipo narrativa,

histórias de vida ou episódica, que permitiram aos sujeitos expressarem-se em seus

Rodrigo
Destacar
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próprios termos e mobilizando as dimensão que jugam pertinentes. Já em uma

abordagem construtivista o centro da problematização não é elaborar uma explicação

acerca do fenômeno, mas investigar como este fenômeno emerge como resultado de

controvérsias e disputas discursivas que buscam estabelecer a legitimidade de uma

interpretação frente às demais. Neste caso, dependendo do objeto empírico, pode-se

lançar mão de pesquisa documental ou entrevistas, novamente, com baixo grau de

estruturação. Em ambos os casos, o tipo de análise mais pertinente seria algo entre

análise de discurso, análise de conteúdo, análise de retórica, análise de enunciação

ou argumentação.

4 - As relações entre os problemas de pesquisa e a escolha dos métodos

de interpretação dos dados

Nesta seção propomos acurar a reflexão acerca das escolhas dos métodos

de análise de dados à luz das abordagens escolhidas na delimitação do problema de

pesquisa. A análise dos dados ainda permanece como uma das áreas mais frágeis da

pesquisa qualitativa. Como afirma Heloisa Martins

Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados. A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que, por sua vez, depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva. A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisa os dados — isto é, como se atribui a eles significados — sendo mais fácil ensinar a coletá-los ou a realizar trabalho de campo. A intuição aqui mencionada não é um dom, mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador. (2004, p. 292)

Do ponto de vista metodológico a análise de discurso pode ser uma escolha

adequada quando o problema de pesquisa envolve uma reflexão acerca das

condições de produção do texto, dos sentidos que ele produz e da forma como tais

sentidos são gerados2. Para tal, a análise do discurso não se restringe ao que está

2 Texto está sendo aqui entendido como o locus no qual o discurso se expressa, seja sob a forma imagética, oral ou escrita (Gill, 2011). Pode-se fazer uso combinado de distintas fontes de materiais, desde fontes secundárias, como jornais, textos impressos, fotografias e vídeos, até fontes primárias, produzidas pelo pesquisador, como entrevistas narrativas, histórias de vida, entrevistas episódicas e outros textos produzidos pelo próprio sujeito pesquisado, tais como cartas e diários. Sobre estas técnicas de entrevistas e outras ver Flick (2004 e 2011); Gaskell (2011); Jovchelovich e Bauer (2011); Loizos (2011).

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manifesto texto, buscando identificar as relações de força entre interlocutores, via

apreensão das posições relativas de ambos, das relações de sentido mobilizadas com

outros discursos (intertextualidade), das relações de antecipação acerca da reação

esperada do interlocutor. A análise de discurso é relativamente recente, foi proposta

por Pecheux nos anos 1960 como crítica à análise conteúdo tradicional de perfil

quantitativo, articulando as determinações históricas da semântica e os elementos

simbólicos presentes na enunciação. O discurso é considerado determinado pelas

condições de sua produção, mas também pelo sistema linguístico, que é a forma de

existir do discurso e que constitui uma realidade própria. (MINAYO,1993; GILL, 2011;

ORLANDI, 2005; PEUCHEUX, 1997).

Do ponto de vista epistemológico, a análise de discurso tem alguns

pressupostos implicados, ligados às suas origens3. A primeira dela é que a linguagem

não é uma expressão neutra de uma realidade objetiva, ela vai além do texto

mobilizando sentidos produzidos fora do texto e trazidos pela memória coletiva. Um

segundo pressuposto forte é que os enunciados possuem múltiplas leituras uma vez

que os sentidos não são dados pela palavra, mas pelas intepretações, que por sua

vez são construídas contextualmente e situacionalmente tanto pelo sujeito que produz

o texto, quanto por aquele que apreende o texto, incluindo o analista de discurso. Um

terceiro pressuposto é que os discursos buscam ocultar sua dependência de

formações ideológicas, que estão presentes em todos os discursos, uma vez que o

sentido é produzido em meio às relações de forças que expressam posições

ideológicas em disputa (PEUCHEX, 1997; ORLANDI, 2005, MINAYO, 1993)4.

