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UNIrevista - Vol. 1, n° 1: 32-46 (janeiro 2006) ISSN 1809-4651

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A análise documental no contexto da

metodologia qualitativa: uma abordagem a

partir da experiência de pesquisa do Programa

de Pós-Graduação em Educação da Unisinos

Berenice Corsetti

Doutora em Educação

Unisinos, RS

Resumo Abstract O texto trata da abordagem da técnica de análise

documental utilizada no processo de pesquisa, no

contexto da metodologia qualitativa. Caracteriza a

forma como esse procedimento é utilizado nas

pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-

Graduação em Educação da Unisinos e desenvolve

uma reflexão sobre a pesquisa na área educacional,

sobretudo na sua relação com a História. O trabalho

apresenta uma apreciação das fontes documentais,

especialmente no que diz respeito às investigações

realizadas no campo da História da Educação e

Políticas Educacionais, procurando explicitar as novas

abordagens relacionadas às novas tipologias de fontes

empregadas nas pesquisas. Finalmente, o artigo

apresenta considerações sobre a metodologia da

pesquisa relacionada com o uso da análise

documental, na investigação histórico-educacional.

The text discusses the technique of document analysis

used for research purposes in the context of qualitative

methodology. The present work characterizes the way

such procedure is used for researches developed on the

Department of Graduate Studies in Education at Unisinos,

and develops a reflection upon the research on education,

especially in its relationship with History. This work

presents an appreciation of documental sources, especially

concerning investigations on the fields of History of

Education and Educational Policies, on an attempt to

explicit the new approaches related to the new kinds of

sources employed for research. The article also presents

considerations about the research methodology related to

the use of documental analysis in the historical-

educational investigation.

Palavras-chave: análise documental, metodologia

qualitativa, educação, história.

Key words: documental analysis, qualitative methodology,

education, history.

Introdução

A temática que é alvo de nosso interesse, neste artigo, partiu de uma problematização apontada pela

Unidade de Pesquisa e Pós-Graduação da Unisinos, quando da realização do Seminário Pesquisando a

Pesquisa – Reflexão sobre Metodologias, ao encaminhar-nos o seguinte questionamento: de que forma, na

metodologia qualitativa, a técnica de análise documental é utilizada na pesquisa do Programa de Pós-

Graduação em Educação e que resultados são alcançados?

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Procuramos responder a essa indagação a partir do desenvolvimento deste trabalho que, inicialmente

apresenta uma visão bastante panorâmica sobre a forma como esse procedimento é utilizado nas pesquisas

desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos,

desenvolvendo, após, uma reflexão sobre a pesquisa na área educacional, sobretudo na sua relação com a

História. O trabalho apresenta, também, uma apreciação das fontes documentais, especialmente no que diz

respeito às investigações realizadas no campo da História da Educação e Políticas Educacionais, procurando

explicitar as novas abordagens relacionadas às novas tipologias de fontes empregadas nas pesquisas.

Finalmente, o artigo apresenta considerações sobre a metodologia da pesquisa relacionada com o uso da

análise documental, na investigação histórico-educacional.

No conjunto de nossas reflexões, estaremos dando um destaque especial para as pesquisas de caráter

historiográfico, por serem aquelas às quais vimos privilegiando, como historiadora dedicada ao campo da

educação.

A análise documental no Programa de Pós-Graduação em Educação da

UNISINOS

Nesta parte de nosso trabalho procuramos caracterizar, de forma bastante panorâmica, a adoção da análise

documental pelas diversas linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS. A

intenção é delinear um breve perfil da utilização desse procedimento técnico-metodológico, sem entrar em

detalhamentos que exigiriam um outro tipo de trabalho.

Nessa direção, podemos colocar que a análise documental é utilizada, com suas especificidades, por todas

as Linhas de Pesquisa do Programa. A sua realização está vinculada aos objetos de investigação escolhidos

pelos pesquisadores que as integram.

No que tange à linha de pesquisa intitulada Práticas Pedagógicas e Formação do Educador, as pesquisas

realizadas são de cunho etnográfico, que utiliza a análise documental numa triangulação com a entrevista e

com a observação. Os principais acervos utilizados são: documentos legais (sobretudo a legislação), os

diferentes materiais escolares (cadernos e livros escolares), registros de professores e alunos, enfim, toda a

documentação que permita recuperar as práticas pedagógicas e a formação do educador.

Na linha de pesquisa denominada Currículo, Cultura e Sociedade destaca-se a pesquisa de caráter

historiográfico relacionada à História Cultural. Um dos aspectos privilegiados é o processo escolar relativos à

imigrantes. Entre o acervo documental destaca-se toda a documentação relacionada à imigração,

particularmente a alemã, documentação esta localizada no Núcleo de Estudos Teuto-Brasileiros da

UNISINOS, mas, também, materiais recolhidos junto à comunidades regionais, como jornais, materiais

didáticos, entre outros.

Na linha de pesquisa denominada Educação e processos de Exclusão Social, entre as pesquisas que

envolvem análise documental, destacamos os trabalho de investigação realizados a partir do acervo de

Orçamento Participativo do Estado do Rio Grande do Sul, caracterizando pesquisas relacionadas à educação

popular, particularmente preocupadas com o foco da participação popular. O acervo do Orçamento

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Participativo, experiência política e social que marcou a história política gaúcha, encontra-se na UNISINOS,

o que amplia as possibilidades de investigação.

A linha de pesquisa intitulada Educação, História e Políticas destaca-se no conjunto do Programa de Pós-

Graduação em Educação da UNISINOS, em termos da predominância de investigações relacionadas com a

análise documental. Caracterizam-se por ser pesquisas historiográficas, que utilizam fontes primárias de

largo espectro, vinculadas a objetos situados no plano das políticas educacionais, sistemas de ensino,

instituições educativas, educação na imprensa, história das disciplinas escolares (e acadêmicas), história do

currículo, entre outros campos investigativos bastante profícuos, que têm inclusive possibilitado o diálogo

com pesquisadores latino-americanos e europeus, em especial pesquisadores de Portugal, com os quais têm

sido realizadas parcerias interessantes.. Os principais acervos relacionam tanto fontes oficiais como novas

fontes, decorrentes do alargamento dos campos de estudo.

