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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE ANTROPOLOGIA E FRATERNIDADE: A POÉTICA DO SERTÃO E O IMAGINÁRIO POLITICO DE SANTANA DO ACARAÚ CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA FORTALEZA, AGOSTO DE 2007

Antropologia e Fraternidade

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Page 1: Antropologia e Fraternidade

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

ANTROPOLOGIA E FRATERNIDADE:A POÉTICA DO SERTÃO E O IMAGINÁRIO POLITICO

DE SANTANA DO ACARAÚ

CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA

FORTALEZA, AGOSTO DE 2007

Page 2: Antropologia e Fraternidade
Page 3: Antropologia e Fraternidade

Antropologia e Fraternidade Política: a poética do sertão e o imaginário de Santana do Acaraú

CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA

Orientadora: Profa. Dra. Maria Celeste Cordeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programade Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará – UECE, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade.

FORTALEZA, CE AGOSTO- 2007

Page 4: Antropologia e Fraternidade

CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA

Antropologia e Fraternidade Política: a poética do sertão e o imaginário de Santana do Acaraú

BANCA EXAMINADORA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

____________________________________________________________Profa Dra Maria Celeste Cordeiro - Universidade Estadual do Ceará - MAPPS

Orientadora

____________________________________________________________Profa Dra Simone Carneiro Maldonado - Universidade Federal da Paraíba - PPGS/PPCR

Examinador Externo

____________________________________________________________Prof° Dr° Jozenio Camelo Parente - Universidade Estadual do Ceará - MAPPS

Examinador Interno

Page 5: Antropologia e Fraternidade

DEDICATÓRIA

Às grandes mulheres da minha vida:Doralice Barbosa e Chiara Lubich

I

Page 6: Antropologia e Fraternidade

AGRADECIMENTOSUm imenso obrigado

Àquela que, desejado,Além de ser Maria

Iluminou qual luz do diaAs incertezas do meu caminho

No escuro me deu um candeeiro Sabedoria do Celeste CordeiroQue nunca me deixou sozinho.

Agradeço à Deus e a Virgem, esposa e mãe da Casa de Nazaré, Senhora

de Belém e Rainha do sertão, e a seus reflexos na minha historia com Dionizio e

Doralice Barbosa, Cláudio Norberto Barbosa, Paulo Roberto Barbosa e Luiz Gilberto

Barbosa. Nos meus filhos do peito: Alyandra Barbosa, Marcus Vinicius Barbosa,

Rodrigo Barbosa e Thales Henrique Barbosa. Nas minhas irmãs do coração Rita

Barbosa, Anete Barbosa e Francisca Barbosa. Nas mulheres que pontilharam de luz e de

carinho o meu caminho feito pela Hildecyr e Florberta Noronha, Regina Celi Noronha,

Ir. Aldemarina, Ir. Benigna, Me. Ângela Calado e Ir. Maria Vaz... E dos reflexos de

tantos José's que me orientaram e protegeram na sabedoria, os gênios de humanidade,

de D. Vicente Zico, Pe. João da Cruz, Pe. Stélio Girão, Saad Zogheib, D. Miguel

Câmara, D. Aldo Pagotto, Prof. Teodoro Soares, Dr. Colaço Martins, José Pereira,

Dorival Spatti, Paulo Stapel, Lazaro Luna, Juscelino de Oliveira e Apolônio

Nascimento.

Aos anjos e pastores que anunciam e velam toda fragilidade fortificada

por Newton Gondim, Ivan Barbosa, Rodrigo Fialho, Vinicius Braga, Lourdes Cedro,

Leonardo Ramon, Gustavo Meireles, Maria Aparecida Barreto, Prof. Horacio Frota,

Profa Denise e Natalia Maria. Osmar Vasconcelos Filho, Francisco Parobé, Norma

Soares, Emmir Nogueira, a todos das comunidades e associações de Santana do Acarau

nos nomes de Ivina e Chico Guedes, à Igreja de Sobral nas pessoas de D. Fernando

Saburido, Pe. Francisco Junior e Pe. João Batista Frota. Prof. Eduardo Diatahy

Menezes. Nos operários da ultima hora que abraço com o mesmo carinho Sheila Brito,

Ir. Osvalda, Maria das Neves, Dra. Crislene, Rafael Luna, Geisa, Gladstone, Dorinha,

Emanuel, Anaxinando, Plínio, Hiero, Raí, Regina Monteiro, Geovanni, Zamir e

Verônica, Valdenir, Janildo e Raimundo, Marcondes, Nevinha e Álvaro... À Dra

Danielle Pitta pelas considerações imprescindíveis para a elaboração deste trabalho e a

Maria Valéria Rezende pela competente e revisão. Assim vou terminando como

comecei: agradecendo a Celeste Cordeiro, minha orientadora, pelos seus olhares que

possibilitaram a ampliação da visão do tema, pelos questionamentos, discussões e,

principalmente, pela confiança e solicitude nas horas difíceis, em que a amizade foi

confortante.

II

Page 7: Antropologia e Fraternidade

RESUMO

Nesta dissertação, buscamos nas categorias antropológicas do imaginário e na metodologia da Convergência Simbólica desenvolvidas por Gilbert Durand, perceber elementos da cultura sertaneja e as relações destes com as representações das instituições de poder e os espaços de participação no município de Santana do Acarau - Estado do Ceara - no nordeste do Brasil. Neste contexto estabelecemos um diálogo entre a ciência e a imagem a fim de tentar colaborar para o desenvolvimento de políticas públicas que levem em consideração o modus vivendi da gente sertaneja contribuindo para a maior qualidade das políticas de desenvolvimento no semi-árido.

Palavras-chave:

Fraternidade, Antropologia Lingüística, Configurações Simbólicas, Mito, Arquétipos,

Sertão, Imaginário, Semi-árido.

III

Page 8: Antropologia e Fraternidade

ABSTRACT

This study uses the anthropological categories of imaginary and the methodology of Symbolic Convergence, developed by Gilbert Durand, to perceive cultural elements of Brazilian Northeastern Sertão and their relations to the representations of local power institutions and of the spaces for popular participation, in the municipality of Santana do Acarau – state of Ceará. In this context we establish a dialogue between science and images in order to try to collaborate for the development of public policies that take in consideration the way of life of sertanejo people and to contribute to a better quality of development policies in this half-barren region.

Key words:

Fraternity, Linguistic Anthropology, Symbolic Configurations, Myth, Archetipes,

Sertão, Imaginary, Half-barren (semi-árido) region.

IV

Page 9: Antropologia e Fraternidade

SUMÁRIO

DEDICATÓRIA I

Agradecimentos II

RESUMO III

ABSTRACT IV

SUMÁRIO V

ÍNDICE DE CATEGORIAS IMPORTANTES VII

ÍNDICE DE TABELAS E QUADROS IX

ÍNDICE DE MAPAS E FOTOGRAFIAS X

INTRODUÇÃO 1

1. O Imaginário e o Sertão. 3

2. Antropologia e Fraternidade Política. 7

CAPÍTULO 1: EM BUSCA DE UMA NOÇÃO 10

1. Encontrando Referências 12

2. Encontrando Experiências 14

3. Encontrando Simetria Nas Trocas. 17

4. Encontrando Confraternizações Simbólicas. 20

Considerações finais deste capítulo 26

CAPÍTULO 2: AS CONFIGURAÇÕES SERTANEJAS 28

1. Messianismo e Resistência 30

2. Alguns Contornos dos Escritos de Euclides da Cunha 33

3. A Semântica da Confraternização Temática 37

4. Sertanejos e Resistências 41

5. Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema em configurações 44

Considerações finais deste capítulo 50

V

Page 10: Antropologia e Fraternidade

CAPÍTULO 3: A CASA DE AUDIFAX: UMA MAQUETE MITOLÓGICA 52

1. A Linguagem Mítica 53

2. Mito enquanto espaço de Fraternidade 56

3. Os Búfalos na Caatinga 61

4. As Tendências do Juazeiro 67

5. Entre o Alpendre e o Porão. 70

Considerações finais deste capítulo 76

CAPÍTULO 4: UM OLHAR SOBRE A CIDADE 80

1. Configurações de Nove Arquétipos. 87

2. A Semântica da Cidade 91

3. Do Refúgio às Ansiedades 97

Considerações Finais Deste Capítulo 105

CONCLUSÃO 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 116

VI

Page 11: Antropologia e Fraternidade

ÍNDICE DE CATEGORIAS IMPORTANTES

CATEGORIAS Capítulos Páginas

Fraternidade Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Conclusão

7

10-13; 16-17; 19-22; 26

49

56; 69; 79

107-108; 111; 115.

Antropologia Lingüística Cap. 2 28

Configuração Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Conclusão

42; 49-51;

61; 64; 67; 70-78;

91; 95;

113

Mito Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap 3

Cap. 4

Conclusão

6

22

40

52-58; 64-66; 71

73; 80; 88

108-110; 114

Arquétipos Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

5; 7

20

37-38; 45-51;

54-56

Scheme Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

46

54; 70

79

Símbolos Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Conclusão

4-6

22; 24-26

34; 39; 48; 50-51

54; 56; 78

88; 92; 106

108-109; 112; 114-115

VII

Page 12: Antropologia e Fraternidade

Sertão Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Conclusão

1-3

24;

35; 37-39; 41-43; 45; 47; 49

55

79; 106

109; 115

Semi-árido Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Conclusão

1-4

35-36; 40; 47; 49

52

86

109; 115

Imaginário Introdução

Cap. 1

Cap. 2

Cap. 3

Cap. 4

Conclusão

3-7

30; 32; 34; 40; 44-45; 47; 49

59; 64; 69

73; 75; 78

112

VIII

Page 13: Antropologia e Fraternidade

ÍNDICE DE TABELAS E QUADROS

Quadro nº 1 Primeira Parte do ÍNDICE de OS SERTÕES 35

Quadro nº 2 QUADRO COMPARATIVO: UMBUZEIRO x O SERTANEJO

42

Quadro/Tabela nº 3 MUNICÍPIOS MAIS POPULOSOS DA REGIÃO NORTE CEARENSE

85

Quadro/Tabela nº 4 ÁREAS DE ASSENTAMENTO 86

Quadro/tabela nº 5 ESPAÇOS DA CIDADE COM MAIOR FREQÜÊCIA

91

Quadro nº 6 ARQUÉTIPOS SITUADOS NA IGREJA 93

Quadro nº 7 SECRETARIA DE SEGURANÇA 96

Quadro nº 8 BANCO DO BRASIL 98

Quadro nº 9 PREFEITURA MUNICIPAL 98

Quadro nº 10 CÂMARA DOS VEREADORES 99

IX

Page 14: Antropologia e Fraternidade

ÍNDICE DE MAPAS E FOTOGRAFIAS

Mapa 1: COMPOSIÇÃO REGIONAL E REDE URBANA EXISTENTE – Fonte: PDR V. do Acaraú

81

MAPA 2: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRO-PECUÁRIA E AGRICULTURA DE SEQUEIRO– Fonte: PDR V. do Acaraú

82

Mapa 3: ESPACIALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PRODUTIVAS– Fonte: PDR V. do Acaraú

83

MAPA 4: INFRAESTRUTURA HÍDRICA – Fonte: PDR V. do Acaraú

84

MAPA 5: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA IRRIGADA E PISCICULTURA– Fonte: PDR V. do Acaraú

84

Foto 1: Atividade com os sujeitos da pesquisa 88

Foto 2: Secretaria de Segurança Pública de Santana do Acaraú 92

Foto 3: Igreja Católica Romana, Matriz de Sant’Anna 95

Foto 4: Mapeamento coletivo com os participantes. 96

Foto 5: Câmara de Vereadores de Santana do Acaraú 100

Foto 6: Cena do Mercado Municipal 102

Foto 7: O micro-universo representado teatralmente 104

Foto 8: Registro da apresentação e entrevistas para análise 104

X

Page 15: Antropologia e Fraternidade

1

INTRODUÇÃO

A Poética do Sertão é uma expressão que conjuga as idéias de estética e

"terras secas" e vai direcionar o nosso olhar sobre o semi-árido, na perspectiva da forma

que manifesta um conteúdo determinante na organização do sertão. Neste sentido,

compreendemos que a estética não pode ser atribuída qualitativamente somente às obras

humanas, ou mesmo à natureza, mas anuncia o conteúdo das representações por fatores

subjetivos, emoção, sentimentos, percepção e todos os fenômenos psicológicos ligados

ao espaço coletivo, numa composição que nos leva a definir que tal espaço seja sertão.

Nesta perspectiva, procuramos compreender o sertão.

Capistrano de Abreu1 (1907) abre nossos estudos, sobre o espaço sertanejo,

trabalhando a ocupação européia, na América portuguesa. Inaugura a categoria "sertão",

por ele concebida como todo o espaço interior do Brasil colonial que, basicamente,

tinha como centro econômico, no primeiro período da colonização, somente o litoral

nordestino2 (MENEZES, 1997). Neste sentido, a conquista dos sertões brasileiros vai

revelar-se como ação fundamental para a consolidação do território e o estabelecimento

de uma nova dinâmica sócio-cultural e econômica. Para ele o sertão se opõe ao mar.

Porém, Capistrano de Abreu não descreve, necessariamente, o sertão árido

com características vegetais, climáticas e geográficas, como o definirá, mais tarde,

1 João Capistrano de Abreu, nasceu em Maranguape, CE, 23 de outubro de 1853 — Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1927. Foi um históriador brasileiro. Um dos primeiros grandes históriadores do Brasil, produziu ainda nos campos da etnografia e da linguística. A sua obra é caracterizada por uma rigorosa investigação das fontes e por uma visão crítica dos fatos históricos. 2 Capítulos de História Colonial - Capistrano de Abreu - Biblioteca Nacional, www.bn.br - Conferido do original Capítulos de História Colonial (1500 - 1800) - Capistrano de Abreu - Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro - Folha de São Paulo Publifolha - s/d.

Page 16: Antropologia e Fraternidade

2

Euclides da Cunha (CUNHA, 2002, p. 45) 3. Em Os Sertões, escrito em 1920, Euclides

constrói seu paradigma traçando os alicerces da consciência nacional brasileira,

trazendo à tona a maneira de ser sertaneja com imagens que conjugam o "sertão" com

"Terras Secas".

Assim, com Cunha, a categoria sertão passa a ser desenvolvida enquanto

terra árida que, mais tarde, assumirá a categoria genérica de “Terras Secas”, realidade

presente não só no Nordeste brasileiro, mas que ocupam mais de 30% da superfície do

planeta Terra, abrigando uma população de, aproximadamente, 1.6% da população

mundial4.

As populações que habitam tais regiões são caracterizadas por possuir um

baixo nível de escolaridade e poder aquisitivo, usufruem de poucos recursos

tecnológicos e ingerem uma quantidade de proteínas inferior à recomendada pela

Organização Mundial de Saúde.

O aumento da extensão das terras secas é atribuído aos fatores climáticos e,

ao mesmo tempo, ao mau uso dos recursos naturais por parte dos seres humanos. Para

reverter esse caso faz-se necessária uma mudança de comportamento do ser humano.

Ao voltar nosso olhar sobre o comportamento humano, no contexto do

semi-árido nordestino, podemos notar que a organização social no sertão não é

determinada somente por aspectos topográficos, econômicos, técnicos ou racionais, mas

essa distribuição organizacional acontece, também, através de um sistema de

significados, de lembranças históricas da tradição, que fomentam uma ética e um modo

3 Euclides da Cunha, logo no primeiro capítulo de Os Sertões, trabalha na "A entrada do sertão" as características geográficas caracterizando-a como: "Terra ignota” delineando suas primeiras impressões do espaço sertanejo (VENTURA 2002).4 Estes dados foram fornecidos por "Tecnologias Apropriadas para Terras Secas - Manejo sustentável de recursos naturais em regiões semi-áridas do nordeste do Brasil", a obra foi editada pela Fundação Konrad Adenauer em parceria com a Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ).

Page 17: Antropologia e Fraternidade

3

de viver específicos. É justamente baseado nesta idéia que delinearemos o nosso

percurso de interpretação do semi-árido voltada para as representações do espaço

sertanejo.

1. O Imaginário e o Sertão.

Na perspectiva de que o sertão é um lugar dotado de significados, o título

desta dissertação apresenta um caminho desafiador: estabelecer o diálogo entre a ciência

e a imagem, a fim de tentar colaborar para o desenvolvimento de políticas públicas que

levem em consideração o modus vivendi da gente sertaneja, de modo que as políticas de

desenvolvimento do semi-árido sejam sustentáveis e, conseqüentemente, mais eficazes,

levando os sertanejos a não saírem de suas terras, mas a participarem dos processos de

desenvolvimento econômico, social e cultural de fixação no sertão.

Por este motivo, faz-se necessário apreender o imaginário social dos

sertanejos como meio de interpretação da realidade. Para tanto utilizamos a metodologia

da Convergência Simbólica construída por Gilbert Durand5.

Neste sentido, o estudo do imaginário apresenta uma metodologia própria de

abordagem que constitui um dos caminhos do conhecimento que, por sinal, foi muito

criticada pelos analistas de vertente mais positivista.

A este respeito, Gilbert Durand fundamenta a Teoria da Convergência

Simbólica, partindo da crítica a essa desvalorização do imaginário no pensamento

5 Gilbert Durand é professor emérito de antropologia cultural e de sociologia da Universidade de Grenoble. Junto com Léon Cellier e Paul Deschamps, fundou o Centro de Pesquisas sobre o Imaginário, em 1967.

Page 18: Antropologia e Fraternidade

4

ocidental clássico, pois, para ele, os pensadores reduzem a imaginação, conceituando-a

como mestra do erro e da falsidade (DURAND, 1997, p.21) 6.

Contrariamente a esta corrente do conhecimento, Durand estabelece que o

estudo do imaginário traz a compreensão dos dinamismos que regulam a vida social e

suas manifestações culturais, subjacentes aos modos de ser, pensar e agir das pessoas,

culturas e sociedades.

Assim, entendemos que existem várias formas de conhecer a realidade

sertaneja. Podemos escolher uma delas, lançando-nos sobre a realidade objetiva que

salta aos nossos olhos como a vegetação, os períodos de seca ou chuvosos, o tipo de

produção, a organização política, social e econômica das comunidades sertanejas, o

folclore e as possibilidades de comércio. Ou podemos preferir outra maneira, que vai ao

encontro da essência dessas realidades e perpassa o campo da fenomenologia.

Esta segunda via possibilita-nos perceber que o ser humano do semi-árido

organiza a própria vida não apenas através da razão objetiva, mas de toda uma lógica

cultural, por critérios sígnicos, através dos símbolos e dos mitos, dos seus sonhos e

projeções. Foi, justamente, esta segunda opção que escolhemos como caminho de

compreensão do conjunto de características humanas do sertanejo, sejam elas inatas ou

que se criam e se preservam ou que se aprimoraram através da comunicação e da

cooperação entre os grupos humanos, que formam as comunidades sertanejas,

acessando as suas capacidades de simbolização, própria da vida coletiva e que é a base

das interações sociais.

6 Durand comenta, na Introdução de sua mais importante obra, que "para Brunschvicg, toda a imaginação - mesmo platônica - é 'pecado contra o espírito'. Para Alain, mais tolerante, os mitos são 'idéias em estado nascente' e o imaginário é a infância da consciência” (DURAND,1997, p. ????).

Page 19: Antropologia e Fraternidade

5

Desse modo, compreendemos que o homo sapiens é também homo

simbolicus. Por essa estrada, Gilbert Durand, apoiado em Jung ─ que concebe a noção

de arquétipo enquanto potencialidade funcional que influencia inconscientemente o

pensamento (JUNG, 2002, p. 49) ─ e, em Bachelard ─ que concebe a imaginação como

dinamismo organizador e fator de homogeneidade na representação (1984, p. 121) ─ vai

concluir que todo pensamento é representação, porque passa por articulações

simbólicas.

No contexto desta conclusão, fica claro que Durand não nega a importância

da razão, mas, ao mesmo tempo, abre a perspectiva de que o imaginário não precisa da

razão objetiva para se impor como realidade, pois aparece na dimensão da

subjetividade.

Neste caso, a representação se revela englobando o conceito e a imagem,

dominando assim, o intelecto. Portanto, a noção de representação não é, em Durand,

uma simples produção ou tradução mental de uma realidade exterior, mas vai ao

encontro da concepção de imaginário, o qual não é visto como suposto ou inventado.

Por isso, as imagens fomentam as nossas atitudes concretas no quotidiano,

nossa maneira de ver o mundo, de nos relacionarmos com a natureza e com as pessoas.

As pressões sociais são subjacentes à imagem: os costumes, hábitos que estimulam

comportamentos e procedimentos. Este jogo se traduz em algo palpável: a cultura, que é

a maneira de relacionamento do ser humano com o universo social e o meio cósmico.

A comunicação entre as pessoas acontece através de sistemas simbólicos. E

o símbolo é uma representação de algo ausente ou impossível de ser percebido, que

concretiza o sentido, que faz visualizar uma mensagem. Neste contexto, Danielle Pitta,

assim, explica: “Os símbolos podem ser classificados em: símbolos rituais (relativos aos

Page 20: Antropologia e Fraternidade

6

gestos), símbolos iconográficos (imagem visual) e aqueles relativos à palavra (os

mitos)” (1995, p.15) Nosso trabalho desenvolve-se, sobretudo, neste último aspecto do

símbolo relacionado aos relatos, às narrações, “habitado pelos estilos da história e as

estruturas dramáticas – que chamamos mito”, como o caracterizou Durand (1997, p.332),

traduzidos na ação concreta: os mitos entendido enquanto atitudes cotidianas.

Assim, Durand vai verificar que “a organização dinâmica do mito

corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos ‘constelação de

imagens’; o método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e

no mito” (1987, p. 63). Durand define o imaginário como “o conjunto de imagens e de

relações de imagens que constitui o capital pensado do ‘homo sapiens’, é o

denominador fundamental onde vêm se arrumar (ranger)7 todos os procedimentos do

espírito humano” (1997, p.219). E, ainda: "Entende-se por imaginário, tanto o museu de

todas as imagens passadas ou possíveis quanto os procedimentos, mentais como

materiais, de produzir imagens” (PITTA, 1995, p.47).

Assim, o conceito de Imaginário com que trabalhamos não é concebido

como hipotético, fantasioso, ilusório, inventado, mas algo inerente à constituição

humana, fomentando a construção de si mesmo e do meio cósmico e social.

Portanto, durante a pesquisa, na interpretação e análise das informações,

utilizamos a metodologia da Convergência Simbólica, oferecida pela Teoria do

Imaginário, de Gilbert Durand. Para Danielle Pitta, em razão de o imaginário encontrar-

se "subjacente ao modo de ser e de agir dos indivíduos e das culturas, é através do seu

estudo que se pode chegar à compreensão do dinamismo que regula a vida social e suas

manifestações culturais” (PITTA, 199, p. 8).

7 Expressão em francês, utilizada por Durand, sem tradução exata em português.

Page 21: Antropologia e Fraternidade

7

2. Antropologia e Fraternidade Política.

Esta dissertação, que apresento à coordenação do mestrado em Políticas

Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará, faz parte do nosso esforço de

pesquisa sobre o princípio de Fraternidade como categoria política. Empenho este que

se junta ao de uma rede de pesquisadores, ligados a várias universidades do mundo,

coordenados pelo Prof. Dr. Antonio Maria Baggio, da Universidade Gregoriana de

Roma.

Portanto, este trabalho visa dar uma contribuição, no âmbito da antropologia

cultural, à reflexão sobre a categoria Fraternidade que, em seu sentido político, emergiu

no contexto da Revolução Francesa, ladeada pelos princípios de Igualdade e Liberdade.

Esta reflexão nos levará a uma releitura de metodologias pertinentes à

pesquisa de campo que desenvolvemos, vista sob o prisma do Princípio de Fraternidade,

provocando um diálogo entre a antropologia e a política, detectando, na

confraternização simbólica, as conexões entre os arquétipos selecionados e as

tendências do imaginário político sertanejo. Por isso, a categoria Fraternidade permeará

todo o percurso desta dissertação, qual tela onde o desenho se faz pintura, ou palco onde

a representação acontece.

Investigamos a existência, ou não, de um substrato comum de valores

políticos que possa ser trabalhado na direção de consensos, percebendo as principais

forças que atuam na semântica dos espaços públicos, da cidade de Santana do Acaraú,

município ao norte do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro. Nesse campo,

procuramos detectar as apreensões e ansiedades políticas, enquanto relações dos

Page 22: Antropologia e Fraternidade

8

cidadãos com os espaços da própria cidade, colhendo não só as ansiedades, mas os

espaços que oferecessem poder de superação da angústia coletiva.

Para alcançar estes objetivos utilizamos quatro abordagens: Análise de

discurso (literário), fazendo um exercício com a obra de Euclides da Cunha, Os Sertões,

que coadjuvamos com O Quinze, de Raquel de Queiroz e Cante lá que eu canto Cá, de

Patativa do Assaré, para percebermos os valores da cultura sertaneja do ponto de vista

euclidiano. Outro passo analisa a trilogia de Audifax Rios da qual, até o momento,

publicou os dois primeiros romances: Búfalos de Campanário e Migalhas para as

Serpentes, editados pela Editora Livro Técnico, em 2003 e 2006, respectivamente. Das

obras de Rios pudemos colher o sistema de significados, de lembranças históricas da

tradição que fomenta o modo de viver específico da sociedade de Santana do Acaraú

(CE), onde desenvolvemos pesquisa de campo, o ponto focal que escolhemos para

perceber a vida da Região do Vale do Acaraú.

Dando continuidade a nossa estratégia metodológica, durante os 13 meses

que passamos em campo, desenvolvemos as demais abordagens: a elaboração de

entrevistas com o prefeito municipal, com Audifax Rios e com três fundadores do

Conselhão, dois funcionários públicos, dois líderes religiosos cristãos, de Igrejas

diferentes, num total de dez encontros.

