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Arq Neuropsiquiatr 2000;58(1): 188-194 A FILOG˚NESE DA LINGUAGEM NOVAS ABORDAGENS DE ANTIGAS QUESTÕES ROBERTO GODOFREDO FABRI FERREIRA*, LU˝S CL`UDIO CELESTINO DOS SANTOS**, ALESSANDRA DA SILVA DE SOUZA SILVA***, EDUARDO SEGURASSE FARIA*** RESUMO - A filogênese e a antropogênese da linguagem tornam-se elementos fundamentais para conhecimento anatômico e fisiológico dos mecanismos da comunicação humana, bem como suas aplicações clínicas. Durante o processo de desenvolvimento primata, importantes transformações no corpo do animal, notadamente na cabeça, ocorreram a partir da vida arborícola com implicações importantes na gênese da linguagem. A aquisição de uma postura semi-vertical do corpo, o uso exploratórios das mãos e o desenvolvimento da visão em detrimento da olfação permitiram o crescimento craniano e o aumento do encéfalo. Com o retorno do primata ao chão e o desenvolvimento da bipedia nos Australopithecus, ocorreu progressivo crescimento em leque das regiões frontais, parietais e temporais, permitindo o desenvolvimento simultâneo dos centros neuroanatômicos de linguagem, expressão facial e atividade motora manual. PALAVRAS-CHAVE: linguagem, filogênese, neurolinguística. The philogenesis of language : new approaches of old questions ABSTRACT - The philogenesis and the anthropogenesis of language are the primary elements for the anatomic and physiologic understanding about the mechanisms of human communication, as well as their clinical applicability. During the process of primates’evolution, significant changes in the animal’s body, specially on the heads, has occurred since the arboricole life that influences the genesis of language. The adaptation of a semi- vertical body posture, the exploratory use of the hands and the improvement of vision at the expenses of olfaction have caused the enlargement of the cranium and the encephalon. Furthermore, as the primates went back to the floor, and from the development of the biped march in the Australopithecus, a progressive “fan-like” increase of the frontal, parietal and temporal regions took place allowing the simultaneous development of the neuroanatomical centers of language, facial expression and manual motor activity. KEY WORDS: language, philogenesis, neurolinguistics. O conhecimento da linguagem, em seus aspectos anátomo-funcionais, vem despertando crescente interesse nas últimas décadas, em decorrência dos grandes avanços científicos no campo da neurolinguística, da neuroquímica cerebral e principalmente nas inovações trazidas pelas modernas técnicas de neuroimagem. No momento em que presenciamos um número expressivo de informações à respeito das funções encefálicas superiores, as descobertas científicas, em ritmo acelerado, nos obrigam a repensar a linguagem em seu sentido mais amplo. Departamento de Morfologia da Universidade Federal Fluminense (UFF): *Doutorando, Professor Coordernador da Disciplina de Neuroanatomia da UFF; **Professor Assistente da Disciplina de Neuroanatomia da UFF; ***Monitor da Disciplina de Neuroanatomiada UFF. Aceite: 19-novembro-1999. Dr. Roberto Godofredo Fabri Ferreira - Rua Visconde de Moraes 159 / 2101 - 24210-170 Niterói RJ - Brasil. E mail: [email protected].

Antropologia e Linguagem

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Contribuição da antropologia para estudo da linguagem

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  • Arq Neuropsiquiatr 2000;58(1): 188-194

    A FILOGNESE DA LINGUAGEM

    NOVAS ABORDAGENS DE ANTIGAS QUESTES

    ROBERTO GODOFREDO FABRI FERREIRA*, LUS CLUDIO CELESTINO DOS SANTOS**,ALESSANDRA DA SILVA DE SOUZA SILVA***, EDUARDO SEGURASSE FARIA***

    RESUMO - A filognese e a antropognese da linguagem tornam-se elementos fundamentais para conhecimentoanatmico e fisiolgico dos mecanismos da comunicao humana, bem como suas aplicaes clnicas. Duranteo processo de desenvolvimento primata, importantes transformaes no corpo do animal, notadamente na cabea,ocorreram a partir da vida arborcola com implicaes importantes na gnese da linguagem. A aquisio de umapostura semi-vertical do corpo, o uso exploratrios das mos e o desenvolvimento da viso em detrimento daolfao permitiram o crescimento craniano e o aumento do encfalo. Com o retorno do primata ao cho e odesenvolvimento da bipedia nos Australopithecus, ocorreu progressivo crescimento em leque das regies frontais,parietais e temporais, permitindo o desenvolvimento simultneo dos centros neuroanatmicos de linguagem,expresso facial e atividade motora manual.