As pesquisas historiográficas – algumas considerações iniciais

Ao iniciarmos a explicitação de alguns dos aspectos que marcam a análise documental no plano das

pesquisas historiográficas, entendemos como relevante apresentar alguns elementos que nos auxiliam a

perceber suas características. O primeiro deles situa-se no fato de que os educadores, profundamente

imbricados em uma tradição multidisciplinar, vêm sistematizando conhecimentos, formulando teorias e

desenvolvendo tecnologias muitas vezes através de um processo de agregação ou articulação de diferentes

tradições disciplinares. Esse desenvolvimento em uma direção caracterizadamente multidisciplinar (ou

interdisciplinar) é que coloca a discussão sobre as condições de constituição de uma identidade

epistemológica própria ao grupo educacional.

Em virtude da historicidade do fenômeno educativo cujas raízes estão relacionadas com as origens do

próprio homem, o debate historiográfico tem desdobramentos significativos para a pesquisa educacional,

uma vez que o significado da educação está intimadamente entrelaçado ao significado da História.

Concordamos com Saviani quando nos diz que:

[...] no âmbito da investigação histórico-educativa essa implicação é duplamente reforçada: do

ponto de vista do objeto, em razão da determinação histórica que se exerce sobre o fenômeno

educativo; e do ponto de vista do enfoque, dado que pesquisar em história da educação é investigar

o objeto educação sob a perspectiva histórica (Saviani, 1998, p. 12).

Apesar dessas condições, percebe-se que o reconhecimento da educação como um domínio da investigação

histórica não é questão consensual entre os estudiosos da História. Um exemplo disso pode ser dado

através da observação da obra intitulada Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia, organizada

por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (1997). O trabalho está estruturado em três partes, mais

quais se distribuem dezenove capítulos. Os cinco capítulos que integram a Parte I, referente aos “Territórios

do Historiador”, tratam de História Econômica, História Social, História e Poder, História das Idéias e História

das Mentalidades e História Cultural. A História da Educação não é apontada como um território da História e

nem tampouco é citada no âmbito dos territórios indicados como a História Social, a História Cultural ou a

História das Idéias.

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A Parte II trata dos “Campos de Investigação e Linhas de Pesquisa”, onde dez capítulos enfocam: História

Agrária, História Urbana, História das Paisagens, História Empresarial, História da Família e Demografia

Histórica, História do Cotidiano e da Vida Privada, História das Mulheres, História e Sexualidade, História e

Etnia e História das religiões e Religiosidades. Também nesta parte, a História da Educação não é

mencionada.

Na Parte III, que enfoca os “Modelos Teóricos e Novos Instrumentos Metodológicos: Alguns Exemplos”,

vemos a indicação de: História e Modelos, História e Análise de Textos, História e Imagem: Os Exemplos da

Fotografia e do e do Cinema e História e Informática: O uso do Computador. Mais uma vez, nenhuma

menção à História da Educação.

Como podemos perceber, através do exemplo utilizado, a História da Educação vem enfrentando esse tipo

de dificuldade em relação a uma parte da comunidade dos historiadores. Numa publicação de reconhecida

qualidade, em termos da discussão teórica e metodológica da História, encabeçada por historiadores de

expressão como os que organizaram os “Domínios da História”, a inexistência de seu reconhecimento com

“território” da História causa estranheza, sobretudo pelo expressivo crescimento dos estudos e pesquisas na

área da História da Educação.

Mesmo com a dificuldade ocorrida a partir de uma parcela dos historiadores em reconhecer a educação

como um domínio da investigação histórica, pode-se afirmar que as questões teórico-metodológicas da

Educação hoje não se distinguem daquelas que se manifestam em qualquer outra pesquisa histórica. Os

educadores passaram a entrar nos arquivos, com a curiosidade inquieta por novos temas, com uma

capacidade de interlocução mais madura com outras áreas do conhecimento e sobretudo com o

arrefecimento do viés imediatista, utilitarista e moralista que marcou o itinerário da História da Educação em

nossos meios acadêmicos. Perde terreno, assim, uma abordagem da História da Educação centrada

fundamentalmente nas idéias pedagógicas e/ou numa história institucional mais adequada à legitimação

política e ideológica do que à apropriação crítica e interveniente do passado.

Sobre as fontes e seu tratamento metodológico

Na História da Educação, pelo tipo de pesquisa que predominantemente se fazia (de um lado, investigações

sobre as transformações ocorridas ao longo do tempo na organização escolar e, de outro, o estudo do

pensamento pedagógico), recorreu-se, durante muito tempo, exclusivamente às fontes oficiais escritas:

legislação e atos do poder executivo, discussões parlamentares, atas, relatórios escritos por autoridades

(presidentes de província, inspetores escolares, etc.), regulamentos, programas de ensino e estatísticas.

Também tinham muita importância as próprias obras que os educadores ou pensadores mais eminentes de

cada época haviam escrito. O enfoque predominante vinculava-se, caracteristicamente, ao que se

convencionou denominar, no plano teórico-metodológico da História, como Histórica Oficial.

Com o alargamento dos temas abordados pela História da Educação, os pesquisadores foram, aos poucos,

também ampliando o uso das fontes. Tal como ocorreu em outros domínios da História, os historiadores da

educação incorporaram a idéia de que a História se faz a partir de qualquer traço ou vestígio deixado pelas

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sociedades passadas e presentes e que, em muitos casos, as fontes oficiais são insuficientes para

compreender aspectos fundamentais.

Apesar dessa “revolução documental”, os pesquisadores têm insistido na necessidade de, mesmo para

aqueles que abordam novos temas e que utilizam fontes não-tradicionais, de recorrerem aos arquivos. Mas

em vez de fetichizarem os documentos, acreditando que eles possam falar todas a verdade, os historiadores

da educação têm se esforçado para problematizar essas fontes. O trabalho a ser realizado exige que se

persigam o sujeito da produção dessas fontes, as injunções na produção e as intervenções, isto é, as

modificações sofridas e o destino e destinatário desse material.

