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Anna de Assis: Histria de um trgico amor: Euclides da Cunha, Anna e Dilermando de Assis CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. A865h Andrade, Jeferson de, 1947Anna de Assis : histria de um trgico amor: Euclides da Cunha, Anna e Dilermando de Assis / Judith Ribeiro de Asss ; em depoimento a Jeferson de Andrade. - Belo Horizonte, MG : Soler, 2006 ISBN 85-60004-06-8 1. Assis, Anna de, 1913-1951. 2. Cunha, Eucides de, 1866-1909. 3.Assis, Dilermando de, 1888-1951. 1. Andrade,Jeferson de, 1947-. II. Ttulo. Copyright - Judith Ribeiro de Assis e Jeferson de Andrade, 2006 Editor S. Justo Junior Projeto Grfico Fernanda Amarante Reviso Ortogrfica Maria de Lourdes Costa (Tuch a) Todos os direitos reservados Soler Editora Rua Flor de Jequitib, 12-2 andar Unio - Belo Horizonte - MG Cep 31160-280 Tel.: (31) 3486-7006 wwvso1ereditora.com.br CDD 920.72 CDU 929:-055.2 06-2708 "Enquanto a mulher do fim do sculo se escondia na cozinha, preocupando-se em servir ao seu todo-poderoso marido ou se recolhia cadeira de balano e a tricotar esperava a vida passar, Anna de Assis foi para a sala de visitas palestrar com um Machado de Assis, um baro do Rio Branco, um Slvio Romero, um Coelho Neto. Natural, j que na casa do pai se habituou a ouvir um Quintino Bocaiva, um Rui Barbosa, um Benjamin Constant. Mulher audaz, independente, morando numa cidade pequena e provinciana como uma So Jos do Rio Pardo, teria seus movimentos mpares confundidos pela mente pequena e bitolada daqueles que no enxergam o horizonte, j que as estradas tm curvas. Ali naquela cidadezinha, Anna de Assis deixou a imagem de mulher ftil e namoradeira. Concluso a que se chegou porque se postava janela e, alegre e "moderna", no se escondia dos homens." Dedico este livro aos descendentes de Anna de Assis. Quero deixar aqui consignado o meu repdio a tudo que j foi escrito sobre ela. Anna de Assis foi uma mulher excepcional, como

amante, como esposa, como me. Com muito respeito e admirao, sua filha Judith *** O autor jeferson de Andrade registra a colaborao de Denise Mordenel na reviso da obra quando indita. Sobre este livro Meu nome registrado em cartrio Jeferson Ribeiro de Andrade. Judith era Ribeiro de Assis. Como foi casada com Andrade, por muitos foi conhecida apenas como Judith de Andrade. Tudo coincidncia. Sou Ribeiro de Andrade, filho de Donato Leite de Andrade e Irene Ribeiro de Andrade, mineiros. Judith era gacha. Tambm Dilermando e Anna. Judith faleceu em 1995, no Rio de Janeiro. Quando constatamos, em nosso primeiro encontro, no ato da apresentao, esse parentesco de nomes, escancarou-se a porta do entendimento. O acaso costuma unir coraes. J havia escrito, em meu romance Um Segredo de Vero, que muitas vezes julgo a vida to tola porque tantas vezes a felicidade depende de um imprevisto. O encontro inicial se dava porque, no meu trabalho de editor de livros, obtive a indicao de que Judith desejava publicar revelaes sobre a vida de sua me. Mas a obra no estava escrita. As funes de editor cederam lugar atividade de escritor. E durante trs anos, aps sucessivos encontros, vrias horas de dilogo, pesquisas no Arquivo do Ministrio do Exrcito e Biblioteca Nacional, surgiu o sonho de Judith - ANNA DE ASSIS - HISTRIA DE UM TRGICO AMOR: EUCLIDES DA CUNHA, ANNA E DILERMANDO DE ASSIS. Depois dessa nova experincia de minha vida literria, posso afirmar que escrever este livro foi como exercitar o dom de cantar em dueto. Creio que consegui fazer o texto exatamente no tom desejado por Judith. Como insisto em afirmar que escrevo de ouvido, exatamente como alguns msicos tocam seus instrumentos, esta obra, mais do que qualquer outra, foi assim 1 executada. Tenho escrito meus contos e romances nos tons das prprias histrias, das prprias personagens. O leitor perceber que, em vrias oportunidades, foi concedido grande espao para transcries de entrevistas e depoimentos de Dlermando de Assis, o que se fez necessrio por dois motivos. Primeiro, suas entrevistas e livros falam tambm, e constantemente, de Anna de Assis. Segundo, apesar de seus esclarecimentos divulgados pela imprensa e dos livros publicados, seus filhos e netos ainda deparam com notcias equivocadas e fatos deturpados todas as ocasies em que se trata da morte de Euclides da Cunha. Sobre Anna de Assis, o que tenho a revelar est na comunho que existiu entre as revelaes de Judith e o que procurei verter para uma linguagem literria. De nossa unio, surgiu este livro. Minha admirao pela mulher Anna de Assis est nas pginas seguintes. o que desejo passar ao leitor e leitora. E cada um, aps a leitura de ANNA DE ASSIS HISTRIA DE UM TRGICO AMOR: EUCLIDES DA CUNHA, ANNA E DILERMANDO DE ASSIS, sentir se o consegui. Jeferson

de Andrade Introduo 8 edio A primeira edio deste livro saiu em agosto de 1987. Foi um xito de crtica e de pblico, permaneceu alguns meses nas listas de mais vendidos e teve seis edies sucessivas. Alcanou plenamente seu principal objetivo, que mostrar a personalidade e a vida desta extraordinria mulher que foi Anna de Assis. Em nenhum momento teve como intuito denegrir a imagem de Euclides da Cunha, como os autores deste livro foram acusados por familiares do escritor, que lhes moveram at mesmo ao judicial. Qualquer homem pode ser o mais sbio do mundo, e nem assim estar a salvo das fraquezas humanas, principalmente quando suas emoes se embaraam nos mistrios do amor e do dio. Compreendo todas as atribulaes familiares dos envolvidos nas tragdias, porque tambm vtimas de tantos equvocos, muitas vezes provocadas pelas paixes de fanticos e de cegos que se confundem no emaranhado de suas pequenas batalhas e de suas pueris iluses. Aps a publicao deste livro, outros surgiram tratando do drama vivido por estas trs pessoas: Euclides, Anna e Dilermando. Deu origem ainda a uma minissrie na televiso. Que cada um procure dar a sua verso, mas creio que basicamente posso reafirmar: no se pode algum erguer e julgar Euclides, Anna e Dilermando. Apenas a palavra fatalidade pode cobrir a imagem dessas trs pessoas e lhes servir de epitfio. ndice 1 Um trem que chega uma histria que comea 13 2 A menina Anna Emlia mais bela que a Repblica 17 3 Anna e Euclides da Cunha: depois da poesia, filhos e angstias 23 4 Penso Monat, Rua Senador Vergueiro, 14. Primeiro endereo de uma tragdia 25 5 Trs vidas se encontram: Anna, Euclides e Dilermando 32 6 Cartas inditas revelam a paixo de Dilermando de Assis 37 7 Uma criana morre de inanio 41 8 Nasce uma espiga de milho no meio de um cafezal 44 9 Tudo acontecia alm do vo da guia de Haia 48 10 Treze tiros e uma tragdia 51 11 Meu depoimento sobre a morte de Euclides 55 12 Ele chegou para matar ou morrer 59 13 Um corao de mulher no se devassa com palavras e razes 64 14 Pedido de casamento em bilhete de 2-10-1909 67

15 Surge uma nuvem sangrenta 73 16 Declaraes prestadas por Dilermando ao Conselho de Investigao 77 17 Quidinho foi instigado a matar Dilermando 80 18 Anna vende bolos de milho para comprar livros 89 19 A defesa histrica do Dr. Evaristo de Morais 92 20 Um livro para preservar a justia 99 21 A vida tranqila de Anna em Bag, Rio Grande do Sul 104 22 E ramos to felizes no Rio Grande do Sul. 108 23 O mistrio se escondia numa rua do Encantado. 112 24 Onde esto as outras vtimas deste trgico enredo? 116 25 A vtima esquecida de Euclides da Cunha. 118 26 Monteiro Lobato consulta a sua conscincia. 126 27 A vida isolada de Anna e filhos na ilha de Paquet. 130 28 Anna de Assis e filhos nunca viveram separados. 136 29 Manoel Afonso: um filho e irmo preocupado. 140 30 Anna e Dilermando no se viram durante anos. 144 31 Inqurito, imprensa e livros escreveram os equvocos sobre a morte deEuclides da Cunha. 147 32 Anna, Dilermando e filhos: condenados por mentiras e vinganas. 152 33 Laudo da necropsia de Euclides da Cunha apresenta uma trgica sentena. 159 34 O ltimo depoimento de Dilermando de Assis. 164 35 Mais uma entrevista injuriosa contra Anna de Assis. 167 36 Eu que posso falar sobre Euclides da Cunha: vivemos juntos! 173 37 Anna e Dilermando se reencontram sem testemunhas. 177 38 O sinal da cruz de S'Anninha o perdo. 181 39 No se vive e no se morre em paz neste Pas. 184 40 Uma coincidncia no cemitrio como derradeiro lance da fatalidade. 188 41 Dilermando no faz a sua ltima revelao. 190 e morre com um segredo 42 Dilermando e Anna viveram um grande amor. 197

43 Anna de Assis escreveu todas as frases de sua histria. 201 *** 1 Um trem que chega uma histria que comea Mulheres ansiosas esperam. Crianas assustadas observam. Homens calados esto atentos. O trem se aproxima. Ele traz os ltimos combatentes da Guerra do Paraguai. Na plataforma da estao, so mes e mulheres aflitas e saudosas que sonham com um abrao apertado; so pais que orgulhosos querem abenoar os filhos e crianas que, curiosas, desejam conhecer os pais, tantos anos ausentes. A Guerra do Paraguai comeou em 12 de novembro de 1864 e s terminou com a morte de Solano Lpez, em 1' de maro de 1870. Mas muitos militares brasileiros permaneceram nas fronteiras, e para estes a histria da guerra s terminou algum tempo depois. Este o caso do tenente Frederico Solon de Sampaio Ribeiro. A Guerra do Paraguai comeou para ele quando deixou a mulher Tlia grvida e marchou com o seu regimento, em maio de 1864, para Santana do Livramento, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Em outubro desse ano dirigiu-se ao Quara Grande para fazer parte do exrcito em organizao, sob o comando do general Joo Propcio Menna Barreto, e em 25 de novembro, j com a guerra declarada, seguiu com a tropa para o Estado Oriental do Uruguai, aliado do Brasil no conflito contra o Paraguai. Ele transps a linha divisria entre a provncia do Rio Grande do Sul e o Uruguai em 2 de dezembro e em 8 de janeiro de 1865 estava marchando em direo a Montevidu, ento ocupada pelas foras de Solano Lpez. Nos primeiros dias do ms de fevereiro, o tenente Frederico Solon fez parte das foras sitiadoras de Montevidu, at a sua capitulao em 20 daquele ms. E a guerra foi de sete anos para Frederico Solon, condecorado com a Medalha de Mrito Militar, vrias vezes elogiado pelo 13 comportamento exemplar e promovido a capito por ato de bravura praticado na batalha de 16 de agosto de 1869 nos campos de guerra. O conflito terminou no primeiro semestre de 1870, mas em 6 de agosto ele embarcava em Assuno e desembarcava em 7 em Humait, ainda em territrio do Paraguai, permanecendo a por longo tempo. Somente foi desligado do 2 Regimento em Humait em 11 de maio de 1871 a fim de retirar-se para o Brasil. O capito Frederico Solon sai para a guerra aos 24 anos de idade e retorna sete anos depois, muito mais velho que apenas sete anos, pois um homem na guerra sofre o suficiente para envelhecer alm do tempo que se conta com o movimento do relgio. O trem finalmente estaciona e h um ligeiro movimento entre as pessoas que esperam na plataforma. Elas se aproximam mais dos vages como que impelidas pela nsia de logo abraar e afagar os seus entes queridos que regressam. Logo aqueles homens fardados comeam a desembarcar, todos impacientes para os abraos de reencontro. So gritos, exclamaes, sorrisos e choros de alegria. um movimento incessante e desorganizado, apressado, como se todos desejassem em alguns minutos viver alguns longos anos de saudades e ausncia. E porque todos tm pressa, rapidamente se retiram, deixando a estao com aquela urgncia de esquecer logo os momentos de aflitiva espera. Paulatinamente, cessam os alaridos. Restam alguns, que