Na Observação Participante, além da convivência com a comunidade,

participamos de nove reuniões do Conselhão, nome dado pelos santanenses ao grande

conselho das comunidades; também estivemos presentes a quatro reuniões do Fórum

dos Assentados. Neste período efetivamos, também, as Consultas do teste AT9 entre

dois grupos. O AT9 é uma técnica desenvolvida por Yves Durand seguindo a Teoria da

Convergência Simbólica, de Gilbert Durand, na qual nos deteremos mais adiante.

Page 23: Antropologia e Fraternidade

9

Consultei oito jovens do grupo de arte e cultura da cidade; dez conselheiros de

diferentes atividades: dois militantes de partidos políticos, três assentados, um líder

religioso (cristão evangélico), dois funcionários públicos e dois comerciantes, num total

de dezoito pessoas.

Durante a convivência com as comunidades, participamos de festas e

eventos, notadamente, quatro festas juninas nas comunidades de Alvaça, Ipueirinha,

Rancho Alegre e Lagoa do Serrote, como também da festa da padroeira, Senhora

Sant’Anna, na sede municipal. Dois eventos de cunho político e social marcaram este

período: a posse das lideranças do Conselhão e o lançamento da moeda social

“Santana”.

Estas experiências foram maneiras de tentar alcançar as múltiplas imagens

formuladas pela cultura sertaneja. Convidamos, assim, o leitor a fazer um caminho,

conscientes de que somos feito crianças que querem alcançar a lua esticando os próprios

braços para o alto, como figurou Gilbert Durand: “A criança que estende o braço para a

lua tem espontaneamente consciência dessa profundidade ao alcance do braço, e se

espanta por não atingir imediatamente a lua: é a substância do tempo que a decepciona,

não a profundidade do espaço. Porque a imagem tal como a vida não se aprende:

manifesta-se” (DURAND, 1997, p. 411).

Page 24: Antropologia e Fraternidade

10

CAPÍTULO 1

EM BUSCA DE UMA NOÇÃO

Num ai tudo se apaga, e ela perde a noção de quanto a acerca.

(Orlando Gonçalves, Este Mundo dos Homens, p. 96)

Aonde vai [a jangada] como branca alcionebuscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?

(José de Alencar, Iracema, p. 49)

O atual quadro geopolítico mundial, do ponto de vista formal, apresenta um

contínuo crescimento das democracias modernas, mas encontra-se aberta a questão da

qualidade dessas democracias, segundo a análise de Ropelato, em seu artigo Cenni su

partecipazione e fraternità (in BAGGIO, 2007, p. 168-169). Para a autora é possível

afirmar, hoje, que “a política democrática do século XX adquire definitivamente um

elemento que de agora em diante define, em termos gerais, a dimensão horizontal da

participação de massa” 8 já que, no ano 2000, chegamos a mais de 62% da população

mundial que exercitam a democracia eleitoral (BAGGIO, 2007, p.164). Com este

argumento, Ropelato sublinha que o contexto político atual indica novas perspectivas de

pesquisa que tratarão de aprofundar a questão da qualidade dessas democracias. Ao

relacionar a Democracia com as pilastras que a sustentam, Liberdade e Igualdade,

Ropelato afirma:

Se liberdade e igualdade contribuíram para determinar o conteúdo da forma democrática diante dos novos e velhos problemas que se colocam hoje em pauta, pode ser interessante verificar se existe um espaço no qual o conceito

8 Esta e todas as demais citações desta autora são traduções nossas.

Page 25: Antropologia e Fraternidade

11

de Fraternidade pode intervir com um aporte especifico

(BAGGIO, 2007, p. 166).

Chiara Lubich considera que a falta do desenvolvimento da Fraternidade

como categoria política condicionou negativamente a plena realização da Liberdade e

da Igualdade, e que o desenvolvimento da Fraternidade – no pensamento e na prática -

pode contribuir para dar uma afirmação autêntica aos princípios de igualdade e

liberdade 9. Uma pergunta importante, que se coloca para a nossa reflexão, gira em

torno do próprio conceito de Fraternidade. Qual é a idéia de Fraternidade que

utilizaremos neste trabalho? Como o princípio da Fraternidade irá permear esta

exposição, enquanto categoria científica, já que ainda não se consagrou um conceito

definitivo na literatura conhecida?

Oferecer uma reflexão que possa contribuir para a elaboração de uma idéia

mais precisa desse princípio é um dos objetivos deste nosso esforço. Antonio Baggio10

admite a dificuldade de conceituação da categoria Fraternidade porque esta tem

assumido diversas nuanças de acordo com o período histórico e as convicções culturais

onde se manifesta:

A Fraternidade foi vivida, como ainda hoje, na forma de ligação sectária, no âmbito de organizações veladas, ou que ladeiam níveis secretos a outros de caráter público - como a maçonaria – e que procuram potencializar a própria rede de poder econômico e político (...). Outro modo de entender a Fraternidade que opera uma forte alteração de conteúdo é a sua interpretação como fraternidade de Classe (...). Estas interpretações de Fraternidade não podem ser consideradas como ‘fraternidades diferentes’, isto é, como possíveis interpretações, ou, no aglomerado de idéias de fraternidade, mas são a sua própria negação (...) ( 2007 , p. 5).

9 Discurso feito por Chiara Lubich: “O espírito de fraternidade na política como chave da unidade da Europa e do mundo” em Innsbruck, 9 de novembro de 2001, por ocasião do Simpósio europeu denominado "Mil cidades para a Europa" – Escritos inéditos. Tradução nossa.10 A seguinte e todas as demais citações deste autor e da obra por ele organizada são traduções nossas.

Page 26: Antropologia e Fraternidade

12

O campo de afirmações que se abre sobre o princípio de Fraternidade é

amplo. As reflexões elaboradas por alguns autores que se têm dedicado a este tema

poderão oferecer elementos facilitadores para a compreensão deste princípio e nos

servirão no percurso desta dissertação.

1. Encontrando Referências

Baggio ressalta a manifestação histórica da idéia de Fraternidade ocorrida

durante a Revolução Francesa, na fase de 1789: pela primeira vez no período moderno a

idéia de Fraternidade é interpretada e praticada politicamente (2007, p. 5).

Nesse contexto, Baggio evidencia uma referência oficial à categoria de

Fraternidade na fórmula do juramento dos deputados da Federação Francesa, de 4 de

julho de 1790. Naquele período, a Constituinte decretou que os cidadãos deveriam jurar

que: "permanecerão unidos a todos os franceses através dos laços indissolúveis da

fraternidade". Assim, vemos surgir um conceito de fraternidade destinado a construir

uma identidade nacional. Baggio apresenta-o como efeito do movimento federativo:

(...) fazer nascer a própria França, superando as divisões entre as mil "Franças" que existiam naquele tempo. Assim a fraternidade tem um papel importante naquele ano, porque cria uma espécie de identidade nacional: os franceses são irmãos11.

11 Citação de escritos inéditos do Dr. Antonio Baggio, promotor da ‘Escola Civitas’, iniciativa do Movimento Político pela Unidade (MPPU), com o propósito de promover entre as novas gerações a cultura política da fraternidade − como caminho viável para a realização do conjunto dos ideais da política moderna: liberdade, igualdade e fraternidade − e a consciência da importância da participação pessoal na política, a partir da vivência no seu meio mais próximo: a Cidade. Por sua vez, a inspiração de fundo do MPPU é a valorização da fraternidade.

Page 27: Antropologia e Fraternidade

13

Esta idéia de fraternidade como categoria política, primeiro atrelada à

sedimentação do estado nacional francês, encontrará em outras experiências elementos

que lhe atribuirão um sentido mais universal:

A Fraternidade foi, ao invés, adquirindo, no curso da história, um significado universal, chegando a individuar o objeto ao qual essa pode referir-se plenamente, o objeto ‘Humanidade’- uma comunidade de comunidades – o único que poderia garantir a completa expressão também aos outros dois princípios universais de Liberdade e Igualdade (BAGGIO, 2007, p. 21).

A “Humanidade”, como objeto do olhar científico, e a comunidade humana

que pressupõe este objeto num conjunto relacional, coloca não só o princípio de

Fraternidade como referência, mas vai estimular nossa reflexão no âmbito da própria

antropologia.

Nas experiências de Franz Boas e de Bronislaw Malinowski - que publicou,

em 1922, uma etnografia antológica sobre a vida das sociedades indígenas nos

arquipélagos da Nova Guiné12 - podemos discernir um divisor de águas na história da

antropologia porque, desde então, o ofício do antropólogo nunca mais foi o mesmo:

antes de Boas e Malinowski, a maioria dos praticantes da antropologia era formada por

intelectuais - os pesquisadores-eruditos do século XIX - que escreviam sobre povos com

os quais raramente tinham tido contato. Suas descrições eram baseadas em informações

oferecidas pelos viajantes, missionários e administradores coloniais (LAPLANTINE,

1994).

Franz Boas e Bronislaw Malinowski são notáveis enquanto inauguradores

de uma antropologia que sai dos gabinetes e vai para o campo de pesquisa. Por isto,

ambos provocam uma mudança fundamental no âmbito da pesquisa antropológica. Boas

12 Trata-se da Obra “Argonautas do Pacífico Ocidental” de Malinoviwski.

Page 28: Antropologia e Fraternidade

14

ensina que no campo tudo deve ser anotado nos mínimos detalhes “desde o material

constitutivo das casas até as notas das melodias cantadas pelos esquimós, e isso

detalhadamente, e no detalhe do detalhe” (apud LAPLANTINE, 1994, p. 77).

Malinowski, por sua vez, não apenas refutou a "antropologia de gabinete",

ao escrever sobre os dados coletados pessoalmente em campo, como sistematizou, a

partir das suas experiências, um método de trabalho de campo que preconizava, na

introdução ao Argonautas, longos períodos de convivência do antropólogo com os

grupos estudados. O pesquisador deveria, se possível, morar nas proximidades de suas

casas, acompanhar de perto suas atividades diárias, desde as mais triviais até as mais

solenes, aprender a língua nativa para evitar intérpretes tendenciosos, enfim, absorver os

valores e sentimentos do grupo, observando cuidadosamente o que as pessoas fazem e

dizem.

2. Encontrando Experiências

Durante as pesquisas nos arquipélagos da Nova Guiné, Malinowski anota a

simetria das relações de troca, do estabelecimento das leis, e o fato de que o uso da

propriedade é garantido por um pacto de reciprocidade. Entre os Trobriandeses existem

duas populações: a costeira, que vive da pesca, e a interior, que vive da agricultura.

Esses dois grupos relacionam-se através da troca de seus produtos.

Aqui mais uma vez encontramos um sistema de serviços e de obrigações mútuas baseado em um acordo permanente entre as duas comunidades. Há um aspecto cerimonial na troca, a qual deve ser feita segundo um complexo ritual. Além disso, existe ainda um aspecto legal, um sistema de obrigações mútuas que força o pescador a retribuir sempre que recebe um presente do parceiro do interior ou vice e versa. Nenhum dos parceiros pode recusar um presente, ser parcimonioso com seu presente de volta e nem pode se atrasar. Qual é a força motivadora por trás dessas obrigações? A aldeia costeira e a do interior têm de confiar

Page 29: Antropologia e Fraternidade

15

uma na outra para o suprimento de alimentos. Na costa, os nativos nunca têm legumes em quantidade suficiente, enquanto o povo do interior tem sempre necessidade de peixe (MALINOWSKI, 2003, p. 25).

A relação entre as duas comunidades é vital: uma garante as proteínas e a

outra, as vitaminas, sais minerais e carboidratos. O pacto entre elas é de garantia da

vida. Nesta relação de parceria, podemos nos perguntar: onde reside o poder? Reside no

pacto. A “arma” de supervisão da fidelidade legal, do uso da propriedade, é a

reciprocidade. A concessão mútua de bens econômicos é a base do comportamento

social dos nativos. Essas trocas – segundo Malinowski – são muito bem avaliadas e

qualificadas pela supervisão de ambos os grupos.

Essa relação entre os grupos trobriandeses não é caracterizada somente pela

coerção das obrigações recíprocas. Entre os melanésios, o espírito de grupo,

solidariedade, orgulho da comunidade e do clã são traços fortes. A Kula (troca

cerimonial) tem um caráter religioso; a generosidade é fonte de prestígio social e a troca

quase sempre acontece numa relação de parentesco, entre amigos ou afins, como em

círculos concêntricos que se expandem. A propósito, a palavra Kula quer dizer Círculo.

Malinowski afirma que:

Dentro de cada comunidade os parceiros são agrupados em sub-clãs totêmicos. Destarte, a troca estabelece um sistema de laços sociológicos de natureza econômica, muitas vezes combinados com outros laços entre indivíduo e indivíduo, grupo de parentesco e grupo de parentesco, aldeia e aldeia, distrito e distrito (MALINOWSKI, 2003, p. 28).

A partir daí, a antropologia considera - além do despojamento do

antropólogo como metodologia para alcançar o “outro” - novos elementos espontâneos

de natureza antropológica como o pacto, a reciprocidade, a generosidade e como

prestígio, a parceria. Além disso, sobretudo a partir das experiências de Malinowski,

Page 30: Antropologia e Fraternidade

16

podem-se discernir claramente eventuais equívocos, frutos da incapacidade do senso

comum para reconhecer diferenças ou distinções entre Solidariedade e Fraternidade.

Um indivíduo abastado pode ser solidário com um menos favorecido. Esta

realidade é bem clara na conceituação que Marcel Mauss traz à tona sobre o princípio

de “esmola” no contexto da cultura dos Hauçás, na relação destes com os deuses e os

mortos:

A esmola é o fruto de uma moral da dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. A liberdade é obrigatória, porque Némesis vinga os pobres e os deuses do excesso de felicidade e de riqueza de certos homens que delas se devem desfazer: é a velha moral da dádiva transformada em princípio de justiça; e os deuses e os espíritos consentem que as partes que se lhes davam e que eram destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças (1988, p.76).

As idéias de “justiça” e “sacrifício” atreladas a “esmola” podemos encontrar

também nas religiões hebraica, cristã e muçulmana.

Também o conceito de “solidariedade mecânica”, elaborado por Durkheim,

no contexto da divisão do trabalho social (DURKHEIM, 1999) onde os sujeitos se

identificam através da família, das associações religiosas, da tradição e dos costumes,

ainda é bem diferente da categoria de Fraternidade que estamos trabalhando. A idéia de

Fraternidade sugere a igualdade de condições entre os sujeitos, a simetria entre as

partes, que se traduz em participação e parceria no âmbito político e social e, em

comunhão, no âmbito religioso. Assim a Fraternidade contém necessariamente a

solidariedade, jamais o contrário.

Aquini, ao analisar a relação entre o princípio de Fraternidade e os Direitos

Humanos, afirma que:

Page 31: Antropologia e Fraternidade

17

Se consideramos as duas categorias de direito (Igualdade e Liberdade) contemplados na Declaração Universal dos Direitos Humanos o exercício da Fraternidade é aplicável a ambos... Ao mesmo tempo a Fraternidade não é reduzida ao conceito de solidariedade, porque esta última não implica a idéia de uma efetiva paridade dos sujeitos em relação e não considera como constitutiva a dimensão da reciprocidade (AQUINI, in BAGGIO, 2007, pág. 261).13

Nesta mesma direção, Baggio faz uma confrontação dos dois princípios no

âmbito da política:

(...) A Solidariedade – como muitas vezes foi historicamente realizada – consente que se faça o bem ao outro mesmo mantendo uma posição de força, uma relação ‘vertical’ que vai do forte ao fraco; a Fraternidade, ao contrário, pressupõe o relacionamento horizontal, a codivisão dos bens e dos poderes, tanto que sempre mais se está elaborando – na teoria e na prática – a idéia de uma ‘solidariedade horizontal’, que se refere à ajuda recíproca entre diferentes sujeitos, sejam estes pertencentes ao âmbito social, seja no nível da paridade institucional (BAGGIO, 2007, p. 261).

Assim, com esta distinção, poderemos discernir melhor os elementos de

Fraternidade presentes nas dimensões correntes do Mercado, do Estado e no ambiente

doméstico ou privado, espaços estes escolhidos por Jacques Godbout para repassar e

discutir os principais achados das pesquisas e reflexões sobre a dádiva na nossa

sociedade, continuando o empreendimento começado por Mauss e deixado por ele no

ponto onde o interrompeu, às portas da modernidade (GODBOU; CAILLÉ, 1999).

3. Encontrando Simetria Nas Trocas.

Estas relações, que sugerem espontaneamente um sistema social, político e

econômico, não foram uma elaboração teórica de intelectuais que organizam as relações

econômicas no gabinete, mas frutos de um sistema simbólico - e, portanto, cultural - que

atraiu os estudos de Marcel Mauss sobre as redes de dádivas tecidas no interior das

sociedades primitivas.

13 Tradução nossa.

Page 32: Antropologia e Fraternidade

18

É notável a primeira frase de Mauss, no Ensaio sobre a dádiva: “na

civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sob a

forma de presentes, teoricamente voluntários, mas na realidade obrigatoriamente dados

e retribuídos” (1988, p.51). A troca espontânea - que as civilizações citadas por Mauss

fazem questão de que seja assim entendida - tornou-se “obrigatória” por fazer parte de

um sistema social. Mas resta a representação do dom, do presente e a reciprocidade,

elementos de convergência social.

Mauss deixa bem claro que a relação de troca não acontece tão somente

entre indivíduos e, muito menos, entre coisas de valor econômico, mas além de afirmar

que o mercado é um fenômeno humano, ele não entende as trocas como fenômenos

individuais, mas sim coletivos, que estabelecem obrigações entre tribos, clãs, famílias

(MAUSS, 1988, p.53). Considera estas trocam entre si, sobretudo, amabilidades, festins,

ritos, serviços militares, danças, festas, mulheres e crianças, construindo um sistema de

prestações totais. Essas instituições apresentam elementos de simetria entre si e são

denominadas de irmandades. Como afirmou Mauss:

O tipo mais puro destas instituições parece-nos ser representado pela aliança das duas irmandades nas tribos australianas ou norte-americanas em geral, em que os ritos, os casamentos, a sucessão de bens, os laços de direito e de interesse, fileiras militares e sacerdotais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo. Os Tlingit e os Haida, duas tribos do Noroeste americano, exprimem fortemente a natureza destas práticas dizendo que ‘as duas irmandades se respeitam uma à outra’ (MAUSS, 1988, p. 56).

Mesmo se Mary Douglas (1985) insista em dizer que a dádiva gratuita não

existe e Anete Weiner “descreva minuciosamente o cálculo dos Trobriandeses para

saber se eles devem, e quando, introduzir no círculo da Kula os bens preciosos da

família, em princípio inalienáveis (...)” (GODBOUT; CAILLÉ, 1999, p. 130) o sistema

Page 33: Antropologia e Fraternidade

19

simbólico do dom, nestas sociedades, não perde o caráter convergente e consolidador da

comunidade, revelando o princípio de Fraternidade como elemento que amarra e une

todas as iniciativas de uma comunidade formando um sistema.

Estes sistemas possuem na sua base o caráter de reciprocidade que costura

as relações, vinculando-as. Estas ligações são fortalecidas pelas regras de dar e receber.

Assim explica Mauss:

(...) a prestação total não implica só a obrigação de retribuir os presentes recebidos; ela supõe dois outros igualmente importantes: obrigação de os dar, por um lado, obrigação de os receber, por outro. A teoria completa dessas três obrigações, desses três temas do mesmo complexo, daria a explicação fundamental satisfatória dessa forma de contrato entre clãs polinésios (...). Os Dayaks desenvolveram mesmo todo um sistema de direito e de moral acerca do dever que se tem de não deixar de partilhar a refeição a que se assiste ou que se viu preparar (1988, p. 67).

Encontram-se, também, as características das relações de dádiva primitiva

entre os modernos, sobretudo, nas análises entre os vínculos interpessoais trabalhadas

por Godbout e Caillé (1999). Nesta direção, João de Pina Cabral (2005) vai afirmar que,

após a Segunda Guerra Mundial, os departamentos mais importantes da antropologia,

como os britânicos, americanos e franceses, diante da mudança radical nas relações

internacionais, abriram suas pesquisas a novos terrenos, deixando para trás a associação

com os espaços coloniais ou sociedades “primitivas”, universalizando a disciplina e

descentrando o seu objeto.

Assim, Cabral, inspirando-se nos escritos de Emmanuel Lévinas, analisa

como a antropologia trata hoje um dos seus pontos cardeais: o conceito de “alteridade”,

no atual contexto político mundial imperialista com as mesmas forças colonialistas de

outrora. Cabral explora o conceito de crises de Fraternidade, aplicando-o ao contexto

dos conflitos humanos ligados à pós-colonialidade, em Moçambique. Ele analisa um

Page 34: Antropologia e Fraternidade

20

material de natureza literária, dois romances recentes, que desenvolvem o tema das

reações emocionais à guerra civil ocorrida na década de 1980. Nesse contexto, Cabral

vai associar o conceito de Fraternidade com a proximidade, a partilha comum de uma

terra, encontrando uma das motivações de crise da Fraternidade no desencontro entre as

dimensões telúrica e comunal:

Todo laço de intersubjetividade envolve a partilha de um espaço comum. Assim, quando o apego telúrico (o sentimento de pertencer a uma terra) e os laços comunais (o sentimento de pertencer a um povo) entram em conflito um com o outro, ocorre necessariamente uma crise de fraternidade (2005, p. 237).

Assim, para Cabral, o que faz nascer a crise de fraternidade na relação entre

os laços telúricos e comunais é o poder simbólico e a distribuição diferenciada de

recursos que este determina dentro do espaço comum.

Nesse sentido, para Bourdieu (1989), os instrumentos de poder simbólico

são essencialmente instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo,

que se manifestam através dos mais diversos meios de comunicação (língua, cultura,

discurso, conduta), garantindo àqueles que os possuem a manutenção e o exercício do

poder. Neste caso, o desequilíbrio das forças ocasionam as crises de Fraternidade.

4. Encontrando Confraternizações Simbólicas.

As relações possuem uma lógica precisa com poder de fomentar um sistema

de reciprocidade simbólica. Isto acontece pela própria capacidade humana de associar-

se. Alguns antropólogos afirmam que os animais, inclusive o ser humano, devem ser

estudados não individualmente, mas em interação com seus parceiros. Por exemplo,

Feuerbach entende "que o gato é essencialmente rateiro, a taturana que vive de

Page 35: Antropologia e Fraternidade

21

euforbiáceas, taturana euforbiácea, e o pulgão que vive de folhas, pulgão de folhas, e

que assim sejam chamados" (in GADAMER, 1984, p. 144).

Entretanto, os animais não estão relacionados somente com a

alimentação, mas com parceiros que lhes oferecem segurança e proteção − como a

mãe, o parceiro sexual − e o território.

Nesta direção, Fritjof Capra estabelece a concepção sistêmica da vida,

pautada numa visão da realidade baseada na consciência do estado de inter-relação

e interdependência essencial de todos os fenômenos - físicos, biológicos,

psicológicos, sociais e culturais. Por tal ponto de vista, todos os fenômenos devem

ser estudados a partir de suas relações. Uma árvore, por exemplo, ao ser

transformada em fenômeno relacional, deixa de ser raízes, caule, galhos, folhas e

frutos, passando a ser um fenômeno de troca de oxigênio e ambiente para uma

variedade de espécies, com as quais estabelece trocas específicas (CAPRA, 1982, p.

259).

Dessa forma, o que é observado nos seres vivos em geral é observado

no ser humano que comumente está relacionado com parceiros e, se quisermos

enxergá-lo por inteiro, não podemos isolá-lo do seu meio social, pois, como lembra

Feuerbach, “seria melhor denominar o "EU" de "EU-TU" e o homem de "HOMEM

DO MUNDO" ou da "NATUREZA” (in GADAMER, 1984). Então, se o ser humano é

compreendido desta maneira, é-lhe inerente a capacidade de perceber o outro e o

meio cósmico.

Estas conclusões abrem uma discussão delicada no âmbito da antropologia

tradicional que parte do pressuposto do confronto natureza/cultura. Mas, a perspectiva

metodológica de pesquisa que nos propomos segue as teorias estruturadas por Morin,

Page 36: Antropologia e Fraternidade

22

Bachelard e Durand os quais fazem a inversão, abandonando a perspectiva da disjunção

natureza/cultura para defender a sutura natureza/cultura (MORIN, s.d.; BARCHELARD,

2003; DURAND, 1997).

Esta dimensão do conhecimento, como vimos, vem ao encontro do princípio

de Fraternidade como uma categoria antropológica. Pois, se o ser humano é

intrinsecamente relacional, as produções humanas − como o conhecimento, as

elaborações simbólicas, os mitos e as realidades humanas mais palpáveis como a

política, a arte e a economia − poderão obedecer a esses ordenamentos. Deste modo, a

percepção coloca o ser humano em abertura para o outro e, na mesma linha, o símbolo,

dotado de convergência, está sempre voltado para algo ou alguém.

Nesta idéia, encontra-se a fenomenologia do conhecimento que se contrapõe

à perspectiva racionalista cujo esforço é o de construir conceitos fechados e que, muitas

vezes, não admite a pluralidade de interpretação dos objetos. Por sua vez, as teorias

empiristas colocam a percepção como fonte privilegiada do conhecimento, mas a

formula no campo da abstração, do pensamento, enquanto que no âmbito da

fenomenologia ela se diferencia de uma análise racionalista por perceber o objeto como

um diamante de sete faces, que não se olha no todo, mas uma a uma as faces que o

compõem.

Ainda assim, a teoria empirista admite a dialógica na constituição do

próprio conceito: percebendo-se uma face, esta pode ser redimensionada pelo

conhecimento da outra face, ou perspectiva, pois a percepção vai acontecer no momento

da relação entre as coisas. Nesta direção, Gaston Bachelard afirma:

Um filósofo que formou todo o seu pensamento atendo-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências, que seguiu o mais exatamente possível a linha do racionalismo

Page 37: Antropologia e Fraternidade

23

ativo, a linha do racionalismo crescente da ciência contemporânea, deve esquecer o seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas propostos pela imaginação poética. Aqui o passado cultural não conta; o longo trabalho de relacionar e construir pensamentos, trabalho de semanas e meses, é ineficaz. É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se há uma filosofia da poesia, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante, na adesão total a uma imagem isolada, muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem. (1984, p.01)

Por sua vez, esta imagem colocada na relação com as demais representações

revela numa perspectiva fenomenológica o conteúdo da realidade estudada.