Além disso, essas novas fontes que vêm sendo incorporadas pelas pesquisas mais recentes têm sido

também transformadas no próprio objeto de pesquisa. A imprensa pedagógica, o livro escolar, o caderno do

aluno, o mobiliário, o uniforme, por exemplo, não servem apenas para nos fazer aproximar de um aspecto

da realidade que estamos investigando, mas eles próprios – suas condições de produção e de circulação,

seus usos, as transformações por que passaram ao longo do tempo – passam a interessar, pois dizem,

também, sobre um passado educacional.

Merecem destaque entre as fontes documentais, ainda, os textos literários, as narrativas dos viajantes que

estiveram no Brasil, sobretudo entre os séculos XVI e XIX, os jornais e revistas, os arquivos, as bibliotecas

escolares, entre tantos outros documentos que poderiam ser sugeridos.

O tratamento metodológico das fontes investigadas constituiu-se, também, em elemento importantíssimo no

processo de pesquisa. Partimos do pressuposto de que os processos de associar e relacionar são

fundamentais para s superação da Metodologia Tradicional. A “Revolução Documental” que apontamos não

pode ser considerada tão somente em relação à seleção das fontes a serem utilizadas, mas, sobretudo, ao

tratamento dado a elas.

O ponto de partida não é assim, a pesquisa de um documento, mas a colocação de um questionamento – o

problema da pesquisa. O cruzamento e confronto das fontes é uma operação indispensável, para o que a

leitura hermenêutica da documentação se constitui em operação importante do processo de investigação, já

que nos possibilita uma leitura não apenas literal das informações contidas nos documentos, mas uma

compreensão real, contextualizada pelo cruzamento entre fontes que se complementam, em termos

explicativos.

Não podemos deixar de considerar a importância de problematizar o tema à luz da literatura que lhe é

pertinente, propor questões, buscar as fontes, rever a literatura, checar as questões e reformulá-las se for o

caso, voltar às fontes até que esgotem o problema e as fontes.

Reafirmamos que são as questões que se fazem a cada um e ao conjunto do material e a relação que se

estabelece entre elas e as respostas obtidas que criam a possibilidade de se “fazer história”. Assim, o

trabalho com as fontes na análise documental, que exige cuidado, atenção, intuição, criatividade, não

prescinde de uma relação anterior com a teoria e com a metodologia da história.

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A análise documental: um exemplo de pesquisa em História da Educação

Visando oportunizar uma maior clareza sobre as possibilidades investigativas no campo da História da

Educação, valemo-nos de uma exemplificação que nos vem das pesquisas que realizamos sobre a escola

pública no Rio Grande do Sul, no período de 1889 a 1930.

No Rio Grande do Sul do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, assistimos a uma série

de modificações sociais entre as quais o problema da escola pública mereceu um destaque até então

inexistente. O advento da República colocou no poder um novo grupo de dirigentes que eram portadores de

um projeto político destinado a modernizar o Rio Grande. A escola - como instituição do Estado - foi

colocada, nas falas governamentais, como exigência da cidadania, numa sociedade que não equacionava as

distâncias e as desigualdades sociais.

A sociedade rio-grandense, à época de nosso estudo, foi alvo de um processo de modernização que tinha

como objetivo central a eliminação dos resquícios de um passado que deveria ser enterrado, com todas as

lembranças que os arautos dos novos tempos desejavam apagar, ou seja, a monarquia, a escravidão, o

clientelismo, a tradição oligárquica, a ignorância, enfim, os tempos do pré-capitalismo deveriam ser

encerrados no “baú das tristes recordações”.

Esse processo de modernização se constituiu, no Rio Grande do Sul, na expressão da modernidade

republicana. Portanto, a implementação da escola, no âmbito das ações destinadas à expansão do ensino,

integrou esse processo de modernização que caracterizamos, em função das opções políticas que o

orientaram, como conservador, mesmo que, no contraditório das coisas, tenha apresentado elementos de

avanço inegáveis. Esse processo implicou num conjunto de medidas implementadas a partir do Estado

gaúcho que significaram, em última instância, a eliminação das condições que vigoraram até quase o final

do século XIX, marcadas pelo domínio da oligarquia rural tradicional.

Num contexto da expansão expressiva da escola pública, a situação do professor gaúcho merece atenção. A

presença dessa categoria profissional nos documentos da época nos permite perceber as possibilidades da

análise documental, no contexto da metodologia qualitativa, com interface com o uso também do recurso da

quantificação. O estudo que realizamos foi bem mais amplo. Entretanto, aqui, valemo-nos dessa parte de

nossas investigações para substanciar nossas considerações sobre o tema que apresentamos.

No conjunto dos elementos que caracterizam a situação referente ao professor da escola pública do Rio

Grande do Sul, necessário se faz situar um tipo de fala a ele relativo, que passaremos a apresentar,

iniciando com as seguintes considerações feitas pelo Secretário João Abbott, quando tratou da situação

salarial dos docentes, em 1894:

Quanto às senhoras, além das excelentes professoras que nos tem dado a Escola Normal, saem daí

com a educação bem formada para terem futuramente, como mães, um certo grau de ilustração que

saberão transmitir à família. Se a concorrência delas é maior na escola, é porque na luta pela vida,

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sendo-lhe restrito o campo de ação, buscam no magistério um lugar que não podem obter noutra

profissão1.

Chama a atenção do investigador a presença, desde o início da gestão republicana no Rio Grande do Sul, a

elaboração de uma fala que insistentemente situa a mulher como o ser privilegiado para o exercício do

magistério. Num momento de consolidação do mercado de trabalho capitalista, são explícitas as referências

à inserção feminina nele através do magistério.