so mais lentos nos abraos, ou aqueles que, ainda doentes, com as marcas de ferimentos e cicatrizes de guerra, se locomovem mais devagar, com aqueles gestos que buscam evitar novas dores. Afinal, cessa a confuso, diminui o movimento na plataforma. O capito Frederico Solon no encontra ningum a esper-lo. Por trs de sua barba, negra e espessa, resta um rosto desiludido. Sua mulher, Tlia, no teria sido avisada de seu retorno? Teria acontecido alguma coisa? Tantas vezes a comunicao entre eles esteve interrompida que, provavelmente, ela o teria como morto na guerra. Ou algo teria sucedido a ela e ao seu filho, sem que ele o soubesse, l no interior e longnquo Paraguai. Frederico Solon ainda tenta encontrar a mulher entre algumas poucas pessoas que circulam pela estao, mas no a v. Caminha 14 em direo sada, e exatamente em seu trajeto est uma mulher que d a mo a uma criana, um menino. Os olhos daquela mulher tambm perscrutam os vages vazios. Ela comea a caminhar, tentando encontrar l dentro do trem o seu marido. A ltima notcia recebida de que ele regressaria aquele dia a Porto Alegre, pondo fim a sete anos de ausncia e podendo, finalmente, conhecer o seu filho com seis anos de idade. O capito Solon est a alguns metros da mulher, e nem ele nem Tlia se reconhecem marido e mulher. Afinal, os movimentos de um e de outro despertam-lhes a ateno, e Frederico olha para a mulher e o menino. Imagina que so Tlia e o seu filho. Aproxima-se e indaga: - Tlia? Ela responde: - Frederico? Aproximam-se, timidamente, como se dois desconhecidos estivessem prestes a se tocar. O capito Frederico Solon de Sampaio Ribeiro chega da guerra para abraar seu filho Albino e pela primeira vez ouvir algum cham-lo de pai. O novo encontro de Frederico e Tlia, marido e mulher, to diferentes, estranhos um para o outro, como um segundo casamento. Ele partiu moo, um rosto limpo e alegre, voltou com a barba crescida, modificado, marcado pelas mortes da guerra. Ela ficou ainda uma menina-moa, grvida e radiosa, e ele a rev mulher, gorda e com as marcas de saudades e sofrimentos numa fisionomia alterada. Assim se deu o reencontro do capito Frederico Solon e sua mulher Tlia, que viveram casados com outras temporrias separaes impostas por algumas misses militares do marido. Mas nenhuma outra separao foi to longa como esta, obrigada pela Guerra do Paraguai e por isso mesmo, a filha Anna Emlia, nascida em 18 de junho de 1875, na cidade de Jaguaro, no Rio Grande do Sul, diria a seus filhos, no sculo seguinte, que tinha nascido depois da segunda lua-de-mel de seus pais, duradoura e feliz, iniciada a 14 de junho de 1871 quando o seu pai se apresentou em Porto Alegre, regressando da Guerra do Paraguai e que se estendeu at o seu nascimento. 15 A menina nasceu e o nome foi escolhido segundo os estranhos desgnios de uma tradio da poca: chamar a pessoa por um nome e este revelar uma significao mpar e transcendente. O nome Anna Emlia significa rival da graa, e nessa escolha surgiu a primeira ironia do destino dessa menina que iria crescer bela, tornar-se mulher culta e voluntariosa, determinando de forma implacvel o destino de muitos que viveram em torno dela e transmitindo a seus filhos e a outras geraes um sentimento de venerao. Primeiro ela se chamou Anna Emilia Ribeiro. Tornou-se

Anna da Cunha, quando se casou com Euclides da Cunha, em 10 de setembro de 1890. Intimamente foi sempre S'Anninha. Depois ela se casou com Dilermando de Assis e passou a se chamar Anna de Assis. Este livro conta a vida de Anna de Assis. 16 *** 2 A menina Anna Emlia mais bela que a Repblica Quando Anna Emlia nasceu emJaguaro, seu pai encontrava-se novamente ausente do lar. Estava em Porto Alegre, matriculado no curso de Cavalaria e Infantaria da Escola do Exrcito do Rio Grande do Sul. A carreira militar de Frederico Solon histrica, e ele figura nos compndios escolares como o major Solon Ribeiro, aquele que foi um dos proclamadores da Repblica, em 15 de novembro de 1889. Ele foi promovido a major em 14 de julho de 1881 e s ento se transferiu do Sul do Pas para a Corte, designado para o I Regimento da Cavalaria Ligeira, apresentando-se a 26 de setembro. O destino de Anna Emilia se ligava cidade do Rio de Janeiro. Ela chegou ungida pelo prestgio. O major Solon Ribeiro tinha convidado o seu grande amigo baro do Rio Branco para padrinho de batismo da filha. Esse padrinho poderoso se tornar o seu protetor, auxiliando sempre o seu primeiro marido. Os trs filhos do major seriam matriculados em escolas militares para seguir a mesma carreira do pai e as duas moas estavam destinadas ao casamento, tudo conforme os padres e costumes da poca. A mulher se casava quase menina e nem sempre ela escolhia o companheiro. Muitas se casavam seguindo as determinaes do pai e segundo a vontade dos familiares. Sem dvida, a menina se apaixonar e o homem escolhido coincidir com a preferncia paterna era um lance de sorte, para alegria e felicidade dos apaixonados. No teve esta sorte a moa Alquimena. Ela se apaixonou por um rapaz e o eleito no satisfazia as vontades do austero militar Frederico Solon. Ele no cedeu aos rogos da filha e no permitiu 17 a realizao do casamento. Por infelicidade e desgosto, o rapaz apaixonado por Alquimena descuidou-se da sade e definhou at morrer, vtima da tuberculose. Com a morte do rapaz, Alquimena selou o seu juramentco: jamais se casaria e se tornaria freira, renunciando vida mundana. E fez votos de pobreza, um juramento mais forte e pertinent - dele jamais se afastaria, mesmo quando se viu obrigada abandonar a vida de clausura religiosa. Viveu sempre ordenada ao seu voto de pobreza. Essa determinao de personalidade e inflexvel comportamento uma herana paterna que, afinal, se manifestou tambm em Anna Emlia, em circunstncias diversas e vrias oportunidades: Tanto nos momentos felizes de sua vida como naqueles em que a tragdia a feriu e mortificou. Se Alquimena no pde se casar com quem escolheu, tal no se deu com a irm. Diante de tudo o que aconteceu, porm, no se pode afirmar que ela teve mais sorte do que a irm ao se casa com algum escolhido. E se os casamentos na poca se faziaim segundo a escolha do pai, no se pode afirmar tambm que ela tenha concorrido para o evento com a sua vontade,

j que quem se apaixonava era o homem. Ele escolhia a eleita, fazia o pedido de casamento ao pai e, se atendesse s vontades deste, podia se considerar um homem favorecido pelos deuses. Pelo que se depreende das afirmaes de Anna de Assis a seus filhos, no sculo seguinte, seu primeiro casamento no foi por amor. Ela sempre repetia: - S se ama uma vez na vida. E confessava: o grande amor de sua vida tinha sido Dilermando de Assis. No se pode ignorar, no entanto, que ela sentiu um grande entusiasmo pelo jovem cadete Euclides da Cunha. Se o seu pai vivia os momentos histricos que antecederam a Proclamao da Repblica, tambm o jovem Euclides participa de forma efetiva desses acontecimentos. E se o que ele fez despertou a admirao do major Frederico Solon, bem como dos jovens militares da poca, certamente atraiu tambm a ateno daquela menina de quatorze anos que, apesar da pouca idade, pde acompanhar as reunies que se realizaram em sua casa, visando queda do Imprio. 18 Depois da Guerra do Paraguai, intensificou-se a propaganda republicana. E o Exrcito se organizou, tomando conscincia de sua fora poltica. Mas o governo monrquico colocava o Exrcito em segundo plano, prestigiando a Guarda Nacional. Por isso, os militares, principalmente os jovens, encontravam-se descontentes e se manifestavam rebeldes s ordens imperiais. O Clube Militar foi fundado em junho de 1887 pelo marechal Deodoro e pelo major Benjamim Constant, assumindo uma posio de destaque no s na questo militar, como no abolicionismo. Consta de todos os registros histricos como memorvel a reunio de outubro de 1887, presidida por Deodoro, em que se aprovou o Memorial Princesa Isabel, no qual o Exrcito considerava repugnante a tarefa que lhe queriam atribuir de "capito do mato" na captura dos negros, fugidos do cativeiro. Afinal, a princesa Isabel assume a regncia do Imprio e assina a Lei Aurea em 13 de maio de 1888, abolindo a escravido no Brasil. No entanto, outras questes surgem para abalar o Imprio. Na rea militar, o governo presidido por Joo Alfredo, ministro de Dom Pedro II, consegue desagradar ao nomear o marechal Deodoro para comandante de armas do Mato Grosso. Dessa forma, era retirado da Corte um dos lderes militares enviado para verdadeiro "exlio" em 27 de dezembro de 1888. O sentimento republicando j se havia espalhado entre tenentes, demais jovens oficiais e at mesmo na Escola Militar, entre os cadetes. O Imprio uma instituio que se mantm, naquele perodo, em frgil equilbrio e tudo feito para demonstrar fora e domnio. no mesmo ms de dezembro de 1888 que se organiza a visita do conselheiro Toms Coelho, ministro da Guerra, Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. A inteno do governo monarquista era dar a impresso ao Pas de que mantinha sob seu domnio a disciplina no Exrcito. Nada melhor que promover uma pomposa solenidade no ptio de um quartel, colocar a tropa perfilada e pass-la em revista. A cerimnia dirigida pelo comandante da Escola, general Jos Clarindo de Queiroz, considerado um exmio disciplinador. Naturalmente, nada poderia modificar o desfecho feliz programado pelos monarquistas para aquele evento, misto de inofensiva formatura de cadetes para prestar continncia ao