A cultura ocidental nos educou a ver as coisas, a natureza, as

representações, os deuses, numa perspectiva individualizada. Por exemplo, a imagem

cristã de Deus foi, por séculos, a imagem aristotélica do "ser", portanto, distante,

individual e estático. Há algumas décadas a teologia cristã vem aprofundando a imagem

de Deus relacional, uno e trino, relação em si e com o cosmo.

Assim, acontece com outros elementos vistos por nós como dissociados,

mas que, olhados com maior perspicácia, revelam o contínuo movimento em função de

compor certa unicidade.

Essa unicidade é gerada pelas relações e pelas conexões. Portanto, o nosso

olhar pode visualizar primeiramente o uno e depois o fragmentado, ou seja, a percepção

deve partir do ponto de vista do uno para alcançar a relação existente entre os

elementos.

É nesta relação que se encontra a epifania da mensagem. Muitas vezes, não

a percebemos porque consideramos as coisas separadas, uma organização de coisas

estanques.

Page 38: Antropologia e Fraternidade

24

Roberto Da Matta traz a idéia da relação para o campo da antropologia

social, e mesmo antagonizando os elementos, ele os confronta para perceber melhor o

próprio objeto. Para ele:

(...) a partir dos conectivos e das conjunções poderíamos ver melhor as oposições, sem desmanchá-las, minimizá-las ou simplesmente tomá-las como irredutíveis. Afirmo - continua ele - visto ser isto um ensinamento básico da antropologia social que pratico que o estilo brasileiro se define a partir de um "&", um elo que permite balizar duas entidades e que, simultaneamente, inventa o seu próprio espaço. Vislumbrando a relação como um valor e como uma positividade, pode-se enxergar muito melhor a natureza da própria oposição (...) (1991, p. 28).

Cirlot, ao analisar a essência do símbolo, evidencia-o como algo relacional e

coloca a dinâmica do símbolo, o seu nascimento e dinamismo, nas seguintes

considerações analíticas:

a) Nada é indiferente. Tudo exprime algo e tudo é significativo. b) Nenhuma forma de realidade é independente: tudo esta em relação. c) O quantitativo se transforma em qualitativo em certos pontos essenciais que constituem a significação da quantidade; d) tudo é seriado; e) existem correlações de situações entre as diversas séries e de significado entre estas séries e os elementos que integram (Cirlot, 2002, p 32) 14.

Nesta direção concorre Gilbert Durand quando trabalha a convergência dos

símbolos. O significado do símbolo converge a outro elemento. Assim, Durand coloca o

símbolo em movimento, ressaltando a relação (DURAND, 1993).

Portanto, a natureza semântica do símbolo não se encontra velada somente

em si próprio, mas o seu significado acontece na relação. Numa análise é importante

perceber a relação para conhecer a distinção e a unicidade provocadas pelas conexões.

14 Tradução nossa, como em todas as citações deste autor.

Page 39: Antropologia e Fraternidade

25

A analogia procede por reconhecimento de semelhança entre relações diferentes quanto aos seus termos, enquanto a convergência encontra constelações de imagens semelhantes termo a termo em domínios diferentes de pensamento. A convergência é uma homologia, mais do que uma analogia. A Analogia é do tipo A é para B o que C é para D, enquanto a convergência seria, sobretudo, do tipo A é para B o que A é para B. Encontramos, de novo, o caráter de semanticidade que está na base de todo símbolo e que faz com que a convergência se exerça, sobretudo, na mentalidade de elementos semelhantes mais do que numa simples sintaxe (DURAND, 1993, p.43).

Lévi-Strauss, ao introduzir a obra de Marcel Mauss “Ensaio Sobre a

Dádiva”, dá relevância à relação entre os campos psicológico e sociológico,

evidenciando que um não está relacionado a outro, no âmbito de causa e efeito, mas que

o indivíduo traduz em si uma estrutura psico-sociológica, delineando uma

complementaridade entre uma e outra. É neste contexto que ele torna o conceito mais

preciso, o que é importante para a nossa reflexão:

(...) é da natureza da sociedade expressar-se simbolicamente nos seus costumes e nas suas instituições... As condutas individuais normais nunca são simbólicas por si mesmas: elas são os elementos a partir dos quais se constrói um sistema simbólico, que não pode ser se não coletivo (in MAUSS, 1988, p. 15)

Esta realidade coletiva é o lugar onde acontecem as composições

simbólicas, sejam elas narrações, sonhos, obras de arte. Estas acontecem na

dimensão da coletividade. Assim, Cirlot especifica a sintaxe simbólica quando

afirma que:

Os símbolos, toda vez que se manifestam, não aparecem isolados, mas se unem entre eles dando lugar às composições simbólicas, bem desenvolvidas no tempo (narrações), no espaço (obras de arte, emblemas, símbolos gráficos) ou no espaço e no tempo (sonhos, formas dramáticas) (...). A associação de elementos combina o significado deles. Portanto, a serpente coroada representa o coroamento das forças instintivas ou telúricas. Muitas vezes os emblemas se baseiam sobre a união em um determinado campo de vários símbolos simples (2002, p.49).

Page 40: Antropologia e Fraternidade

26

Podemos, então, dizer que esses símbolos confraternizam, já que

formam um sistema simbólico pela convergência de um para com o outro,

configurando uma relação de fraternidade. Por este motivo, esses símbolos

constroem modelos, paradigmas e arquétipos sociais que evidenciam a realidade

semântica que nos possibilita detectar a lógica da estrutura profunda das relações

sociais, invisível a olho nu, mas formalmente organizada nos recônditos do

inconsciente coletivo.

Considerações finais deste capítulo

Nosso trabalho desenvolve-se no âmbito da ciência antropológica, que teve

seus marcos importantes em Franz Boas e Bronislaw Malinowski, enquanto

inauguradores de uma antropologia que se envolve diretamente no campo de pesquisa,

concretizando o “Encontro com o Outro” enquanto relação pesquisador-objeto, com

suas conseqüências − estranhamento, educação do olhar para o diferente − abrindo a

ciência para os grandes temas, como a questão da alteridade e do etnocentrismo.

Assim, com as experiências de campo de Malinowski, pudemos

compreender que a viagem feita pelo antropólogo às terras do “outro”, seja este

entendido como as sociedades tribais - os primeiros "objetos" de estudo da antropologia - ou os

grupos inseridos nas sociedades urbanas contemporâneas, deveria conter um grande

despojamento de si mesmo, uma vocação para a identificação humana, apesar das

agruras e dificuldades que o contato em campo impõe.

Somente assim, ao final desta viagem ao coração das culturas estrangeiras, o

antropólogo poderá voltar para “casa” trazendo o Outro "revivificado" aos olhos dos

leitores de suas etnografias. Esta metodologia do despojamento e da inserção, conhecida

Page 41: Antropologia e Fraternidade

27

como "observação participante", nos oferece pistas para descobrirmos formas simétricas

na relação entre pesquisador e sujeito pesquisado, qualificando a atitude do pesquisador.

Desta maneira Malinowski indica a abertura, a universalidade componente da noção de

Fraternidade que utilizamos no campo de pesquisa e que queremos sintetizar nesta

dissertação.

Assim, neste capítulo, pudemos colher três elementos metodológicos

importantes para a reflexão da Fraternidade, como categoria antropológica: o encontro

com o Outro, a síntese participativa de convergência recíproca entre pesquisador e

objeto e a metodologia do despojamento para alcançar esse Outro.

Nesta direção, a Fraternidade vem entendida como o movimento vinculador

entre os membros de uma comunidade. O sistema simbólico do dom, como expusemos,

nas sociedades e grupos estudados por Malinowski, Mauss e nas pesquisas modernas

trabalhadas por Godbout e Caillé, não perde o caráter convergente e consolidador nos

grupos sociais, revelando o princípio de Fraternidade como elemento que amarra e une

todas as iniciativas de uma comunidade, num sistema de troca material e imaterial.

Neste sentido, os sistemas simbólicos seguem o mesmo movimento de

confraternização simbólica. Assim, a categoria de Fraternidade que trabalhamos nesta

dissertação assume o caráter de abertura universal, espaço de participação,

reciprocidade e simetria entre os elementos participantes, tanto no espaço mítico como

nas configurações dos sistemas simbólicos.

Page 42: Antropologia e Fraternidade

28

CAPÍTULO 2

AS CONFIGURAÇÕES SERTANEJAS

Terra nebulosa, nebulosamente apontada nos fantásticos mapas da mitografia.

(Olavo Bilac, últimas conferências e Discursos, p. 155).

Vimos, no capítulo anterior, que o princípio de Fraternidade não só

apresenta valor histórico e político, mas, através das pesquisas e experiências de

clássicos da antropologia, pudemos discerni-la como valor cultural.

Assim, dando continuidade à nossa reflexão, consideramos que a

Linguagem, como dimensão da condição humana, vem sendo objeto de estudos da

antropologia por formar um conjunto de recursos simbólicos que entram na

constituição do sistema social. Esses recursos simbólicos são constituídos pelas

representações individuais de mundos reais ou possíveis. Neste sentido, vamos

buscar uma compreensão da identidade sertaneja, no campo da Antropologia

Lingüística, não somente como um modo de pensar, mas, sobretudo, como uma

prática cultural, isto é, como uma forma de ação que ao mesmo tempo pressupõe e

realiza maneiras de estar-no-mundo. Nossa análise parte do pressuposto da

linguagem como aprofundou Marianelli, ao observar os estudos de Simone Weil

para quem “a linguagem é um fundamento, a ‘convenção’ base da sociabilidade

humana” (apud MARIANELLI, in BAGGIO, 2007, p. 80). Desse modo, tentaremos

perceber a cultura inerente aos sertanejos procurando acessar esta base da

constituição das relações sociais.

Page 43: Antropologia e Fraternidade

29

Para isso, esta busca acontecerá através da linguagem que se manifesta

por meio da articulação vocal − que aprofundaremos mais adiante − ou do uso da

palavra escrita. Neste momento, trabalharemos o uso da palavra escrita,

examinando algumas imagens apresentadas por Euclides da Cunha, em sua obra

épica Os Sertões (1920), que emergem como delineadoras dos alicerces da

consciência nacional brasileira, trazendo à tona a maneira de ser sertaneja.

Cada narração escrita deve ser compreendida no seu contexto; no caso

da obra Os Sertões, perceberemos alguns elementos da cultura da gente do sertão

nordestino, apreendidos por Euclides da Cunha durante as vicissitudes das batalhas

de Canudos. Em sua obra, o autor manifesta elementos importantes da identidade

política, social e cultural do sertanejo, através de imagens.

A experiência de Canudos se dá com uma motivação religiosa em um

contexto em que a Igreja Católica Romana encontrava-se estreitamente ligada ao

poder político. Ainda que se houvesse acabado de delinear uma maior distinção

institucional entre a República, proclamada em 1889, e a Igreja Católica Romana,

esta permanecia muito ligada aos poderes coronelísticos e afastada das populações

mais distantes dos grandes centros de então.

Neste contexto podemos aferir que, se a categoria Sertão é dotada da

idéia de oposição a Mar, torna-se emblemática a diferenciação feita por Roger

Bastide:

A própria religião modifica-se quando passa de uma zona para outra [do litoral para o sertão]. À beira mar, eis o grande apelo místico das igrejas cintilantes de ouro, das cabeças dos querubins alados, ou das cariátides voluptuosamente retorcidas sob o altar dos santos. No sertão, a religião é tão trágica, tão machucada de espinhos, tão torturada de sol quanto a paisagem; religião da cólera divina, num solo em que a seca encena imagens de juízo final, e em que os rubicundos anjos barrocos, negros ou brancos, cedem lugar aos anjos do extermínio. O penitente, vergastado pelas disciplinas, lava com sangue os pecados do

Page 44: Antropologia e Fraternidade

30

mundo, e o profeta substitui aqui o padre (BASTIDE, 1959, p.17).

Assim, no contexto da vida religiosa sertaneja, sintetizada acima por

Bastide, numa totalidade em que os deveres doutrinários dos cristãos católicos

resumiam-se aos sacramentos, com pouca ou inexistente formação ao seguimento

oficial dos preceitos, os fies católicos de então eram aliviados, esporadicamente,

por alguns sacerdotes que enveredavam pelas regiões difíceis dos sertões a celebrar

as desobrigas, no máximo uma vez por ano, abrindo assim as possibilidades para o

surgimento da vida religiosa católica popular e o aparecimento dos beatos.

Justamente neste espaço aberto pela ausência de uma religião institucionalizada, a

fala do imaginário dominante desaparece e o imaginário popular emerge mais

fortemente, revelando sua pungente capacidade interpretativa e criadora.

1. Messianismo e Resistência

Desse modo, era comum nos sertões o aparecimentos dos beatos, que

emergem não apenas devido a fatores religiosos mas, em geral, numa situação

política e econômica caótica geradora de uma atmosfera social desesperadora que

suscita nestes beatos respostas messiânicas ao quotidiano com nítidas

Page 45: Antropologia e Fraternidade

31

características de Juízo Final.15 A este propósito, escreve Maria Isaura Pereira de

Queiroz:

O messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se, pois de um líder religioso e social (...). Obviamente que esse líder não é uma pessoa qualquer, mas sim alguém que revelou ter qualidades pessoais extraordinárias, provadas por meio de faculdades mágicas que lhe dão autoridade; trata-se, pois de um líder essencialmente carismático (QUEIROZ, 1977, p. 27).

Nesta perspectiva, apresentada por Maria Isaura Queiroz, podemos

discernir que o movimento sertanejo, ao redor do cearense Antônio Conselheiro, na

vila de Canudos (BA), teve uma forte conotação messiânica, pois este, desde a

década de 1870, era conhecido no sertão nordestino por suas prédicas

caracterizadas pelas profecias de “juízo final”. Sua aparência física semelhante à

dos profetas bíblicos e o seu discurso atraiam, ao seu redor, a gente miserável do

sertão.

O Professor Eduardo Diatahy Menezes, por ocasião dos 100 anos da

destruição da comunidade e do Movimento de Canudos (1887-1987), assim

escreve:

15 Expressão pautada pelos escritos religiosos Judaico-Cristãos que anuncia um salvador para uma situação social limite. Por exemplo, nas profecias de Isaías: "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam o país tenebroso. Multiplicaste o povo, aumentaste o teu prazer. Vão alegrar-se diante de ti, como na alegria da colheita, como no prazer dos que repartem despojos de guerra. Porque como no dia de Madjiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados. Porque toda a bota que pisa com barulho e toda capa empapada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas. (...) Porque nasceu para nós um menino, um filho foi dado: sobre seu ombro está o manto real, e ele se chama "Conselheiro Maravilhoso" (...) Grande será seu domínio, e a paz não terá fim sobre o trono de Davi e seu reino, firmado e reforçado com direito e a justiça, desde agora e sempre. O zelo de Javé dos exércitos é quem realizará isso". (Isaías, 9). Já o livro do Apocalipse, coloca a pessoa de Jesus como guerreiro que vem formar um novo exército de santos e garantirá a todos que atenderem a sua mensagem de salvação a imortalidade por mil anos: “(...) parecia um filho de Homem, vestindo uma longa túnica; no peito, um cinto de ouro; nos cabelos brancos como lã, como neve; os olhos pareciam uma chama de fogo; os pés eram como bronze de forno, cor de brasa; a voz era como um estrondo de águas torrenciais; na mão tinha sete estrelas; de sua boca saía uma espada afiada, de dois cortes; seu rosto era como um sol brilhando ao meio-dia (...). Não tenha medo eu sou o Primeiro e o Último. Sou o Vivente. Estive morto, mas estou vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da morada dos mortos". (Apocalipse, 1). Estes escritos estavam bem presentes nos discursos de Antônio Conselheiro e criaram, ao seu redor, uma atmosfera apocalíptica através das imagens do Juízo Final.

Page 46: Antropologia e Fraternidade

32

No vasto e generalizado abandono das populações sertanejas e no vazio produzido no campo religioso por uma Igreja que em grande parte perde o seu carisma e adere aos privilégios do poder é que surge para o povo do sertão nordestino a imensa figura do Peregrino e Profeta Antônio Vicente Mendes Maciel. A sua ação ocupa cada vez mais os espaços disponíveis, invadindo o domínio do sagrado com sua palavra e seu exemplo, e o campo econômico com a fuga da mão de obra tradicional que se transforma em seu séqüito. Dentro da cultura do fim do mundo e de uma religiosidade que realiza percursos dialéticos entre Arché e eschaton ele concretiza seu sonho utópico. Isso desperta apreensões e conseqüente ação controladora tanto das elites baianas (hierarquia eclesiástica, potentados rurais e políticos) quanto das autoridades centrais. Mesmo em âmbito local articulam-se poderosos e autoridades (civis e do clero) no sentido de reprimir aquela experiência "fanática" e "perigosa" para a ordem instituída (MENEZES, 1987, p.12)

Por isso, o Conselheiro foi hostilizado desde o início da experiência

político-religiosa da Comunidade de Canudos, em 1893, em um lugarejo

paupérrimo, nas margens do rio Vasa-barris, no sertão baiano. O Conselheiro,

como era conhecido, renomeou o lugar dando-lhe o nome de Monte Santo16·. Em

pouco tempo um fluxo constante de romeiros para lá se dirigiu.

Em seus discursos, o Conselheiro rejeitava a República, considerava-a

coisa satânica por ter instituído o casamento civil. Para ele tratava-se, então, de

constituir outra sociedade, onde os princípios dogmáticos da religião seriam

estritamente obedecidos. É neste contexto que vai se delinear toda a experiência da

comunidade alternativa de Canudos, que procurou fazer opções em meio a uma

situação de extrema pobreza, para sanar a própria miséria econômica e religiosa.

16 O monte vai emoldurar o chão sagrado da experiência de Canudos, refazendo-se, simbolicamente, a Jerusalém celeste: monte = do alto, de cima aspecto assenssorial e desce sobre o mundo como experiência divina - Monte Santo. Um escrito em Lactâncio, do século IV, sobre o grupo religioso que tinha diante de si, demonstra a atmosfera que se cria no campo mítico quando formado o grupo de fiéis em torno do novo messias eles passam a sentir-se perseguidos pelas autoridades a quem consideram como o Anticristo ou de estar a serviço do próprio demônio. Refugiam-se em algum lugar - a Nova Jerusalém - e preparam-se para resistir ao Mal. Ali se dará a batalha final. Não se importam em morrer porque o messias lhes garante vida eterna caso sejam atingidos. Viverão ao lado do senhor por outros mil anos: "Esse louco - o Anticristo - na sua cólera implacável conduzirá um exército e cercará a montanha onde os justos procurarão refúgio. E quando esses se sentirem cercados, clamarão pelo Senhor por auxílio e Deus há de ouvi-los e enviar-lhes-á um libertador (...) e toda uma multidão de ateus será aniquilada e correrão rios de sangue." (verbete Montagna, in CIRLOT, 2002, p.318 )

Page 47: Antropologia e Fraternidade

33

Foi este o objeto do olhar de Euclides da Cunha, enviado pelo jornal O Estado de

São Paulo, em setembro de 1897, para cobrir os acontecimentos das batalhas de

Canudos. Posteriormente, Euclides da Cunha transformou os relatos de Canudos

em tema do livro que foi publicado, em 1902 , sob o título de Os Sertões.

Em sua obra, Cunha viu também a oportunidade de estudar e conhecer o

Brasil. Concentrou sua atenção em revelar o conflito entre o litoral brasileiro da

época − urbano, pré-industrial, semi-capitalista, europeizado, predominantemente

branco e racionalista − contra o sertão mestiço, povoado por uma "sub-raça"

miserável e sujeita. Achava que a campanha contra Canudos simbolizava, de certa

forma, a tentativa de "civilizar o Sertão".

2. Alguns Contornos dos Escritos de Euclides da Cunha

O conjunto de imagens, proposto por Euclides da Cunha em seu épico, Os

Sertões, constrói a sua maneira de perceber o Sertão nos vários aspectos da vida social,

política e cultural, pois é por meio do imaginário – como o concebe Durand (1997,

p.57) - que o ser humano enfrenta a angústia original decorrente da emergência da

consciência do tempo e da morte, ou seja, as elaborações imaginárias são defesas contra

a consciência do limite da "finitude". Limite este experimentado, em campo, por Cunha

e transformado em substância literária, portanto, em imagem. Assim sendo, seus

escritos não foram somente um relato jornalístico, ou histórico e geográfico, mas uma

necessidade do espírito humano de representar uma experiência vivida.

Page 48: Antropologia e Fraternidade

34

Neste caso, não só o autor construiu os sertões, mas foi também

construído por estes. Prova disso é o caráter de denúncia que tomam os seus

escritos contra as injustiças feitas à comunidade de Canudos. Neste mesmo

sentido, analisemos as últimas palavras de Os Sertões:

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rangiam raivosamente cinco mil soldados (CUNHA, 2002, p. 532).

Não obstante este trecho ser o desfecho final dos episódios acontecidos em

Canudos, esse tom vai permear toda a obra, pois Euclides da Cunha publicou Os

Sertões cinco anos após a destruição do arraial. Portanto, ele escreveu este famoso épico

partindo desta imagem desoladora. As imagens dramáticas das batalhas de Canudos vão

determinar suas percepções do sertão e do sertanejo.

Neste entrecho, o desejo fundamental do imaginário é reduzir a angústia

existencial ligada às experiências negativas do tempo, pois as produções imaginárias,

enquanto manifestações da função simbólica, segundo Durand, têm fundamentalmente

duas funções: a de organizar o universo sócio-cultural criando sentido para o mundo, e

garantir a “reequilibração” antropológica (DURAND, 1993).

Diante dos sofrimentos atrozes provocados pela guerra de Canudos,

Euclides da Cunha transformou os fatos em substância literária, cheios de imagens

e símbolos, para, assim, organizar na sua interioridade os espasmos vividos, pois −

segundo a metodologia da convergência simbólica − ao representar um fato, uma

angústia, o ser humano, pelo próprio poder do cogito, passa a dominar a situação

representada. Daí, Cunha evidenciar o combate em toda a sua obra porque, como

Page 49: Antropologia e Fraternidade

35

bem afirma Gilbert Durand: “(...) figurar um mal, representar um perigo,

simbolizar uma angústia, já é, pelo poder [maîtrise] do cogito, dominá-los” (1997,

p.135).

Nesta perspectiva, farei um recorte para percebermos o significado que

Euclides da Cunha atribui ao sertanejo, na sua relação com a natureza, e as

vicissitudes deste frente à realidade do semi-árido. Na primeira parte da sua obra,

Euclides da Cunha descreve a terra sertaneja como espaço geográfico, relevo e

clima prenhes de semântica. Vejamos, no quadro abaixo, a seqüência dos capítulos

distribuídos por Euclides da Cunha. Reproduzi a primeira parte do índice de Os

Sertões para perceber como se configuram os temas.

Quadro nº 1

Primeira Parte do ÍNDICE de OS SERTÕES

TÍTULO PAG TÍTULO PAG

Introdução – Adelino Brandão

13 Cap.IV

As secas 48

Nota preliminar 17 Hipóteses sobre a gênese das secas 49

A terra

Cap. I

As caatingas 52

Preliminares 21 O juazeiro 56

A entrada do sertão 27 A tormenta 58

Terra ignota 27 Ressurreição da Flora 58

Em Caminho para Monte Santo

29 O umbuzeiro 59

Primeiras impressões 31 A jurema 60

Um sonho de geólogo 34 O sertão é um paraíso 60

Cap. II

Do alto de Monte Santo 37

Manhãs sertanejas 61

Do alto da Favela 39 Cap. V

Uma categoria geográfica que Hegel não citou.

62

Cap. III

Do clima 41

Como se faz um deserto 65

Higrômetros singulares 45 Como se extingue o deserto 68

O martírio secular da Terra 70Índice de CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ed. Martim Claret, 2002.

Page 50: Antropologia e Fraternidade

36

Enquanto nos capítulos I, II, e III o autor traça aspectos técnicos do espaço

geográfico, no IV capítulo expõe características específicas da flora do semi-árido

baiano. Observemos que na reprodução do índice no quadro acima, na seqüência

destacada em negrito, cada tema dá sentido ao outro; concatenados, estes apresentam

uma seqüência lógica e a confraternização entre eles revela uma mensagem. Essa

seqüência vem inaugurada pela seca, seu nascimento e sua caracterização, depois situa

a vegetação apresentando duas componentes que não se congregam ao acaso,

configurando uma paisagem cuja fisionomia é uma composição que será nosso objeto

de estudos no âmbito da confraternização simbólica: a Caatinga e o Juazeiro.

Em seguida, Cunha não segue a seqüência da descrição da vegetação, mas

apresenta uma ruptura entre uma narração e outra. Este corte descritivo acontece com a

narração da “Tormenta”, a chuva. Poderia continuar a descrição da vegetação de modo

linear: as caatingas, o juazeiro, o umbuzeiro e a jurema, mas não o faz; interrompe,

repentinamente, este traçado e narra uma tormenta.

Após a tempestade, ele retoma a explicação da vegetação, apresentando o

umbuzeiro e a jurema contextualizados numa nova paisagem, não mais de seca, mas

dentro de uma relação de reciprocidade entre tempo e espaço. A dimensão do tempo

emerge quando Cunha coloca os dois vegetais após terem sofrido o princípio ativo da

“Ressurreição da Flora”. Enquanto dimensão espacial, o umbuzeiro e a jurema são

inseridos numa totalidade transformada em “Manhãs Sertanejas”.

Esta disposição dos temas, apresentada por Euclides da Cunha, revela-nos

uma opção literária que configura um conjunto de imagens. Após a interrupção, com a

tormenta, o autor mistifica as árvores: o umbuzeiro vem apresentado como árvore

Page 51: Antropologia e Fraternidade

37

sagrada, a jurema manifesta o arquétipo da mãe, inseridos em um sertão transfigurado

num paraíso de delícias chegando à plenitude nas manhãs sertanejas.