    PALAVRAS-CHAVE: linguagem, filognese, neurolingustica.

    The philogenesis of language : new approaches of old questions

    ABSTRACT - The philogenesis and the anthropogenesis of language are the primary elements for the anatomicand physiologic understanding about the mechanisms of human communication, as well as their clinicalapplicability. During the process of primatesevolution, significant changes in the animals body, specially on theheads, has occurred since the arboricole life that influences the genesis of language. The adaptation of a semi-vertical body posture, the exploratory use of the hands and the improvement of vision at the expenses of olfactionhave caused the enlargement of the cranium and the encephalon. Furthermore, as the primates went back to thefloor, and from the development of the biped march in the Australopithecus, a progressive fan-like increase ofthe frontal, parietal and temporal regions took place allowing the simultaneous development of the neuroanatomicalcenters of language, facial expression and manual motor activity.

    KEY WORDS: language, philogenesis, neurolinguistics.

    O conhecimento da linguagem, em seus aspectos antomo-funcionais, vem despertandocrescente interesse nas ltimas dcadas, em decorrncia dos grandes avanos cientficos no campoda neurolingustica, da neuroqumica cerebral e principalmente nas inovaes trazidas pelas modernastcnicas de neuroimagem. No momento em que presenciamos um nmero expressivo de informaes respeito das funes enceflicas superiores, as descobertas cientficas, em ritmo acelerado, nosobrigam a repensar a linguagem em seu sentido mais amplo.

    Departamento de Morfologia da Universidade Federal Fluminense (UFF): *Doutorando, ProfessorCoordernador da Disciplina de Neuroanatomia da UFF; **Professor Assistente da Disciplina de Neuroanatomiada UFF; ***Monitor da Disciplina de Neuroanatomiada UFF. Aceite: 19-novembro-1999.

    Dr. Roberto Godofredo Fabri Ferreira - Rua Visconde de Moraes 159 / 2101 - 24210-170 Niteri RJ - Brasil.E mail: [email protected].

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    No somente pelo ngulo da Neuroanatomia e da Neurofisiologia tradicionais, masprincipalmente por uma viso multidisciplinar, a linguagem torna-se mais prxima de sua compreensocientfica e de seus aspectos clnicos e funcionais. Paralelo ao desenvolvimento das cinciasbiomdicas e em estreita relao com esta, o aperfeioamento dos mtodos de datao de fsseis eas recentes informaes provenientes da paleoantropologia vm lanar novas luzes ao ainda obscurocampo da neuroanatomia da comunicao e da neurolingustica.

    O presente artigo busca ressaltar, de forma resumida, alguns pontos em que as contribuiesda antropologia, da paleontologia e da filognese tornam-se teis para o estudo e compreenso dosmecanismos neuroanatmicos da linguagem.

    A VIDA ARBORCOLA E AS TRANSFORMAES GERADORAS DA LINGUAGEM

    O modo de comunicao entre os animais, seja sob a forma sonora, olfativa ou visual, dentre outras, umfenmeno dos mais primitivos nas espcies e fator bsico para adaptao e sobrevivncia destas. To importantequanto os mecanismos ligados defesa, reproduo ou ao desenvolvimento de um meio interno mais sofisticado,a comunicao animal fator primordial na manuteno de indivduos e espcies. Desenvolvida inicialmentepara o contato entre semelhantes, e, em seguida, com outros seres que coabitam num mesmo espao fsico, ela semostra como um fenmeno adaptativo fundamental vida animal e em constante processo de aprimoramento.

    O processo de sofisticao desses mecanismos de comunicao foi amplo e progressivamente culminoucom os complexos sistemas de linguagem no homem, sendo possvel seu mapeamento nas diferentes espcies. Odesenvolvimento de mltiplos processos gestuais, faciais e sonoro-verbais, acompanhados de especializaeshemisfricas elaboradas, j claramente presentes nos primatas inferiores1, proporcionaram, ao longo da evoluo,o surgimento da linguagem humana nos padres que conhecemos e utilizamos atualmente.

    Representando o pice de uma grande pirmide evolutiva, a linguagem surge nos primatas superiores,particularmente nos homindeos, como resultado de extensa rede de modificaes e experimentaes funcionaistestadas pela natureza ao longo de milnios. Como analisaremos adiante, as transformaes anatmicas surgirampor aquisio de novos comportamentos e, em contrapartida, os novos comportamentos as especializaram. Essesfenmenos acabaram criando sucessivas inovaes biolgicas que possibilitaram o desenvolvimento decaractersticas morfolgicas especficas em cada espcie.