19 ministro da Guerra e exibio destinada a impressionar as pessoas incautas que talvez sonhassem com a queda do Imprio. De repente, acontece o imprevisto. Por mais que ajudante de-ordem e comandantes corram nervosos para se agrupar em torno do ministro, tentando abafar aquilo que, inesperadament ocorre nas fileiras, o gesto do cadete se instala na cerimnia como um ato de rebeldia e como mais um brado a favor da proclamao da Repblica. O cadete Euclides da Cunha no se contm e se revolta em vista da encenao. No um simples soldado perfilado para prestar continncia, mas um jovem que tem os seus ideais republicanos e interpreta aquela cerimnia como um ato de humilhao a que tem de se curvar a escola. O seu protesto um golpe firme, decidido e histrico. A espada, que deveria subir em saudao e respeito autoridade ministerial, simplesmente atirada aos ps do atnito conselheiro depois de alguns segundos em que o jovem cadete se esforou para quebrar a arma tentando, inutilmente, verg-la. Ele sabia que deveria erigir um protesto, e no momento de realiz-lo se confundiu nervosamente tentando, primeiro, uma coisa e realizando, a seguir, outra. Era um simples soldado, ento, aquele que viria a escrever ( os Sertes), e realizou a sua primeira faanha na histria do Brasil. No poderia ser de outra forma a reao dos comandantes militares, fiis ao Imprio. Aquele simples e desconhecido soldado, no deveria empanar a cerimnia, que tinha como finalidade justamente, consolidar a autoridade do poder imperial. No se poderia creditar aquele gesto como mais uma manifestao de desagrado aos governantes. Por isso, Euclides foi recolhido enfermaria da Escola e, a seguir, enviado ao Hospital do Castelo, que providenciou incontinenti um atestado de louco para o jovem cadete, excluindo-o das fileiras militares. Era a monarquia que engendrava um ardil para esconder sua fraqueza e sua fragilidade. Para os colegas que permaneceram na Escola, Euclides da Cunha no era louco, e sim, um heri. E essa urea de herosmo acompanhou aquele rapaz at a Proclamao da Repblica, chamando a ateno, principalmente, dos oficiais militares que organizavam o evento que culminou em 15 de novembro de 1889. 20 Quando se aproximava o momento da revoluo republicana, os alunos da Escola Superior de Guerra relembravam o nome e o feito imponente de Euclides, prometendo lutar para a sua volta ao Exrcito, to logo institudo no Pas um novo poder. O seu nome era tambm falado e lembrado nas rodas civis. de se supor, que aquelas figuras de escol na revoluo, como Jos do Patrocnio, Quintino Bocaiva, Antnio Silva Jardim, Lopes Trovo, Rui Barbosa e muitos outros, soubessem do feito daquele rapaz. Antes da clebre reunio a 11 de novembro, na casa de Deodoro, quando ele se viu convencido a participar da proclamao da Repblica, qual compareceram, dentre outros, Rui Barbosa, Quintino Bocaiva, Aristides Lobo, Francisco Glicrio, alm de Benjamim Constant e o major Solon Ribeiro, outras reunies se deram com a presena dessas mesmas figuras, exceto Deodoro, exatamente na casa do major Solon Ribeiro. E em todas estas reunies os acontecimentos que exacerbavam os nimos republicanos foram discutidos e comentados, vista dos familiares do major Solon e, principalmente, de Anna Emlia, ento com apenas quatorze anos, mas uma curiosidade invulgar e uma vivacidade alm do normal para as meninas da

poca. Ela foi, assim, uma testemunha constante e atenta das marchas e contramarchas da proclamao da Repblica. Acompanhou todos os lances, conheceu todas as causas e relacionou em sua memria todos os eventos que surgiram na poca e se sucederam at o gesto histrico de Deodoro no campo de Santana, s 9 horas da manh do dia 15 de novembro. Por essa ocasio, a menina Anna Emlia ouviu todas as teorias da filosofia positivista que influenciaram os homens que proclamaram a Repblica. Tudo foi registrado em sua memria e ressurgiria tempos depois para determinar tambm o seu destino. Com ansiedade de filha, ao lado da me e irmos, acompanhou toda a movimentao de seu pai, um dos destacados lderes da revoluo. E a importncia do major Solon no movimento to grande e insofismvel que exatamente foi destacado por Deodoro para, no dia 16 de novembro, levar a mensagem ao imperador Dom Pedro II, solicitando-lhe que se retirasse imediatamente do Pas, a bordo do navio Parnaba, cruzando o Atlntico com destino a Portugal. 21 Hoje, muitos compndios escolares ilustram as pginas dedicadas Proclamao da Repblica com o quadro clebre que registra exatamente a entrega da mensagem de Deodoro ao imperador pelo barbado major Frederico Solon de Sampaio Ribeiro. A euforia se alastra pelo Pas e, entre os militares, um jbilo especial toma conta de todos. Os alunos da Escola Superior de Guerra comemoram a Proclamao da Repblica e desejam consolidar o movimento com atos que apaguem da histria do Pas os desmandos da monarquia. Imediatamente, solicitam a Benjamim Constant a reintegrao do cadete Euclides da Cunha ao Exrcito, o que se d logo a 19 de novembro, sendo que dois dias depois ele passa a alferes-aluno, por um decreto dos novos mandatrios do Pas. Nessa ocasio, em que se traam os destinos da nao brasileira, em que se organiza o primeiro governo da Repblica, cognominado Governo Provisrio, sob a chefia de Deodoro, tambm comea a se delinear a vida de personagem de outra histria. Um colega do soldado Euclides se oferece para lev-lo casa do major Solon e ele tem, assim, a chance de conhecer aquela figura importante que est conseguindo mudar os rumos de uma nao. So momentos de festa e comemorao, tudo regozijo e apenas um assunto domina as rodas e ambientes: a Proclamao da Repblica. Quando anunciada a presena do jovem cadete Euclides da Cunha na casa do major Solon, um alvoroo se espalha pela casa, pois aquele rapaz tambm foi alvo de muitos comentrios e admirao. E Anna Emlia, sem dvida, no seu encantamento de menina e euforia de mocinha, vibrou ao conhecer um jovem heri. A histria registra apenas a manifestao potica e oportuna do escritor Euclides da Cunha que, certamente, conquistou a bela Anna Emlia, pois no seno um galanteio brilhante. Ao se retirar da residncia do major Solon Ribeiro, Euclides deixou para a jovem Anna Emlia um bilhete, naturalmente entregue com as precaues necessrias a um primeiro encontro. Entrei aqui com a imagem da Repblica e parto com a sua imagem... 22 *** 3 Anna e Euclides da Cunha: depois da poesia, filhos e angstias Nem tudo na vida poesia. Um casamento se faz com o dia-a-dia, filhos e angstias.

Anna Emlia casou-se com Euclides da Cunha em 10 de setembro de 1890, logo aps a concluso do curso de artilharia do jovem militar que j em abril desse ano era nomeado segundo-tenente. Ele est com 24 anos. Nasceu a 20 de janeiro de 1866, em Cantagalo, Rio de Janeiro. Ela tem 15. Ele prossegue a sua carreira militar, estudando at dezembro de 1891 na Escola de Guerra. Em janeiro do ano seguinte, passa a primeiro-tenente. Ela comea a gerar filhos. A primeira a nascer Eudxia. Este o nome da me de Euclides. A menina morre aos quatro meses de idade, vtima da varola. Se a primeira filha levou o nome da av, uma homenagem a dona Eudxia da Cunha, o filho nascido a seguir se chamar Solon, homenagem ao famoso av materno que, seguindo a sua brilhante carreira militar, chegar a marechal Frederico Solon Ribeiro. Anna ainda foi me de mais dois filhos em seu primeiro casamento: Euclides Filho e Manoel Afonso, o nome do av paterno, Manoel Rodrigues Pimenta. A vida do escritor Euclides da Cunha muito conhecida, figurando nos livros escolares que tratam das letras nacionais e constantemente citado em amplas reportagens da imprensa brasileira. Circulam edies sucessivas de Os Sertes, publicado em dezembro de 1902, e em todas surgem notas sobre o autor, informando que ele se desligou do Exrcito em 1896, para se dedicar engenharia. Tornou-se colaborador de diversos jornais, sendo convidado pelo O Estado de S. Paulo para ser correspondente em Canudos. Na Bahia, ele permaneceu de 7 de agosto a 1 de outubro de 1897. Em meados de 1898, Euclides da 23 Cunha mudou-se para So Jos do Rio Pardo, em So Paulo. A princpio s, depois com a famlia. Instalou-se na rua Floriano Peixoto, esquina da 13 de maio. Foi o engenheiro responsvel pela construo de uma ponte, concluda em maio de 1901. Em So Jos do Rio Pardo, Euclides morou, construiu a ponte e fez a histria da cidade. Em 15 de novembro de 1925, o prefeito da cidade sancionou o seguinte projeto da Cmara Municipal: O Coronel Jos Pereira Martins de Andrade DD. Prefeito Municipal fez a seguinte indicao que foi unanimemente aprovada: Considerando a glria que adveio para S. Jos do Rio Pardo da residncia do doutor Euclides da Cunha nesta cidade, onde escreveu Os Sertes, o livro mais admirado da literatura nacional, considerando mais que este poeta trouxe para esta cidade uma grande fama, a Cmara Municipal resolve consagrar memria do preclaro cidado Dr. Euclides da Cunha, o dia 15 de agosto, que recorda o seu desaparecimento do cenrio da vida. Nesse mesmo ano, foi fundado o Grmio Euclides da Cunha de So Jos do Rio Pardo. No ano seguinte publicao de Os Sertes, o autor era eleito para a Academia Brasileira de Letras e, em 1904, nomeado chefe da comisso de reconhecimento do Alto Purus, realizando, ento, uma demorada viagem pela Amaznia. Retornar apenas em 1906 ao Rio de Janeiro. Se a vida de Euclides da Cunha pode ser facilmente levantada, analisada, estudada por meio de inmeras reportagens, artigos e ensaios, nada se pode saber sobre Anna da Cunha, uma vez que foi sempre acusada de ser a responsvel pela trgica morte do marido, no deixando, apesar disso, uma linha contraargumentando apenas o testemunho verbal, sempre ressalvado pela afirmao: - O meu silncio a minha defesa. 24 ***

4 Penso Monat, Rua Senador Vergueiro, 14. Primeiro endereo de uma tragdia Anna no foi feliz em seu casamento de quase 19 anos com Euclides da Cunha. Ela sempre o afirmou, e, se os ltimos anos o comprovam, os primeiros no teriam sido menos difceis, pelo que se pode vislumbrar. Na verdade, o casal nunca se entendeu bem. Apesar de alguns versos escritos pelo marido, como estes: Trancam-se os cus: eu tenho o teu olhar... Nem faz falta Deus, pois tu existes! O convvio com o homem intelectual se mostrou complexo. Os choques se sucedem. Anna, alm de se tornar uma bela mulher, possuidora de uma feminilidade graciosa e espontnea, ainda se conservou alerta para os acontecimentos do mundo, estudiosa e intelectualmente acima do normal para as simples donas de casa do fim do sculo passado. Se no temos o depoimento de Anna para narrar a sua vida conjugal com o famoso escritor, resta-nos apelar para alguns testemunhos importantes. As desavenas domsticas, surgidas logo nos primeiros anos de casamento, nunca foram segredo. Uma faceta da personalidade da menina Anna Emilia se desenvolve e, medida que vai crescendo como mulher, surgir com destaque e primazia. Anna da Cunha ser sempre uma mulher independente - o que no era comum. E todas que tentaram ser independentes naquela poca, na sociedade brasileira, foram castigadas pela discriminao dos costumes machistas e conservadores. 25 Essa forma de proceder de Anna da Cunha, no entanto, muito contribuiu para a tranqilidade do desenvolvimento da vida profissional do marido. Enquanto ele se ocupava com seus compromissos e se preocupava em construir sua obra literria, ela no deixou de ser me, e tampouco de tratar da educao dos filhos. Trechos de cartas de Manoel Rodrigues Pimenta, pai de Euclides da Cunha, revelam como ela se comportou na ausncia do marido com referncia educao dos filhos. A carta, a seguir transcrita, de Trindade, datada de 16 de julho de 1905. Como te mandei dizer, a Anninha veio aqui com os meninos e regressou no dia dez do corrente para So Paulo e Rio. Esteve aqui dezoito dias e fui com ela at So Carlos, onde esteve com tua irm. Eu aconselhei a seguir para a companhia do Jos na Bahia, onde estar muito bem e os meninos podero ter um bom colgio. Penso que ela ir em agosto, segundo combinamos e l esperar o teu regresso. Pareceu-me assim a melhor soluo, visto ser-me quase impossvel t-la aqui, no s porque me embaraaria muito em sair daqui, para tratar dos meus negcios, como porque teria de ficar longe dos meninos, que seriam colocados em algum colgio de So Paulo, igual ou pior que o de Lorena. No deves, portanto, preocupar-te mais com isso, pois, alm de tudo, compreendi que a Aninha tem bastante expediente para arrumar a sua vida. Ela veio sozinha do Rio com os meninos e voltou da mesma maneira, tendo eu verificado que os meninos estavam bem vestidos e tratados con venientemen te. Outro depoimento importante o do escritor mineiro Jlio Bueno, publicado no jornal Muzambinho, em 22 de agosto de 1909. Alguns trechos destacam a vida conjugal de Euclides e