3. A Semântica da Confraternização Temática

A compreensão da confraternização dos temas revelou-nos não só a

estrutura de um sistema narrativo correlacionado entre as séries de títulos, mas

também a semântica de base da configuração temática formulada pela

confraternização, isto é, o significado da série: antes da tempestade, nota-se o

princípio contrário à vida orgânica, contra a qual lutam a Caatinga e o Juazeiro, a

terra mãe sendo torturada:

Ajusta-se sobre os sertões o catitério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado, ruge o nordeste nos ermos; e como um silício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos (...) (CUNHA, 1995, p. 54).

Nos escritos de Euclides da Cunha, as secas tomam a força agregadora da

imagem do monstro, que representa a força cósmica em relação imediata com o caótico,

com as forças não formais, qual delineamento de um arquétipo presente como imagem

de angústia. Para Cirlot, no plano psicológico, as imagens do monstro aludem às

dimensões mais inferiores da geologia espiritual (CIRLOT, 2002, p.321). Esta imagem da

seca, qual monstro que atenta contra a vida, é evidenciada na agressão sofrida pela

Caatinga. As formas espinhadas vão simbolizar enfrentamento e o caráter seco e

retorcido vai revelar-se como imagem da força e da virilidade.

Neste caso, saltam aos nossos sentidos os arquétipos do monstro que alude à

angústia e à ansiedade, de um lado, e, de outro, o espinho que guarda a imagem

Page 52: Antropologia e Fraternidade

38

arquetípica da espada, portanto, a força e a virilidade. Tais imagens foram,

sobremaneira, empregadas ao aplicarmos o teste AT9 17 nos grupos da cidade de

Santana do Acaraú, que aprofundaremos mais adiante.

Assim, a caatinga:

(...) com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobram-se-lhe na frente léguas e léguas, imutáveis no aspecto desolador: árvore sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, encruzados, apontado rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante (...). Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados - sobre o depauperamento geral da vida (...) (CUNHA, 1995, p.56).

Ao mesmo tempo, Cunha trabalha a categoria de Resistência, que vai

permear toda a sua obra. Contra o monstro coloca-se a virtude heróica, dando

significado para as napáleas e cactos que “entram na categoria de fontes vegetais”; as

folhas secas do juazeiro tomam cor de ouro e ao anoitecer seus frutos dão a ilusão de

círios enormes. Nota-se aqui o arquétipo da luz contra as trevas.

Na imagem do sertão paradisíaco, o autor coloca dois elementos: o

umbuzeiro, como arquétipo masculino, e a jurema, que exprime o arquétipo da mãe. Por

terem sido contextualizados após a intervenção da tormenta, dos relâmpagos, ambos

17 Teste Arquétipo de nove elementos, criado pelo psicólogo Yves Durand, a partir da obra do antropólogo Gilbert Durand, como instrumento metodológicos de pesquisas sobre o imaginário, do tipo projetivo, para revelar o tipo de estrutura do imaginário em indivíduos e ou/grupos. Através de nove (9) estímulos arquetipiais, o sujeito testado elabora um desenho e um texto, criando quase uma “obra total” a ser analisada com a finalidade de verificar a presença das estruturas descritas na teoria de Gilbert Durand.

Page 53: Antropologia e Fraternidade

39

revestem-se de transcendência, visto que, na lógica dos símbolos, os raios são dotados

de virtude espiritual que desce dos céus a terra.

O umbuzeiro torna-se a árvore sagrada, profundamente enraizada com a

cultura do sertão, notando-se, aqui, o encontro do divino com o profano, do céu com a

terra, síntese cósmica e, sobretudo, símbolo do ser humano sertanejo: religioso, astuto,

criativo e inteligente, valente, sempre em posição de enfrentamento:

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto - e veio descaindo, pouco a pouco numa intercadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, modificando-se à feição do meio, desinvoluindo até preparar-se para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das reservas guardadas em grande cópia nas raízes (CUNHA, 2002, p.59).

A jurema aparece como liderança afetiva, feminina, fecunda nas flores em

cachos e que, como mãe, acolhe os caboclos, fornecendo-lhes, gratuitamente, a bebida

que os revigora, oferecendo-nos a idéia de refúgio e proteção.

Euclides da Cunha vai trabalhar a sucessão do evento paradisíaco no tema

Manhãs sertanejas que toma a força de final feliz, numa cascata de elementos vitais

como os pássaros, os frutos, e o perdão doado - sem mágoas - pela travessia de

sofrimentos, onde tudo é paraíso, canto e festa, onde tudo tem valor por estar iluminado

pelo sol e brilhante pela luz. Assim como para a maior parte das culturas dos povos, o

sol é de princípio ativo, neste caso aparece também dotado de virtude heróica:

Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação de asas, célebres ruflando. - Sulcam-nos as notas

Page 54: Antropologia e Fraternidade

40

de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes (...) enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeão pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta(...). Assim se vão os dias (CUNHA, 2002, p. 61).

Assim, o imaginário de Euclides da Cunha construiu um todo semântico,

prenhe de significados. Nesta disposição, vemos que os elementos simbólicos

confraternizam formando um sistema que se organiza oferecendo luzes para o

conhecimento do agir sertanejo.

As narrações e as alegorias do quarto capítulo de Os Sertões e o modo como

estão dispostas se revelam como uma espécie de maquete mitológica de tudo aquilo que

aconteceu em Canudos e da cultura daquelas mulheres e homens sertanejos.

O autor caracteriza o ser humano forte do semi-árido como portador das

virtudes da caatinga e do juazeiro, do umbuzeiro e da jurema, estabelecendo uma

dicotomia entre o ser humano sofrido do semi-árido e o sofredor do litoral: “O

sertanejo é, antes de tudo, um forte - escreve Euclides - não tem o raquitismo

neurastênico dos mestiços do litoral” (CUNHA, 2002, p. 118). 18

Nesta contradição entre o árido e o banhado, Cunha vai caracterizar o

sertanejo como combatente. A imagem da batalha de Canudos infundiu-lhe tanta força

que em tudo ele vai exprimir luta, combate e guerra. A natureza versus natureza, o

sertanejo versus natureza, o sertanejo versus o monstro da seca.

18 Neste sentido, Jean-Eduardo Cirlot define o terreno árido como expressão do clima anímico “é sinal de virilidade, de enamoramento, de predomínio do elemento fogo. O símbolo do Rei marinho é muito claro quando este personagem invoca 'quem me libertará das águas e me levará ao estado seco, será recompensado com riquezas eternas'. As águas simbolizam a existência degradada, submetida ao tempo, ao efêmero, expresso pela umidade (feminino). O estado enxuto é uma representação da imortalidade; portanto, os espíritos ansiosos em obter ou em recuperar a própria força vão para o deserto, uma paisagem de perfeita sequidão, portanto, o homem de caráter enxuto, ao contrário do que parece e do que se acredita, é um ser de intensa passionalidade (...)” (Dizionario dei simboli, 2002, p.487).

Page 55: Antropologia e Fraternidade

41

4. Sertanejos e Resistências

No combate, Cunha vê o sertanejo como cavaleiro chucro e deselegante.

O Vaqueiro vai descrito num perfil heróico:

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo, exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro, calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas as pernas e subindo até as virilhas articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo (2002, p. 119).

Mas, este guerreiro, comparado aos cavaleiros da idade média, é

evidenciado com sensibilidade na disputa. No tópico Em Desafios, Euclides da Cunha

reporta um repente no qual - em notas de rodapé - vai ser evidenciada a estrutura

heróica na ritualização da competição. Esta tendência agregadora é uma imagem cuja

matriz são os cavaleiros da Idade Média.

Nos intervalos travam-se os desafios. Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muitas vezes belíssimas. Nas Horas de Deus, Amém,/Não é Zombaria, não!/Desafio o mundo inteiro Cantar nesta função!/O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da quadra: Pra Cantar nesta função,/Amigo, meu camarada,/Aceita teu desafio/O fama deste sertão!É o começo da luta que só termina, quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia, repenicando nervosamente o machete, sob uma avalancha de trisos saudando-lhe a derrota. E a noite vai deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas impueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão (CUNHA, 2002, p. 129).

Page 56: Antropologia e Fraternidade

42

Em nota de rodapé, encontramos na obra, que ‘destalado’, ‘brabo e corado’,

‘bala e onça’, ‘detabocado’, e outros são termos comuns significando todo o indivíduo

forte e hábil (CUNHA, 2002, p. 129).

Cunha narra as estratégias do sertanejo para perceber a natureza e as

possibilidades de chuva, caracterizando-o como estrategista, conhecedor da terra e,

essencialmente, religioso. Nota-se, aqui, a semelhança narrativa quando ele

descreve as virtudes do Umbuzeiro já contempladas nestas páginas, mas que

retomo para uma maior clareza, enquanto descrição de uma tendência cultural que

delineia uma configuração que denominamos Umbuzeiro. Euclides da Cunha

demonstrará a preparação do sertanejo para o combate com a natureza. Ele oferece a

imagem da seca como um rival do ser humano do sertão que o enfrenta e de quem não

foge, remetendo-nos à resistência dos últimos instantes de Canudos. Vejamos o

seguinte quadro comparativo:

Quadro nº 2UMBUZEIRO O SERTANEJO

“Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez de talhe mais vigoroso e alto - e veio descaindo, pouco a pouco numa intercadência de estilos flamívomos e invernos torrenciais (...)”

“Aguarda paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e, no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último. Aquele dia é para ele o início dos meses subseqüentes. Retratam-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças. A seca é inevitável.”

(...) modificando-se à feição do meio, desinvoluindo até preparar-se para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das

“Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e

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43

reservas guardadas em grande cópia nas raízes.

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros (2002, p.63).

tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. (...)Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras(...)(CUNHA, 2002, p. 132).

Assim começa a batalha, o fogo maltrata a terra, os golpes da natureza

voltam-se contra o ser humano, tudo é combate sem tréguas: luz e sombras nefastas

colocam o sertanejo como vítima.

Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes (...). Mas os céus persistem sinistramente claros; o sol fulmina a terra, progride o espasmo assombrador da seca.

(...) A natureza não o combate (o sertanejo) apenas com o deserto. Povoa-a contrastando com a fuga das seriemas (...)

(...) Mas, o sol se esconde no poente, a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar de novo, à tarde, com intermitência, dolorosa (CUNHA, 2002, p.134).

Nesta perspectiva, é interessante notar que Raquel de Queiroz segue a

mesma tendência de representação do ser humano no sertão quando, em 1930, escreveu

seu primeiro romance, O Quinze, que retrata a seca de 1915.

Page 58: Antropologia e Fraternidade

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Nessa obra, a autora mostra sem amenidades a realidade crua e dura do

sertanejo, de modo a polir com nitidez a gravidade da realidade limite, da evidência da

morte para dar relevo ao enfrentamento do sertanejo. O imaginário de Euclides da

Cunha faz um movimento semelhante mostrando não uma noite iluminada, mas a

escuridão nefasta que afoga o ser humano.

Assim, Queiroz vai identificar o ser humano com a própria escuridão; neste

caso, sombra e gente tornam-se adjetivos a contemplar a fuga veloz da luz, gente

vencida pelo combate, gente sem luz, gente enterrada pelas cinzas da noite escura:

O sol poente, clamejante, rubro, desaparecia rapidamente com um afogado, no horizonte próximo. Sombras cambaleantes se alongavam na tira ruiva da estrada, que se vinha estirando sobre o alto pedregoso e ia sumir no casario dormente do arruado. Sombras vencidas pela miséria e pelo desespero que arrastavam passos inconscientes, na derradeira embriaguez da fome. Uma forma esguia de mulher se ajoelhou no chão vermelho. Um vulto seco se acocorou ao lado, e mergulhou a cabeça vazia entre os joelhos agudos, amparando-a com as mãos. Só um menino em pé, isolado, olhava pensativamente o grupo agachado de fraqueza e cansaço. Sua voz dolente o chamou, num apelo de esperança. E sua mão se destacou no fundo escuro da tarde apontando o casario, além. Mas, a única aparência de vida, no grupo imóvel, era o choro intermitente e abafado de uma criança. Lentamente, o menino se voltou. Ainda esperou algum tempo. Ainda repetiu seu apelo e seu gesto. Depois saiu devagar, de cabeça erguida, os olhos fitos nos telhados pretos que se espalhavam lá longe. Leve e doce o Aracati soprava. E lentamente foi se abatendo sobre eles a noite escura, pontilhada de estrelas, seca e limpa como um manto de cinzas onde luzissem faúlhas (QUEIROZ, 1974, p. 77).

5. Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema em configurações.

Um último passo deste capítulo é a descoberta da manifestação, nos escritos

de Euclides da Cunha, do Regime Diurno da metodologia da Convergência Simbólica

de Gilbert Durand.

Page 59: Antropologia e Fraternidade

45

Trata-se da elaboração de sistemas de classificação dos elementos do

imaginário. Durand os denominou de dois modos: regime diurno e regime noturno

(DURAND, 1997).

No Regime Diurno, segundo Durand, o imaginário permanece em estado de

vigília, de armas na mão, combatendo pela espada ou pela fuga diante do tempo,

tentando obter a vitória sobre o destino e a morte, neste caso, trata-se da estrutura

heróica. Estas características são muito fortes na visão que Euclides da Cunha tem do

sertanejo.

Este regime é geralmente caracterizado por imagens que se polarizam em

torno dos esquemas ascensionais, diairéticos (da separação) e do arquétipo da luz.

Raquel de Queiroz também expressa muito bem este regime quando descreve a projeção

feita por uma das personagens numa noite no sertão seco. Neste trecho, vem à luz a

estrutura mística do imaginário delineada pela atmosfera de repouso, vontade,

contemplação e fruição de vida.

Vicente fumava, à janela. Onze horas, meia noite, sabia lá? Quem pensa e fuma, depressa esquece o mundo, as horas e até o céu todo cheio de estrelas que brilham à toa, sem se preocuparem com o tempo que corre e com a manhã próxima que lhes virá apagar o lume e as arrancar da cisma... Uma multidão de coisas tumultuosas, desconhecidas, o alvoroçava - confusas recordações, uma espécie de doce saudade! Uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar! Um desejo de se introduzir a grandes passos na imensa treva da noite, e a atravessar, e a romper esquecidos das lutas e trabalhos, e penetrar num vasto campo luminoso onde tudo fosse beleza, e harmonia, e sossego. Desejo de se integrar numa natureza diferente daquela que o cercava, de crescer, de subir, de bracejar num emaranhado de ramos, de se sentir envolto em grandes flores macias, de derramar seiva, a seiva viva e forte que o incandescia e tonteava. Mas, o cansaço o amolentava (QUEIROZ, 1974, p.79).

Page 60: Antropologia e Fraternidade

46

No sonho acordado, a personagem projeta uma imagem que fomentará um

enfrentamento da situação concreta e objetiva de seca e de morte. Os termos "ascender",

"voar", "grandes passos" e "romper" são características do Regime Diurno e do

arquétipo da Luz contra as Trevas. Neste sentido, Gilbert Durand salienta:

O scheme19 ascencional, o arquétipo da luz uraniana, e o scheme diairético parecem, de fato, serem o fiel contraponto da queda, das trevas e do compromisso animal ou carnal. Estes temas correspondem aos grandes gestos constitutivos dos reflexos posturais: verticalização e esforço de levantar o busto, visão e por fim, tato manipulatório permitido pela libertação postural da mão humana (DURAND, 1997, p. 124).

Assim, um exemplo forte das características do Regime Diurno acontece

quando Euclides da Cunha descreve a força velada existente no sertanejo:

(...) É o homem permanentemente fatigado (...). Entretanto toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta-lhe o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto (...) (CUNHA, 2002, p.116).

Em seguida, ele descreve esse sertanejo em gestos ascensionais, de elevação

e enfrentamento:

(...) e a cabeça firma-se-lhe alta sobre os ombros, possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte, e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta

19 Gilbert Durand explica que o Scheme “é a generalização dinâmica e afetiva da imagem. Ele faz a junção entre os gestos inconscientes da sensória-motricidade, entre as dominantes reflexo (que dizem respeito à reflexologia) e as representações. Trata-se da dimensão mais abstrata da imagem, mais próxima da intenção e do gesto, do que da representação. Por exemplo: o reflexo postural (verticalidade da postura humana), induz dois schemes: o da verticalização ascendente, e o da divisão (visual ou manual); ao reflexo da deglutição, correspondem os schemes da descida (percurso interior dos alimentos) e do aconchego na intimidade (o primeiro alimento do homem sendo o leite materno, acompanhado da relação afetiva que é a amamentação) ( 1997, p.61).

Page 61: Antropologia e Fraternidade

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inesperadamente, o aspecto dominador de um titã, acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de forças e agilidade extraordinárias (CUNHA, 2002, p. 116).

Os trechos acima indicam a força e o desejo de mudar o ambiente, isto é, o

meio cósmico e social. Esta atitude é também concebida por Patativa do Assaré que vai

visualizar o vaqueiro com as virtudes heróicas nos versos Eu e o Sertão (ASSARÉ, 2002,

p.154):

Sertão do Bumba Meu BoiE da harmônica de oito baxo,O teu fio sempre foiCorajoso, Cabra macho;O tempo nunca destróiA fama do teu heróiDe pernêra e de jibão,Caboclo que não resignaCorrê dentro da caatinga,Na pega do barbatão.

Neste caso, o movimento do imaginário não é de acolher doando um novo

significado para a realidade objetiva, conforme o regime noturno, mas de enfrentamento

para mudar a realidade objetiva. Percebe-se esse perfil, também presente na projeção

feita por Raquel de Queiroz, na caracterização que Euclides da Cunha fez do sertanejo

numa descrição da atitude mítica e da gestualidade.

Como vimos nas elaborações semânticas de Cunha, a Caatinga e o Juazeiro

vão configurar enfrentamentos caracterizados pelos arquétipos da espada (espinhos), e

do juazeiro na idéia do combate da luz contra as trevas. Outra forma de transformação

que lida com a realidade vai ser configurado pelo Umbuzeiro e a Jurema.

O Umbuzeiro, qual “árvore sagrada do sertão” vai reunir as idéias de

adaptação do ser humano com o semi-árido, da sutura homem-natureza-cultura, como

vimos, no quadro comparativo em que analisamos a semelhança descritiva entre o

Page 62: Antropologia e Fraternidade

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Umbuzeiro e as práticas de adaptação do sertanejo ao sertão euclidiano. Qual símbolo

da inculturação, o Umbuzeiro vem caracterizado pela virilidade quando relacionado

com o significado da Juremeira. Assim, a Jurema é apresentada pelo autor com o

arquétipo da mãe, liderança afetiva, feminina. No trecho abaixo, Raquel de Queiroz

evidencia esta tendência na cultura sertaneja, quando narra a projeção do personagem

Vicente, mitificada na gestualidade de Chico Bento.

Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores:

− De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?

Um dos homens levantou-se, um fartum sangrento envolvendo-o todo:

−De mal de chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus.

Chico Bento cuspiu longe, enojado:

− E vosmecês tem coragem de comer isso? Me ripuna só de olhar (...)

O outro explicou calmamente:

− Faz dois dias que a gente não bota um-de-comer de panela na boca (...)

Chico Bento alargou os braços num grande gesto de fraternidade:

− Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira para os urubus que já é deles. Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!

Realmente a vaca já fedia, por causa da doença.

Toda descarnada, formando um grande bloco sangrento, era uma festa para os urubus vê-la lá de cima, lá da frieza mesquinha das nuvens. E para comemorar o achado executavam no ar grandes ondas festivas negrejando as azas pretas em espirais descendentes. E o bode sumiu-se todo (...)

Cordolina assustou-se:

− Chico, que é que se come amanhã?

A generosidade matuta que vem na massa do tronco e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou:

Page 63: Antropologia e Fraternidade

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− Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre (...) (QUEIROZ, 1974, p. 79).

No trecho acima, de O Quinze, nota-se a realidade objetiva da morte e a

intervenção das virtudes típicas da configuração de Jurema: refúgio e proteção. Doa-se

ao momento outro significado, que transforma um ambiente de fome num momento de

fraternidade, mudando a aridez para uma realidade de fartura e de harmonia, justamente

como havia projetado a personagem Vicente que desejava integrar-se numa natureza

diferente daquela que o cercava. A expressão da autora: “Chico Bento alargou os braços

num grande gesto de fraternidade” vai explicitar a imagem do colo, do arquétipo da

mãe, caracterizadas pela configuração de Jurema, que trabalharemos no próximo

capítulo.

Assim, podemos perceber que as situações-limite vivenciadas nas secas e

lutas do sertanejo trazem, mais fortemente, à composição da tradição, da história e da

cultura do ser humano do semi-árido a consciência da própria finitude. Na experiência

da seca e das lutas − largo contexto de miséria cósmica, em que tudo grita morte − a

realidade objetiva além de ser materialmente dilaceradora é também desprovida de

significado.

Essa situação dramática, porém, vai criar no sertanejo a necessidade de dar

sentido, de tornar a realidade objetiva prenhe de significados. Esta elaboração de

sentido para o universo sertanejo vai acontecer seguindo um trajeto antropológico

próprio do sertão.

Neste caso, através dos escritos de Euclides da Cunha, pudemos perceber,

na estrutura do imaginário do sertanejo, atitudes míticas caracterizadas pelos regimes

diurno e noturno da teoria da convergência simbólica de Gilbert Durand.

Page 64: Antropologia e Fraternidade

50

Nosso estudo da linguagem escrita, apresentada por Euclides da Cunha,

revelou que o ser humano sertanejo apresenta mais fortemente as características do

regime diurno, organizando o universo ao seu redor através da elaboração por

antítese, pensamento da luz contra as trevas, a ascensão contra a queda numa

atitude conflitual entre o ser humano e o mundo. Este conjunto de significados, que

particularizam atitudes do sertanejo, vai compor uma tendência, que denominamos

“Configuração da Caatinga”, uma espécie de arquétipo local, assim facilitando

nossas referências e entendimento que permearão nossa reflexão nos próximos

capítulos.

Considerações finais deste capítulo

Nossa reflexão foi permeada pela noção de associação semântica que

denominamos ‘Confraternização simbólica’ como princípio que tende a organizar os

símbolos e estabelecer as bases de agrupamentos entre os elementos, compondo um

sistema de representações, que oferece a disposição necessária para as funções a que

esses se destinam: arranjar-se numa dinâmica de confraternização temática como aqui

fizemos.

Neste sentido, nossa percepção ateve-se a esse movimento para alcançar a

relação existente entre os temas e as imagens apresentadas por Euclides da Cunha, em

sua obra Os Sertões, colhendo a mensagem gerada pelas conexões.

Neste movimento de confraternização entre os temas e as configurações

pudemos colher:

a) Que as imagens apresentadas por Euclides da Cunha em Os Sertões

figuram idéias que, pelo poder da convergência, formam símbolos;

Page 65: Antropologia e Fraternidade

51

b) Que a semântica da configuração da Caatinga revelou seus reflexos

locais como categoria de resistência e enfrentamento:

► Na caatinga - espinhados, gravetos estalados em lanças apontando

rijamente no espaço;

► Estes se referem aos arquétipos da espada e do sertanejo dotado de

virtude heróica: cavaleiro, combatente. Nesta relação

Personagem/Sertanejo - Espada - Monstro (este último apresentados por

Euclides da Cunha e Raquel de Queiroz através de imagens

potencializadoras do monstro da seca e da morte), colhe-se a angústia e

as formas de resistência, reveladas nesta primeira parte com as

características do Regime Diurno da Teoria da Convergência Simbólica,

de Gilbert Durand.

Nesta mesma direção, colhemos a semântica do Juazeiro e do Umbuzeiro.

Porém o Juazeiro com características do confronto Luz versus Trevas, dimensão

espiritual, e contrastes ideológicos. O Umbuzeiro é colocado em relação com Jurema.

Contextualizada, a configuração do Umbuzeiro manifesta-se como passagem entre as

configurações da Caatinga, Juazeiro, de um lado e a configuração de Jurema, de outro.

A configuração do Umbuzeiro ressalta a inculturação e a adaptação ao meio e a sutura

entre o ser humano e a natureza. A configuração de Jurema é delineada pelo arquétipo

da mãe, harmonização das oposições, liderança afetiva, refúgio e proteção.

Page 66: Antropologia e Fraternidade

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CAPÍTULO 3

A CASA DE AUDIFAX: UMA MAQUETE MITOLÓGICA

(...) fantasia.Há nesta atividade criadora um dom e um sentido que permitem apreender as formas da realidade, e no espírito gravar, graças a uma visão e a uma audição atentas, as variadas imagens da realidade existente; a isso acrescenta-se uma memória capaz de conservar a lembrança do colorido mundo destas imagens multiformes.

Friedrich Hegel

Estávamos em Santana do Acaraú, cidade do norte do Ceará, no semi-árido

do Nordeste brasileiro, para o encerramento das festas da padroeira Senhora Sant'Anna.

Realizada no mês de julho, tornou-se muito procurada pela população do Vale do

Acaraú, sobretudo pela sofisticação que vem adquirido a festa profana com a

participação de bandas musicais famosas.

Nosso propósito era observar as festas da Cidade, como o fizemos,

percorrendo algumas comunidades locais − como Alvaçan-Goiabeiras, Ipueirinha,

Bonfim, Lagoa do Girau − durante as festas juninas, para perceber a circulação do mito,

os gestos de convergência e, assim, colher, nas elaborações simbólicas, um canal de

confraternização que possa ser fomentado pelas medidas e pelo poder de coesão da

comunidade.

“Vamos agradecer à Senhora Sant'Anna por mais esta festa” - dizia o padre,

ao microfone, liderando a procissão de encerramento da festa na sede do município. O

Page 67: Antropologia e Fraternidade

53

cortejo obedecia a uma organização em duas filas. Primeiramente, o crucifixo,

amparado por um sacristão rodeado por outros, a cuja frente um deles avançava com o

turíbulo incensando o crucificado. Os acólitos, todos adolescentes, vestiam-se de branco

e vinham ladeados por homens trajando roupas de cor vermelha, talvez a Associação do

Santíssimo Sacramento. Sucediam-nos, no cordão, os vários organismos leigos da

paróquia, muito bem apresentados com as próprias credenciais: fitas, lenços e bandeiras.