    Tais experincias adaptativas naturais produziram mltiplos sistemas antomo-funcionais dentro dasfunes orgnicas de determinados grupos animais, gerando padres comportamentais cada vez mais complexose sofisticados. Nesse imenso campo de experimentaes criado pela natureza, as modificaes ocorridas nocorpo e no sistema nervoso do primata, culminando na formao e no desenvolvimento da linguagem, representamum marco biolgico2. O estudo evolutivo dessa cadeia natural um captulo dos mais interessantes e complexosdentro da filognese do sistema nervoso3.

    No que tange evoluo lingustica dos primatas superiores, possvel afirmar, de forma bastantesimplificada, que os primrdios da formao da linguagem encontram-se associados vida nas rvores. Numprimeiro momento, citam-se as adaptaes necessrias vida no ambiente arborcola. Em seguida, ressaltam-seas modificaes que se seguem ao abandono das rvores pelo primata, sua progressiva adaptao ao solo e odesenvolvimento de uma postura bpede. A vida nas rvores exigiu da natureza solues revolucionrias paranovos problemas, ligados gravidade e ao espao tridimensional. As necessidades de se adequar a estas questesrefletiram-se em importantes medidas adaptativas geradoras de modificaes anatmicas notveis, que permitiriam,no futuro, o surgimento da linguagem. A primeira modificao decorrente da vida nesse novo ambiente, dizrespeito oponncia do polegar em relao aos demais dedos da mo. A segunda foi a aquisio de uma posturasemi-vertical para a locomoo no meio arborial. Finalmente, o terceiro elemento inovador foi o aprimoramentodo aparelho visual, em detrimento da olfao.

    O desenvolvimento do fenmeno da preenso, criado pela oponncia do polegar, proporcionou o usoextensivo dos membros, particularmente das mos, no somente nas atividades locomotoras na rvore, mastambm como mecanismo de explorao do ambiente. Estas modificaes, a nvel do sistema nervoso,possibilitaram o surgimento de receptores tteis epicrticos plantares, proprioceptivos ligamentares e tendneos,bem como o desenvolvimento de uma via piramidal sofisticada que se tornaria cada vez mais complexa durantea evoluo motora primata. Tais adaptaes ocasionaram tambm importantes transformaes nos padresalimentares daqueles animais. O uso das mos, principalmente na apreenso de alimentos e na atividade exploratria

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    do meio, libera a mandbula destas funes e possibilita, na rvore, uma dieta mais ampla: foliar, frutfera,insetvora, etc. Estas geraram modificaes no aparelho mastigatrio (dentes, msculos e arcadas) que, por suavez, proporcionaram novas transformaes nos ossos do crnio, particularmente na mandbula, rbita e ossotemporal4. As inovaes comportamentais a partir da libertao da mo de suas funes eminentementelocomotoras e o aumento de sua atividade exploratria iro permitir, ao longo da evoluo, ganhos funcionaisque influenciaro de forma marcante na gnese da linguagem.

    A segunda modificao gerada pela vida arborcola a aquisio da postura vertical, mais eficiente emum meio em que as exigncias gravitacionais e espaciais impossibilitam o deslocamento constante na posturahorizontalizada do eixo corporal. Em ambos os casos, as novidades evolutivas acabam por permitir, dentre outras,uma transformao no eixo de sustentao da caixa craniana e na sua relao articular com a coluna vertebral.Estas inovaes ocasionaram importantes mudanas na anatomia do crnio, decorrentes da diminuio da foramuscular sobre as regies temporais, parietais e occipitais, exercidas pela musculatura fixadora do crnio e pelamusculatura mastigatria ligadas mandbula5. A anatomia comparada do sistema muscular cervical e seu papelna fixao craniana entre os quadrpedes terrestres e os primatas, demonstram, de maneira clara, tais diferenas.Nos primeiros, a grande massa msculo-ligamentar destinada sustentao da caixa craniana e de uma grandemandbula, posicionadas gravitacionalmente em um eixo perpendicular coluna vertebral, substancialmente maiorque a dos primatas. Estes, por possurem um crnio de posio mais central sobre a coluna vertebral e uma mandbulacomparativamente menor, permitem que as linhas de foras gravitacionais atuem sob um plano paralelo ao eixo dacoluna vertebral, proporcionando melhor distribuio de foras e diminuindo consideravelmente a musculatura desustentao da cabea. O resultado final deste processo marcante, j nos antropides, e permite, principalmente apartir dos arcantropos, um aumento significativo da caixa craniana e o crescimento em leque do crebro.