Anna, alm de identificar o gnio temperamental do escritor. Conheci na intimidade o notvel autor dOs Sertes, na Campanha, quando ali estivera como engenheiro militar, encarregado da adaptao da Santa Casa para quartel do 8 Regimento de Cavalaria. J nessa poca distante, uma neurastenia incipiente comeava a perturbar a vida agitada do moo militar, cujos surtos intelectuais no tardavam a desabrochar. A, na quietude da cidade sul-mineira, lhe ocorre escrever Os Sertes, que o tinham de imortalizar. Entre os livros que lhe emprestei e que ele devorava numa grande ansiedade, um lhe fez grande mossa e talvez fosse o inspirador dOs Sertes: o livro de E. Liais, Giologie, flore, faune et climats du Bresil. 26 Para provar que a neurastenia j nessa ocasio comeava a minar latente o organismo vibrtil de Euclides da Cunha, vou relatar uma feio caracterstica do seu temperamento nervoso, de seu esprito agitado. Vizinhvamos e era raro o dia em que no jogssemos uma partida de inocente gamo. Dentro em breve compreendi que tinha diante de mim um doente. A princpio, eu fazia o meu jogo, empenhado em ganhar a partida. Porm, como isto sucedesse vrias vezes seguidas, percebi que Euclides ficava exacerbado, trmulo, terminando sempre por sair pisando forte e sem se despedir. Uma vez que prendi suas tvolas no canto extremo do tabuleiro, fechando todas as casas desse lado, o moo, transfigurado, levanta-se e me intima que deixasse uma aberta por onde pudessem sair as suas. Eu, com a maior calma, retorqui: - Mas, dr. Euclides, isto no permitido. Do contrrio perderia todo o interesse a batalha. Bramou ele: - Eu no sou escravo de regrinhas de jogo, ouviu? Isto mera conveno. Fica para ns estabelecido que no se deve bloquear o adversrio, inutilizando-o, deixando-o na atitude vexatria de um inativo. Compreendendo o que desejava o meu adversrio, assenti na adoo de uma regra nova no mais velho dos jogos. Disse-lhe simplesmente, com a maior bonomia: - Seja assim. Dr. Euclides ganhou a partida. Ento, levantou-se muito ufano, muito radiante, dizendo-me: - Voc, v aprender para jogar comigo. Fique sabendo que eu sou invencvel no gamo. Eu concordei com o caro amigo, no querendo extinguir aquela alegria. Nesse tempo, 1895, conheci a esposa do malogrado moo. Era verdadeira dona-de-casa. Exercia ela, felizmente para a felicidade do lar, um grande ascendente sobre o marido, aconselhando-o, advertindo-o, procurando arred-lo das bancas de jogo, visto lhe conhecer o gnio arrebatado, o seu temperamento de impulsivo. Era comandante do 8 Regimento de Cavalaria, o coronel Cristino Bittencourt, que, como o seu ilustre irmo, ministro da Guerra de Prudente, era verdadeiro tipo de oficial, devotado disciplina a mais rigorosa. No ria nunca, mesmo com as mais elevadas patentes do Regimento. Nas rodas oficiais e de civis, quando o coronel Cristino chegava, a conversa era mais sbria, mais circunspecta, mais disciplinada. Euclides era o nico que se rebelava contra aquela atmosfera de formalismo. Ele contava, com a maior satisfao, pilhrias picantes, que provocavam do tenente Arduno boas gargalhadas. O prprio comandante desenrugava a fronte e sorria.

27 Na Campanha, Euclides da Cunha teve a prova da estima daquele povo generoso, que sabia aquilatar do valor do grande patriota, do genial autor dOs Sertes. L est a praa que fica em frente Santa Casa com o nome imortal de Euclides da Cunha. Mas aquele grande esprito tinha uma falha; aquele imenso corao tinha um ponto; aquela alma adamantina, como um novo Gulinan, tinha uma jaa; aquele Himalaia de patriotismo, de dedicao para os fracos, para os oprimidos, para os pequeninos, para os infortunados, tinha uma caverna escura; como Aquiles, o heri de Homero, tinha um ponto vulnervel; aquele cultor apaixonado do dever, tinha um seno: - essa falha, esse ponto negro, essa jaa, essa caverna escura, esse ponto vulnervel, esse seno, era o abandono moral da companheira, daquela que, cheia de sustos, cheia de afeto, de carinho, de zelo, de dedicao, o aconselhava, o advertia, o arredava dos perigos, procurando cerc-lo de uma atmosfera de calma e de repouso. Porm o grande homem, por uma fatalidade idiossincrsica, correspondia mal a essas disposies da esposa. Da a tragdia que durou tantos anos a ser representada, tendo o seu desfecho fatal na cena da Piedade, cena que nos enche de pavor e de imensa comiserao, mas que seria inevitvel, fatal, dados os precedentes que a determinaram. Anna da Cunha exercia grande ascendncia sobre o marido - a concluso de um amigo ntimo, de um vizinho e de quem conviveu com o casal. Se a vida profissional de um homem brilhante, no significa que a sua unio conjugal tenha de ser feliz e maravilhosa. Se a mulher no fim do sculo passado, se a mulher nas primeiras dcadas do sculo XX, era uma simples geradora de filhos, Anna quis ser muito mais do que uma submissa esposinha. Jamais deixou de ser uma mulher sonhadora, apaixonada e romntica. Se aos 14 anos ela era uma menina passiva s determinaes paternas, aos 25 ainda preocupada em organizar a vida familiar, no ser a mesma aos 30 anos. Antes de novos fatos, apresentamos uma carta de Euclides da Cunha em que ele nos informa que sua vida familiar era conturbada tambm no relacionamento dele com os parentes da mulher. Esta carta data de 1894, ou seja, transcorridos quatro anos do casamento. Rio, 7-01-1894 D. Tlia. Fui a So Paulo e trouxe a Saninha e o filhinho. Esto em Palmeiras. Sra., como me de minha mulher, entendo fazer esta participao. Fao-a 28 por escrito, porque no a posso fazer a viva voz, impossibilitado como estou de entrar numa casa em que se me fez a mais dolorosa injustia e onde se ouviram complacentemente as calnias lanadas por um beleguim sobre um rapaz honesto. Estou bem certo de que o meu velho amigo o general Solon considerar-me- sempre co mo mereo; mais conhecedor desta vida e mais experimentado, ele aquilatar melhor acerca destas coisas. No veja nestas linhas o mnimo trao de rancor; escrevo-as perfeitamente

sereno; a minha conscincia, to agitada, s vezes, est neste momento perfeitamente lcida. Depois da triste desiluso que sofri s tenho uma ambio: afastar-me, perder-me na obscuridade a mais profunda e fazer todo o possvel para que os que tanto me magoam esqueam-me, como eu os esqueo. Quando se terminar a agitao da nossa terra, eu realizarei ainda melhor este objetivo, procurando um recanto qualquer dos nossOs Sertes. uma coisa deliberada, visto como convenci-me de que a dignidade e toda a sensibilida de mesmo dos que vivem constantemente preocupados da prpria honra, so, na nossa sociedade, coisas perigosas, que levam ao martrio. Os meus amigos, que felizmente sabem o que valho, sabem quanto tenho sofrido. Terminando estas linhas acredito que a Sra. justificar a minha ausncia enquanto persistir sobre mim o juzo ofensivamente dbio que fez de mim e ao qual absolutamente repilo. Eu compreendo que me odeiem, mas eu no compreendo que tentem aviltar-me. Mais uma vez devo dizer que me resta a consolao de acreditar que o venerando amigo, cujo nome dei ao ente que mais estimo, cujo nome pois eu desejaria por isso mesmo ver bastante elevado, que o meu sogro, em suma, me far justia. E se tal no se der, ento, porque vai muito adiantada j a surda e traioeira conspirao que pressinto em torno de mim, restando-me permanecer num silncio altivo e sobranceiro. Terminando, devo pedir a Sra. um ltimo e grande favor: que o meu nome no seja mais pronunciado na sua sala, desejo ser inteiramente esquecido. Desculpe-me a extenso desta explicao. Seu genro respeitador Euclides da Cunha. O beleguim, a que Euclides se refere na carta, o seu cunhado Adroaldo Solon. Atualizamos a grafia da carta, deixando apenas o nome S'Anninha na forma escrita por Euclides da Cunha: Saninha. E outra carta, de Manoel Rodrigues Pimenta, de 1905, fala da vida conjugal de Anna e Euclides. No tens sido franco nem leal comigo. Temos estado juntos algumas vezes; eu a estive ultimamente at retirei-me bem aborrecido e at hoje no conheo nada dos teus recursos. Sei apenas que tens quantia no pequena 29

em um banco de Manaus, e, entretanto, se eu tivesse conhecimento pleno da tua vida, ser-me-ia fcil e at agradvel dar uma direo vantajosa a esse recursos, pois, para isso, sobra-me experincia. Nada me disseste, eu compreendi somente que havia falta de confiana. mas, como esta no se impe a ningum, retirei-me da apressadamente contrariado, no s por isso, como tambm pela forma estranha como tratas tua mulher e filhos, sobretudo a Solon, a quem mais estimo. Pensei que o trato que tens feito e sobretudo os meus conselhos tivessem modificado a tua maneira de viver, mas encontrei os mesmos destemperos, a mesma desordem de outrora. Encontrei os mesmos destemperos, a mesma desordem de outrora. A desordem conjugal foi uma constante na vida daquele casal. Quando Euclides da Cunha se viu nomeado chefe da Comisso de Reconhecimento do Alto Purus e viajou para a Amaznia, sua nsia de partir e cumprir a misso foi tamanha que simplesmente se esqueceu de deixar recursos financeiros para sua famlia de forma que pudesse subsistir na sua ausncia. Anna confessou que teve de se valer do sr. Fonseca, proprietrio do Bazar

Amrica, na Rua Uruguaiana, para a manuteno do seu lar. Aos 37 anos, Euclides da Cunha um nome famoso. Mas no um homem rico. Passa, com a famlia, por muitas dificuldades. Aos seus infortnios de ordem econmica e financeira, s suas alucinaes e desvarios de homem culto e inteiramente voltado ao saber, junta-se a doena incurvel, uma tuberculose crnica. Esse homem se v constantemente ameaado por hemoptises imprevistas, mas mesmo assim no hesita em embarcar a 13 de dezembro de 1904, no navio Alagoas, rumo Amaznia, interessado em cumprir zelosamente a tarefa de demarcar os limites do Brasil com o Peru, na regio do Alto Purus, no Acre. Anna est no Rio de Janeiro, morando no bairro Cosme Velho com os seus trs filhos, completamente enredada em suas dificuldades financeiras. Ela busca uma soluo. J no tem seu pai vivo, a quem pudesse recorrer. O marechal Frederico Solon faleceu a 10 de janeiro de 1900, em Belm do Par, onde era o comandante do Arsenal de Guerra. Sua me, nessa ocasio, era uma mulher doente, aos cuidados da filha Alquimena, que teve de abandonar a vida religiosa de clausura para se dedicar aos afazeres domsticos e servir como enfermeira domiciliar. 30 E com os irmos Anna no poderia buscar auxlio, uma vez que ou se encontravam fora do Rio ou no aceitariam colaborar com a mulher e filhos de um homem com o qual no se davam. Ela receber amparo justamente do seu sogro, que reside no Estado de So Paulo. Ao se ver envolvida em outras premncias financeiras, Anna resolve viajar para So Paulo e internar os dois filhos mais velhos num colgio ingls. Retorna ao Rio com o caula, Manoel Afonso e, para ter reduzida as suas despesas, resolve morar com o menino na penso Monat, na rua Senador Vergueiro, n 14. Nessa rua, nesse endereo, ela seria feliz e viveria o incio de um grande amor, a ela comearia a se chamar Anna de Assis e daria o primeiro impulso roda dos infortnios e tragdias que ilustram a vida de tantas pessoas. Um rascunho escrito por Dilermando de Assis e deixado para os seus filhos registra a ocasio com esta frase: A morava tambm sua velha conhecida (de Anna), D. Lucinda Rato. Esta e sua irm Anglica Rato seriam peas de capital importncia na tragdia. Aquela daria o primeiro n da trama terrvel... Ora, o n de uma tragdia se faz com uma mulher bonita, inteligente, plenamente saudvel e com todo o seu vigor feminino florescendo aos 30 anos de idade de um lado e a solido, a esperana e os anseios romnticos de outro, alm de um rapaz bonito e atraente. 31 *** 5 Trs vidas se encontram: Anna, Euclides e Dilermando O outro lado do lao tem a seguinte histria: Dilermando de Assis ficou rfo de pai aos quatro anos de idade. Era filho do tenente de Cavalaria Joo Cndido de Assis, que faleceu a 1 de maio de 1892, em Santa Vitria do Palmar, Rio Grande do Sul. Aos 9 anos de idade, Dilermando foi internado em colgio religioso, na cidade mineira de Uberaba. Em 1898, foi transferido para So Paulo, tambm para colgio religioso, permanecendo no mesmo educandrio at 1902. No ano seguinte, transferiu-se para o Rio, ingressando nas foras armadas pelas