No meio do cortejo, dois sacerdotes, ladeados por assistentes, e o andor da

Senhora Sant'Anna, imagem barroca pousada sobre flores e rendas. A banda da cidade

entoava hinos, sobretudo repetia o dobrado cadenciado, de ar renascentista, do hinário

da padroeira. Atrás destes, muito mais gente que já não obedecia mais à organização em

filas, compondo uma massa homogênea de pessoas de todas as idades.

Muitos moradores debruçavam-se às suas janelas enfeitadas de branco para

acompanhar a passagem do cortejo religioso. Depois, ao chegarem à matriz, houve a

Missa.

Aquela procissão trazia, aos nossos olhos que contemplavam aquela

organização hierarquizada, nuanças de um passado que nos alertou para significados

outros: um desafio para procurar discernir, na circulação do mito, gestos profundos,

semelhantemente compenetrados e velados, como aqueles corações recolhidos que

compunham a procissão.

1. A Linguagem Mítica

Naquele momento, além das descrições, anotamos no diário de campo idéias

soltas, assim como nos vieram à lembrança, de um comentário de Gilbert Durand que

transcrevemos em sua inteireza:

Page 68: Antropologia e Fraternidade

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No prolongamento dos schèmes, arquétipos e simples símbolos, podemos considerar o mito. Não tomaremos este termo na concepção restrita que lhes dão os etnólogos, que fazem dele apenas o reverso representativo de um ato ritual. Entenderemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes, sistemas dinâmicos que, sob o impulso de um schème, tende a compor-se em narrativa. O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito explicita um schème ou um grupo de schèmes. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a idéia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico, ou como bem viu Bréhier, a narrativa histórica e lendária. É o que ensina de maneira brilhante a obra de Platão, na qual o pensamento racional parece constantemente emergir de um sonho mítico e algumas vezes ter saudade dele. Verificaremos de resto, que a organização dinâmica do mito corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos "constelação de imagens". O método de convergência evidencia o mesmo isomorfismo na constelação e no mito (DURAND, 1997, p. 63).

Estas palavras de Durand nortearam nosso olhar para aquela procissão que

nos parecia trazer para o presente a descrição de uma estrutura do passado, que

exprimia, no modo de representar os gestos religiosos, valores históricos que, durante

aquele tempo de pouco mais de uma hora, organizaram uma maquete mitológica, qual

síntese plural dos mitos circulantes na comunidade.

Como vimos nas ‘Configurações Sertanejas’, a linguagem é o

fundamento da sociabilidade humana, mas esta não é só um canal de socialização entre

os indivíduos de uma comunidade. O seguimento de nossas considerações

compreenderá a linguagem enquanto espaço de permanência das relações entre os

indivíduos e de estabilidade vital diante da fluidez do tempo. Massimiliano Marianelli, a

este respeito, afirma que “tal espaço é o lugar de formação e de sedimentação da cultura

de um povo propriamente qualificado por Weil, como mito” (MARIANELLI in BAGGIO,

2007, p.82). A ritualidade da procissão evidenciou um gesto coletivo que confrontaremos

com duas obras literárias de Audifax Rios, escritor e filho da cidade de Santana do

Page 69: Antropologia e Fraternidade

55

Acaraú, onde desenvolvi minha pesquisa de campo. Assim, daremos continuidade à

nossa reflexão sobre a cultura no sertão, através das narrações e da tradição, como no

caso do ritual da procissão.

Os dois romances que trabalharemos, Búfalos de Campanário (2003) e

Migalhas para as Serpentes (2005), deverão compor uma trilogia, na qual cada

publicação continua a história anterior. No momento em que redigimos esta dissertação,

a terceira e última parte da trilogia ainda não foi publicada. Por serem esses romances

frutos de uma reunião das lembranças de Rios, dos fatos narrados pela tradição oral da

gente da cidade de Santana do Acaraú, entram na dimensão da articulação da

linguagem, isto é, da narrativa mítica que oferecerá uma explicação, dentre outras, dos

gestos da coletividade, ritualizados, em muitos aspectos, na festa da padroeira. Assim,

deter-nos-emos agora no âmbito da linguagem enquanto articulação, narrativa e mito.

Nesta perspectiva, é notável considerar o que Danielle Pitta afirma a respeito:

(...) o mito é carregado de significados afetivos, é ‘presença semântica’. Em outras palavras, existem dois dinamismos simultâneos em ação dentro do mito: aquele próprio à imagem em si (já que a imagem percebida em momentos diferentes nunca é a mesma), e aquele próprio à trama do discurso, que organiza as imagens uma em relação à outra (...). Isto significa que a lógica presente no mito não é a lógica clássica ocidental, binária, mas aquela constituída pelas redundâncias que permitem a expressão dos antagonismos próprios da vida como um todo (e não um só racional). O mito é então alógico. O mito é um discurso relativo ao ser (...). As repetições, as redundâncias de imagens, que alertam para significados outros (1995, p.16).

Assim, dando atenção às redundâncias das imagens apresentadas nos dois

romances de Audifax Rios, pudemos perceber características comuns às configurações

da Caatinga e da Jurema, as quais irão nortear nossas observações sobre a trama do

discurso elaborado nos dois livros desse autor: Búfalos de Campanário e Migalhas

Para as Serpente. Uma vez que a circulação do mito é um modo de descrição de um

Page 70: Antropologia e Fraternidade

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conjunto social, queremos perceber, nestas obras, alguns elementos delineadores da

cultura da comunidade de Santana.

2. Mito enquanto espaço de Fraternidade

Isto pode ser possível, porque o movimento circulante do mito provoca a

sedimentação da cultura e revela elementos vinculadores de Fraternidade entre as

pessoas, pois pelo efeito da cristalização das projeções imaginárias e míticas, que

lentamente vão tornando-se modos de vida codificados em conceitos socializados, como

o trabalha Durand (1987, p. 132), podem determinar um espaço de relação fundamental,

como define Massimiliano Marianelli:

O passado, em última instância entendido como o lugar de inspiração da civilização é, ao meu ver, um passado mítico: é um passado no qual toda civilização encontra um seu fundamento espiritual e no qual é reconhecível o espírito de um povo (...). Na prospectiva weiliana, portanto o mito não é somente lugar de sedimentação da cultura humanística; mas, sobretudo lugar ‘criativo’, e, portanto dimensão originária e fundamento da fraternidade entre os homens, não se trata de origem histórica, mas de algum modo arquetípica: no mito se estabelecem, seja uma comunhão de pensamentos, seja, e, sobretudo de sentimentos (in BAGGIO, 2007, p. 87)

Logo, focalizaremos não a dimensão histórica, mas a arquetípica. Por

isso, tomamos o mito enquanto fenômeno coletivo, instaurador de um espaço de

diálogos que, pelo processo de criação plural da narração mítica, liga os participantes

entre si, com poder de construir e conservar uma identidade grupal, legitimando a ação

social. Nossa análise quer alcançar justamente esse espaço de reciprocidade narrativa,

nas obras de Audifax Rios. Estas se apresentam como narrativa mítica, com uma

estrutura dinâmica de símbolos20, envolvendo arquétipos que vão se compondo em

20 Em Imaginário, Cultura e Comunicação - Métodos do Imaginário, Danielle Pitta (1995) explicita que, para Durand, os símbolos se dividem em duas partes: o significante, visível aos olhos, e o significado, velado no símbolo. No âmbito do significante, ela faz referência às três dimensões atribuídas ao símbolo por Paul Ricoeur: “(...) Cósmica (pois toma os elementos da figuração no meio ambiente), Onírica (pois tem suas raízes nas lembranças, nos gestos que emergem nos sonhos) e poética (pois, recorre à linguagem

Page 71: Antropologia e Fraternidade

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relato, um início de racionalidade, característica esta própria do mito, entendido como o

faz Lévi-Strauss (in MAUSS, 1974, p. 15) e não Descartes: o mito como primeiro anúncio

de racionalidade.

Audifax Rios situa as narrativas no espaço mítico de uma cidade

denominado Campanário: um lugarejo perdido no Nordeste brasileiro, que um dia se vê

invadida por uma manada de búfalos trazidos, por certo Major, de terras marajoaras, do

norte do Brasil. O Major Zegito importou búfalos da Amazônia. Os búfalos foram

saciados pela água do açude onde viviam. Por estar o açude contaminado de estranhas

drogas, os búfalos ficaram enfurecidos, invadiram a igreja, onde muitos fiéis estavam

reunidos para a Missa, apavorando-os, quebrando os altares, para, em seguida, sair

cobrindo fêmeas das mais variadas espécies.

A invasão dos animais vai causar a destruição da ordem vigente: primeiro os

búfalos entram na cidade, invadem e quebram a Igreja. Audifax Rios descreve a

destruição da Igreja com riqueza de detalhes, pondo em relevo o significado das duas

Igrejas: de encontro e desencontro do novo com o velho. Este aspecto é notório no

recurso usado por Rios: a chegada do padre novo na cidade, onde evidencia os

desencontros de mentalidades. O autor faz nítidas referências aos anos 1960, período

em que a Igreja Católica passou pela renovação do Concílio Vaticano II; situando as

duas realidades eclesiais, a do papa Pio XII e a de João XXIII, a Igreja conservadora e a

Igreja nova - respectivamente.

Em Búfalos de Campanário, porém, Rios enfatiza, sobremaneira, as

questões da Igreja em si: a quebra dos santos, dos quadros da via sacra e dos cálices

representam uma insatisfação para com o anacronismo de uma igreja, fortemente

em formação)” (1995, p.24).

Page 72: Antropologia e Fraternidade

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hierarquizada, visível a olho nu ainda no presente, na própria organização da procissão

da festa da padroeira de Santana do Acaraú. Indo mais em profundidade, pudemos

perceber que o ritual da procissão revelava a tradição de um mito cristalizado no tempo

e no espaço.

A hierarquia que permeava, fortemente, o recinto do templo durante as

cerimônias pré-conciliares ressaltava a desigualdade entre os fiéis. O templo era,

internamente, organizado em patamares que iam se sobrepondo até chegar ao altar. Na

medida em que o fiel se aproximava do altar, mais se elevava. Ainda existe esta

formação na estrutura arquitetônica de algumas Igrejas de Sobral, cidade polarizadora

de todo o Vale do Acaraú. Assim Rios recorda, em uma das entrevistas que nos

concedeu:

Era assim. Eu era cruzadinha, eu comungava no patamar entre os homens e as mulheres, as mulheres ficavam atrás, tinha bancada pra elas comungarem, a cruzadinha ficava no nível entre os homens e as mulheres, porque era aproveitamento de espaço, mas os homens já eram num patamar maior aí tinha mais degraus e tinha o Seminarista, não sei mais quem era o tal mas, o Coronel tava lá bem pertinho do Padre, só ele. Ele pagava pra tá ali, ele tinha uma cadeira reservada, só ele, os outros, os Congregados Marianos ficavam logo na frente, depois os Vicentinos, de lado os homens comuns, os comuns mortais e as mulheres eram bem mais atrás. Então, no Conselho João XXIII, as igrejas tiraram o fausto do altar e se preservou a questão arquitetônica, pra botar só o Cristo e o altar era de frente porque o Padre ficava de frente pro povo e o piso era um só pra dizer que todo mundo era igual (nov. 2005).

Na narrativa do primeiro romance, os búfalos ingerem uma droga e fazem

sexo com os animais na Cidade, invadem o templo paroquial, revelando a ação de

potência contra o poder moral da Cidade. Assim, o recinto templário, no momento em

que o povo está reunido − internamente organizado de baixo para cima, em baixo as

mulheres, mais acima os homens, e, no topo, os eleitos − de modo a reproduzir-se a

sociedade desigual e densamente hierarquizada de então, foi invadido e destruído pelos

Page 73: Antropologia e Fraternidade

59

búfalos. Mas, dentre as desigualdades da cidade, a cena faz alusão ao poder que vem da

indústria, da invasão química dos Coronéis, enquanto um coronel era dono dos búfalos

e contratou a introdução de produtos químicos no açude (RIOS, 2003, p. 92-93).

Segundo Audifax Rios, esses fatos aconteceram antes da emancipação do

Município de Santana e, portanto, não existiam na Cidade as instituições políticas,

caracterizadas pelos três poderes. Existiam, sim, os coronéis, a Igreja e os militares.

Nesse contexto, a Igreja assumia seus poderes. A força política eclesiástica é nítida,

sobretudo, quando agrupamos algumas imagens apresentadas nos romances ao destacar

o campanário como aquele que está no alto da torre, a marcar o tempo dos seres

humanos. No imaginário dos santanenses, é ele, o campanário da matriz, que chama

para a salvação, para o excepcional, para a quebra da continuidade do quotidiano: o dia

diferente, o dia do Senhor. É o campanário que chama para redimir os pecados e para

anunciar a morte e a vida.

O poder temporal da Igreja é demonstrado, no texto de Búfalos de

Campanário, através da narrativa da doença dos cachorros, em que o Padre toma para si

a responsabilidade apesar de, não existindo prefeito, ser da alçada da polícia, que teria a

obrigação de solucionar. Assim comenta o Audifax:

A Igreja tinha esse poder e a palavra da Igreja era pesada. É um poder paralelo não estabelecido assim, mas que ela era até mais poderosa porque mexia com Deus, com alma, com céu, com inferno e essas coisas todas. Se reparar bem assim a batina é uma bata, ela distancia do simples mortal, do ser humano comum e gera uma série de coisas, por exemplo, a polícia despreparada, o cara senta-praça (...) hoje não, porque precisa ser preparado e tudo, mas se o cara bota uma arma, bota uma arma na mão, o cara é um semideus, aí como ele não tem cabeça pra segurar aquela arma o cara faz o diabo. Já os padres não, os padres eram estudados, sabiam inteligir e sabiam conduzir a coisa melhor, eles eram soldados de Cristo também, eles eram fardados pra distanciar dos outros, pra ficar diferente dos comuns e era

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60

uma coisa intocável, ninguém chegava perto, era um sacrilégio se a gente encostasse e tal (nov. 2005).

Segue-se, na mesma entrevista, a caracterização que Rios faz de D. José

Tupinambá da Frota, primeiro Bispo de Sobral, como personificação de todas essas

relações de poder da Igreja católica da época:

Aquele ali nem que a gente quisesse encostar no corpo dele... tinha muita roupa em cima, não dava. Quando eu coloco que ele já saía do banheiro fardado, era porque ele já saía do banheiro paramentado e ele andava a rigor como o Pio XII, todos aqueles paramentos. Ele ia a Santana em visita pastoral, tinha aqueles tapetes, tinha tudo, eu beijei, me ajoelhei e beijei no anel dele em 1958. Já quando o Dom José morreu foi pra lá um bispo muito legal, mas não durou, talvez por isso. Era Dom José da Mota, irmão de um grande poeta pernambucano Mauro Mota. Ele era bem liberal, era da Igreja do João XXIII que queria acabar com uma série de coisas, mas muito cedo foi embora. Aí botaram Dom Walfrido que era conservador que ficou até morrer (...). Mas, Dom José era muito conservador mesmo, não mexia só com a política, mexia com tudo, com os hábitos do pessoal (...). Mas, ele fez muita coisa em Sobral dentro daquele conservadorismo dele, como ele era um cara culto, ele tinha aquela cultura de elite, mas pro povo, assim grandes colégios e tal (...) (nov. 2005).

A hierarquia representada na procissão não diz respeito somente à pesada

organização e às relações de poder da Igreja do passado, mas traz para o presente

também a síntese da organização social vivida nas relações sociais do quotidiano.

Demonstra uma maneira de ver o mundo e assim organizá-lo, tomando-se o sistema

piramidal como um valor que fomenta hábitos. A procissão choca-se com o presente,

por trazer ao inconsciente coletivo um passado contraditório com este presente em que

há tendências de maior liberdade de expressão e participação política, mas também

denuncia tudo aquilo que expressa absolutização das relações arcaicas que insistem em

prosseguir e procuram, loucamente, formas de permanência.

Page 75: Antropologia e Fraternidade

61

3. Os Búfalos na Caatinga

As narrações de Audifax Rios elegeram, como valor histórico e social, a

presença e o poder da Igreja, mas ressaltam, sobretudo, a constituição do poder dos

coronéis. Assim, se a Igreja exercia grande coercitividade social através da força moral,

a ponto de extrapolar para assumir as atividades do poder público, o poder dos coronéis

era apoiado na estrutura econômica. O próprio título de coronel (da Guarda Nacional),

que era comprado, exercia uma pressão social intensa sobre os indivíduos.

A distinção entre o poder exercido pela Igreja e o poder exercido pelos

coronéis tornou-se mais nítida quando agrupamos as narrações de Rios nas

configurações/categorias que formulamos no capítulo anterior. Neste caso, o poder da

Igreja se situa na semântica do Juazeiro, caracterizada pela força ideológica e moral,

com características do confronto Luz versus Trevas, dimensão espiritual e contrastes

ideológicos: o poder “invisível” moral e simbólico.

Na mesma dimensão de enfrentamento, emerge a semântica da

configuração da Caatinga − que, ao analisarmos os escritos de Euclides da Cunha,

revelou seus reflexos locais como categoria de resistência nas tendências

arquetípicas da espada e do herói, do sertanejo dotado de virtude heróica:

cavaleiro, combatente. Nesta relação, Personagem/Sertanejo – Espada versus

Monstro foram agrupadas as narrativas que revelam o poder dos coronéis, fundado

não no campo das idéias, mas da ação prática.

As lembranças de infância de Audifax Rios (em entrevista que nos

concedeu em dezembro de 2005) incluem dois velhos coronéis da Guarda Nacional,

Tomazone Ricor, e outro cujo nome não recorda e, que possuía uma bodega, no

mercado central da Cidade. Por uma intriga no comércio, esse coronel jurou nunca mais

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entrar no mercado e estabeleceu, em sua própria casa, todo o ciclo de produção

necessário para seu consumo: plantava, colhia, beneficiava, vendia e comia. E nunca

mais precisou entrar no mercado.

Enquanto Rios mergulha em suas memórias, vai, pouco a pouco, atribuindo

valores às recordações, delineando não só aspectos críticos que demonstram o juízo

pessoal de valores, mas caracterizando o próprio poder da época, manifestando o húmus

gerador do poder coronelístico na Cidade.

O coronel, normalmente ele não é um preposto, é o poder dele, ele é ditador dele mesmo, ele cria a ditadura dele, ele teve o dinheiro, sabe manipular o poder, a palavra e tal. Quando ele vê que ta com poder, ele passa por cima, manda no padre, manda na polícia, manda nisso, manda naquilo, é o poder criado por ele mesmo. É engraçado, não é aquele que foi preposto do Governador e tá lá, não. O Coronelismo todo foi feito assim no Nordeste brasileiro, o cara foi habilidoso, vislumbrou aquilo que pode; aquele substituiu um ou matou antes. Quando tinha conflito entre dois coronéis, um morre pra ficar só o outro, é uma briga de poder que às vezes é herdada, do coronel filho do velho coronel como o Coronel Lobisomem, que eu tava relendo porque eu tinha assistido o filme e foi bom reler, assim, depois porque eu já tinha lido há muito tempo. Coronel Ponciano era aquele do velho coronel, que já herdou suas terras e tal, mas esse coronel foi feito por si mesmo, ele foi pra Amazônia enricar e, da Amazônia, o cara nunca volta porque não pode voltar, porque não tem dinheiro, porque contraiu a febre amarela ou porque já morreu por lá. Ele não volta porque ele tá trabalhando pra um patrão qualquer que não dá nem o dinheiro da volta pra ele, porque ele precisa do braço escravo. Ou ele se acostuma lá ou contrai uma doença (febre amarela, malária e tudo mais), naquele tempo era assim. Esse coronel que aconteceu na realidade, Coronel João Batista, ele voltou e voltou rico, ainda por cima, o cara paga pra voltar (...) ele não, voltou rico, veio com uma mulher de lá, construiu família (dez 2005).

Audifax Rios recorda a presença de três coronéis em Santana, sobretudo no

período da seca de 1958. Neste período, já existiam, na região, alguns partidos políticos,

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63

nos quais Búfalos de Campanário toca muito sutilmente. Ao consultar relatos históricos

da região, percebemos que, na realidade, existiam na região do Vale do Acaraú os

grandes partidos, como a UDN e o PSB, compostos pelas elites, ainda que o PSB

tivesse uma vertente mais popular; além dessas lideranças, existiam outros partidos

menores, como o Partido Azul e o Encarnado.

Em Santana, o Partido Azul era composto pela elite e identificado pela

população como o partido dos brancos; já o Encarnado era mais popular e composto,

eminentemente, por negros. Em uma conversa com o autor, ele demonstra como era

feita a distribuição funcional dos poderes entre esses partidos, e mesmo o que corria

“por baixo dos panos”, nos porões:

Aliás, a política na época cuidava muito era da polícia, era repressão o tempo todo, a polícia era da UDN não tinha nada a ver com a agricultura. A agricultura, eu peguei uns estatutos, vou até colocar no jornalzinho da Câmara dessa vez, de um sindicato. Aquilo eu comecei a ver, era no tempo do Raul Barbosa, era PSB ou UDN, eu olhei a relação dos trinta e três participantes da primeira assembléia dessa associação rural, todos eles eram da UDN. Eu conheci todos eles, ainda têm uns dois vivos (...). Então, os da UDN nunca pegaram no cabo da enxada, tudo dono de terra. Então, essa associação foi criada porque certamente um político chegou e disse: "Tem uma verba legal, arranja aí, faz uma associação e vem buscar esse dinheiro". Então tinha alguma coisa na agricultura nesse sentido, quando tinha verba e tinha na polícia que era pra manter a ordem, a ordem que eles queriam (dez. 2005).

A atmosfera absolutista dos poderes na Região era tamanha que, em Os

Búfalos de Campanário, Rios atribui à personagem do padre a imposição dos nomes às

crianças no batismo. Esta narração, na realidade, refere-se a um fato da tradição oral do

povo do Vale do Acaraú que conta a história de um juiz erudito que passou por Sobral e

acrescentou nomes históricos aos sobrenomes familiares como: Montesuma, Pompeu,

Mont'Alverne e Sabóia.

Page 78: Antropologia e Fraternidade

64

Essa interferência dos poderosos na vida privada vai caracterizar a notória

sociedade de aparência dos anos 50, a circulação das fardas, das túnicas, das fitas, das

credenciais. As narrativas de Audifax Rios denotam as representações que revelam a

circulação dos poderes da cidade. Tal realidade impõe-se na sala principal da casa, nos

quadros da parede, nos passeios que o Coronel dá pela cidade vestido na farda da

polícia, ou mesmo o encontro no bar, pontualmente marcado para todos os domingos,

entre os oficiais aposentados do Exército, Aeronáutica e da Marinha, fardados para o

encontro a fim de ostentar seu poder.

Assim, podemos colher no imaginário de Rios, através do mapeamento das

imagens e distinções que evidencia, por um lado, o Coronelismo e, por outro, a cidade

das alegorias, das ornamentações, das aparências, onde tudo é ostentação: da moral, das

pertenças familiares, das credenciais elitistas civis e religiosas e do herói que o autor,

como Euclides da Cunha, entrevê no vaqueiro, caracterizando a Configuração da

Caatinga:

Também, ele tem uma necessidade, ele é o protetor e tal, mas ele diferencia dos outros, ele é o herói, só que ele não tá numa casta digamos assim, é uma coisa organizada, ele é de alguma coisa, ele é do fazendeiro, ele é um funcionário proposto e tal. Mas, ele tem o mito do heroizão, ele é o desbravador, é o corajoso, aquela coisa toda e se diferencia por isso, quem não viu ele no mato pegando boi e tal, mas ele mostra isso nas vaquejadas, aí toda a Canastra vem também, ele vira canastrão, fala demais, mas ele conquista as mulheres, ele bebe as cachaças num boteco, ele bota no samba, ele é o super-herói e ele mostra todo o lado dele de ser melhor que os outros. (nov. 2005).

Nesse contexto é emblemático o que nos relatou Audifax Rios, em

entrevista, sobre as aparências reproduzidas no significado de Campanário:

Mas, no caso do Campanário, que é o caso de Santana, tem um componente que é uma cidade antiga; quanto mais antiga mais preconceito tem. Ali você nota que eu falo que sempre tem uma paz, que é a paz quente, que a cidade é quente, ali é mais pra

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dizer a história do Nordeste. Santana tem umas ruas bem largas que eram aquelas cidades antigas que tinham ruas bem largas. Sobral não, não sei que diabo foi aquilo, fizeram estreito demais, as casas são altas, primeiro tinha a questão da população, depois tinha a questão do poder que o sobradão mais alto era do Coronel. A Igreja é prédio mais alto da cidade que é pra demonstrar "O melhor aqui sou eu", tem uma série de referenciais tanto que o nome é Campanário e esse nome foi escolhido por causa da posição da Igreja que é mais alta e por causa da comunicação, ela é quem diz, o sino é quem diz que horas é que vai ser a missa, o sino é quem lhe diz a hora que você se salva, o sino lhe chama pra missa, pra você aprender o caminho da salvação. O nome Campanário é belíssimo, é onde tá a comunicação toda e o sino ali foi tocado em Morse até o cara toca em Morse (dez 2005).

O autor admite, em seu romance, uma narração de Zuzinha Simplício da Paz

que, segundo a tradição, foi chamado à casa de Maria Guayana e recebeu uma quantia

deixada por Major Zegito para escrever a sua história. Sendo assim, ele deixou umas

sextilhas, A Saga do Major Zegito, que serviram de inspiração para Rios, na narrativa

intitulada O Desembesto Cruel dos Búfalos Marajoaras. Acessando essas sextilhas

pudemos responder com mais clareza, uma pergunta que nos fazíamos: Qual idéia é

oferecida diante da invasão dos Búfalos? E ainda mais diante dessa pergunta salta

finalmente outra muito esperada: Quem são os Búfalos? Vejamos alguns trechos:

(...) Búfalos acomodados

Na bacia do Oriente

Chafurdando a água fria

Na brasa da tarde quente

Tudo corria em paz

Sem mesmo um acidente.