O Diretor geral da Instrução Pública, Manoel Pacheco Prates, ao analisar as matrículas da Escola Normal em

1895, verificou que num total de 115 matriculados, 26 eram homens e 89 mulheres. Entre as razões que

justificavam tão destacada diferença na procura pelas vagas desta escola, estava a questão salarial: os

professores rio-grandenses ainda não recebiam salários suficientes para viver e garantir o futuro da família,

o que poderiam conseguir em outro ramo de atividade humana. Além disso, eram inúmeras as profissões e

carreiras que se abriam ao homem, quer nas indústrias particulares, quer no funcionalismo público, ao passo

que a mulher só tinha diante de si o magistério.

Esclareceu o diretor que isso ocorria em todos os países e que em alguns Estados da União Brasileira essa

diferença vinha impressionando os respectivos governos, sendo diversas as soluções apresentadas no

sentido de diminuí-la. Em alguns Estados, ao lado da elevação do salário dos professores, multiplicavam-se

as escolas normais, com o fim de torná-las acessíveis a todos que, embora dispondo de poucos recursos

pecuniários, desejassem seguir o magistério público.

Em outros Estados pretendia-se resolver a questão propondo uma diferença entre os ordenados dos

professores e os das professoras, sendo o daqueles mais elevados. Segundo o Pacheco Prates, essa idéia

não era nova, tendo sua origem na França e tendo sido adotada em muitos países do Velho Mundo. E

concluiu:

Para justificá-la dizem os seus prosélitos: não há nesta diferença a menor idéia de injustiça. O

homem é, em regra, casado e chefe de família; como tal tem que prover a necessidade de muitas

pessoas, ao passo que a mulher, em estado idêntico, tem o marido que é o responsável pelo ônus do

matrimônio2.

Na opinião do Diretor, nenhuma das propostas resolvia a questão. A primeira - a pluralidade das escolas

normais - seria inconveniente implantar naquele momento e a segunda daria lugar a muitos casos de

iniqüidade. Para elevar o professorado masculino do estado de abatimento em que achava, bastava

remunerar suficientemente o professorado em geral. Era, portanto, a nível do discurso, a solução defendida

não só por ele, mas por outros dirigentes educacionais.

Os testemunhos se acumulam, revelando, por um lado, o reconhecimento da importância do professor e de

suas dificuldades materiais e, por outro, a não implementação da solução que os próprio dirigentes

educacionais apontavam, ou seja, a melhoria salarial dos integrantes do magistério público. Nesse sentido, é

1 Considerações feitas pelo Secretário Abbott no Relatório da Secretaria do Interior e Exterior, de 31.08.1894, p. 93.

2 As considerações de Manoel Pacheco Prates podem ser encontradas no relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 15.08.1895, p. 193-4.

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emblemático o testemunho oferecido ainda por Manoel Pacheco Prates que, em 1896, assim se pronunciou,

no relatório encaminhado ao Secretário do Interior e Exterior, João Abbott:

Classe por todos os títulos digna do respeito e gratidão popular, pedra angular e principal elemento

da grandiosa e difícil obra da educação nacional, que tem por missão desenvolver as faculdades da

criança, preparando-a para mais tarde exercer consenciosamente os seus deveres de cidadão;

funcionários de quem tudo se exige (atenta a sublimidade da missão que se lhes confiou), desde a

constante vocação até a dignidade do caráter, pureza de costumes e docilidade de coração, não deve

conservar-se no excepcional abandono em que se tem conservado3.

Portanto, em paralelo à afirmação da “nobre missão” do professorado, a posição dos dirigentes republicanos

sobre o professor destaca a vocação e os valores morais como elementos exigidos dos docentes do ensino

público, situando a retribuição no plano do respeito e da gratidão populares. Quanto à subsistência, para a

qual, como dizia Borges de Medeiros, então Presidente do Estado, estava destinado o salário, a situação era

bem mais complicada.

Todavia, a fala dos dirigentes educacionais apresenta mudanças, a partir da decretação do regulamento da

Instrução Pública de 1897, quando o caráter laudatório e ufanista em relação às obras dos republicanos

invade a argumentação, passando o mesmo Manoel Pacheco Prates, apenas dois anos depois de seus alertas

anteriores, a afirmar que os professores, amparados pela grande soma de garantias de ordem material e

moral que lhes havia outorgado o Estado, sentiam-se fortes e dignificados pela elevadíssima missão que lhes

estava confiada. E concluiu:

O magistério rio-grandense constitui hoje uma classe unida pela mútua estima e é, por todos os

títulos, digna do respeito de seus concidadãos. Não mais se observa o desolador espetáculo de

outros tempos. As escolas públicas hoje não mais se encontram no contristador estado de

isolamento em que se achavam antes da reorganização, vivendo segregadas umas das outras, sem

que as ligasse o mais tênue elo de fraternidade; hoje todas trabalham solidária e harmonicamente

inspiradas pela fecunda doutrinação republicana, como partes de um mesmo todo, como elementos

da inteiriça e grandiosa obra da sociedade nacional4.

Assim, as garantias funcionais estabelecidas para os professores tiveram, para o Inspetor Geral, o dom de

resolver os problemas do magistério, passando as escolas a vivenciar outra realidade, bem mais positiva. No

entanto, aprofundou-se paralelamente, a distinção entre os sexos, mais uma vez explicitando que o homem,

sendo levado a criar família, dificilmente se sujeitaria a um honorário insuficiente para esse fim, mesmo com

a perspectiva de, no futuro, poder contar com uma aposentadoria com todas as vantagens. Isso dizia o

Inspetor Regional da 6a Região Escolar, Manoel Ignacio Fernandes, completando que, segundo suas

observações, o mesmo não sucedia à mulher, sobretudo jovem e privada da família. E complementou

colocando:

3 Informações prestadas pelo Diretor Geral da Instrução Pública, Manoel Pacheco Prates, em 30.06.1896. Anexo 5 do relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 1896, p. 292-3. 4 Relatório do Inspetor Geral da Instrução Pública, Manoel Pacheco Prates, no relatório da Secretaria do Interior e Exterior (anexo 9), p. 463.