Gilbert e Mulkay (1984) discutem o uso da análise de discurso a partir de uma

abordagem distinta da anterior, pois ao invés de considerarem os discursos como

expressão de posições ideológicas, adotam o relativismo metodológico. Nesta

3 Segundo Orlandi (2005) a Análise de discurso se constituiu nos anos sessenta a partir de três áreas disciplinares, quais sejam tem em sua origem influencias do materialismo histórico – que traz a dimensão histórica e ideológica na produção de sentidos –, da linguística – aportando o pressuposto da “não-transparência da linguagem”, da análise da enunciação e dos recursos linguísticos de persuasão e psicanálise – e da psicanálise para pensar o sujeito do discurso “descentrado” e afetado tanto pelas dimensões simbólicas, quanto ideológicas presentes no texto. Ver também Pecheux (2005). 4 Para uma crítica do análise de discurso, limitações e aspectos controversos, especialmente quanto a operacionalidade do mesmo, ver Wooffitt (2005), Minayo (1993) e Gill (2011). Wooffitt, além de apresentar considerações críticas sobre a análise de discurso, com base em exemplos de estudos empíricos como os de Collins e Pinch, defende o uso da análise de conversação, demonstrando que a partir da análise interacional é possível apreender as relações de poder e os aspectos macros que produzem os sentidos mobilizados na conversa.

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perspectiva o pressuposto central é que os discursos dos participantes envolvidos em

uma disputa em torno da fixação de sentidos são flexíveis e altamente dependentes

do contexto da sua produção. Mais ainda, quando o que está em disputa é o próprio

fato, ou sua definição e reconhecimento como evento crucial, a questão relevante

torna-se compreender as construções de fatos em disputa. Assim o cientista social

não podendo recorrer aos fatos para explicar esta disputa (por não possuir

conhecimento suficiente para distinguir qual relato reproduz fielmente uma realidade,

daqueles relatos parciais ou distorcidos), ou não querendo (por adotar uma posição

relativista), usa a análise de discurso como forma de apreender o processo de

construção, disputa e negociação dos fatos. Desde esta perspectiva, ainda que muitos

relatos sejam convergentes, isto é que regularidades sejam identificadas em

diferentes falas, é necessário problematizá-los, pois este resultado pode decorrer do

compartilhamento de um mesmo contexto e não por expressarem uma mesma e única

realidade objetiva. Assim como na perspectiva anterior, não se busca por meio do

discurso revelar a realidade social, mas sim compreender as controvérsias e disputas

presentes na produção dos fatos; de que forma os relatos e as crenças são

socialmente geradas, e como estes relatos são organizados contextualmente para

sustentar as ações e as crenças dos indivíduos de forma apropriada. Gilbert e Mulkay

apoiam suas proposições acerca da utilização da análise de discurso, nos estudos

sociais de ciência e tecnologia que partilham perspectivas construtivistas, sendo que

além de seus próprios trabalhos sobre a comunidade científica, referem também aos

estudos de Knorr-Cetina, Latour, Callon e Woolgar5.

De outro modo, se o problema de pesquisa delineado pretende adotar uma

perspectiva micro, com ênfase na interpretação da vida das pessoas, dos modos

como os sentidos que amparam suas práticas e crenças são produzidas, compatível

com uma esquema interpretativo interacionista, a análise de narrativas permite

reconstruir, a partir da perspectiva e estruturas de referência do interlocutor,

acontecimentos sociais e os sentidos envolvidos.

5 O método da análise de discurso pode ser combinado com análise de argumentação (LIAKOPOULOS, 2011) e análise de conversação ou enunciação (GILL, 2011; WOFFITT, 2005; MINAYO, 1993).

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Segundo Jovchelovitch e Bauer (2011) a entrevista narrativa tem a vantagem

de preservar as perspectivas particulares, permitindo ao interlocutor colocar sua

experiência em uma sequência articulada pelos sentidos atribuídos e por uma

avaliação, que envolve uma reflexão sobre a própria trajetória, organizada em seus

próprios termos. Diferentemente de um roteiro de entrevista com perguntas

formuladas pelo pesquisador, no qual a posição do entrevistado é de espera pelo

estímulo da próxima pergunta que indicará o caminho do seu relato e que oferece uma

estrutura para a sua fala, a narrativa exige uma postura mais ativa por parte do

interlocutor, que deverá selecionar os eventos relevantes, reconstruir ações, lugares

e tempos e ligá-los numa trajetória coerente por meio de sentidos e motivações.