A manada ganhou nomes

Heróis da mitologia

E também uns apelidos

Os craques da Galeria

Da Seleção campeã

Do futebol alegria

Assim o Touro de Creta

Era chamado de Pelé

A Corça dos pés de bronze

Era Garrincha, o Mané

E o Boi de Gerião

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Era Vavá, bom no pé.

Javalide Erimanto

Atendia por Gilmar

A Ave do Estinfale

Era Zagalo ao jogar

Cavalo de Diomedes

Nilton Santos a se chamar. (RIOS, 2003, p.140)

Os búfalos, quando chegaram a Campanário, receberam cada qual um nome.

Alguns nomes eram deuses da mitologia grega, outros da seleção brasileira de então. O

nome indica a pessoa, a assinatura indica a própria pessoa, a identidade desta. Os nomes

de todos os deuses eram de deuses ativos, que vão revelar a virtude heróica na teoria da

convergência simbólica. Ao colocar os nomes dos craques da seleção brasileira, o autor

reforça não só a virtude heróica, mas também a representação da nação brasileira, em

suas dimensões ascensionais e da vitória contra o tempo e o sentido de finitude. Veja a

semelhança do estado dos búfalos com a situação do sertanejo aflito pela seca e pela

inanição da pressão política social e econômica, em tempos de ditadura:

O conforto da boiada

Piorava a cada dia

A água ia sumindo

Aumentando a agonia

Do Major que de aflito

O que fazer não sabia.

Era tempo de eleição

De campanha eleitoral

Quando surge um candidato

Afamado general

Concorrendo à presidência

Da República Federal

Prometia este senhor

Caso eleito presidente

Proteger nossas represas

Dos raios do sol ardente

Derramando sobre a água

Um plástico diluente.

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Assim, os búfalos vão representar a força de um povo organizado, a

potência da nação propriamente dita, que não suportando uma situação de extrema

pressão, reage contra a ordem vigente, destruindo o sistema social e revelando mais uma

vez o perfil do sertanejo dentro das características da configuração da Caatinga.

4. As Tendências do Juazeiro

No segundo livro do que será uma trilogia no futuro, Rios dá continuidade

às suas narrações na obra: Migalhas para as Serpentes. Para Paulo de Tarso Pardal, as

narrações do autor, no segundo romance, assumem outra característica:

(...) Se o primeiro romance é de personagem, aqui o romance é de ambiente, de paisagem, mas paisagem de uma cidade temporalmente diferente da cidade do ‘major Zegito’. Aqui não há um só protagonista, um só personagem que ganhe textura, para que possamos estudá-lo como protagonista, mas uma série de personagens que fazem a ‘Campanário’ depois do Major, onde todos são importantes, apesar de alguns se destacarem (PARDAL, 2005, p.167) 21.

Estas observações, de Pardal, levaram-nos a focalizar nossas atenções não

só nos personagens, mas, sobretudo, em seus contextos. Neste caso, é mister entender o

ambiente mítico em que Audifax Rios exprime suas narrações: em Búfalos de

Campanário, apresenta a cidadezinha perdida na poeira da arcaica Caiçara, qual cenário

mítico da cidade de Santana e da própria região do Vale do Acaraú. Nesta obra, a

centralidade narrativa segue o desenrolar das peripécias do major Zégito e dos búfalos

que invadem a cidade.

Nesta perspectiva, em seu segundo romance, o autor coloca dois elementos

que se polarizam dentro do casarão do Padre: a personagem Ana Gerviz, irmã mais

nova do Padre e, no porão da casa, as serpentes que são alimentadas por ela. Ao

21 Trata-se de uma espécie de artigo-posfácio, denominado “Os Búfalos e as Serpentes”, no final de Migalhas para as serpentes.

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transferir nosso olhar do personagem principal para o ambiente, vamos discernir que a

ação revela-se no abraço dos elementos simbólicos que confraternizam dando sentido

para o todo, no alinhamento lógico das teorias da associação de Jung (JUNG, 1995) e da

convergência simbólica de Durand (DURAND, 1997). Por este motivo, no estudo dos

valores atribuídos às imagens da casa de Audifax Rios (RIOS, 2005, p. 18), essa vai

reunir na sala a tradição dos antepassados com os quadros de família; nela os poderes da

cidade: Igreja, na pessoa do Padre, os militares e a ordem moral à qual a personagem

Ana Gerviz se submeteu.

É esta cidade que, na primeira obra da trilogia, os búfalos invadem o espaço

comum, quebrando o lugar sagrado e o campanário da moral, das leis, garantia da

permanência dos costumes.

Em Migalhas para as Serpentes, na polarização da casa, ao porão assoma-se

a personagem de uma mulher de nome Ana Gerviz. Bonita como uma donzela das

cidades antigas do interior, mas afoita de paixão. Órfã de pai e de mãe, tragédia vivida

não só por ela, mas por seus irmãos que foram separados para viver com os parentes.

Ana tinha ido morar na casa dos tios, na capital, porém alguns anos mais tarde retornou

à Caiçara para morar com o irmão, padre da cidade, por causa dos seus comportamentos

duvidosos que colocavam a moral da família em perigo, na capital. Assim, foi acolhida

na casa de seu irmão mais velho, e sacerdote católico da cidade.

No casarão do padre, um sobrado em frente à praça, sob a escada, Gerviz

cuida das cobras que vivem nos porões da casa. Assim, dentre as várias imagens

presentes no romance, Rios coloca na centralidade das representações, a casa onde

mora, a personagem Ana Gerviz. Tudo circula ao redor da casa, tudo vive em função

do sobrado, e o seu imaginário resolve o problema da distinção de esferas entre o

Page 83: Antropologia e Fraternidade

69

público e o privado, colocando a cidade de Santana do Acaraú dentro da casa de Ana

Gerviz.

Neste caso, a casa manifesta-se como o elemento unificador das relações. A

ela recorre o significado da proteção, refúgio, aconchego, fraternidade, mas também das

intrigas e da intimidade. O interior da casa assume significados variados de acordo com

o espaço. Por isso a casa abraça as personagens e os elementos nas suas variadas

maneiras de perceber o ambiente e comportar-se nele; como um bonsai, jardins

miniaturizados, a Casa transfigura-se na própria cidade onde tudo circula: ambiente

prenhe de significados como o explica Da Matta:

Lançando um olhar para as nossas habitações na sociedade onde estamos inseridos, forjadas pela cultura ocidental, o espaço da casa é um conjugado entre a parte pública e a privada. Por exemplo: a parte pública se constitui em salas de visitas, sala de jantar, pátio, jardim; o privado seria: os quartos, o próprio banheiro (...) (1991, p.13).

Esses espaços são dotados de significados. Basta recordar os tipos de

sentimentos que experimentamos, quando alguém mexe na gaveta da escrivaninha do

nosso quarto, onde guardamos as coisas mais íntimas; ou quando nos encontramos na

casa alheia e, para exprimir a satisfação que sentimos pela acolhida, dizemos: “Estou

me sentindo em casa”. Portanto, são inerentes à casa os sentimentos, os significados e as

relações.

Assim, verificamos que a casa vai revelar-se como realidade fundante de

todo o schème, a alma que nutre todo o sistema simbólico, a estrutura de um quadro

sustentando a tela onde o desenho se faz pintura, é o palco que possibilita a

representação, a ligação e harmonização dos elementos simbólicos que se movem com a

dinamicidade do céu qual cortina de fundo, onde os astros se movem. Esta casa é a

própria configuração da Jurema, qual representação local do arquétipo da mãe.

Page 84: Antropologia e Fraternidade

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Neste sentido, nos basta, no momento, termos como referência conceitual as

representações oferecidas por Euclides da Cunha, na Árvore da Jurema, que coincide

com as noções fundamentais da maternidade, portanto do colo, da acolhida, do ventre e

do chão.

5. Entre o Alpendre e o Porão.

Porém, mesmo existindo a realidade primordial da casa, com as paredes e

telhados que exprimem refúgio e proteção, dentro da casa os ambientes podem assumir

significados e configurações diferentes. Enquanto que nos espaços da casa de Ana

Gerviz, a sala e os quartos nos fazem perceber a cidade com a sua tradição, através dos

quadros dos antepassados na sala, das fardas e representações das personagens (RIOS,

2005, p. 18), no porão, descobriremos as motivações dessas representações existentes na

sala. As representações mais evidentes e palpáveis correspondem, em nossa

compreensão, à configuração da Caatinga, como as relações de poder na Igreja, a

política nas suas formas coronelísticas e militares. Ao acessarmos os porões da casa

intuiremos a configuração do Juazeiro, revelando as motivações e ideologias dos

poderes constituídos da Cidade.

Por esta razão, um escrito analítico de Gaston Bachelard nos desafiou a

olhar, ainda mais profundamente, para os espaços da casa:

Inicialmente, é preciso procurar, na casa múltipla, centros de simplicidade. Como diz Baudelaire: num palácio ‘não há um cantinho para a intimidade’. Mas a simplicidade, por vezes gabada de forma excessivamente racional, não é uma fonte muito potente de onirismo. É preciso chegar à primitividade do refúgio. E, para além das situações vividas, cumpre descobrir situações sonhadas. Para além das lembranças positivas que são material para uma psicologia positiva, é preciso reabrir o

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campo das imagens primitivas que talvez tenham sido os centros de fixação das lembranças que permaneceram na memória (1984, p. 47).

Ao delinear a caracterização simbólica da casa, percebemos que esta

apresenta uma estrutura dinâmica de imagens que oferecem segurança aos seres

humanos, o que nos levará a procurar discernir a dinâmica, a alma que motiva esta casa.

Para Bachelard, a casa é um corpo de imagens que dão ao ser humano a idéia de

estabilidade e, incessantemente, este ser humano re-imagina a casa com multiplicidade

de imagens, que se distinguidas, podem nos levar a alcançar a alma da casa, e “seria

desenvolver uma verdadeira psicologia da casa” (1984, p.36).

Assim, Bachelard, para por ordem às imagens da casa, examina dois pontos

principais de ligação:

1º A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. Ela se diferencia no sentido de sua verticalidade. E um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. 2º A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade (1989, p.36).

Neste contexto, Bachelard apresenta na casa a relação entre os espaços do

Sótão e do Porão, constituindo uma polaridade:

A verticalidade é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão. As marcas dessa polaridade são tão profundas que, de certo modo, abrem dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentários, pode-se opor a racionalidade do teto à irracionalidade do porão. O teto revela imediatamente sua razão de ser: cobre o homem que teme a chuva e o sol. Os geógrafos sempre mencionam que em cada país a inclinação do telhado é um dos sinais mais seguros do clima (...). No porão também encontraremos utilidades, sem dúvida. Enumerando suas comodidades, nós o racionalizamos. Mas ele é a princípio o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas (Idem,Ibidem).

A relação, entre os dois eixos, sótão e porão, torna-se mais clara quando

Bachelard (1989, p.37) retoma a idéia de concentração, abrindo dois eixos

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fenomenológicos. Mas ele as coloca em relação através das teorias da psicanálise de

Jung, através da qual é dado o exemplo do 'homem prudente' que ao ouvir um barulho

no porão (inconsciente), corre para o sótão para ver o que está acontecendo; como não

há ladrões no sótão, conclui ser a presença deles pura suposição. Porém, na realidade,

este ser humano não teve a coragem de enfrentar o porão. Tal reflexão bachelardiana

levou-nos a aprofundar os significados do porão, colocado por Rios, onde moram as

serpentes que a personagem Ana Gerviz alimenta com migalhas, e a descobrir as

angústias e os temores existentes na casa.

Nosso autor compõe a polarização em dois eixos. Um deles é a imagem de

Ana Gerviz na janela no alpendre da casa, do alto, a bordar seu eterno enxoval, vendo a

cidade: “Gerviz levantava o olhar ante a amplidão da praça, chamada pelo povo de rua

sete, recontava de cabeça as sete carnaubeiras de copas arredondadas e farfalhantes”

(RIOS, 2005 p.13). O outro eixo é o porão da casa, onde Gerviz descia todos os dias para

alimentar as serpentes.

Nesta direção, é importante perceber duas características que Bachelard

evidencia no porão: primeiramente, a sua localização. Como já vimos, o imaginário de

Rios colocou a casa no centro das suas narrações, esta se localiza não só no centro da

cidade, mas enquanto imagem confunde-se com a própria cidade, que vive em função

do casarão. Ele descreve, ali, um porão com as serpentes que indicam força. Neste caso,

Bachelard afirma: “Se a casa do sonhador estiver situada na cidade, não é raro que o

sonho seja o de dominar, pela profundidade, os porões circunvizinhos” (1989, p. 39).

Notamos, a este propósito, as redundâncias próprias do mito: tanto a

imagem dos búfalos quanto a das serpentes resultam na idéia de potência. A localização

central da casa na cidade indica dominação; ao colocar as serpentes como potência no

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73

porão, ela vai sublinhar a dominação pela profundidade. Bachelard, ao analisar o

problema literário de Henri Bosco ao descrever o além-porão, conclui:

Trata-se de concretizar numa imagem central um romance que é, em sua linha básica, o romance das intrigas subterrâneas. Essa metáfora desgastada é aqui ilustrada pelos porões múltiplos, por uma rede de galerias, por um conjunto de celas com portas freqüentemente trancadas a cadeado. Aí se meditam segredos, preparam-se projetos. E, sob a terra, a ação caminha. Estamos realmente no espaço íntimo das intrigas subterrâneas (1984, p.40).

A polarização, entre os eixos do alpendre de Ana Gerviz e o porão das

serpentes, é caracterizada pela configuração do Juazeiro enquanto delineador do

confronto Luz versus Trevas, dos contrastes ideológicos. Vejamos nos escritos de Jorge

Tufic, ao introduzir a obra de Audifax Rios, a inerência das imagens de luz e trevas

atreladas à relação de Ana com as serpentes:

Campanário seria o caminho da salvação de Gerviz, para ‘sozinhar’ (ali) suas fantasias de moça moderna e avançada, tolher a feminilidade libertária e sepultar de vez seus desejos numa janela fria ou no porão das cobras venenosas. Autenticada família mediante registro preventivo, prossegue o novelo, o fio da prosa. E a prosa desse aqui não dispensa o poético. Modelares são as comparações da rotina dos homens com a rotina dos bichos, peixes, águas escuras. As Intuições meteorológicas também andam de asas grudadas aos algarismos da luz e da sombra (RIOS, 2005, p.10).

Assim, Rios, Tufic e Pardal contextualizaram a relação entre Ana e as

serpentes com as mesmas tendências de representação no sentido de potência, que ora

assume as características da configuração do Juazeiro. No primeiro momento, nos

escritos de Euclides da Cunha, agora numa outra perspectiva, fomos percebendo que as

imagens de Audifax Rios em suas duas obras, Búfalos de Campanário e Migalhas para

as Serpentes, revelam o fio condutor, velado à primeira vista, de um discurso

eminentemente político, muito bem elaborado.

Page 88: Antropologia e Fraternidade

74

O paralelo feito entre arma, representação (farda) e conhecimento, são

aspectos do poder que toma cores diferentes, manifestando suas estruturas. Neste caso,

Audifax Rios vai explicitar o saber como poder através da personagem do Chico

Orapronobis, o qual instalou um microfone no confessionário a fim de escutar as

confissões e manipular as mulheres da cidade para conseguir um pedaço das terras do

legado, doadas para a Igreja. Ele usa o mesmo artifício para manipular as doações em

proveito próprio, manifestando o poder das intrigas subterrâneas. Poder similar ao das

serpentes instaladas nos porões. Trata-se, também, de uma invasão de interioridade com

a intenção de contra-dominar, ou mesmo para minar a intimidade das mulheres do lugar.

Esta descoberta vai revelar que a situação de extrema miséria sofrida pelos

nossos sertanejos, num contexto político opressor, já descrito como valor histórico e

sociológico apontado pelo imaginário coletivo da Cidade de Santana do Acaraú, vai

delinear uma tendência comportamental curiosamente antagônica às características até

agora vistas por nós. Esta situação vai trazer à nossa reflexão as noções do Regime

Noturno da Teoria do Imaginário, de Gilbert Durand (1997).

Diante de tanta pressão social, o imaginário de Rios vai revelar uma reação

contra a ordem vigente. Como mencionamos anteriormente, tanto os búfalos como as

serpentes vão revelar potência e a ação vai ser de invasão. A este propósito, em um

passo do segundo romance, as serpentes começam a escapar do porão pela brecha da

porta, mas são severamente postas para dentro do porão e tapadas as brechas. Por este

acontecimento, a personagem Ana Gerviz manda pintar um quadro com serpentes e

coloca na sala da casa. Este movimento vai denotar que aquelas representações

conscientes são motivadas pela força e pelas potências de tudo aquilo que ocorre no

inconsciente coletivo.

Page 89: Antropologia e Fraternidade

75

Ao reunir as imagens apresentadas pelo autor estudado em configurações,

notamos que, para além do comportamento diurno, isto é, de resistência, de luta para

transformar o meio cósmico e social, típicos da configuração da Caatinga, tanto em

Búfalos de Campanário, quanto em Migalhas para as Serpentes, são elaboradas

imagens que configuram o clientelismo, o apadrinhamento, proteção a um grupo de

pessoas e refúgio, no caso da moral e da religiosidade.

Estas características vão reunir-se em outra configuração de Jurema, que

inverte o valor afetivo: o coronel, evidente opressor, transfigura-se na imagem do

compadre. Fazendo o coronel padrinhos dos filhos, o sertanejo oprimido traz o coronel

para dentro de casa, para a proximidade, invertendo o valor afetivo e harmonizando o

contraste. Assim, segue um perfil da cultura sertaneja do compadrio, do

apadrinhamento: proteção, segurança e refúgio, encontrando, nesta re-significação, uma

maneira de resistência e sobrevivência. Nota-se que nesta dimensão não existe quebra

do sistema político e econômico, como sugere o enfrentamento da configuração da

Caatinga, mas uma adaptação por meio da re-significação.

Estas representações manifestam-se nas imagens de Migalhas para as

Serpentes, no episódio do concurso público para telegrafista para o qual as personagens

se preparavam, pois os governos autoritários de então não ofereciam outras formas de

sobrevivência no sertão senão através de um emprego público. Assim, o Estado revela-

se como refúgio numa situação de extrema pobreza. Nesta situação, a personagem do

Capitão, que ensinava para os outros como utilizar o código Morse para concorrer com

ele no concurso, passando-se por solidário com os concorrentes, já tinha se colocado de

acordo com padrinhos na Capital para ser aprovado no concurso.

Page 90: Antropologia e Fraternidade

76

Outra imagem é a das personagens do padre antigo e do recém-chegado, que

querem doar as terras do legado para os pobres, fazendo manifestar-se, então, uma série

de apadrinhamentos, as relações religiosas ambíguas em que o sacristão manipula para

ser beneficiado. Ao verificar este aspecto, demo-nos conta de que este episódio é muito

semelhante a algumas narrações dos caboclos assentados de Santana do Acaraú. A

propósito, Igreja como refúgio manifesta-se não só espiritualmente, mas, em alguns

casos no status de quem segue a vida sacerdotal, pois ser padre significa ascensão

social.

Estes gestos que parecem motivar o estabelecimento da ordem vigente

podem nos sugerir a tendência gestual vista por Euclides da Cunha no Umbuzeiro:

caracterizado por ele na ação de adaptação. Esta adaptação não se revela de modo

passivo, mas ativo. De recriação, ou re-significação. Para Cunha, o umbuzeiro

'modifica-se a feição do meio' e prepara-se para a resistência reagindo, desafiando as

secas. Notadamente, usou expressões ativas do umbuzeiro.

Neste momento, salta aos nossos olhos com mais evidência o

entrelaçamento das relações de poder. Cada uma com identidade própria, o poder dos

búfalos e o das serpentes. Os búfalos são força física, o poder das ameaças externas. As

serpentes são poderes que se confundem com nossas angústias. Estão nos porões. A

complementaridade entre os dois poderes potencializa-os, configura a dominação ou

indica o aprofundamento da dominação. Sua banalização.

Considerações finais deste capítulo

Enquanto o Regime Diurno, que caracteriza o Arquétipo da Caatinga,

coloca os contrários em confronto evidenciados pelas imagens do guerreiro, dimensão

Page 91: Antropologia e Fraternidade

77

ativa explicitada pela idéia de potência; o Regime Noturno, localmente reproduzido pelo

arquétipo da Jurema, não deixa de ser ativo, mas o exercício acontece no combate à

angústia por conversão e eufemização para dar novo significado, harmonizando os

contrastes.

Nesta atitude imaginária básica do Regime Noturno, nota-se a dominante da

estrutura sintética quando, na coincidência dos opostos, estabelece a dialética dos

antagonismos a fim de harmonizar os contrários. Assim, podemos detectar a lógica da

estrutura semântica de permanência deste sistema traduzida em hábitos e costumes que

se prolongam no tempo. Este, por sua vez, encontra os esquemas gestuais de relação de

pontos de fixação diante da fluidez do tempo. Assim, o inconsciente coletivo formaliza

e legitima as instituições.

Nestas instituições encontramos a constituição do significado das relações

históricas que compõem a tradição do Vale do Acaraú. É justamente nesta linha que as

instituições entram na lógica da racionalidade de valores.

A configuração de Jurema manifesta-se na própria casa de Ana Gerviz

como elemento unificador: a Casa é a própria tendência agregadora da Jurema, a qual

engendra o simbolismo arquetipal da casa porque abraça todos os elementos simbólicos

que estudamos. Qual realidade fundante de todo o esquema, nutre o sistema

caracterizado pela dimensão matricial alimentadora, pela inclusão dos elementos

simbólicos que combatem a angústia pela conversão e a eufemização dos valores,

provocando a união, o abraço dos elementos.

No âmbito da ação delineada pela configuração da Caatinga, no decorrer de

toda a narração, o imaginário de Audifax Rios conduziu as instituições da cidade para o

esvaziamento de significados: é emblemático o suicídio de uma das personagens,

Page 92: Antropologia e Fraternidade

78

enforcada no mastro da bandeira nacional, portanto símbolo da pátria; e no cálice da

igreja paroquial foram encontrados os seus órgãos genitais: uma provocação ao poder

moral da Igreja. Profanando o sagrado, os símbolos civis e religiosos as imagens do

autor vão questionar as estruturas de representação simbólica que funcionam como

pontos de fixação social diante da fluidez do tempo.

A casa de Ana Gerviz revela-se como força agregadora: a reunião de

diferentes espaços, diferentes significados, de relações que delineiam configurações

específicas. Nas duas obras o autor vai evidenciar, na centralidade dos eventos, o

sentido de potência, colocando a invasão dos búfalos à cidade de Campanário na

centralidade de toda a primeira obra e, do mesmo modo, as serpentes na segunda obra.

Todas as realidades giram ao redor da casa, onde existe o porão das serpentes, e os

acontecimentos são sempre migalhas que servem para alimentar as serpentes.

Essa redundância nos levou a observar a centralidade das duas imagens, que

colocadas em relação com seus contextos, faz-nos colher uma idéia e uma ação. A idéia

é de potência e a ação é de invasão, penetração, assim existindo uma totalidade que foi

invadida. Com estes dois elementos alcançamos o schème da narração mítica, as

dimensões primeiras da narração mítica, a idéia primordial da re(a)presentação e,

portanto, a alma do discurso.

Neste capítulo, pudemos alcançar a dimensão da linguagem enquanto

narração mítica. Massimiliano Marianelli interpretou o conceito de Weil de que os

mitos são considerados locais de mediações semânticas, qualificando-os como espaços

narrativos de relações onde a humanidade pode reconhecer “pensamentos”, e

“sentimentos” colocados em comum com os outros, sendo legitimados na coletividade e

caracterizando-se numa forma de racionalidade fundamental (MARIANELLI, 2007, 82).

Page 93: Antropologia e Fraternidade

79

Por isso, o espaço Mítico, sendo lugar de troca de sentimentos mútuos que

legitimam convicções, revela-se como ambiente apropriado para a sedimentação da

cultura de um povo. Neste espaço, pudemos discernir o princípio de fraternidade nas

suas características próprias de simetria e reciprocidade, na troca de valores que

fomenta uma identidade cultural.

Page 94: Antropologia e Fraternidade

80

CAPÍTULO 4

Um Olhar Sobre a Cidade

Sociedade que não se funda nos laços da amizade e da fraternidade é, também, sem compaixão (MATOS, Olgária, 2006, p.64).

Sociedade sem espaço para a amizade e para a fraternidade, na expressão de Espinosa, não merece o nome de cidade, mas antes o de solidão (Idem, p. 65).

“Um certo cavaleiro havia recebido uma importante missão: encontrar os

elementos perdidos. Os elementos eram nove. Estavam espalhados na pequena cidade.

Uma cidade comum como qualquer outra”. Assim, Luiz Carlos de Souza, um jovem que

participa da companhia de teatro da cidade de Santana do Acaraú, começou a construir

um micro-universo narrativo sobre a sua cidade. O nosso caminho está apreciando

algumas tendências da cultura sertaneja, do Nordeste brasileiro, através das imagens

oferecidas por Euclides da Cunha, em sua obra Os Sertões, perpassando também a

análise literária dos romances de Audifax Rios para perceber alguns mitos circulantes na

região do Vale do Acaraú. Aí desenvolvemos pesquisa de campo para descobrir a

semântica presente nos principais ambientes da cidade. Assim como no casarão onde

morava Ana Gerviz − ambientes diferentes apresentavam configurações diferentes −

intentamos perceber a cidade de Santana do Acaraú em seus múltiplos espaços.

Pudemos descobrir alguns significados atribuídos pelos sujeitos da pesquisa

desenvolvida no referido município.

Santana do Acaraú é uma das oito cidades que compõem o Vale22 do rio

Acaraú que reúne, em sua bacia, um grupamento de cidades limitadas pela localidade de

Barra Velha, entre os municípios de Cariré e Santa Quitéria, e o distrito de

Mutambeiras, nos limites de Santana do Acaraú23, no norte do Estado do Ceará.