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Nada mais digno de consideração do que ver-se uma senhora instruindo e educando sessenta e mais

crianças de ambos os sexos, que a cercam risonhas e lhe obedecem ao menor aceno ou volver de

olhos, como se lhes fora mãe. Conseguem mesmo, pela natural brandura, submeter caracteres

altivos, que dificilmente se amoldariam às admoestações dum professor. Certo que homem algum

poderá disputar à mulher esse apanágio, característico do seu sexo: dominar pela suavidade5.

Reforça-se, assim, a preferência pela mulher para o desempenho da “augusta missão do magistério”. As

dificuldades salariais são resolvidas com ela nas vagas públicas, com larga vantagem sobre o homem pois,

como pudemos perceber, ela submetia-se mais facilmente aos baixos salários, tendo a vantagem de

“dominar pela suavidade”. Um outro sinal típico dessa ampliação da participação feminina no magistério

pode ser encontrada no fato de que os documentos históricos passam a registrar a referência às professoras

com bem mais freqüência, ao longo do período.

O projeto republicano implementado no Rio Grande do Sul tentou justificar a situação do magistério público

com a inserção do caráter de sacerdócio conferido à profissão desempenhada pelos professores. Em

inúmeras passagens encontradas na documentação da época, a problemática salarial é relacionada a essa

questão, conforme exemplificamos abaixo, com as considerações feitas por Protásio Alves, como Secretário

do Interior e Exterior, ao Presidente do Estado Carlos Barbosa Gonçalves, em 1908:

Os professores públicos, em geral competentes, modestos, merecem melhor retribuição pecuniária,

que de bom grado vos proporia, se não receasse o desequilíbrio que tal aumento de despesa traria

ao orçamento. Apesar dos vencimentos relativamente pequenos, não poupam eles esforços fazendo,

como tenho observado, sacerdócio da nobre missão6.

Evidencia-se, assim, a relação entre a questão orçamentária, o mau pagamento dos professores e a missão

do sacerdócio. A acomodação dos professores submetidos às precárias condições salariais que apontamos foi

feita através da priorização do elemento feminino e da construção de uma fala sobre o professor centrada na

vocação e no sacerdócio, tudo muito ao gosto do ideário positivista.

Até o fim do período que analisamos, em nível das instâncias governamentais o que prevaleceu foi

inegavelmente a fala da priorização da mão-de-obra feminina para as tarefas educacionais, numa

articulação com o caráter de sacerdócio conferido ao seu trabalho. Ao mesmo tempo, manteve-se o

reconhecimento permanente da insuficiência das condições materiais em que viviam os professores,

compondo uma argumentação governamental que mascarou a situação de subordinação do professorado

gaúcho ao quadro salarial que indicamos.

Procurando avançar no esclarecimento da questão da situação do professor da escola pública rio-grandense,

trazemos algumas outras informações que as fontes históricas nos oportunizaram. No contexto dos estudos

que antecederam a primeira reforma educacional do Rio Grande do Sul, concretizada em 1897, o Diretor

Geral Interino da Instrução Pública, J.P. Henrique Duplan, apresentou algumas considerações que desejamos

reproduzir, quando defendeu a classificação das aulas públicas em entrâncias, as quais estavam

relacionadas com a fixação dos vencimentos dos professores, que passariam a receber de acordo com a

5 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 30.07.1898, p. 565.

6 Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 08.09.1908, p. 10. Os grifos são nossos.

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entrância de sua cadeira. Afirmou o Diretor que essa proposta fundamentava-se no estado precário em que

se achava o professorado que, de tão mal pago, sofria privações de toda a sorte.

Alertou o Diretor que, os porteiros e mesmo alguns contínuos das repartições públicas recebiam honorários

maiores que o dos professores públicos e, enquanto os demais funcionários públicos haviam tido, de 1890 a

1893, aumentos em seus salários, o mesmo não ocorrera com os professores, num quadro conjuntural de

alta sempre crescente dos gêneros de primeira necessidade. E concluiu Duplan:

Daí a dificuldade do Professor viver com seus parcos honorários; e esta Diretoria vê, contristada que,

por esse motivo, está abandonando o magistério o melhor de seu pessoal. Os professores mais

hábeis vão procurar noutra atividade os proventos que não encontram atualmente na sua profissão.

Urge, pois, que se tome uma medida salutar a este mal e me parece que a mais acertada é sem

dúvida a que encerra esta parte da nova organização que o ilustre Diretor efetivo quer dar a esse

ramo de serviço7.

Interessa-nos ressaltar que as considerações desse dirigente educacional foram feitas em 1893. No ano

seguinte, o então Diretor Geral da Instrução Pública, João Abbott, reafirmou o alerta do seu antecessor,

colocando que os professores estavam sendo mesquinhamente retribuídos, a ponto de sofrerem privações

de toda a sorte, numa época em que tudo encarecia, desde os produtos importados até os nacionais de

primeira e absoluta necessidade. Recomendou, então que o governo concedesse, de maneira provisória,

enquanto não fosse concluída a reforma geral que deveria tratar de remediar o mal, uma porcentagem sobre

os vencimentos dos professores, a título de gratificação8.

Essa sugestão foi concretizada em 1905, quando foi concedido um aumento de 20% sobre os vencimentos

dos professores pertencentes ao quadro efetivo do magistério público 9 . O reajuste não atingiu os

professores interinos, predominantes nas áreas rurais. Mesmo com essa medida, os documentos de época

continuam a apontar o problema salarial como uma questão a ser resolvida. Até 1930, encontramos nos

relatórios educacionais referências à necessidade de retribuir mais adequadamente os professores públicos.