mos do seu tio e padrinho, major Jos Pacheco Assis. Um instante para um parntese - a transcrio de um comentrio escrito por Dilermando de Assis, que surge como contundente justificativa para alguns acontecimentos de sua vida. Quer nuns, quer noutro estabelecimento, as noes de lar e de famlia eram a preteridas pelos dogmas da crena e teorias da cincia, O meio colegial, dspar pelos costumes e procedncia, era uma gleba amorfa e estril ao cultivo dos sagrados sentimentos de famlia: a educao moral domstica deixava muito a desejar. O carter em forma o sofreu, assim, ao embate da prepotncia dos viciados, sempre dominantes, o decalque natural, decorrente do meio em que medrava e se desenvolvia. Em 30 de abril de 1904 faleceu, em So Paulo, dona Joaquina Carolina de Assis, me de Dilermando e de Dinorah. O irmo da falecida, Joaquim Nicolau Rato, nomeado tutor dos menores. Por ocasio da morte da me, Dilermando encontrava-se em So Paulo. Havia participado da revolta do "quebra-lampio" e por isso excludo da Escola de Guerra no Rio de Janeiro. Essa rebelio se deu quando a populao do Rio se voltou contra o decreto do governo Rodrigues Alves determinando obrigatria 32 a vacinao para erradicar epidemias como a febre amarela, a peste bubnica, a clera, a varola e a malria. O saneamento estava sob o comando do dr. Oswaldo Cruz, que contrariava vrios interesses. A rebelio foi fomentada tambm nos quartis. Amotinou-se a escola da Praia Vermelha, que agiu como toda a populao. Os lampies de iluminao a gs espalhados pela cidade foram destruidos. Foras legalistas invadiram a Escola Militar e abafaram a rebelio. Em 1905, foi anunciado um projeto de anistia aos revoltosos e Dilermando de Assis se viu em condies de regressar ao Rio. Estava em Santos, na casa do tio Joo Carlos Rato. Dirigiu-se a So Paulo e encontrou-se com outros parentes antes de embarcar para o Rio. Nessa passagem por So Paulo, ao invs de seguir diretamente para o Rio, comeam os contornos de todas as tragdias. Uma das irms de Joo Carlos Rato incumbe Dilermando de levar para o Rio um lbum de msicas para ser entregue a uma tia. O endereo rua Senador Vergueiro, n. 14, Penso Monat. Ao se recorrer a Dilermando de Assis, que deixou livros publicados e falou imprensa, sabemos como se deu o seu encontro com S'Anninha, como se apaixonaram e como tudo aconteceu. Ele escreveu: No Fim de setembro de 1905, surge na Penso Monat um elegante rapaz de dezessete anos, alto, louro, desempenado e garboso em sua Farda apertada de cadete da Escola Militar. De So Paulo, aonde fora em rpida viagem, trouxera um pacote de livros para D. Lucinda, sua tia materna, que estava no salo, em companhia de S'Anninha. Feitas as apresentaes, a esposa de Euclides, desde logo perturbada com a atraente presena do rapaz, faz-lhe vrias perguntas. Sabe, ento, que o cadete Dilermando de Asss, rfo recente, mora numa fortaleza, perto da Escola Militar, em condies de grande desconforto. D-lhe conselhos: no devia sacrificar a sade. A penso Monat era tima e barata. Podia morar a, entre pessoas amigas. A idia pressurosamente acolhida pelo jovem, que ali se instala. J porque Ficava mais prximo Escola, aonde devia ir ter em breve, j porque me emancipava do rigoroso horrio dos escaleres daquela praa de guerra, tal aceitao se impunha. Convinha-me, por isso. Contava, ento, dezessete anos e nenhum mal se me afigurava ir naquela deciso, pois via ali a casa de uma parente e de uma amiga de minha me, e nunca a de meu desconhecido, dr. Euclides da Cunha, cujo nem ouvia

Falar, Jamais imaginara desse passo me adviesse tanta desventura nem no que podia degenerar. 33 A convivncia acarretando a intimidade; a falta de experincia ou malci permitindo a aproximao mais ntima; a vida no mais de enclausurad abrindo novos horizontes; as leituras em comum despertando fantasias; puberdade vislumbrando encantos; os espetculos inviscerando deva neios; coincidncia de predilees esportivas trazendo o embevecimento; o retir facilitando o imprio da natureza; a ausncia de um conselho protetor que advertisse do curso da idolatria prestes a converter-se em paixo e tanta outras circunstncias, j materiais, j morais, ora de maior, ora de menor monta que seria ocioso enumerar, tudo concorreu para o despertar de novos sentimentos. E assim, nessa ebriez incontvel, imperceptivelmente se consumou o meu crime. Porque s onde vejo a transgresso Lei: no ter amado, aos dezessete anos, uma mulher casada cujo marido que no conhecia se achava ausente, em paragens longnquas, sem mesmo ser lembrado, sequer por inanimada fotografia. Era a fatalidade, tinha de ser assim, tal havia de suceder de setembro a outubro de 1905. A penso Monat deixa de ser a residncia ideal para os enamorados. S'Anninha aluga uma casa na rua Humait e l vive dias, semanas, meses de uma paixo intensa e exaltada. Euclides da Cunha, na Amaznia, quase no se correspondi com S'Anninha. Vez e outra telegrafava ao amigo Domcio da Gama e pedia notcias de suas "quatro enormes saudades". No entanto, o escritor no sabia sequer onde morava sua mulher. Retornemos descrio do prprio Dilermando de Assis. Em janeiro de 1906, S'Anninha foi surpreendida, certa manh, em seu ninho de amor, pela visita de um empregado do bazar Amrica, da rua Uruguaiana, atravs de cujo proprietrio, Batista da Fonseca, correspondente do marido, recebia os recursos necessrios para viver, O caixeiro trazia-lhe um telegrama que lhe fora dirigido aos cuidados da firma. Dizia: "Estou na baa a bordo do "Tennyson" Mande-me buscar. Euclides. Era o fim do idlio. Nesse dia, encontram-se, pela primeira vez, o cadete e o escritor. Pensando que assim dissiparia as suspeitas do marido, Dilermando vai ao cais, com os empregados da casa, receber Euclides. Ao jornalista Francisco de Assis Barbosa, para a revista Diretrizes, em 6-11-1941, Dilermando de Assis revelou: Foi quando vim a conhec-lo, sendo-lhe apresentado como um "filho da irm de sua comadre Anglica Rato". Um compromisso de honra obrigoume a esse vexame. Retirar-me naquele instante, tendo permanecido em 34 companhia de sua mulher durante tantos meses, seria denunciar o extremo a que chegaram nossas relaes. Eu tive que o fazer, para evitar mal maior. Errei? No errei? Quem poder diz-lo? O maior erro j estava consumado. O certo que sofri bastante. Contudo, julguei que assim deveria proceder. Era um mal, no h dvida, porm, que visava produzir um bem, evitando mal maior ou a catstrofe. J no morvamos mais na penso de madame Monat e, sim, na rua Humait, que passei a visitar aos sbados, at que a Escola de Guerra terminou a sua transferncia para Porto Alegre. Parti em maro, quase trs meses aps a chegada de Euclides. O que se passou, ento, entre esposos e que muito revelaria da energia e

da dignidade de D. Anna, nesse transe, so fatos que no precisam ser relatados em todas as suas cruis mincias. Seria deselegante e mesmo desnecessrio, pois constam dos autos. Em todo caso, no esquecendo que muitos deles tiveram de vir a pblico, fora das circunstncias, devo dizer-lhe que logo nos primeiros dias de sua chegada do Acre, Euclides j desconfiava de tudo. No faltou mesmo quem anonimamente o denunciasse a ele. Depois de uma das minhas costumeiras visitas rua Humait, notei-lhe que traa essa desconfiana. Meus irrefletidos 17 anos fizeram com que lhe dirigisse uma carta, cuja resposta alis no se fez esperar. a seguinte: Dilermando, No querendo demorar a resposta sua carta de ontem, escrevo-lhe neste papel, certo de que me desculpar. A minha resposta simples: h grande, absoluto engano no que imagina. A questo muito outra - e voc inteiramente estranho a ela. Veja o inconveniente de se tirarem dedues de fatos e palavras isoladas. Alm disso, apesar de aborrecido por um sem nmero de contrariedades, julgo que no o tratei mal. Na sua idade nunca se um homem baixo. No creia que lhe houvesse feito uma tal injustia. A minha casa continua aberta sempre aos que so dignos e bons. No poder fechar-se para voc. Quando souber a razo do meu aborrecimento, avaliar a injustia que fez a si prprio e a mim. At sbado. Estude, seja sempre o mesmo rapaz de nobres Sentimentos, e disponha dos poucos prstimos du am., crd., obri. Euclides da Cunha Era uma bela lio de moral que eu recebia. Fiquei profundamente chocado com essa carta. Senti que no andava bem. Mas que fazer naquela contingncia? Tinha que ficar calado; do contrrio, seria pior. Ainda que o escritor Euclides da Cunha estivesse ignorando os acontecimentos, teve de S'Anninha uma meia confisso. Como foi, ela teve de relatar a um delegado de polcia anos mais tarde. Assim: .. Que no dia 1de janeiro de 1906, ela, informante, recebeu da Casa Fonseca da rua Uruguaiana, "Bazar Amrica" correspondente da informante, um telegrama comunicando que seu marido se achava a bordo de um vapor chegado ao porto desta capital, de volta do Acre. 35 ..que ela, informante, nessa data escreveu uma carta a seu marido, dizendo que, como se julgasse indigna dele, por hav-lo trado espiritualmente na ausncia dele, no sabendo se pelo bem-estar que tinha livre dos maus tratos e pela falta de carinho com que ele a tratava, achava que ele devia prolongar a separao, j que ele era um homem de grande talento e estudos cientficos, conhecia a incompatibilidade de gnios entre ela, informante, ele, seu marido, ou por meio de uma nova comisso ou pelo divrcio; que essa carta, ela, informante, entregou a seu marido no dia de sua chegada de noite; que, chamando-a depois de entregue a carta, lhe perguntou seu marido se ela, informante, havia profanado o seu corpo, ao que ela respondeu, diante da pergunta, que havia profanado s o esprito. 36 *** 6