22 Além de Santana do Acaraú, os municípios que formam esta região são Alcântara, Cariré, Santa Quitéria, Massapé, Forquilha e Sobral, na planície fluvial. Somam-se a estes também o município de Meruoca situado sobre os maciços residuais. Esta composição segue a lógica apresentada pelo Plano de Desenvolvimento Regional do Vale do Acaraú - PDR por estarem vinculadas política, social e economicamente. A proximidade geográfica propiciou um plano comum de desenvolvimento.23 Ver a localização da cidade no mapa da Espacialização das Atividades Produtivas, p. 83.

Page 95: Antropologia e Fraternidade

81

Mapa 1: COMPOSIÇÃO REGIONAL E REDE URBANA EXISTENTE

O crescimento da região foi fruto da pecuária do século XVIII. Atualmente,

apresenta um grande potencial turístico serrano, no complexo da Meruoca e Alcântaras,

além de desenvolver a pecuária de pequeno porte, a agricultura de sequeiro e o

extrativismo vegetal. A região do Vale, propriamente dita, apresenta forte potencial para

a agricultura irrigada, como também para piscicultura continental intensiva 24.

24 Ver mapa da Espacialização da Agropecuária e Agricultura de Sequeiro, p.82.

Page 96: Antropologia e Fraternidade

82

MAPA 2: ESPACIALIZAÇÃO DA AGROPECUÁRIA E AGRICULTURA DE SEQUEIRO

A maior força econômica na região é a indústria que representa 10,5% do

PIB estadual, contra 2,86% do PIB agropecuário. A região é polarizada pela cidade de

Page 97: Antropologia e Fraternidade

83

Sobral25, onde se encontra o parque industrial, reforçando a fragilidade dos demais

municípios do Vale26.

Mapa 3: ESPACIALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES PRODUTIVAS

25 Segundo o Plano de Desenvolvimento Regional (PDR) do Vale do Acaraú, a região possui 250.583 habitantes numa área de 4.349 Km2, com 8 cidades sedes municipais e 29 sedes distritais. Diz-se no PDR: "das oito sedes municipais, Sobral é o principal centro urbano, não só da região, mas também da área que abrange o Norte e o Centro Oeste do Ceará, além de toda a região limítrofe do Estado do Piauí". Fonte: PDR DO VALE DO ACARAÚ, Maio 2004, p. 3526 Esta característica torna-se evidente ao comparar os mapas da Composição Regional e Rede Urbana Existente p. 81 e da Espacialização das Atividades Produtivas p. 83 onde percebemos nítidos desequilíbrios na densidade demográfica e econômica entre as regiões rural e industrializada. Os habitantes estão distribuídos em uma área de 4.349 Km2 ,conforme os dados do IBGE em 2000, sendo os municípios de maior freqüência populacional os indicados na Tabela nº, pág. 84. Fonte: Municípios da Região Norte Cearense Mais Populosos, (IBGE 2000).

Page 98: Antropologia e Fraternidade

84

MAPA 4: INFRAESTRUTURA HÍDRICA

Page 99: Antropologia e Fraternidade

85

MAPA 5: ESPACIALIZAÇÃO DA AGRICULTURA IRRIGADA E PISCICULTURA

Fonte: PDR V. do Acaraú

Quadro/ Tabela nº 3MUNICÍPIOS MAIS POPULOSOS DA REGIÃO NORTE CEARENSE

MUNICÍPIO POPULAÇÃO

Sobral 155.120

Massapé 19.158

Santana do Acaraú 12.454

Forquilha 11.619IBGE 2000

Page 100: Antropologia e Fraternidade

86

Escolhemos, no Ceará, trabalhar sobre Santana do Acaraú por ter

demonstrado um crescimento econômico-social razoável em comparação aos demais

municípios do Estado e por sua participação política marcante, podendo nos servir de

modelo para a média das demais cidades do Nordeste, ou seja, com características

urbanas e rurais pouco semelhantes às de um pólo aglutinador com o perfil de Sobral,

Crato ou Juazeiro, e sem os índices sociais demasiadamente baixos como os das cidades

de Ipoeiras e Poranga, na mesma região.

Por procurarmos perceber nos grupos maior coesão e níveis de consensos ou

dissensos foi importante para a pesquisa ter percebido, em Santana do Acaraú, o

crescente nível de participação política dos cidadãos na administração pública. Através

dos conselhos participativos ou conselhos populares, denominados na cidade como

"Conselhão", reúnem-se todo último sábado de cada mês, com uma média de 140

conselheiros27. Francisco Guedes, um dos fundadores do Conselhão, explica que:

Os conselhos zonais são menores que as associações comunitárias, pois a célula mãe do conselhão são os grupos de jovens, de mulheres, associação de pais e mestres, que jamais poderão ser asfixiados pelo conselhão, por isso os conselhos zonais tem constituição leve, sem presidentes e hierarquia pesada. Estes são formados por um secretário e três auxiliares. Um Zonal é o conjunto das associações, que por sua vez formam o conselhão. Não poderemos jamais definir o Conselhão, pois ele nunca será uma idéia acabada, porque ele se reveste sempre como processo que necessita de um discurso de igualdade entre todos (em entrevista a nos concedida, em 9 de Janeiro de 2007).

Assim, tem cooperado para uma maior convergência das comunidades do

município o empenho dos governos Municipal, Estadual e Federal nos projetos de

fixação e maior convivência do sertanejo com o semi-árido. Dentre estas iniciativas

destacamos o trabalhado das lideranças do município de Santana para estabelecer uma

política de maior constância na fixação e o estabelecimento de residência, com atos

públicos de efeito jurídico de doação de terras, no programa de reforma agrária dos

governos, compondo áreas de assentamentos28.

Estas áreas ficaram assim distribuídas:

27 O Conselhão foi regulamentado pela lei orgânica do município n. 300, de 30 de dezembro de 1992. É composto por um conjunto de 10 zonais, cada zonal tem um secretário que coordena o conjunto de comunidades que a formam. 28 Na Região do município de Santana ficaram delineadas as áreas de assentamento como na Tabela Assentamentos por localidade. Deixamos de fora as áreas do Pajeú com 630 hectares e 15 famílias; e Canafístula com 406 hectares e 11 famílias; num total de 1.036 hectares e 26 famílias que estão, ainda, no processo de instalação de assentamento.

Page 101: Antropologia e Fraternidade

87

Quadro/Tabela nº. 4 ÁREAS DE ASSENTAMENTOLOCALIDADE HECTARES FAMÍLIAS

Alvaçã - Goiabeiras 2.128,27 70

Ipueirinha/Ouricuri 1.540,83 40

Ipueirinha/Rancho Alegre 476,9 13

Bonfim /Conceição 6.755,9 223

Lagoa do Serrate 1.040,23 36

Lagoa do Girau 2.103,28 45

Santa Rita 1.294,23 44

TOTAL 15.339,64 471

DADOS DO PDR DO VALE DO ACARAÚ, 2005.

1. Configurações de Nove Arquétipos.

Retomando a narração de Luiz Carlos veremos um cavaleiro que passa por

esta cidade cumprindo a missão de encontrar os nove elementos perdidos.

Para facilitar a missão, ele (o cavaleiro) resolveu criar metas e decidiu encontrar primeiro a água. E pensou (...). Como não podia ser somente os elementos em si, mas o que estes representavam(...). Para ele a água representava vida, nascimento, e foi fácil, o elemento água estava no hospital. Agora o fogo. O que era para ele o fogo? Representava calor e, na pequena cidade havia um lugar onde o povo se reunia e discutia o rumo do município, e lá estava o fogo que nasce e se espalha. A espada estava na prefeitura, ela representava poder. O refúgio daquele povo era sem dúvidas a igreja (...) (grifos nossos, protocolo de pesquisa “A”).

A narração acima é fruto das elaborações criadas com o Teste AT9 que acontece através da sugestão de imagens do inconsciente coletivo ao inconsciente do indivíduo. Estas representações coletivas sugeridas ao sujeito são patrimônio comum a toda a humanidade, denominadas de Arquétipo, por C. G. Jung (1987, p.88). As imagens do 'Paraíso Perdido', do ‘Dragão' e do 'Círculo' são exemplares de arquétipos, ou modelos de referência mítica que se encontram nas mais diversas civilizações.

Page 102: Antropologia e Fraternidade

88

Do mesmo modo acontece com a imagem da 'Casa', arquétipo que se confunde com a noção da própria cidade, enquanto totalidade, como pudemos perceber na casa de Ana Gerviz.

Neste capítulo, nosso olhar vai se deter no presente da cidade de Santana do Acaraú para formarmos uma idéia de como os santanenses percebem alguns de seus espaços. Aí fiz a pesquisa de campo e trabalhei com pessoas de diversos tipos de atividades e funções sociais: assentados, estudantes, gente da zona rural e urbana, militantes nos partidos políticos, imbuídas de mandatos públicos, profissionais liberais, jovens, adolescentes e adultos.

Foto 1: Atividade com os sujeitos da pesquisa

Para os grupos formados por estas pessoas sugeri nove arquétipos, conforme

a técnica da convergência simbólica, mais precisamente no âmbito do teste denominado

Arquétipo Teste de 9 elementos (AT9) desenvolvido por Yves Durand29. Os modelos,

ou arquétipos foram: uma queda, uma espada, um refúgio, um monstro devorador,

alguma coisa cíclica (que gira, se reproduz ou progride), um personagem e/ou uma

personagem; água, um animal (pássaro, peixe, réptil ou mamífero) e o fogo. Assim,

Danielle Pitta explica o teste de Yves Durand:

Partindo do princípio que o símbolo só é significativo quando inserido em um contexto, a experimentação deverá ser feita através da criação individual (no caso) deste contexto, e para que isso ocorra, é

29 Este teste é explicado por Danielle Pitta, em Imaginário, Cultura e Comunicação – Métodos do Imaginário, 1995, escritos inéditos, p. 32.

Page 103: Antropologia e Fraternidade

89

necessário criar as condições experimentais. O teste AT9 irá propiciar estas condições. Deste modo, a teoria de Gilbert Durand construída através de um material antropológico, através das imagens presentes nas artes e mitologias, é verificada por Yves Durand a partir de um material psicológico, através das imagens produzidas no quadro do Arquétipo Teste de 9 elementos (PITTA, 1987, p.34).

Continuando a ler a narração de Luiz Carlos perceberemos como os

arquétipos indicados confraternizam no contexto do micro-universo que Luiz criou

revelando a imagem que ele tem dos espaços da cidade:

(...) Todos assinalados agora ele precisava encontrar algo que gira. Que elemento estranho, pensou ele, o que seria? E decidiu que era, talvez, uma espiral, onde começa e cresce infinitamente. Matei a charada! Disse ele depois de pensar bastante. È o colégio. As Crianças estudam e se formam para a vida. O próximo era uma queda! Era um elemento mais estranho ainda. Até que ele entendeu que, quando alguém cai pode ou não levantar. Era o hospital, ou seja estava no hospital. Chegou a vez do tal do animal. Este elemento podia estar em qualquer lugar. Era questão de pensá-lo como um elemento. É algo que produz e que gera lucro. E depois de dias o encontrou no banco da cidade (grifos nossos, Arquivo de pesquisa, prot. “A”).

Notoriamente, esta narração está delineada pelo processo do AT9,

configurado, primeiramente, pela apresentação ao sujeito da pesquisa de um mapa da

cidade de Santana do Acaraú. Em seguida pedimos que o indivíduo desenhasse, nos

espaços da cidade, os nove arquétipos acima referidos. No segundo momento, deveria

narrar uma história envolvendo os nove elementos nos seus espaços, criando um micro-

universo. Este exercício levou-nos a conhecer o valor atribuído aos espaços; a detectar a

ansiedade e os ambientes de retro alimentação do sertanejo santanense para superar a

angústia. Deixemos o sujeito da pesquisa concluir sua narração:

(...) Todos os elementos estavam na bolsa mágica, prontos para serem entregues de volta, só faltava o monstro que devora! Este lhe causou medo. Mas era apenas um elemento. O cavaleiro já havia andado por toda a cidade e já cansado, pensou em desistir. Já no último sentou em frente a um cemitério e meditou... meditou. Ao olhar para trás viu a porta do cemitério e lembrou que ia morrer se não conseguisse finalizar a missão. Que se não fizesse ele é que seria engolido por uma cova como por um monstro! Pronto, decifrou: o monstro devorador era o cemitério. E assim, cheio de orgulho o cavaleiro cumpriu a missão e entregou todos os elementos ao misterioso rei. Mas de uma coisa ele sabia, que aqueles elementos poderiam estar em qualquer lugar, era questão de interpretar o que eles significavam.

A narração de Luiz indica uma disposição básica, sobretudo, em seres

humanos envolvidos numa situação limite, própria do contexto de seca em que o sentido

de finitude da vida é confrontado, cotidianamente, por causa do alto nível de

Page 104: Antropologia e Fraternidade

90

mortalidade, baixo índice nutricional e pouca tecnologia. Assim, a cidade e a civilização

trazem uma dimensão de segurança básica em relação ao princípio da vida, por

concentrar uma organização onde o processo pelo qual os elementos culturais concretos

ou abstratos de uma sociedade, como o conhecimento, as técnicas, bens e realizações

materiais, valores, costumes, gostos, conquistas políticas etc. são coletivos e/ou

individualmente elaborados, desenvolvidos e aprimorados.

Esta mesma indicação valorativa pudemos encontrar tanto na zona rural

quanto na zona urbana da região de Santana do Acaraú. Porém, na sede da cidade de

Santana, caracterizada por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e por

diferenciação social, divisão do trabalho, urbanização e concentração de poder político e

econômico, a dicotomia entre civilização e seca tornou-se mais intensa a medida da

proximidade dos espaços com o centro da cidade.

Durante a pesquisa de campo esta idéia foi confirmada, sobretudo entre os

assentados, onde foram sublinhadas sobremaneira imagens que remontavam à seca,

fome, água, persistência e resistência. Estes elegeram o desemprego como elemento

causador da fome e a seca como uma categoria que aparece com os aspectos de miséria.

Esta seca como provocadora da fome reduz a economia e retrai a agricultura. A seca se

refere ao cemitério, como evidenciaram algumas configurações, e coloca a cidade como

espaço de proteção, conforme as indicações de vários sujeitos da pesquisa: ao

confrontar os espaços internos e externos da cidade estes compuseram imagens de

dicotomia entre estas partes, apresentando a cidade como espaço de proteção.

As características desta relação interioridade versus exterioridade da cidade

veio delineada pela configuração do Juazeiro: dicotomia luz e trevas, positivo e

negativo. Assim, escolhemos perceber a cidade conforme as configurações já referidas

neste trabalho: Caatinga, Juazeiro, Umbuzeiro e Jurema. Para avaliar alguns espaços

importantes da cidade e perceber as tendências de significados, reuni em grupos as

relações entre as imagens apresentadas aos sujeitos e os espaços, e obtive algumas

tendências.

Page 105: Antropologia e Fraternidade

91

2. A Semântica da Cidade

O primeiro passo foi verificar quais espaços foram mais referidos pelos sujeitos

para depois entender a semântica destes ambientes. Assim obtive o seguinte resultado de acordo

com a tabela abaixo:

Quadro/Tabela nº. 5 - ESPAÇOS DA CIDADE COM MAIOR FREQÜÊCIA

ESPAÇO TOTAL FREQÜÊNCIA PERCENTUAL

Igreja 15 12 80,0%

Secretaria de Segurança 15 10 66,6%

Prefeitura 15 07 46,6%

Banco do Brasil 15 07 46,6%

Conselhão 15 07 46,6%

Escola 15 07 46,6%

Mercado Público 15 07 46,0%

Câmara dos Vereadores 15 06 40,0%

Hospital 15 05 33,3%

Como podemos notar, no quadro acima, os sujeitos da pesquisa elegeram a

Igreja (80%) e a Secretaria de Segurança Pública (66,6%) como os ambientes mais

freqüentados. Esta estatística nos leva a perceber o valor atribuído a estes espaços, que

só se descobre quando agrupamos os arquétipos que cada sujeito atribuiu,

individualmente, aos mesmos. Este agrupamento nos leva a perceber não um dado

objetivo, quantitativo, mas o valor subjetivo, isto é, o significado dessas instituições

para a coletividade. Como já dissemos, os símbolos confraternizam compondo uma

mensagem, como um texto, uma carta, que conta uma idéia, uma concepção de um

determinado espaço.

Page 106: Antropologia e Fraternidade

92

Foto 2: Secretaria de Segurança Pública de Santana do Acaraú

Assim, tanto o espaço eclesial quanto o da Segurança Pública manifestaram

o mesmo princípio, a mesma imagem: a idéia de 'proteção'. Porém, ao analisarmos a

semântica atribuída a cada um desses espaços individualmente – Igreja e Secretaria de

Segurança Pública – percebemos que a concepção de proteção apresenta características

diferentes para cada um dos dois ambientes.

Vejamos, no Quadro da semântica da igreja, uma síntese que pode nos

oferecer, com maior nitidez, a noção dos agrupamentos simbólicos.

Quadro nº 6 ARQUÉTIPOS SITUADOS NA IGREJA

ARQUÉTIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO

REFÚGIO Uma cruz Refugiar o povo Para “A”

ÁGUA Um riacho que sai da igreja matriz

Para “B”

ÁGUA Rio passando pela Igreja Para “E”

ÁGUA Rio Perto da Igreja Para “F”

Page 107: Antropologia e Fraternidade

93

ÁGUAUma gota

Dar força e energia, lavar os pecados.

Para “G”

REFÚGIOUma casa

Lugar sagrado/tem mais sombras

Para “H”

REFÚGIO Quadrado com dentro um menino

Acolher os necessitados de Deus

Para “I”

QUEDA Chuva que cai como palavra

Brotar coisas novas Para “I”

REFÚGIOQuatro bonecos

Família em busca de refúgio espiritual

Para “J”

FOGO Fogueira, Calor União com Deus Para “L”

FOGO Uma fogueira Iluminar Para “M”

ALGO CÍCLICO Um par de olhos Verificação popular Para “O”

O Refúgio: a Bíblia, em frente ao templo, para K e os demais; C, D, N nada referiram.

O espaço sagrado foi relacionado aos arquétipos da água, do refúgio, do

fogo e da vitalidade de algo cíclico. Assim, a água apontou para o sagrado como fonte

da vida e da energia que sai da igreja matriz, gota que lava os pecados, com noções de

recuperação, refazer as energias. Neste sentido, a atribuição da imagem da água

confirma o poder espiritual que perpassa as estruturas.

Neste caso, a imagem da água confirma o poder moral da Igreja que

perpassa as estruturas, o lençol freático que passa por baixo de toda a cidade. Um dos

sujeitos da pesquisa assim explica: "Igreja é a água, pois para mim a Igreja nos dá força,

nos dá energia, e lava nossos pecados” (Arquivo: MES - Pasta AT9SDA - Protocolo "G")

Dados da Pesquisa. Outro sujeito coloca a imagem da correnteza do rio que está sempre

em movimento, que vai-e-vem (CF: Arquivo MES - Pasta AT9SDA - Protocolo "B" - Dados

da Pesquisa). Esta idéia entra em consonância com a teoria de Cirlot quando trabalha a

simbologia da água:

A água não pára nem de dia nem de noite, se passa pelo alto cria a chuva e o sereno, se passa por baixo forma os córregos e os rios. A água é bem feitora do bem por excelência. Se lhe contrapõe um dique essa pára, mas se a canaliza essa escorre. Dizem que ela não luta, todavia nada a iguala em romper tudo o que é forte e duro. No aspecto dos grandes cataclismos o simbolismo da água não muda, mas se submete ao simbolismo dominante da tempestade, a mesma coisa acontece quando predomina a característica de mobilidade da água, como no pensamento de Heráclito. Não se trata da água do rio a qual 'ninguém pode tomar banho duas vezes’, mas a idéia de circulação, de leito, e de elemento em caminho irreversível (DICIONÁRIO, 2002, p.57).

Page 108: Antropologia e Fraternidade

94

No quadro podemos ver que 'H' colocou a imagem de abrigo, sombra que

alivia o calor. Outros colocaram o fogo, não como algo que queima, destrói e fere, mas

que ilumina: ao mesmo tempo em que aquece, clareia com poder aglutinador,

aconchego e união. A queda não é apresentada como imagem da decadência, mas como

gotas de chuva que faz germinar, brotarem coisas novas. Isto nos leva a entender que

ao espaço do templo foi atribuída a semântica do arquétipo da mãe, que se configura em

Jurema, enquanto princípio de referência.

Porém, podemos verificar que, enquanto instituição, a Igreja é percebida

com aspectos de poder moral e espiritual, na cidade. Este poder é percebido não como

algo que machuca os sujeitos da pesquisa, mas com nuanças de proteção, com as

características típicas da configuração do Juazeiro: delineada pelo confronto Luz versus

Trevas, dimensão espiritual e contrastes ideológicos.

Foto 3: Igreja Católica Romana, Matriz de Sant’Anna

Page 109: Antropologia e Fraternidade

95

Já o valor atribuído à Segurança Pública, mesmo sendo também de proteção,

apresenta-se com as características da configuração da Caatinga: fogo, espada. Idéias

como agressividade, luta e enfrentamento são usadas não para a destruição de um

objeto, mas para defender o sujeito no combate à ameaça. Vejamos uma síntese do

agrupamento feito dos arquétipos atribuídos à Segurança Pública.

Quadro nº 7 SECRETARIA DE SEGURANÇAARQUETIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO

ESPADAUma espada - O destacamento policial

Anticorpos do seu mundo – podem defender e ferir.

Para “B”

ESPADA Uma espada Pare “E”

ESPADA Uma espada Para “F”

FOGO Fogueira Destrói a liberdade Para “H”

ESPADAUm machado

Defesa do cidadão, força policial.

Para: “I”

ESPADAUma espada

Luta, defesa contra os bandidos.

Para “J”

ESPADA Uma espada Na delegacia Para “K”

ANIMAL Um leão Agressividade Para “L”

ALGO CÍCLICOSetas circulares

Ação negativa dos políticos, algo repetitivo.

Para “N”

REFÚGIO Uma casa Proteção Para “O”A, C, D, G e M nada referiram.

Durante a pesquisa de campo, após o exercício individual, juntei os sujeitos

em um único grupo e pedi que refizessem, agora de modo coletivo, o mesmo exercício

que fizeram individualmente. Com isto, eu objetivava saber qual a dimensão das

relações de negociação, aglutinação ou dispersão e se, no âmbito das relações de força,

as decisões eram tomadas segundo a maioria ou pelo convencimento de todos os

participantes. Assim, fomos verificar no mapa coletivo estas tendências.

Page 110: Antropologia e Fraternidade

96

Foto 4: Mapeamento coletivo.

Ao ver o mapa coletivo e reler o diálogo entre os sujeitos da pesquisa vimos

que fizeram, coletivamente, o mesmo movimento atribuindo aos âmbitos da segurança

pública e à Igreja a imagem de proteção, simbolizando para a delegacia uma gruta e

para a Igreja Matriz uma casa. Importante notar o diálogo entre eles:

- Então, vamos ver a Igreja é unânime do refúgio, não é?

- Eu também acho.

- Concordo, a Igreja é o refúgio do ser humano.

- E aí, botou o quê no refúgio?

- A Delegacia. Onde o preso se recupera na delegacia, isso vai acontecendo devagarinho.

- Então, vamos lá, que eu desenho uma caverna, é isso?

- Então, coloca né?

- Na Igreja, o refúgio.

- Você coloca ela como se fosse um lugar de fechado.

- Uma caverna pode ser assim, ó... uma caverna assim, ó. O senhor já viu uma caverna? E assim, faz assim.

- E uma casa que não tem como escapulir, então é uma igreja, a igreja é uma casa." (Arquivo de Pesquisa - Trasnc. Oral AT9SDA p.030)

Os grupos estudados atribuíram maior valor afetivo à proteção. Isto nos leva

a procurar o que os ameaça, onde se encontra a angústia. Neste sentido pudemos

Page 111: Antropologia e Fraternidade

97

perceber nos espaços da prefeitura, Câmara dos Vereadores, Banco, no hospital

(enquanto SUS), uma composição simbólica que elaborou uma mensagem seguindo a

lógica: definição do espaço e a indicação da aflição. Verifica-se esta dinâmica, no

Quadro abaixo.

Quadro nº 8 BANCO DO BRASIL

ARQUETIPO REPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO

ANIMAL Um boi Reproduzir criar lucro Para “A”

FOGOSol, circulação de dinheiro

Aposentados recebem benefícios- depósitos das rendas

Para “C”

MONSTRO Um rosto de fantasma Olhos fiscalizadores Para “D”

MONSTRO Um lobo com dentes grandes

Proteger o dinheiro Para: “G”

ALGO CÍCLICOUma roda

Dinheiro vai-e-volta banco - Gira dinheiro que entra e sai.

Para “H”

ALGO CÍCLICOUma casa redonda

Trabalhar todo o território do município.

Para “I”

MONSTROUma moeda

Devorar todos os cidadãos com juros altos

Para “J”

B, E, F, K, L, M, N e O nada referiram.

3. Do Refúgio às Ansiedades

Alguns indicam a funcionalidade do Banco como a circulação da moeda, o

pagamento dos aposentados que influencia diretamente na renda, sobretudo, como

beneficio às famílias mais carentes em um contexto de baixa oportunidade de emprego.

Fiscalizar e proteger o dinheiro com as imagens dos seguranças. Saindo do campo das

funções entramos na dimensão da angústia dos juros altos, fiscalização, e cobranças de

débitos.

Page 112: Antropologia e Fraternidade

98

Nesta linha, seguem as instituições de poder político: Prefeitura e Câmara

dos Vereadores.

Quadro nº 9 PREFEITURA MUNICIPAL

ARQUETIPOREPRESENTAÇÃO SIMBOLISMO SUJEITO

ESPADAUma espada

Força / execução Emblema – passivo

Para “A”

MONSTRO

Um monstro na prefeitura invencível porque muda com o tempo

Lugar onde são planejadas as coisas Um cachorro feroz, um lobo, monstro: impermanência na fluidez do tempo.