A situação que apontamos teve diversos desdobramentos, como, por exemplo, a queda na demanda pela

matrícula na Escola Normal, por parte de candidatos do sexo masculino. Em 1894, apenas 28 dos que

ingressaram na instituição eram homens, enquanto as mulheres atingiram o número de 91. Sobre esse

assunto, João Abbott afirmou que a situação tinha sua razão de ser em função do fato de serem os

professores mal remunerados, não oferecendo a profissão as vantagens que era de esperar. Entretanto o

ensino, segundo o Diretor, era sólido e, apesar de ser a Escola um estabelecimento de ensino especial, os

alunos saíam bem preparados para outros trabalhos, freqüentemente respondendo a concursos para

diversos empregos públicos, sendo raro encontrar-se uma repartição que não contasse com um normalista

no número de seus empregados. Era de normalistas, igualmente, a maior parte dos diretores e professores

7 Informações prestadas pelo Diretor Geral Interino da Instrução Pública, J.P. Henrique Duplan, no relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 15.09.1893, p. 89-90. 8 Relatório apresentado pelo Diretor Geral da Instrução Pública, João Abbott. Anexo n° 6 do Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 31.08.1894, p. 92. 9 Ato n° 35, de 02.04.1895. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1895, p. 326. Os recursos para esse aumento foram previstos no orçamento para 1895, lei n° 6, de 22.11.1894. Leis, Decretos e Atos de 1894, p. 4.

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dos colégios particulares da capital e de outros lugares do Estado. Se os proventos do magistério público

oferecessem vantagem, eles não iriam exercer o magistério particular e outros empregos10.

A organização do ensino gaúcho, como já tivemos oportunidade de esclarecer, classificou as escolas

primárias por entrâncias. Dessa classificação decorreu uma diferença salarial entre os professores. Na lógica

governamental, essa diferença se devia ao fato de que os ônus materiais da vida estavam na razão direta da

importância e do desenvolvimento da região. Os fundamentos de tal definição podem ser percebidos na

argumentação do Inspetor Geral da Instrução Pública:

Atendendo-se às exigências da vida material, verifica-se que a condição do professor rural é, em

regra, menos precária que a do professor da escola urbana. Baseado nesta observação, tive a honra

de propor o alvitre de um aumento parcial, como medida de ocasião, até que a resolução definitiva

possa ser tomada pelo Governo. Atendendo à justiça da pretensão e que é a única classe de

funcionários do Estado que há quinze anos não é contemplada nos diversos aumentos de

vencimentos, é licito esperar deferimento favorável11.

Portanto, o critério explicitado pelo Inspetor Geral deixou clara a priorização, em termos salariais, das

escolas das principais áreas urbanas do Estado, ficando com os menores salários os professores que

atuavam nas áreas mais afastadas e situadas nas zonas rurais. O critério é questionável, mas é também

indicador da diferenciação feita, em termos da retribuição ao trabalho docente, pelos dirigentes republicanos.

Em todo caso, essa situação pode ter servido para cooptar politicamente o professorado das cidades maiores,

estabelecendo um padrão salarial que o favorecia, em detrimento dos professores rurais. Sabemos o quanto

foi importante, para a consolidação do poder republicano no Rio Grande, a atração, para sua base de apoio,

dos segmentos médios que apresentavam um processo de expansão sobretudo nas cidades, em função de

um maior desenvolvimento das atividades terciárias.

Por outro lado, a fala de Pacheco Prates refletiu, em 1910 que, após os 20% concedido em 1895, não mais

concedera o governo alguma melhoria salarial aos professores públicos do Rio Grande.

O critério de vinculação dos salários à entrância da escola onde trabalhava o professor só foi alterado no

final do período quando, reconhecendo que o critério local promovia vantagens injustificadas aos professores

da Capital, Rio Grande e Pelotas, onde em regra os professores dispunham de maior conforto e vida menos

dispendiosa em relação ao interior do Estado e sobretudo nas regiões mais afastadas da fronteira, Protásio

Alves passou a relacionar os salários dos professores à freqüência do colégio, segundo ele expressivo da

dedicação ou mérito do corpo docente. Assim, o colégio cuja freqüência fosse superior a 400 alunos seria de

3a entrância, entre 300 e 400 seria de 2a. e entre 200 e 300 seria de 1a, tendo, os primeiros oito docentes

no quadro, os segundos seis e os últimos cinco12.

10

Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 31.08.1894, p. 89 e 92-3. 11

Relatório de Manoel Pacheco Prates de 10.06.1910, no relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 08.09.1910, p. 174. 12

Relatório da Secretaria do Interior e Exterior de 24.08.1927, p. XX.

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Essa mudança todavia não alterou o problema salarial crônico, que se arrastou por toda a Primeira República.

Para uma percepção mais concreta da situação, vamos analisar a questão a partir da tabela apresentada a

seguir13.

Tabela 1. Quadro comparativo de salários no setor público do Rio Grande do Sul: 1897/1930

(valores anuais).

CARGOS 1897 1907 1916 1926 1931

Presidente do Estado 35:000$000 35:000$000 48:000$000 72:000$000 72:000$000

Secretário do Interior e Exterior 12:000$000 12:000$000 24:000$000 36:000$000 36:000$000

Inspetor/Diretor Geral da I. Pública 8:000$000 9:600$000 ------------- ------------- 24:000$000

Inspetor Regional 7:200$000 ------------- ------------- ------------- -------------

Inspetor Escolar 3a entrância ------------- 2:760$000 ------------- ------------- -------------

Inspetor Escolar 2a entrância ------------- 2:400$000 ------------- ------------- -------------

Inspetor Escolar 1a entrância ------------- 2:040$000 ------------- ------------- -------------

Inspetor Escolar ------------- ------------- 2:838$000 4:270$200 -------------

Inspetor Ens. Normal/Complementar ------------- ------------- ------------- ------------- 12:000$000

Inspetor Ens. Elementar ------------- ------------- ------------- ------------- 10:560$000

Inspetor Médico-Escolar ------------- ------------- ------------- ------------- 8:600$000

Inspetor Educação Física ------------- ------------- ------------- ------------- 9:600$000

Prof. Esc. Normal/N. Aperfeicoam. 2:880$000 ------------- ------------- ------------- 7:429$000

Prof. Esc. Complementar/ Capital ------------ 3:480$000 4:200$000 6:754$000 7:429$000

Prof. Esc. Complementar/Interior ------------ 2:400$000 ------------- ------------- 6:600$000