Cartas inditas revelam a paixo de Dilermando de Assis Quando S'Anninha confessa ao marido sua traio espiritual, argumenta que s h uma soluo: prolongar a separao entre eles por meio de uma nova ausncia do escritor, ou o divrcio. Faltou-lhe coragem para uma confisso completa. E ela se encontrava grvida de trs meses. Dilermando quem escreve: Ao marido parece ter faltado a agudeza necessria para compreender que a incompatibilidade alegada no era fingida, mas real e profunda. Admitindo, talvez, a validade das razes por ela apresentadas contra ele, Euclides disse-lhe que no dava importncia o que tivesse podido pensar, uma vez que seu corpo no fora profanado. Continuou a esposa a partilhar o leito conjugal. Evitou novos encontros com o jovem amante e procurou por todos os meios e modos dissimular a gravidez. Isto, porm, logo se tornava impossvel: a verdade no confessada surgia, brutal e acusadora, O marido, certo da traio, lana-lhe os maiores insultos e rasga-lhe, em fria, as vestes. Dilermando, que se transfere para a Escola Militar do Rio Grande do Sul, despede-se do casal, num bilhete cerimonioso. Euclides abre-o, l em voz alta, perante as pessoas da casa e hspedes ocasionais. S'Anninha ouve, trmula, transtornada com aquele golpe, quando o marido exclama, contemplando-lhe o rosto desfeito: - Vejam a cara dessa mulher! E me digam se no a de quem est se desprendendo do ente que mais ama! A resposta de S'Anninha uma desesperada crise de choro. Os meses que se seguem so terrveis, de ameaas e de pavores constantes. Aps a primeira humilhao na presena dos criados e de uma senhora, hspede da casa, de nome Zulmira, S'Anninha no consegue disfarar o seu abatimento. Euclides tinha razo ao afirmar que aquele era o semblante de quem se desprendia do ente que mais amava. Para termos uma exata idia da paixo do jovem cadete por S'Anninha, basta examinarmos as suas cartas que agora so 37 transcritas pela primeira vez. E, se no temos as respostas, no por isso que no podemos imaginar correspondncia de paixo no mesmo nvel. Eis as cartas: Carta n2 1. Bordo do Itatuba em viagem para Paranagu Minha nunca esquecida e queridinha S'Anninha. Foi triste o nosso adeus!... Foste-te pela avenida em fora, enquanto eu, no podendo dominar as lgrimas que em borbotes jorravam-me dos olhos, dando o brao ao meu companheiro, encaminhei-me para a nossa separao. Era preciso que assim triste fosse a nossa cruel despedida, para que nada deixssemos transparecer do nosso intenso amor. Ainda com a tua frgil e delicada mo me acenaste dando-me, quem sabe, o ltimo adeus. Foi a, con vencido ento da realidade, que no me pude conter e... chorei. Chorei lgrimas ardentes que me incandesceram as faces, podendo perceber apenas a imagem querida de teu semblante adorvel e a dor do teu terno corao. Di, di muito, mas assim preciso. No te deixei s ao passo que eu encaminho-me para o exlio onde sentirei tristes dores, longe de ti, sem me molhar em suas queridas lgrimas, sem sentir o calor de teu rostinho formoso, a suavidade de teus seios, onde tratarei da vida com todos os esforos, esperando sempre uma fase mais feliz e prazenteira. No chores, te peo. Guarda as tuas lgrimas que valero mais noutra ocasio.

No repares a letra pois o vapor est jogando muito. S samos do Rio s 2 horas da noite. No podendo dormir e s, sentei-me no banco em que estiveras e pedi a meu filhinho que te conserve com sade e que te proporcione todas as felicidades que almejares. Adeus, querida, at Florianpolis. Donde te escreverei. Aceit mil beijinhos do teu Amado. Mandes o Ant. buscar a minha navalha, digo, a caixa da navalha que ele deixou na rua General Cmara, n. 112, onde foi afiada a navalha. Carta n. 2 Bordo do Itaituba no porto de Florianpolis 9-IV-07 Minha adorada e sempre idolatrada esposinha. com grande nsia que s pressas delineio estas palavras para darnotcias minhas. Como hs de querer, vou te comunicar o que tenho passado a bordo. J te mandei dizer que o vapor partiu s 2 horas e chegamos em Paranagu ontem, de onde te enviei a carta n. 1, registrada, mandando-te 38 as minhas dores, as saudades e a crueldade do exlio a que me destino. No primeiro dia estive, depois que cruel e friamente te deixei, acordado at s 3 horas, depois de procurar nas trevas da noite divisar a potica igrejinha em que parecia-me estares ainda minha espera, para o duradoiro at a volta. Nada!... Tudo estava escuro e ento convencido da dura realidade, procurei no leito acalmar a exaltao de minha alma to apaixonada por esse anjo que desgraa ni ente descr. E assim, docemente embalado nas guas do Atlntico, dormi. O dia seguinte passei na cama at a hora da janta. Comeou ento o temporal que durou at Paranagu. Em cima, no tombadilho, s ficamos 3 rapazes. Deixei a terra, j era noite e na volta fui dormir. Hoje, o dia foi agradvel, levantei-me cedo e almocei s dez horas. Poucas so as pessoas que saem dos camarotes, pois o mar tem (Seguem-se trechos ilegveis) faz pouco dos meus juramentos. Que fazer, meu Deus? Esperar que proporcione-se a ocasio para que todas as dvidas sejam ento dissipadas, antes que frondosos, seus ramos tentem cobrir os raios do sol que j tantas vezes tem sido ofuscado pelos arrebentos de cime sarcstico que te orla o corao, to meu querido. Carta n 3. Bordo do Itatuba, entrada da Barra do Rio Grande. Adorada e saudosa esposinha. a terceira vez que, com grande satisfao tomo da pena, no s para cumprir um dever para contigo, como tambm, e mais ainda, para contentar o meu pobre corao, que tanta falta tem sentido e h de sempre sentir de ti, minha queridinha. Que saudades?!... A viagem tem sido maravilhosssima - at aqui, salvo aquele ligeiro temporal de que j te falei. Decididamente, s a teu lado poderei viver satisfeito. A bordo, caminho para um lado e para outro, do convs ao tombadilho, de bombordo a boreste, converso com um, no satisfeito, procuro outro companheiro, ainda a no me acho bem, vou a um camarote, abro as malas, e s escondidas, olho para o que foi teu, contemplo tua imagem querida, beijo-a, choro, mas qual, sinto-me sempre mal, falta-me uma causa que no vejo, que no sinto, que no posso abraar e beijar com aquele intenso amor com que havias e fazia contigo... um horror a minha vida. Talvez no acredites porque ests longe e

no podes apreciar. Perdoa-me esta letra to triste, com o jogo do vapor, no posso escrever bem. J vejo de perto os belos montes de areia que orlam as praias dos nosso queridos pampas e ento sinto-me bem longe de ti, separado por extensos 39 mares e talvez, por um, dois, trs anos, e, quem mo dir, por toda a eternidade?! Ser possvel?! Poderei morrer sem te ver? No; hei de ver-te, ainda que moribundo mal possas ouvir o rouquear do peito de quem tanto [..." O restante da carta est ilegvel. No Rio, S'Anninha recebe as mensagens apaixonadas de Dilermando e sofre sua gravidez acusadora. Afinal, Euclides tem certeza de tudo que aconteceu. Ele chama a mulher e confessa que ainda a ama. Em outros momentos, desvairado, ele afirma que no quer se ver envolvido num escndalo pblico que se refletiria tambm sobre os filhos. Euclides dialoga com a mulher. Calmo, declara que a perdoar magnanimamente, desde que ela no mais falseie a f conjugal. So dias de angstia e desespero. S'Anninha chora a ausncia de quem ama, gera um filho dessa unio e tem de se submeter s imposies do marido. Intimidada, ela cede. Mas em vo ela tenta apaziguar o marido, que alterna momentos de paz com alucinadas atitudes de homem trado. 40 *** 7 Uma criana morre de inanio manh de sol no Rio de Janeiro. um dia comum na vida da cidade. No h calma e tranqilidade na casa da Rua Humait, n2 Desde a madrugada, correria, um alvoroo estranho agita o ambiente. Ningum dorme h horas. Anna da Cunha no sabe se atende o marido doente, vitimado por aguda crise de hemoptise, ou se busca socorro mdico. Isso ela deveria fazer, simplesmente. Mas no pode. Ele no permite. E grita, exasperado, que no se afaste, que permanea a seu lado e lhe prove ser a sua mulher, a sua companheira. Anna pede ajuda aos empregados da casa, mantm afastados os filhos, no os quer ouvindo os desvarios do pai. Ele a chama de traidora, mistura frases e pede-lhe que no lhe abandone. A pequena bacia serve para colher o sangue doente que escorre da boca de Euclides. Entre vmitos, enfraquecido pela crise da hemoptise, ele murmura pedidos de perdo, tenta se reconciliar com a mulher. Anna procura acalm-lo e desfazer suas dvidas, promete-lhe ser fiel. Euclides chega ao ltimo desespero. Mesmo debilitado, levanta-se da cama e caminha na direo da mulher. Estende a pequena bacia de sangue e diz Anna: - Beba. E prove assim que me ama. Anna foge e, amedrontada, passar dias afastada de Euclides. Ela no poderia supor que o pior ainda estaria por acontecer. Em 11 de julho de 1906 nasce o menino Mauro. Euclides registra a criana como seu filho chamando para testemunhas um amigo ntimo, seu confidente, o dr. Cndido

41 de Siqueira Campelo e o caixeiro de um armazm prximo do cartrio, de nome Francisco Alves. Esse filho, Anna ter nos braos uma nica vez. Ela se v prisioneira em seu prprio quarto, confinada na sua prpria casa. impedida de amamentar a criana. No sabe o que est acontecendo e ningum surge para socorr-la. Em vo ela implora ao marido que lhe traga a criana. A porta do quarto permanece trancada. Ela est s. At os empregados da casa so mantidos afastados, impedidos de auxili-la. O marido se instala numa vigilncia obstinada e no cede, conservando-se indiferente ao desespero da mulher. Anna se lana contra a porta trancada, esmurrando-a, gritando e chamando pelo filho. Ningum pode sequer se aproximar daquele quarto. Ela no consegue fugir, uma fraqueza enorme a domina e, extenuada, abriga-se em seu leito. As dores do parto recente j no a torturam, o sofrimento maior vem da incerteza do destino de seu filho. Aps sete dias de vida, morre o menino, filho de Anna e de Di ler mando. Euclides comunica mulher a morte da criana e afirma tla enterrado no quintal da casa, tudo s ocultas, tanto quanto possvel. Anna, antes de se prostrar entregue s suas dores, grita a sua acusao: - Assassino. E repetir, anos mais tarde, a seus outros filhos: - A criana morreu porque fui impedida de amament-la. Perdi o meu filho que morreu de inanio. Nota do Autor Jeferson de Andrade: Este captulo foi objeto de reclamaes judiciais contra os autores, promovidas por duas netas e respectivos maridos de Euclides da Cunha, filhas de Manoel Afonso. Os autores, defendidos pelos advogados Nilo Batista e Felipe Amadeo, livraram-se dos questionamentos com o arquivamento do processo no Frum do Rio de Janeiro. Os fatos aqui relatados so verses de Anna de Assis passadas sua filha Judith Ribeiro de Assis. No entanto, o que se pode comprovar que a criana foi enterrada no cemitrio So Joo Batista, verdade 42 que se elucidou para Anna tempos depois. importante esclarecer que para Anna de Assis ficou-lhe em mente os primeiros procedimentos de Euclides da Cunha logo aps o nascimento da criana. Ela reclamou aos filhos, durante toda a sua vida, que se no tivesse sido impedida de amamentar a criana, ela teria sobrevivido. E, no primeiro momento dos acontecimentos dramticos vividos naqueles dias, Euclides da Cunha, procedendo de forma cruel e sdica, lhe afirma ter enterrado a criana no quintal da casa porque no queria escndalos, quando realmente foi enterrada em cemitrio. Tudo o mais que se passou entre Anna e Euclides naquele atribulado ms de julho de 1906 ser para sempre ignorado, tudo o que sabemos o que se disps a revelar Anna aos seus filhos. Como escritor, registro essas revelaes neste livro, que conta como viveu, sofreu e amou Anna de Assis. 43 ***