Para “B”

PERSONAGEM

Um boneco Aprova as leis Prefeito na prefeitura

Para “C”

ALGO CÍCLICO

Um relógio prefeitura

Precisa estar carregado para que tudo gire e funcione, ir para frente.

Para “D”

PERSONAGEM Uma figura masculinaPersonagem que encontra dificuldades para resolver os problemas.

Luta contra as dificuldades

Para “L”

QUEDA

Uma folha solta Recomeço Para “M”

QUEDA

Uma nuvem caindo gotas. Parceria, abrir caminho.

Para “O”

E, F, G, H, I, J, K e N nada referiram.

Page 113: Antropologia e Fraternidade

99

Quadro nº 10 CÂMARA DOS VEREADORESARQUETIPO REPRESENTAÇAÃO SIMBOLISMO SUJEITO

ÁGUAUma gota

Onde os vereadores discutem o problema dos assentados

Para “C”

REFÚGIO Uma cabana, ou oca Povo procura apoio Para “D”

FOGOChamas altas

Discussão quente / eliminaria porque pode ferir

Para “G”

FOGODois feixes de madeiras em chamas

Disputa entre partidos, interesse político individual.

Para “I”

MONSTROUm rosto com pernas

Proteger os interesses pessoais

Para “L”

MONSTRO Uma caricatura monstruosa antropomorfisada

Devorador grandes projetos viáveis para a população

Para “M”

A, B, E, F, H, J, K, N e O nada referiram.

Foto 5: Câmara de Vereadores de Santana do Acarau

Estes agrupamentos evidenciam a imagem de fragilidade, comum aos

espaços do Banco, Prefeitura e Câmara Municipal. A prefeitura, enquanto função, é

descrita como executora, e mesmo se é representada por uma espada, esta aparece

desfuncionalizada, como um emblema, demonstrando passividade. Imagens como a

folha solta de uma árvore, demonstrando a fluidez diante do tempo, compõem a mesma

idéia da personagem que é dificultada para resolver os problemas e, portanto, encontra

Page 114: Antropologia e Fraternidade

100

barreiras na execução e do relógio que indica tempo e impotência, pois precisa ter

energia para funcionar. Estas imagens confirmam a angústia demonstrada pelo monstro

na prefeitura que não é direcionado à imagem da prefeitura, mas para a alternância dos

administradores municipais no poder.

A mesma mensagem podemos captar no agrupamento da Câmara Municipal

onde é demonstrada a fragilidade da instituição pelo direcionamento de interesses que

fogem completamente do dever ser da “Casa do Povo”. Estas Imagens acusam a

angústia existente dentro da cidade: a fragilidade das Instituições Políticas do

município.

Isto acontece porque a sociedade ainda está fundamentada no poder

tradicional e carismático e não no Estado burocrático racional. Por isso, a comunidade

não reconhece os referidos espaços como ambientes de segurança e proteção do

indivíduo por estarem delineados por nuanças do período coronelístico.

Esta constatação confirma a mítica vista por Audifax Rios. As instituições

existem, mas são compreendidas pelos sujeitos como frágeis, porque no seu interior

acontece outra dinâmica do uso do poder que atua não para o bem comum, admitindo

uma dominação caracterizada pela imagem das serpentes do autor.

Outro aspecto diz respeito à representação da Câmara Municipal que,

enquanto imagem, se contrapõe às atribuições míticas do Conselhão, fazendo uma

correlação com os demais espaços de poder na cidade. Num outro grupo pudemos

observar que existe uma ansiedade nos sujeitos, pois estruturalmente a Câmara dos

vereadores representa um obstáculo para a resolução dos problemas. A personagem é o

prefeito, o qual está localizado entre os setores: hospital - correio - escola. Uns sujeitos

Page 115: Antropologia e Fraternidade

101

desenharam a prefeitura próxima à Igreja, entre essas duas um espaço com o rio e a

chuva. Por causa da chuva as pessoas se refugiaram no mercado público.

Todos os elementos apresentam função específica e tanto a Câmara

Municipal quanto a polícia vão ser caracterizados pelo desvio de suas reais tarefas:

polícia que não protege, mas fere, e a Câmara que não resolve os problemas, mas é

composta por alguns vereadores que só procuram votos para si - interesses pessoais e

não coletivos.

Foto 6: Cena do Mercado Municipal

Tais elementos vão caracterizar o micro-universo criado pela estrutura

heróica impura, pois existe o combate, de maneira velada, apresentando alguns

elementos do regime noturno, o refúgio adquire função de proteção da queda reforçando

os espaços populares: o mercado onde a população exerce sua autonomia econômica,

espaço coletivo de comerciantes e consumidores, reforçando a idéia de aglomerado

organizado como no Conselhão, que reivindicam os próprios direitos qualificando a luta

contra o monstro.

Deste mesmo modo, um sujeito da pesquisa coloca a personagem = prefeito

em dicotomia com o monstro = Câmara; evidenciando não um combate frontal, mas

coloca o monstro como barreira para os ideais a serem alcançados pela personagem.

Page 116: Antropologia e Fraternidade

102

Esta relação se fragmenta na relação entre o povo que busca autonomia, manifestada na

funcionalidade do refúgio (mercado público) e do Conselhão, que se polariza na

personagem, e de outro lado a polícia, que é representada por um animal feroz

caracterizando outro pólo ao redor do monstro. O sujeito da pesquisa que se coloca do

lado de fora, como observadora do micro-universo, também se enxerga entre o povo

manifestando traços de desejo, de maior humanização dos setores públicos e o sentido

de união correspondendo ao ideal a ser alcançado pelo herói, que organiza suas ações

numa seqüência para objetivar a realização das próprias metas.

Ainda outro sujeito reforça esta imagem quando se refere às forças da

profundidade, os pactos, a corrupção, contrapondo o Conselhão à Câmara Municipal,

qualificando o Conselhão como espaço democrático de reivindicação dos direitos e

esclarecimento do poder público de suas ações à população.

Vista como espaço de pessoas que brigam pelo poder, a Câmara é

caracterizada como “devoradora” de grandes projetos que seriam viáveis e necessários

para a população, prejudicando o desenvolvimento da cidade e, sobretudo,

prejudicando os mais humildes e inocentes.

No micro-universo criado não estão ausentes os elementos de angústia,

apresentando-se a cidade como espaço de insegurança, palco de relações de poder. Sua

configuração tende, entretanto, a ressaltar as qualidades da Estrutura Sintética

simbólica, por meio de uma mítica individuação de pólos opostos em combate,

sugerindo uma reflexão sobre valores em tensão. Paradoxalmente, porém, essas

polarizações não provocam fraturas no micro-universo criado. Portanto, estes sujeitos

apresentam uma angústia frente às relações de força que fragilizam as instituições

públicas, mas que não chegam a provocar fraturas profundas dentro da Cidade, que

Page 117: Antropologia e Fraternidade

103

permanece como lugar de fomentação das relações culturais, de sentimentos e

identidade.

Com outro grupo trabalhamos o teste AT9 fazendo o mesmo exercício,

porém de forma diferente. Aplicamos o teste AT9 de modo individual e, ao passar para

a parte coletiva, não pedimos que eles distribuíssem os nove arquétipos no mapa, mas

que tomando os nove arquétipos compusessem um micro-universo através de uma

apresentação teatral. Depois, seguiu-se uma entrevista com todas as perguntas que

normalmente fazemos por escrito. Tomamos uma câmera e filmamos tudo.

Foto 7: O micro-universo representado teatralmente

Page 118: Antropologia e Fraternidade

104

Foto 8: Registro da apresentação e entrevistas para análise

Ao analisar a filmagem percebemos que a gestualidade das personagens do

Padre e da Beata eram recolhida e apresentaram a Igreja como refúgio, confirmando a

representação dos demais sujeitos estudados anteriormente, apresentando para os

espaços a idéia de proteção.

A mesma idéia foi confirmada pela personagem do policial que assumiu a

representação de um animal: o policial ronda a cidade como um leão que anda nas

selvas. As selvas representam uma imagem de insegurança, logo confirmada pela

imagem da corrupção que toma toda a cidade prejudicando, fatalmente, a democracia

representada por uma personagem lúdica com feições de palhaço.

Em um determinado momento entra a Personagem do Prefeito: imagem do

poder institucional, demonstrada pela espada, sobe na cadeira e, com gestos

ascensionais, pede que o povo diga as suas lamentações, com promessas de resolução

dos problemas.

Neste momento de escuta a personagem estica os braços em formas

arredondadas como um vaso acolhedor e de circularidade. Neste instante, chega a

notícia do alastramento da corrupção em toda parte. O prefeito anuncia que mataram a

Page 119: Antropologia e Fraternidade

105

democracia, o policial ri e diz que ele a matou. “Que uma nova democracia venha”,

gritam todos.. O José e a Beata, que representam a Igreja como refúgio das almas,

indicam outros personagens que, por sua vez, apresentam a escola como lugar onde

brilha e cresce a chama do conhecimento, luz para a vida e busca de novos ideais.

Em seguida, acontece a demonstração do arquétipo da Queda, quando a

democracia morre e depois se transfigura em esperança no devir.

Todo o micro-universo criado pelas personagens confirma a fragilidade das

instituições de poder ainda caracterizadas pelo carismático e tradicional.

Considerações Finais Deste Capítulo

O exercício levou-nos a conhecer o valor atribuído aos espaços da cidade e

fora dela. Esses espaços vão compreendidos em um complexo demográfico formado,

social e economicamente, por uma importante concentração populacional agrícola,

dedicada a atividades de caráter mercantil, industrial, financeiro e cultural que, no caso

de Santana do Acaraú, envolve a sede municipal e os distritos.

À cidade, entendida desse modo pelos sujeitos da pesquisa, é atribuído um

considerável valor afetivo que dicotomiza os significados dos espaços da cidade e fora

da cidade. Dentro aparecem as imagens de vida e fora os símbolos da morte. Neste

último caso o sertão da seca e da morte.

Porém, existe uma angústia, também dentro da cidade. Segundo os sujeitos

esta é atribuída a impermanência da realidade presente, formalizada na fragilidade das

instituições políticas.

Page 120: Antropologia e Fraternidade

106

Existe uma tendência em transformar e superar esta realidade de dois

modos:

A) Através de movimentos típicos da Jurema, que se alinham ao regime

noturno da teoria da Convergência Simbólica, invertendo-se o valor atribuído aos

objetos causadores de angústia e convertendo-os em elementos de proteção ou de

esperança, eufemizando seus significados para harmonizar os contrários.

B) A outra através dos espaços de retro-alimentação apontados pelos

sujeitos como: a Igreja, dominados pela água, refúgio; da Secretaria de Segurança

Pública - delineada pela proteção e da escola como possibilidade de saída da situação de

depressão.

Page 121: Antropologia e Fraternidade

107

CONCLUSÃO

Iniciamos esta dissertação considerando que as democracias modernas, do

ponto de vista formal, apresentam um contínuo crescimento quantitativo. Mesmo se o

significado formal de democracia é aceito por todas as vertentes ideológicas, pois a

vemos compondo slogans de diversas ideologias, até mesmo antagônicas, como a

“Social Democracia” ou “Liberalismo Democrático” fazendo parte integrante de credos

ideológicos contrapostos, como afirmou Bobbio (1990)30; questionamos a qualidade

dessas democracias, tomando como caminho a investigação do Princípio de

Fraternidade, que emergiu como categoria política no emblemático movimento da

Revolução Francesa, ladeada pelos princípios de Igualdade e de Liberdade, princípios

estes componentes da democracia moderna.

Acreditamos que a falta do desenvolvimento da Fraternidade na reflexão das

doutrinas políticas prejudicou a qualidade das atuais democracias. Por isso tomamos um

caminho para contribuir a essa reflexão através das categorias antropológicas.

Nesta via fomos descobrindo que a antropologia apresenta na sua

constituição, enquanto ciência, tendências metodológicas importantes para as nossas

observações, como o despojamento do pesquisador para a inserção nas comunidades

pesquisadas; através de alguns clássicos da antropologia pudemos perceber formas

simétricas e de reciprocidade nas relações sociais que nos ajudaram a fomentar uma

noção de fraternidade mais clara: como a abertura e a simetria entre pesquisador e

sujeitos da pesquisa, a metodologia do despojamento para alcançar o outro; as

30 BOBBIO, Norberto, “Dizionario di Politica” – Ed. TEA – Tascabili degli Editori Associati S. p. A – Torino, novembre 1990.

Page 122: Antropologia e Fraternidade

108

sociedades que estabelecem relações de troca e como essas trocas permeiam a

modernidade.

Por isso entendemos a fraternidade como elemento vinculador não só entre

os membros de uma comunidade, mas verificamos que também as elaborações humanas

apresentam elementos de confraternização entre si: como os símbolos e os mitos. Por

este motivo vislumbramos uma metodologia da fraternidade que nos leva a algumas

conclusões.

Ao observar os símbolos que se arranjam em configurações devemos

procurar relacioná-los de forma simétrica, colocando em pé de igualdade todas as

manifestações, por tratar-se do âmbito da subjetividade, dos valores atribuídos ao tempo

e ao espaço, sem sobrepor o maior numero de redundâncias de um tipo sobre a minoria

das manifestações diferentes. Em campo, como afirmou Boas, não existe maior ou

menor valor, mas tudo deve ser anotado detalhadamente; assim, nas confraternizações

simbólicas tudo deve ser percebido, pois deste modo poderemos compreender a

mensagem que a minoria traz para alcançarmos a plenitude da semântica manifesta na

totalidade das configurações: uma vírgula é pequena diante da frase, mas pode mudar o

significado da frase se for excluída. (LAPLANTINE, 1994 p. 77)

Deste modo podemos aferir que a fraternidade é uma tendência presente nas

relações humanas, com o meio social e cósmico, pois o ser humano visto na dimensão

relacional elabora conjugações de imagens que convergem reciprocamente. Então se o

princípio de fraternidade é constitutivo dos seres humanos enquanto fenômeno

relacional, as elaborações humanas como a política, a arte, a economia, o trabalho etc.

vão realizar cada homem e mulher à medida que estas atividades humanas forem

compreendidas e atuadas enquanto espaços de Fraternidade.

Page 123: Antropologia e Fraternidade

109

Neste sentido as políticas públicas no semi-árido devem levar em

consideração esta premissa, respaldando a economia humana dotada de criatividade,

aptidões, capacidades de enfrentamento, como recursos permeados pelos valores de

reciprocidade, sedimentadores das conexões entre os sertanejos.

Através do movimento de confraternização das imagens, símbolos e mitos

pudemos perceber algumas tendências da cultura sertaneja como os modos de

resistência e enfrentamento da vida diante da fluidez do tempo. A esta fluência são

colocados pontos de fixação, como os hábitos e costumes que se prolongam no tempo,

formalizando e legitimando as instituições no inconsciente coletivo.

Deste modo, convém levar em consideração as referências culturais da

coletividade para a implementação das políticas públicas no semi-árido. Estas

referências se se manifestam com maior clareza na reunião dos símbolos apresentados

pelos sujeitos da comunidade que ao agrupá-las formaram uma espécie de modelo,

referência local do ser humano no sertão.

Um segundo aspecto nota-se na imagem mítica que o sertanejo tem de si

mesmo e do mundo, definidora de suas relações com a coletividade, isto é, a

representação no nível do inconsciente objetiva uma grande força construtora da

consciência coletiva. Jung ao relacionar o inconsciente individual e o coletivo afirma

que os conteúdos psíquicos “são entidades vivas que exercem sua força de atração

sobre a consciência... Estas constituem os fatores impessoais externos, na sociedade e

na consciência coletiva. Mas assim como além do indivíduo há uma sociedade, do

mesmo modo além da psique pessoal há uma psique coletiva (JUNG, 2002, p. 124)

Portanto a imagem coletiva do vaqueiro, sintetizada na literatura clássica do

sertão e retificada em campo nos leva não só a uma definição importante sobre a relação

Page 124: Antropologia e Fraternidade

110

entre o inconsciente individual e coletivo, mas também a perceber a importância dos

modelos culturais – uma disposição psíquica herdada e universal - que dão

sustentabilidade para as atividades coletivas, a base onde repousa a psique consciente e

pessoal, cuja natureza é inconsciente, como o trabalha Jung: “a relação da psique

pessoal com a psique coletiva corresponde, mais ou menos, à relação do indivíduo com

a sociedade". (Idem)

É justamente nesta relação que Jung coloca o ser humano como fenômeno

relacional: “Do mesmo modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado,

mas também um ser social, a psique humana também não é algo de isolado e

totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo” (Idem).

Por isso a imagem que a consciência coletiva faz do sertanejo vai objetivar a

ação de enfrentamento da realidade, trazendo conseqüências objetivas no cotidiano.

Seguindo a dinâmica do mito, da subjetividade, verificaremos consequentemente uma

realidade objetiva impulsionada por uma imagem coletiva. Neste sentido podemos

constatar o enfrentamento entre os sertanejos de Santana do Acarau na organização da

sociedade civil entre os assentados, no estabelecimento de parcerias com os gestores

estaduais, municipais, no sustento das atividades populares como o projeto de

piscicultura, ao cunhar a moeda social, “santana”, para viabilizar maior crescimento

comercial. Neste caso é notória a mobilização social existente no Município, sobretudo

nos espaços do Conselhão e do Fórum dos Assentados de Santana do Acaraú.

Deste mesmo modo é emblemática a experiência do sistema de merenda

escolar estruturada com o fornecimento da produção dos assentados que, para além das

tramitações comerciais, alimenta o pensamento político do município de participação

popular, compromisso com a Reforma Agrária e fortalecimento da Agricultura Familiar,

Page 125: Antropologia e Fraternidade

111

valorizando não só a própria produção do município, mas incentivando as atividades

desenvolvidas pelos jovens e pelas mulheres.

Fruto desta experiência, vemos em ato elementos do princípio de

'Fraternidade' qual categoria política, pela busca de parcerias e maior integração entre as

Secretarias Municipais e os demais setores da gestão pública, fortalecendo laços de

coesão entre os seguimentos sociais.

Estas relações coletivas elaboraram, no inconsciente individual, indicações

da cidade como um universo de proteção, segurança e de ligação entre os elementos

simbólicos. Como vimos, estas características foram evidenciadas em um determinado

contexto, isto é, alguns sujeitos da pesquisa construíram uma incoerência entre a cidade

e o espaço do cemitério, evidenciando neste último a presença do monstro que engole a

vida.

Assim, foi sublinhada a fome como instrumento político, como angústia

tenaz e a contraposição evidenciada foi o saber do sertanejo na convivência com o

espaço, com o meio. Esta realidade acontece no âmbito das relações de poder externo,

qual sistema evidente à luz do dia, com todas as características do regime diurno e,

portanto, na representação local da Caatinga.

Os sujeitos da pesquisa reconheceram os entraves para vencer a angústia na

questão do latifúndio e do coronelismo que distribui as terras de modo insatisfatório.

Assim, ele colocaram em relevo que esta distribuição na região de Santana é

caracterizada expressivamente não no acúmulo da quantidade de terras, mas na

qualidade destas, isto é, existe uma apropriação das terras boas por parte de alguns que

deixam as terras menos férteis para a população. É justamente nesta estrutura que se

desenvolve a categoria 'fome' como um instrumento de poder.

Page 126: Antropologia e Fraternidade

112

Assim, existe dentro da cidade grande poder de coesão e de consensos, no

âmbito da identidade cultural e do poder de organização social e política, mas ao mesmo

tempo existe uma aflição no âmbito da distribuição dos bens econômicos. Neste caso

podemos notar o combate e os modelos arquetípicos do vaqueiro, herói e combatente,

presentes no imaginário sertanejo.

As indicações dos sujeitos revelaram uma fratura na cidade não só no

campo econômico, mas também no âmbito político. As teorias políticas das

democracias modernas atribuem à alternância dos eleitos no poder um bem

democrático. Alguns sujeitos pesquisados atribuíram a figura do monstro justamente à

impermanência do executivo municipal no poder. Poderíamos considerar tal dado como

resquícios do coronelismo no imaginário sertanejo, mas tal ponderação é insuficiente no

contexto demonstrado pelos sujeitos.

Podemos ressaltar dois aspectos importantes: primeiramente a confirmação

que nossa pesquisa alcançou certas dimensões do inconsciente coletivo através dos

símbolos que não estão submetidos às teorias e à racionalidade objetiva. Esta se refere

aos valores e os apresenta livre de qualquer grade convencional.

Um segundo aspecto mostrou-se, quando pesquisei historicamente tal

evento, e descobri a confirmação da existência de uma ameaça velada ao Conselhão na

alternância do poder da prefeitura, pelo fato que o prefeito anterior rompeu com os

veículos de diálogo com o Conselhão, quase o destruindo e traumatizando as lideranças

populares da cidade. A atual gestão dialoga eficazmente com o Conselhão. Neste

sentido a “Palavra” entra como uma categoria de participação. A ausência do parlatório

desqualifica a democracia. Ao detectar esta angústia no inconsciente coletivo, faz-se

Page 127: Antropologia e Fraternidade

113

necessário criar instrumentos de permanência, amarrar, institucionalizar tais espaços de

Palavra, para curar esta ferida denunciada no inconsciente da coletividade.

Tal denúncia indica ainda duas situações: existem nas instituições públicas

instrumentos que garantem transparência nos negócios públicos. Mas o inconsciente

capta que, para além da burocratização da vida pública, existem forças veladas nos

porões que atentam contra o bem comum, como a presença dos grupos familiares que

privatizam o poder. Este é um valor para as elites que se contrapõe ao bem democrático,

criando uma espécie de esquizofrenia social, no sentido da aparência e do conteúdo

dessas aparências.

Neste contexto revela-se o poder das serpentes: a democracia e a alternância

no poder são um bem, mas será que acontece de fato alternância dos grupos

dominantes? A ansiedade revela-se na pergunta: até quando nos darão voz, enquanto

povo, na oportunização do uso da palavra? O Inconsciente coletivo denuncia a questão

dos pactos, acordos nos porões que produzem a manutenção do mesmo grupo no poder,

ou mesmo a angústia pela desestruturação e fragilidade institucional do Conselhão

como instrumento de participação popular.

Alguns sujeitos colocaram o monstro como a rotatividade do prefeito e,

portanto, a possibilidade de impermanência da política de participação maior do povo.

Neste caso, se é o prefeito quem dimensiona o nível de participação, podemos ter aí

uma democracia delimitada, delicada e debilitada pelas cicatrizes do coronelismo ainda

marcantes na cultura... Neste caso foi sinalizado pelos sujeitos da pesquisa um alerta

para perceber tais nuanças na distribuição atual do poder na cidade.

Nestas relações de poder percebemos esforços de tratar as angústias através

da configuração de Jurema, re-significando a ansiedade, transformando o coronel em

Page 128: Antropologia e Fraternidade

114

compadre, o explorador e “inimigo” em parente, numa busca de transformar os

desníveis em relações simétricas de reciprocidade.

Esta tendência gestual é uma forma de adaptação ativa ao meio que

transfigura, como fazem os mitos, a imagem do Coronel, fazendo-a passar de algoz para

uma imagem de bem feitor, elaborando um mito: a gestualidade que harmoniza os

contrastes entre pobreza e riqueza, poderosos e impotentes, exploradores e explorados.

Criando-se este mito, elabora-se um mecanismo de convivência 'pacífica' entre os

antagônicos.

Outra forma manifestou-se através das configurações do Umbuzeiro e da

Caatinga no combate pela organização social.

Ao colocarmos a Antropologia em diálogo com a Ciência Política, pudemos

acessar a cultura política31 enquanto instrumento analítico da Ciência Política dentro do

próprio conjunto de significados e propósitos no qual o sistema político de cada

sociedade esta embutido, conforme os estudos de Gabriel Almond (1956 – apud

BOTTOMORE, 1996 p. 170). Nosso esforço demonstrou que a semântica do espaço

revelou-se instrumento de percepção da Cultura política de uma sociedade e não só os

símbolos como a bandeira, o hino, a hierarquia monárquica, mas também os espaços

públicos.

Nesta direção vimos que a passagem da distribuição dos arquétipos,

solicitados nos espaços da cidade, do âmbito pessoal para o âmbito coletivo, segundo a

narração gravada e transcrita do grupo, manifestou algumas mudanças que aconteceram

através do diálogo e do convencimento moral da minoria sobre a maioria que pensava

31 O Conceito de Cultura Política data nos anos 50 e vem definido por Gabriel Almond como “um padrao particular de orientações para a ação política” (1956, p.396). Refere-se, portanto às crenças, valores e simbolos expressivos que compreendem o contexto emocional e de atitudes da atividade política. (In Bottomore, 1996).

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diferente. Este dado aponta que entre os grupos populares a participação apresenta

elementos de Fraternidade, que leva em consideração todas as vozes, caracterizada pela

simetria e a reciprocidade e não pela imposição da maioria sobre a minoria. Estes

processos de participação qualificam o exercício da Democracia, pois esta tende a

alcançar os princípios morais estabelecidos pela cultura local, apresentando, portanto,

maior sustentabilidade política enquanto participação e exercício da cidadania.

Porém, na relação com o as instituições de deliberação, como a prefeitura e

a Câmara, foi apontada a fragilização pela apropriação destes espaços por quem nela

exerce o poder constituído. Coincidindo com as redundâncias míticas apontadas por

Audifax, que manifestou a fragilidade das instituições narrando a profanação do sagrado

e os símbolos civis e religiosos questionando as estruturas de representação simbólica

que funcionam como pontos de fixação social diante da fluidez do tempo.

Neste contexto revelam-se os espaços de consensos e coesão da

comunidade: as igrejas e o Conselhão, que reúnem os demais agrupamentos populares.

Assim, ficou claro que o caminho para a fixação do ser humano no semi-árido passa

pelo poder de decisão e da participação da comunidade.

Neste sentido, urge fortalecer os espaços de participação política e a

burocratização racional das Instituições do poder público, oferecendo-lhes maior

credibilidade e instrumentos de Justiça e Educação. Portanto, no diálogo entre a Ciência

e a Imagem no contexto do semi-árido nordestino, pudemos descobrir que o fomento da

cultura política perpassa inevitavelmente pela poética do Sertão.

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