Prof. Primário 3a entrância 2:400$000 2:400$000 2:640$000 4:743$200 5:217$500

Prof. Primário 2a entrância 2:040$000 2:040$000 2:244$000 4:163$500 4:579$800

Prof. Primário 1a entrância 1:680$000 1:680$000 1:848$000 3:583$800 3:942$000

Prof. Curso Elementar/Esc. Compl. ------------ ------------- 3:600$000 6:177$600 6:795$000

Prof. Colégio Elementar 1o grupo ------------ ------------- 3:600$000 ------------- -------------

Prof. Colégio Elementar 2o grupo ------------ ------------- 3:240$000 ------------- -------------

Prof. Colégio Elementar 3o grupo ------------ ------------- 2:880$000 ------------- -------------

Prof. Colégio Elementar 4o grupo ------------ ------------- 2:640$000 ------------- -------------

Prof. Colégio Elementar 3a entrância ------------ ------------- ------------- 6:151$200 6:766$300

Prof. Colégio Elementar 2a entrância ------------ ------------- ------------- 5:623$200 6:185$500

Prof. Colégio Elementar 1a entrância ------------ ------------- ------------- 4:743$200 5:227$500

Porteiro/Gabinete da Presidência 2:000$000 2:640$000 3:240$000 4:882$000 6:000$000

Porteiro/Secretaria do Interior 2:640$000 2:640$000 2:800$000 3:720$000 5:400$000

13

O quadro comparativo de salários do setor público foi por nós montado a partir das fontes históricas disponíveis, com a intenção de possibilitar uma visualização mais concreta das condições materiais que cercaram a vida cotidiana dos professores públicos de Rio Grande do Sul, com as decorrências previsíveis nas atividades das escolas. A tabela apresenta dados de cinco anos tomados aleatoriamente, no período que investigamos. Procuramos manter, como critério, um espaço aproximado de dez anos entre as datas escolhidas, sempre que fosse possível. Apenas o último ano fugiu à regra, por ser fim do período. Os cargos elencados na tabela dos salários foram escolhidos intencionalmente, ou seja, além daqueles vinculados ao setor educacional, como inspetores e professores, listamos alguns cargos maiores do setor público, como os de presidente e secretário de Estado, bem como cargos de menor expressão na hierarquia estatal, como porteiros e contínuos. Com isso, objetivamos enfocar comparativamente os padrões salariais, buscando compreender o conteúdo político que norteou a ação do Estado na definição dos mesmos. As lacunas que aparecem no quadro salarial são explicadas em função das alterações ocorridas nos cargos, envolvendo sua criação ou extinção. Assim, certos cargos como os de presidente e secretário de Estado tiveram vigência por todo o período. Da mesma forma, os cargos de professores primários não foram alterados, podendo ser observados por toda a série. Outros cargos, entretanto, tiveram existência limitada, sendo substituídos. Os dados, todavia, permitem que acompanhemos razoavelmente a seqüência dos mesmos, visualizando sua trajetória salarial.

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Porteiro/Inspetoria Geral I. Pública 2:000$000 2:400$000 ------------- ------------- -------------

Porteiro-Contínuo/Esc. Normal 1:600$000 ------------ ------------- ------------- 4:186$600

Porteiro-Contínuo/Esc. Complem. ------------ 2:400$000 2:400$000 ------------- -------------

Zelad./Insp. Alunos/Esc. Complem. ------------ ------------ ------------- 3:806$000 4:186$600

Contínuo/Secretaria do Interior 1:800$000 1:800$000 1:920$000 2:940$000 3:840$000

Fonte: Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul dos anos de 1897 (decretos que estabeleceram,

de acordo com o orçamento, os valores salariais indicados), 1906, 1915, 1925 e 1930 (Leis que orçaram, entre as

diversas despesas, os valores salariais apontados).

A primeira observação que podemos realizar é que há uma hierarquia salarial que acompanha a lógica do

poder estabelecido no Estado. Os cargos de presidente e secretário de Estado têm a devida retribuição em

termos pecuniários relacionada com a importância na estrutura pública, enquanto os funcionários mais

simples têm, também seu salário adequado à posição subalterna que ocupavam. Algumas especificidades,

todavia, podem ser percebidas, se seguirmos a evolução salarial de alguns cargos e relacionarmos alguns

dos cargos entre si.

Nesse sentido, podemos observar que o cargo mais elevado, o de presidente do Estado, não foi o que mais

cresceu, tendo sofrido um acréscimo de pouco mais do que o dobro, no período. Já o cargo de secretário foi

multiplicado por três, na mesma fase. O cargo de inspetor/diretor geral da Instrução Pública, mesmo não

tendo existido por todo o tempo considerado, teve, em seu vencimento, o reconhecimento da importância

hierárquica de que estava inserido, também crescendo triplamente nos anos que consideramos.

No campo educacional, os cargos relacionados com a inspeção escolar sofreram alterações ao longo do

tempo. Os inspetores regionais, enquanto as regiões escolares foram, de acordo com a legislação

complementar ao regulamento da Instrução Pública de 1897, apenas sete, os salários foram elevados. Basta

verificarmos que, nesse ano, o salário de um inspetor regional se aproximava do de inspetor geral, ou seja,

nos valores de 7:200$000 e 8:000$000, respectivamente. Porém, na medida em que o ensino foi sofrendo o

processo de expansão que apontamos no segundo capítulo deste trabalho, o governo tratou de ampliar as

atribuições (desempenhadas gratuitamente) pelos conselhos distritais (depois conselhos escolares e,

finalmente, delegacias escolares), restringindo as funções dos inspetores escolares através do processo que

também esclarecemos anteriormente, estabelecendo valores salariais bem menores ao dos primeiros

inspetores regionais, ao mesmo tempo em que ampliava o número das regiões escolares.