Os autores apresentam três possibilidades de análise de narrativas. A

primeira é a análise reconstrutiva, proposta de Fritz Schütze e resumida pela autora,

a qual busca reconstruir trajetórias coletivas, por meio da identificação de trajetórias

individuais compartilhadas. A partir da separação na narrativa dos “elementos

indexados” (eventos, ações, contextos, etc.) e dos “não-indexados” (juízos, valores,

argumentações, etc.) procede-se, tanto a reconstrução das trajetórias a partir dos

primeiros, quanto a recomposição das teorias operativas, a partir dos elementos não-

indexados. A segunda propõe uma análise temática, cuja codificação é inteiramente

construída a partir da narrativa, aproximando-se da análise temática de conteúdo

descrita por Minayo (2003), porém produzida indutivamente. A estratégia utilizada é a

da redução de sentido, ou seja, a partir da transcrição integral da narrativa busca-se

identificar unidades de sentido no texto, que é reorganizado em sentenças sintéticas,

progressivamente até conseguir chegar em palavras-chave, que permitem a

categorização e codificação do texto. Por fim, estas codificações de cada entrevistas

podem ser organizadas em um sistema geral de categorização para o conjunto das

narrativas. A terceira, denominada de análise estruturalista, privilegia a identificação

de elementos presentes em todas narrativas, tais como ações, personagens

(protagonistas e testemunhas) situações, cronologias (início, crises, estabilizações,

desfechos) e a ordenação destes elementos nas narrativas, organizada em torno de

um enredo que lhe dá coerência e significado. As narrativas podem ser comparadas

a partir destes elementos permitindo identificar similaridades entre as mesmas e

cursos singulares.

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Spink (1994), igualmente assumindo uma perspectiva interacional que ela

define como microgênese, compartilha com o interacionismo simbólico o pressuposto

de que a realidade só aparece mediada pela percepção dos indivíduos. Portanto

caberia ao pesquisador trabalhar tanto ao nível micro, triangulando e interpretando os

significados, quanto apreendendo o contexto interpretativo no qual os sentidos são

gerados, para aproximar os horizontes e permitir uma melhor interpretação. Os

discursos são entendidos como práticas geradoras de realidades psicológicas e

sociais. Spink propõe analisar, articuladamente, três escalas ou tempos, a micro, na

qual as interações sociais presidem a atribuição intersubjetiva de sentidos, e a do

contexto cultural e social, que desdobra-se em dois tempos:

(...) o tempo histórico em que se inscrevem os conteúdos imaginários derivados das formações discursivas de diferentes épocas; e o tempo vivido em que se inscrevem os conteúdos derivados dos processos de socialização primária e secundária. (SPINK, 1994, p. 151)

Na escala das interações pessoais, a autora propõe entrevistas

organizadas em tornos de blocos temáticos vinculados ao problema de pesquisa

proposto, com perguntas que investigam os significados. Na escala dos contextos,

nível em que indivíduos e grupos compartilham experiências, por meio de várias

entrevistas seria possível apreender o que há de comum, as regularidades, para então

chegar nas representações sociais. Na análise dos discursos, a autora salienta a

necessidade de considerar (e incluir na análise) o ato da entrevista como processo

interacional, na qual o entrevistado interpreta a própria entrevista e as perguntas a

partir de seus pressupostos; uma vez que o discurso é intersubjetivo é importante

apreender quem são os interlocutores, explícitos ou implícitos para quem o texto

produzido se dirige; empreender uma análise linguística do texto, identificando

associações de ideias, ambiguidades, contradições, inconsistências e incoerências

e, por fim, fazer uma análise da retórica, identificando os argumentos e seus apoios.