8 Nasce uma espiga de milho no meio de um cafezal - A tragdia domstica, que se desenrolou durante a curta existncia de Mauro, no deve ser recordada, mas lhe garanto que dona Anna a suportou como verdadeira herona - declarou Dilermando de Assis ao jornalista Francisco de Assis Barbosa. E acrescentou: - Eu, no Sul, ignorava tudo, ou quase tudo, que se passava aqui. Em comeos de 1907, vim ao Rio em gozo de frias. S ento me inteirei do que ocorrera aps o nascimento e a morte imediata de Mauro. Silencio sobre esse triste episdio. Encontrei-me com Euclides em um bonde. Com surpresa para mim, ele cordialmente me cumprimenta, convidando-me a aparecer em sua residncia, na rua Humait, n. 67. Minha surpresa no podia ser maior. Dilermando no atende ao convite feito por Euclides. Ele se encontra com S'Anninha em outro local. Alm de se inteirar dos acontecimentos, constatar que ainda tem o amor daquela mulher. Anna tenta, nessa ocasio, separar-se de Euclides. Sofria presses de todos: me, irmos, familiares, amigos. No entanto, convive desordenadamente com o escritor, mantendo viva a sua unio com Dilermando. Durante o breve perodo de frias de Dilermando no Rio, S'Anninha, apesar das ameaas, presses, sofrimentos e muitos conflitos, fortalece essa unio. E enquanto ele ainda estuda no Rio Grande do Sul, ela tece o destino para ser feliz ao lado dele. Os anos de 1907 e 1908 sero o tempo de espera. Terminado o curso, promovido a tenente, Dilermando regressa ao Rio de Janeiro mais adulto, conseguindo novas foras para enfrentar a sociedade que se opunha quela unio. Em 1907 ele tem 19 anos. S'Anninha, 32. 44 - De volta a Porto Alegre, recebi em novembro a participao do nascimento de Luiz, tambm meu filho, o menino que, segundo divulgou Medeiros e Albuquerque, o escritor chamava "espiga de milho no meio de um cafezal." A criana loura, de olhos azuis, destacava-se dos demais filhos de Euclides: morenos, de olhos escuros, cabelos negros e lisos. Ele sabia, portanto, que no era seu filho. No entanto, continuou a viver com a esposa, apesar das provas que se apresentavam claras e insofismveis da sua infidelidade. Dilermando de Assis envia do Sul novas cartas durante o ano de 1908. Carta n 4 Bordo do Itapacy. 4-5-08 Perene lembrana de meu corao. Escrevo-te s 11:35, quando este carro oscilante desliza sobre guas paranaguaenses com rumo do S. Francisco. Todos os passageiros acham-se j acomodados e eu velo lembrando-me de ti, de meu horizonte querido, recordando ainda aqueles alegres momentos que discorreram juntos, e, sob o jugo massacrante da saudade, busco o alvio minha dor conversando contigo agora, a estas horas caladas em que hs de embalar certamente em teus soluos e bem torneados braos, ternamnente acalentando o pensamento de nosso to desventurado quo terno amor. Talvez tambm com o pensamento te transplantes a estas plagas balbuciando perfumadas frases de ternssimo carinho bordado com arte pela nobreza e celestial fantasia de tua alma sentida e emocionante. Eu no ouo, to distante, as tuas palavras, porm o meu corao reflete-as e eu sinto, e eu respondo, e eu choro de saudades, porque sinto tambm que trazidas talvez pelas ondas, elas so midas, mas midas de lgrimas quentes ainda. Beijo-as, nada mais me dado fazer. Entre as minhas talvez no

sintas as gotas quentes envoltas de dor, mas ainda que frias, elas te faro lembrar que s de ti e por ti eu vivo, porque so de amor, pois eu s amo a ti e cada vez mais, eu sinto e juro-te. Pois bem, so frias, so tambm cristalinas, receba-as pois e com este fino estilete aninha aos ps mimosos de nossa gentil florzinha. Muito sinto no poder abraar-te em adeus. Que fazer?! Assim o quis a fatalidade, assim o quis o destino. Havero de nos consolar e de nos amar ainda mais, no ? Pouco tempo haveremos de estar separados e este servir para aumentar a sede de nosso amor mais irracional, mais terno, mais enlaado em que nos haveremos de rolar como umas conchas levadas e trazidas pela mar que beija as areias da praia, 45 saudadas por um sol cheio de vida e calor como para ns a esperana que nos d alento e conforto. Abraa bastante a nossa flor por mim, beija-a e suga-lhe o perfume e o mel como as abelhas para ouvir-me, (ilegvel) ainda que pouco, pois no sou egosta. Adeus, beijo-te muito, e sou s teu. Bordo do Itapacy. 6-6-08. Praia Rio Grande s 11 horas Minh'alma que tanto adoro. Se procuro esta hora em que a natureza passa em trevas, no somente porque a hora da dor, a hora da concentrao e das saudades, como tambm porque, longe das distraes espontneas, do dia, eu posso lembrar-me ternamente de ti, de meu amor sem ser importunado pelas amabilidades dispensveis que os companheiros proporcionaram cotidianamente. J a 32 carta que te escrevo. A ltima frase da carta est ilegvel. Quando encerrou o seu curso na Escola Militar no Sul, Dilermando havia conquistado evidncia como campeo de tiro. Ao retornar capital do Pas, traz na bagagem, alm do revlver regulamentar de tenente, outra arma excelente, prmio ganho campeonato em que provou a segurana de sua pontaria. Declaraes de Dilermando de Assis Diretrizes: - Dos encontros posteriores que tive com Euclides, nas frias de 1908 e no primeiro semestre do ano seguinte, embora no mais trocssemos cumprimentos, jamais resultou de sua parte a menor manifestao agressiva minha pessoa. E ele tivera conhecimento de que, em 1908, fora eu, acompanhando dona Anna, internar o filho mais velho, Solon, no Colgio Anchieta, em Friburgo. E ele vira dona Anna em minha companhia, em plena Rua Humait... - Euclides concorre, por insistncia de amigos, ao concurso para a cadeira de lgica do Colgio Pedro II, realizado em 1909. Os estudos em que se empenha, a tese que tem de escrever, as preocupaes de ordem intelectual que o absorvem, constituem um derivativo, aliviando um pouco a tenso. Tira no concurso o segundo lugar, conquistando o primeiro cearense Farias Brito. Mas Euclides Euclides. Tem amigos poderosos, que se movimentam em seu favor. E a prpria S'Anninha, apesar dos pesares, vai ao presidente da Repblica, Nilo Peanha, tambm republicano histrico pedir a nomeao do marido. Nomeado, vive Euclides transe dramtico. A deciso do governo criticada. Ele prprio tem a conscincia pesada. Chega a querer desistir. Acha que invalidara o direito de um candidato mais capaz, alm de mais pobre e desamparado. O inferno domstico que vive se torna ainda pior, com o agravamento da tuberculose. Volta antigas

hemoptises. 46 Quando Euclides da Cunha retornou do Acre, S'Anninha, no primeiro momento, fez-lhe apenas uma velada confisso. Logo, foi impossvel sustentar o segredo e imediatamente ela lhe props uma nova separao: pelo divrcio, ou ele conseguiria mais uma comisso, ausentando-se novamente do Rio. O escritor no aceitou nem uma nem outra das propostas. Contentou-se em atormentar a mulher e transformar o casamento em um caos domstico. Tudo teria se arranjado conforme as intenes do escritor, caso S'Anninha no fosse uma mulher ousada e plenamente consciente de seus desejos. Insistiu em seu relacionamento com Dilermando de Assis, no se sujeitou aos compromissos de um casamento acabado. Tudo ela fez para convencer o marido da convenincia de uma separao. E tudo se passou exatamente igual a tantos casos semelhantes de rompimento de uma unio conjugal, de um lado a mulher tentando se desvencilhar do compromisso, do outro o homem exigindo sua subservincia. Diante da atitude intransigente de Euclides da Cunha, no acatando as suas ponderaes, Anna da Cunha deliberou ausentar-se ela do Rio de Jane iro. Por a se v como S'Anninha era uma mulher voluntariosa. A freira Alquimena, irm de S'Anninha, estava com uma excurso para Roma marcada para a segunda quinzena do ms de agosto de 1909. S'Anninha viu na Itlia, no outro lado do Atlntico, a provisria soluo. Uma viagem, o mar, a distncia, a ausncia, um gesto definitivo, uma atitude decidida falariam muito mais que algumas palavras, frases e pedidos. Comprou uma passagem para ela e o filho Luiz no mesmo navio que levaria a Roma a sua irm Alquimena e outras religiosas. No sabia a durao da viagem. Seus planos, vagos ainda, previam apenas cartas para o marido no Brasil, acertando o divrcio e a separao definitiva. Ela imaginou os seus argumentos fortes o suficiente para demover a teimosia do marido com um Atlntico separando-os. E ela inacessvel aos seus acessos de fria e loucura. A data da viagem estava marcada: 17 de agosto. S que antes de uma tera-feira h um domingo. 47 *** 9 Tudo acontecia alm do vo da guia de Haia Em 1907, o Brasil era governado pelo Presidente Afonso Pena, mineiro, que escolheu como candidato a seu sucessor o seu ministro da Fazenda, Davi Campista, tambm mineiro. Esta escolha gerou uma crise, pois o nome no obteve apoio sequer entre polticos de Minas. Nessa poca, predominava o que se denominou poltica dos governadores. A Cmara Federal reconhecia somente os diplomas dos candidatos eleitos pelas situaes em cada Estado, ou seja, os deputados eleitos pelo apoio dos governadores. J os governadores se apoiavam nos coronis municipais. A corrente se formava, assim, dos municpios Cmara Federal. O poder central era mantido pelas oligarquias estaduais. Dois Estados economicamente mais fortes ditavam os rumos da nao: So Paulo e Minas Gerais. Apenas um lder gacho, Pinheiro Machado, detinha

poder de influncia e coordenava na Cmara uma faco que desejava influir na escolha do prximo presidente. Dessa forma, as foras se dividiram entre So Paulo, Minas Gerais e os liderados por Pinheiro Machado. O candidato Davi Campista era apoiado apenas por alas jovens de polticos sem muita sustentao nas oligarquias estaduais. No tinha a simpatia de Pinheiro Machado. Os velhos chefes da poltica mineira, Bias Fortes e Francisco Saies, tambm no apoiavam Campista. Os paulistas, de incio, no se manifestaram. Duas novas candidaturas despontaram nas campanhas preleitorais: Rui Barbosa e Hermes da Fonseca. Rui Barbosa foi o representante brasileiro na Segunda Conferncia de Paz, iniciada a 15 de junho de 1907, convocada pela rainha da Holanda e pelo czar da Rssia. Foram convidados 44 Pases. O ministro das Relaes Exteriores era o Baro do Rio 48 Branco e o nome do vice-presidente do Senado para a Conferncia de Haia foi sua indicao. Era uma conferncia pela paz e quando o representante dos Estados Unidos opinou pela formao de uma corte permanente de justia internacional, classificando-se os Pases em categorias conforme o poderio militar, Rui Barbosa insurgiu-se argumentando: - Quanto a ns, da Amrica Latina, fomos convidados a entrar pela porta da paz. Por essa via tomamos parte nessa conferncia. Comeamos a ser conhecidos como oper rios da paz e do direito. Mas se nos decepcionarmos, se nos descoroarmos desiludidos, com a convico de que a grandeza internacional no avaliada seno pelas foras das armas, ento, por culpa vossa, o resultado da Segunda Conferncia da Paz teria sido o de inverter o curso poltico do mundo no sentido da guerra, impelindo-nos a procurar atravs de grandes exrcitos e nas grandes armadas o reconhecimento de nossa posio pretendida em vo pela populao, pela intelignca e pela riqueza. Rui Barbosa regressou ao Brasil como lder dos Pases fracos e sua defesa da igualdade das naes no foi refutada pelos poderosos. O baiano alcanou celebridade internacional e ficou conhecido como a guia de Haia. O outro nome lanado para presidente foi o do marechal Hermes da Fonseca, ento ministro da Guerra, numa sugesto de Lauro Sodr, lder poltico paraense que obteve apoio nos setores militares. Evidentemente, os militares pretendiam retornar ao poder, de onde saram com Florano Peixoto. Ficou clara a situao poltica. Pinheiro Machado apoiava a candidatura do marechal, teve o apoio do governador mineiro Venceslau Brs, que foi includo como vice na chapa de Hermes. Outros Estados se posicionaram a favor do candidato militar. J os paulistas e baianos se colocaram contrrios ao marechal e apoiaram Rui Barbosa. Afonso Pena ainda se batia por seu candidato: Davi Campista. Mas o embate se dava entre Rui e Hermes. E a Aguia de Haia trovejou: - A nao governa, O Exrcito, como os demais rgos do Pas, obedece. Nesses limites necessrio, inestimvel o seu papel; e na observncia deles reside o segredo, a condio de sua popularidade. O Exrcito certamente o sabe. No querer outra 49 funo. A aclamao da candidatura do ministro da Guerra seria, porm, a meu ver, um passo em sentido oposto.