Os salários dos professores dos cursos secundários mantidos pelo Estado seguiram a mesma lógica

hierárquica que vem despontando na análise que realizamos. Nos distintos anos que indicamos, os docentes

da escola normal e das escolas complementares, nos diferentes momentos de sua existência, sempre foram

melhor remunerados que os professores primários. Além disso, entre estes últimos ocorriam também

diferenças, já que os da capital recebiam salários superiores aos do interior. Ao longo da série apresentada,

pode ser constatado que os professores dos cursos secundários tiveram aumentos em todos os anos

indicados, particularmente os da escola da capital, que existiu em todo o período. O mesmo não ocorreu,

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todavia, com os professores primários que, nos dois primeiros anos da série, tiveram os seus salários

mantidos sem aumento14.

A situação que mais se destacou, no conjunto dos dados, foi a dos professores primários, notadamente os

mais numerosos e que eram os responsáveis mais diretos pela concretização de uma das mais alardeadas

promessas dos republicanos, os seja, a educação pública básica que acabasse com o analfabetismo e

elevasse o nível intelectual, moral e cívico de todos os cidadãos rio-grandenses. A “elevadíssima missão”

que lhes fora confiada teve, no plano material, um retorno que merece ser observado e bem compreendido.

A primeira constatação que fazemos é a de que os professores primários não tiveram, ao longo do tempo,

aumentos proporcionais aos de outras categorias, nem mesmo os concedidos aos professores das escolas

normal e complementar. Os valores indicados em 1897 mantiveram-se até 1916, na série apresentada, o

que concorda com a declaração dada pelo Diretor Geral da Instrução Pública, em 1910, de que os

professores não recebiam aumento então por quinze anos. Além disso, a classificação das aulas públicas por

entrâncias estabeleceu, como havíamos apontado, diferenças salariais entre profissionais que desenvolviam

o mesmo trabalho.

Em relação aos cargos de funcionários situados hierarquicamente numa posição mais baixa, como os

porteiros e contínuos, podemos chegar a algumas constatações. O porteiro do gabinete do presidente

sempre teve, ao longo de todo o período, salário superior ao professor primário de 1a entrância, aliás os

mais numerosos do setor educacional. A diferença chega a ser gritante, como indica o ano de 1916, quando

o salário desse professor atingiu 1:848$000 e o do porteiro referido 3:583$800. Ao final da Primeira

República, a desproporção entre os dois tipos de vencimento atingiu as cifras por si só expressivas de

3:942$000 e 6:000$000, respectivamente. Nem o professor primário de 3a entrância conseguiu receber o

mesmo que o porteiro do gabinete da Presidência, já que seu salário atingiu, no último ano indicado, apenas

5:217$500, abaixo, portanto, do que era pago ao funcionário referido.

Se observarmos os demais exemplos apontados, os porteiros e contínuos, na maioria dos casos, tinham

honorários superiores aos dos professores de 1a entrância, inclusive os porteiros-contínuos da escola normal

e a zeladora e o inspetor de alunos das escolas complementares.

Os dados apresentados possibilitam outros tipos de cruzamento, a critério e interesse do leitor. Para os fins

de nossa análise, cremos que os números apresentados têm uma força explicativa maior do que as palavras,

sendo reveladores da lógica política que norteou o Estado gaúcho no campo educacional. A perspectiva que

apontamos, em relação à política educacional republicana também aqui aparece. Ou seja, a realização da

expansão do ensino público com custos baixos, a geração sistemática de sobras financeiras na execução do

orçamento aprovado para a educação, a diferenciação dos saberes, tiveram, assim, na questão salarial, sua

correspondência coerente. A desqualificação salarial dos docentes é “histórica”, ocorrendo no Rio Grande do 14

Merece um esclarecimento a situação dos professores dos colégios distritais que, em função dos cortes temporais realizados na confecção do quadro comparativo, não aparecem, até em virtude da curta duração desses estabelecimentos. Todavia, sua situação se insere na mesma lógica implementada em relação às escolas complementares. Podemos exemplificar através dos dados de 1902, quando um professor do colégio distrital da capital percebia 3:480$000 e os dos colégios do interior 2:400$000. É possível observar que esses valores se mantém para os docentes das escolas complementares, conforme apresentado na tabela de salários, em relação ao ano de 1907. Para os dados aqui citados, cf.: Lei n° 42, de 25.11.1902. Leis, Decretos e Atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 1902, p. 20-26.

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Sul da forma que pudemos constatar e que expressou a concepção dos dirigentes republicanos em relação

aos professores da mais ampla maioria das escolas gaúchas, ou seja, os professores primários de 1a

entrância.

Enquanto no plano do discurso, os dirigentes gaúchos alardeavam a valorização do magistério público e

alertavam para seus baixos salários, no plano concreto da realidade objetiva, os professores eram

submetidos a condições incompatíveis com sua própria dignidade e com o discurso valorativo tão divulgado

pelos gestores do Estado. Essa situação esteve relacionada com outros elementos do cotidiano escolar

configurando um aspecto importante para o entendimento da escola pública rio-grandense.

Considerações finais

As considerações que apresentamos tiveram a finalidade de trazer uma contribuição ao debate relativo à

utilização da análise documental no contexto da metodologia qualitativa. Partimos de uma breve

caracterização das pesquisas que vêm sendo realizadas no programa de Pós-Graduação em Educação da

UNISINOS, dedicando-nos, depois, a levantar alguns elementos mais vinculados ao campo da História da

Educação.

Acreditamos que os aspectos apresentados permitem perceber as possibilidades e a riqueza que a análise

documental traz aos estudos no campo da História da Educação, inclusive com o cruzamento de dados

qualitativos e quantitativos. Como o exemplo apresentado, muitos outros poderiam ser trazidos, mas temos

a convicção de que, com o exposto, pudemos concretizar nossa intenção de contribuir com o debate

proposto pela Unidade de Pesquisa & Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no

Seminário Pesquisando a Pesquisa: Reflexão sobre Metodologias.

Referências

CARDOSO, C. F. e VAINFAS, R. (orgs.). 1997. Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de

Janeiro, Campus.

SAVIANI, D. 1998. O debate teórico-metodológico no campo da História e sua importância para a pesquisa

educacional. In: D. SAVIANI; J.C. LOMBARDI e J.L. SANFELICE, História e História da Educação: o

debate teórico-metodológico atual. Campinas, Autores Associados/HISTEDBR.