Interessa salientar que em ambas as propostas vislumbra-se técnicas de

análise articuladas ao método de análise central, no caso de Jovchelovitch e Bauer

(2011) à análise de narrativa se soma a analise temática de conteúdo, a análise dos

elementos estruturantes da narrativa e a análise das trajetórias e teorias objetivas

subjacentes. No caso de Spink (1994) a análise de discurso proposta implica tanto a

dimensão linguística do discurso, por meio de uma análise de enunciação, quanto o

exame das formações discursivas aos quais se vinculam, além do uso da técnica de

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análise de argumentação. Análise de enunciação, análise de retórica e análise de

argumentação são técnicas que oferecem maior grau de formalização nos

procedimentos de exame do texto, o que por vezes, se torna pouco realista e sua

principal fonte de fragilidade. Ainda assim, podem ser utilizadas em combinação com

os métodos de análise de discurso e de conteúdo, ou servir como referência para

aprofundar as reflexões acerca do papel da análise da retórica nos mesmos.

A análise de enunciação, segundo Minayo (1993) tem como pressuposto o

reconhecimento da comunicação como um processo e do discurso como “palavra em

ato”, ou seja, no ato da produção da palavra elabora-se um sentido e se transforma.

Para compreender este processo é necessário considerar as condições de produção

da palavra, que envolvem a tríade locutor-objeto-interlocutor, quem enuncia, o que é

enunciado e para quem se destina esta fala. A análise de enunciação ainda contempla

a dimensão sintática e as estruturas gramaticais do texto, o arranjo ou fluxo do

discurso, os elementos atípicos tais como silêncios, repetições, lapsos e omissões e

as figuras de retórica, como metáforas, hipérboles e metonímias.

A análise de argumentação, segundo Liakopoulos, tem por objetivo

“documentar a maneira como afirmações são estruturadas dentro de um texto

discursivo, e avaliar sua solidez” (2011, p. 219). O argumento são as afirmações,

segundo o autor escritas ou verbais, porém poderíamos acrescentar as imagéticas e

as performáticas, que visam a afirmar ou refutar uma afirmação e a persuadir um

público. A proposta de análise recai sobre os aspectos estruturais do argumento6, ao

assumir que há elementos invariantes presentes no mesmo, enquanto o contexto

importa para explicar a maior ou menor legitimidade que um tipo de argumento pode

obter em campos distintos. Tipicamente a estrutura de argumento seria composta por

proposição, dados, garantias do argumento (substantivas, motivacionais ou de

autoridade) e apoios, sendo que os dados precederiam a proposição. A fragilidade do

modelo reside tanto na simplicidade excessiva do modelo, pouco adequado para

situações complexas, quanto no pressuposto de que há uma estrutura argumentativa

invariante ao contexto, hipótese não corroborada por outros estudos.

6 O autor apoia-se amplamente em para expor o modelo de estrutura de argumento. Ver Liakopoulos (2011).

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A análise de retórica em muitos aspectos se aproxima da análise de

argumentação, pois busca estabelecer os elementos de persuasão mobilizados no

texto, porém assumindo hipótese contrária de que cada fala retórica varia

contextualmente. A fala retórica é considerada como produtora de realidade, ao

valorizar determinados temas e desqualificar outros, possuindo portanto uma

dimensão ideológica. Leach (2011) aponta alguns critérios para o análise de retórica,

como a definição da “situação retórica” ou contexto, que envolve a identificação do

público para quem ela foi construída. As categorias propostas para a análise são

oriundas do campo da produção da retórica, carecendo de maior sofisticação analítica,

e estão ligada à qualidade da fala, que pode ser do tipo emocional (pathos), moral ou

ético (ethos) e racional ou lógico (logus). Estas qualidades podem ser mobilizadas

conjuntamente em um mesmo texto e a ênfase em uma delas pode ser associado ao

público a quem se dirige.

Por fim, o método de análise de conteúdo por sua versatilidade e capacidade

de transformar-se ao longo do tempo, integrando um conjunto variado de técnicas,

oferece muitas possibilidade de aplicação. Esta flexibilidade e baixo grau de

formalização, pode ser entendida como resultado do próprio método, que segundo

Bardin (1977) apresenta apenas algumas regras de base, devendo ser reinventada e

adequada ao domínio e objetivos de cada investigação.