O marechal Hermes da Fonseca continuou candidato e mais forte ainda, quando Afonso Pena morreu em 14 de junho de 1909 e assumiu o vice-presidente Nilo Peanha, aliado de Pinheiro Machado. O marechal passou a ser, com o apoio do novo presidente, o candidato da situao. Apoiado pelos mineiros, pelo gacho Pinheiro Machado que liderava os Estados nordestinos, a candidatura Hermes da Fonseca teria a seu favor a mquina eleitoral montada a partir dos coronis municipais e o tradicional voto de cabresto. Contra essa situao se insurgiu Rui Barbosa, candidato oficial da oposio por uma conveno reunida no ms de agosto de 1909. - Perderemos. Mas o princpio da resistncia civil se salvar. E assim, lutando contra a poderosa mquina governamental que o derrotar, Rui iniciou a Campanha Civilista, apoiado pelos Estados do Rio de Janeiro, de So Paulo e da Bahia. Era um intelectual brilhante, que discursou nos teatros e nas praas pblicas dizendo ao povo: - Que me importa a mim, senhores, o espantalho? No nasci corteso. No fui do trono; no quis ser da ditadura; da prpria nao no o sou; no o serei das baionetas. Pela primeira vez na Repblica um candidato a presidente se dirigia diretamente ao povo pedindo-lhe o voto. A luta sucessria de 1910 se fez com a Campanha Civilista de Rui Barbosa de um lado e os militares, alm de velhos polticos e coronis do interior, de outro. Nessa situao poltica brasileira se deu o encontro de dois homens rivais que nada disputavam, apenas procuravam defender suas paixes. S que um era civil, escritor e intelectual: Euclides da Cunha. E morreu, O outro, militar, Dilermando de Assis, sobreviveu e foi julgado pela morte do outro. 50 *** 10 Treze tiros e uma tragdia A imprensa brasileira da poca fartou-se com a repetida chamada: A Tragdia da Piedade. Contou de vrias maneiras o que teria se passado na casa n 214, da Estrada Real de Santa Cruz, em Piedade. A imprensa brasileira fazia sistemtica campanha pr-Rui Barbosa para presidente da Repblica e a morte do civil Euclides da Cunha por um militar, tenente do Exrcito Dilermando de Assis, acabou servindo de reforo aos argumentos civilistas contra as armas. No se diga que houve deliberao por parte de todos os que redigiram matrias para contar os fatos, mas a confuso dos acontecimentos e a exacerbada paixo dos envolvidos numa campanha presidencialista serviram para obscurecer a verdade e erigir mistrios e dvidas onde s existia fatalidade ou tristeza. Depois, decorridos alguns anos, o militar Dilermando de Assis se viu proibido pelo Exrcito de se manifestar por meio da imprensa e como a tragdia da Piedade deixou de ser assunto, ficou de p a verso da morte de Euclides da Cunha como assassinato. Da que o depoimento do ento coronel Dilermando de Assis ao jornalista Francisco de Assis Barbosa, Diretrzes, em 1941, tornou-se histrico. O nmero da revista de 13-9-1941 registra assim o acontecimento UM DEPOIMENTO DE ALTO VALOR HISTRICO

Constituiu um acontecimento histrico na imprensa semanal do Brasil a publicao do depoimento histrico do coronel Dilermando de Assis em torno da morte de Euclides da Cunha. A circunstncia de nos vermos obrigados a lanar, dois dias aps a publicao da mencionada reportagem histrica, uma segunda edio em papel de jornal, constitui, sem dvida, a maior prova do interesse pblico suscitado pela reportagem "Euclides da Cunha no foi assassinado", de autoria de nosso companheiro Francisco de Assis Barbosa. Ambas as edies, embora representassem algumas dezenas 51 de milhares de exemplares, no chegaram, contudo, para atender aos numerosos pedidos que recebemos de todos os cantos do Brasil, fator esse que vem aumentar ainda o valor histrico de uma edio esgotada duas vezes em menos de sete dias. Dilermando de Assis pde retornar casa n. 214 da Estrada Real de Santa Cruz e, valendo-se dos indcios que encontrou, conseguiu reconstituir matematicamente a trajetria dos sete tiros de Euclides e dos seis que disparou em represlia. Fez um desenho para facilitar a compreenso de sua exposio, exibiu-o em sua defesa perante o jri que o julgou, guardou-o e a revista Diretrizes publicou-o juntamente com o seu depoimento sobre como se desenrolou a tragdia do dia 15 de agosto de 1909. Era domingo. Seriam dez horas da manh. Tomvamos caf - D. Anna, Solon, Dinorah, o pequeno Luiz e eu - na sala de jantar (E). Dinorah vai at sala de visitas (A) buscar cigarros e volta, logo depois, comunicando que o Dr. Euclides estava porta e queria falar-me. - Que entrasse - disse a meu irmo. E, enquanto este retornava sala de visitas (A), fui ao meu quarto (C) a fim de vestir minha tnica. - Adiantando-se de meu irmo, que lhe abriu o porto do jardim e a porta da sala de visitas (A), Euclides da Cunha entrou precipitadamente em minha casa, declarando: - Vim para matar ou morrer. No interior do meu quarto (C), ouvi distintamente apenas as palavras "matar ou morrer". A porta se abre com um pontap. E de sbito vejo Euclides que me aponta o revlver. - Que isso, doutor?! - perguntei-lhe. Ele responde: - Bandido!... Corja de bandidos! - atirando contra mim, quase queima-roupa. Embora ferido, procuro tomar-lhe a arma. Avano com a mo esquerda. Euclides recua o brao direito e eu consigo agarrar a manga do seu casaco. Recebo, ento, um segundo tiro. Caio. Desta vez, estou ferido no peito. Di-me horrivelmente. 52 Tudo isso muito rpido. Cado porta do meu quarto (C), tudo rodava minha volta. Vendo-me em perigo, Dinorah tenta desarmar Euclides, que dispara contra meu irmo. Desarmado, este corre pelo corredor (B) e ao aproximar- se da porta do seu quarto (D), Euclides acerta-lhe um tiro na coluna vertebral, inutilizando meu desventurado irmo para o resto da vida. Euclides ouve os gritos de D. Anna e dos meninos, escondidos na

despensa (F) e caminha at sala de jantar (E). Que pretendia ele? Cado porta do meu quarto (C), levantei-me como pude. Sabia que meu irmo estava ferido. Eu vi Euclides atirar em Dinorah pelas costas. Temia, por outro lado, a sorte de D. Anna e dos meninos. Olhando para o corredor (B) tive a impresso de ver Dinorah cado e vi tambm Euclides, de revlver em punho, movendo agitadamente a cabea, como que procura do local de onde partiam os gritos. Foi quando apanhei o meu revlver. Desferi o primeiro tiro na direo oposta em que se encontrava o meu agressor, pois minha inteno era de amedrontar Euclides, mostrando-lhe que estava em condies de reagir. detonao, Euclides volta pelo corredor (B) em direo sala de visitas (A). Contra minha expectativa, Euclides retoma o ataque. Surpreendido, disparo pela segunda vez, sem alvej-lo. Ele insiste. Disparo pela terceira vez, procurando ainda desarm-lo, alvejando o seu revlver. Fui infeliz, porm. Num movimento rpido, Euclides levanta a mo, procurando, de novo, alvejar-me. A bala, como depois revelou a autpsia, fere-o no pulso, embora sem desarm-lo. Euclides est agora no incio do corredor (B), junto sala, atirando contra mim, encostado parede. Digo-lhe ainda: - Fuja, doutor, que no lhe quero matar!... Ele no me ouve. Fere-me, mais uma vez. Eu a tambm atirei contra Euclides. Este ainda no corredor (B), recua de costas e desaparece pela sala de visitas (A) afora. 53 Sigo-o. Precavidamente, temendo uma possvel emboscada, penetro na sala de visitas (A). Chego at porta e vejo Euclides cado, junto escada, acionando desesperadamente a tecla do gatilho e pronunciando palavras confusas: - Bandidos... Odeio... Honra... - No momento da luta - termina Dilermando - evidente que no sabamos o nmero de tiros que havamos trocado. O sexto tiro de Euclides, veririquei-o depois, feriu-me nas costelas. Em suma, a autpsia acusou em Euclides os seguintes ferimentos: no flanco direito, no mero, no pulso e no pulmo direito, causa Mortis. Dinorah foi ferido por Euclides na coluna vertebral, junto nuca. Quanto a mim, de acordo com o exame mdico, sa da luta com quatro ferimentos recebidos de frente, na virilha, no pulmo direito, no pulso e sobre uma costela. 54 *** 11 Meu depoimento sobre a morte de Euclides Com este ttulo - um testemunho valioso -, o depoimento de Mrio Hora, publicado pela primeira vez na revista Dom Casmurro, em seu nmero especial de aniversrio, em 1946: Naquela poca eu era revisor de Folha do Dia, matutino fundado por Vicente Piragibe. Chegara do Norte dois anos antes e logo ingressara no Correio da Manh, de onde, meses depois, sa nas pegadas do tio Toletano que, com outros e dentre eles o Manuel Duarte, acompanhara Piragibe na fundao do jornal que seria mais tarde aquirido pelo dr. Fonseca Hermes

para a defesa da candidatura do marechal, na famosa Campanha Cvilista. Morava na Estrada Real, hoje Avenida Suburbana, na primeira de um grupo de pequenas casas alugadas por setenta mil ris mensais e que est direita de quem entra de uma casa maior com duas janelas na fachada e vrios quartos no seu interior, comunicando-se com um corredor longo, feio das casas de Aracaju e de Recife. Da janela da cozinha de minha casa viam-se as janelas do ltimo quarto e da sala de jantar da casa em apreo, onde foram morar, havia trs ou quatro meses, dois jovens militares, um alferes-aluno e o outro guarda-marinha um alourado, de compleio atltica, elegante, militarmente belo; o outro, moreno, mais franzino, de olhos nostlgicos e gestos lentos. Desde que mudaram para aquela casa, todas as manhs, o alferes-aluno fazia exerccio de tiro ao alvo, armado no fundo do quintal, ao lado do limoeiro. A vizinhana, a princpio, estranhou o tiroteio. Acabou porm, se habituando. E s tardes, quase sempre, da sala de visitas saam os sons de um violino acompanhado por um violo. que um dos rapazes, o alferes, tocava violo e o guarda-marinha, violino. Esses moos s eram vistos pelos vizinhos ao entrarem ou sarem da residncia. As janelas da frente mantinham-se fechadas. Eles no fizeram relaes, mesmo de simples cumprimento, com ningum, exceo de mim e de minha famlia. Foram certamente, as calas "garante" do alferes que me atraram para os dois irmos habitantes solitrios do casaro. Eu era rfo, havia trs anos, de um oficial do Exrcito e vivi minha adolescncia dentro de quartis. Trabalhando na Folha do Dia durante a noite e durante o dia em um vespertino h vrios anos desaparecido - eu, o mais velho dos