Desde mensagens linguística em forma de ícones até comunicações em três dimensões, quanto mais o código se torna complexo, ou instável, ou mal explicado, maior terá de ser o esforço do analista no sentido de uma interpretação com vista à elaboração de técnicas novas. E quanto mais o objeto de análise e natureza de suas interpretações forem invulgares e mesmo insólitas, maiores dificuldades existirão em colher elementos nas análises já realizadas para nelas se inspirar. (BARDIN, 1977, p. 32)

Bardin alinha-se à abordagens explicativas e crítico-explicativas, citando

como referentes epistemológicos do método autores como Durkheim, Bourdieu e

Bachelard, ao sustentar que a análise de conteúdo permite ao pesquisador superar a

ilusão da transparência e da compreensão espontânea. Assim, a análise sistemática

do material visaria ultrapassar as incertezas da apreensão primeira do material,

enriquecer a leitura do mesmo buscando evidências que permitam o diálogo com as

hipóteses, bem como a integração das descobertas empíricas com a teoria. Bardin foi

crítica da análise de discurso emergente nos anos sessenta, chegando a apontar uma

‘Invasão do campo científico [da sociologia] por áreas afins como a semiótica e a

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linguística”. Em resposta às crítica quanto ao caráter quantitativista e positivista da

análise de conteúdo, que ela própria demonstra que dominaram o método desde sua

origem até os anos sessenta, a autora integra entre o rol de técnica do análise de

conteúdo a análise de enunciação, a análise retórica e a análise de discurso.7 Para

Bardin a análise de conteúdo pode ser definida como:

Um conjunto de técnicas de análise da comunicação visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens. (BARDIN, 1977, p. 42)

Acrescente-se que as reformulações do método levaram ao desenvolvimento

de técnicas mais qualitativas, como a análise temática que busca não mensurar a

frequência das ocorrência, mas apreender significados manifestos e latentes, que

ultrapassam o conteúdo manifesto no texto. A análise temática reorganiza o texto

transversalmente a partir das unidades de significado, definidos a partir do problema

de pesquisa, hipóteses e teorias mobilizadas na mesma, permitindo codificar o texto

exaustivamente. Desta forma a análise temática de conteúdo, como método de

geração de inferências, voltada para a descoberta de núcleos de sentido revela-se um

método de análise adequado para problemas de pesquisa de corte compreensivo.

Entre as fragilidades do método, além de ter o centro de análise no texto e

no conteúdo manifesto, outra dificuldade do método de análise de conteúdo consiste

no corte transversal, que reorganiza o texto a partir das categorias de análise

construídas pelo pesquisador, procedimento que pode fragmentar o texto e dificultar

o tratamento das ambiguidades e inconsistências internas aos mesmo. Uma

possibilidade, com vistas a minorar tais problemas, consiste na articulação com a

análise de enunciação, na qual a estrutura do texto é preservada, uma vez que cada

entrevista é tomada como uma totalidade singular. Resta conciliar os pressupostos de

uma e outra estratégia analítica, pois na última (enunciação), a análise é produzida a

partir do texto, sem qualquer hipótese interpretativa prévia.

7 Não obstante esta tentativa de trazer a análise de discurso para o campo da análise de conteúdo, os analistas de discurso afirmaram-se como método de análise distinto, reafirmando as críticas ao método de Bardin. Sobre este embate ver Gill (2011) e Minayo (1993).

Rodrigo
Destacar
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17

Em suma, o argumento central deste texto é que é possível articular com rigor

e criatividade diferentes técnicas, pois não há caminho único para orientar a análise

dos dados produzidos na pesquisa, contudo, isso requer o uso controlado e

consciente das diferentes possibilidades abertas pelos métodos qualitativos de análise

de dados.

***

Este texto buscou promover, ainda que brevemente, uma articulação entre

momentos do processo de pesquisa que, se do ponto de vista formal aparecem

separados, são integrados umbilicalmente. A definição do problema de pesquisa, para

que ultrapasse o nível inicial de uma pergunta de partida de cunho empírico, carece

de uma abordagem teórica e epistemológica capaz de apontar como o objeto empírico

será abordado, ou dito de outra forma, como se converte um problema social em um

problema científico. Mas para que a pesquisa seja capaz de gerar os elementos

necessários para dialogar com o problema de pesquisa e prover respostas ao mesmo,

as escolhas metodológicas, incluindo técnicas de produção de dados precisam estar

em sintonia. Contudo, entre a rigidez do cumprimento de passos e a abordagem

impressionista dos dados do campo, o domínio dos fundamentos epistemológicos das

técnicas permite ao pesquisador dominar os métodos de análise de dados e construir

um caminho analítico para orientar a leitura dos dados.

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