    Como terceiro fator modificador cabe ressaltar o desenvolvimento do sentido da viso nos primatas. Bemmais importante para a sobrevivncia nas rvores, a melhoria do sistema visual ocorre, dentre outros fatores, porprogressivo deslocamento dos globos oculares em direo ao plano frontal do crnio. fato notrio na evoluoantropide do perodo Mioceno e Haloceno (cerca de 24 milhes de anos), uma progressiva frontalizao darbita nestes primatas arborcolas e o desenvolvimento efetivo da fvea central com sua riqueza de clulas emcones, demonstrando a importncia que adquire uma viso sofisticada nestes ancestrais primitivos e sua amplaassociao com o habito diurno deles6. O reposicionamento dos receptores oculares possibilitou uma sobreposiodos campos visuais e o desenvolvimento de viso estereoscpica.

    Ao mesmo tempo em que o aparelho visual se desenvolvia, a atividade olfatria nos primatas regredia,possivelmente devido difcil propagao das substncias odorferas nas densas copas das rvores e ao fatodestes primatas primitivos passarem a usar menos o olfato e mais a viso como sentido para identificao deobjetos distncia. Tais fatores possibilitaram importantes alteraes nas regies enceflicas anteriores. A atrofiadas estruturas olfativas ampliou os espaos dentro da loja anterior do crnio, permitindo o desenvolvimento dolobo frontal, notadamente das regies motoras rolndicas, pr-rolndicas e da rea pr-frontal.

    A sofisticao progressiva destas novidades evolutivas, surgidas com a vida primata nas rvores, tem oseu pice paradoxalmente quando o primata deixa a vida arborcola. Com seu retorno vida no solo, h cerca deseis milhes de anos aproximadamente7, agora como bpede e j dotado de todas estas modificaes, a naturezaas desenvolve ainda mais, proporcionando um revolucionrio sistema biomecnico, com inmeras vantagens einovaes adaptativas. Um modelo singular cujos mritos esto associados pluralidade funcional de suas atividades,adaptando-se de forma perfeita a mltiplas situaes ligadas sobrevivncia. Graas ao desenvolvimento de umcrebro, cuja principal caracterstica a no especializao em determinada funo, a natureza cria uma sofisticadacombinao nervosa cujo resultado a versatilidade para a resoluo das mais variadas situaes exigidas pelasobrevivncia, num meio onde as inconstncias e as variaes so fatores relevantes.

    EVOLUO ANTROPOLGICA DA LINGUAGEM

    As modificaes estruturais lentamente instauradas durante a vida nas rvores, passam a sofrer novastransformaes com a volta do primata ao ambiente terrestre. Referimo-nos prioritariamente aos ancestrais dasespcie humana, notadamente aos antropides, antecessores diretos do Homo sapiens. Os estudos sistemticosde inmeros fsseis dos Australopithecus (australntropos), que viveram aproximadamente entre 1,5 a 5 milhesde anos atrs, j possuam mudanas anatmicas marcantes, que se iniciaram a partir de um ancestral comum quehabitou a frica algumas centenas de milhares de anos antes.

    Mudanas no relevo, ocorridas na frica ha cerca de 8 milhes de anos, no perodo Mioceno Tardio,criaram as grandes cordilheiras da frica Central, dividindo o continente ao meio e levando a importantes alteraes

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    climticas entre as regies leste e oeste africanas. A ltima, sob ao dos ventos atlnticos , passa a possuir climamido e chuvoso, favorecendo o desenvolvimento de florestas tropicais e subtropicais. Em oposio, a regioleste, influenciada pelas mones asiticas, acaba por desenvolver um clima semi-rido e vegetaes de savanas.

    Tais fatores teriam proporcionado, no lado oeste, o aparecimento dos grandes smios africanos do gneroPan, adaptados ao ambiente das grandes florestas tropicais. J no lado leste, o desenvolvimento de uma posturabpede nos Australopithecus, mais propcia ao ambiente das savanas africanas, se torna evidente e vai sendoaperfeioada nos palentropos, mantendo-se at a espcie humana8. Algumas descobertas recentes de registrosfsseis arcntropos em regies distantes das inicialmente postuladas, bem como a hiptese de alguns ancestraisterem habitado stios constitudos de savanas e grandes rvores em torno dos lagos e rios, nos levam a pensar emanimais com habilidades mltiplas para a bipedia e para subirem em arvores9. Apesar destas novas descobertascolocarem em dvida a oposio evolutiva leste-oeste africana das espcies de primatas superiores, o modeloproposto mostra-se bastante eficiente para se compreender as intercesses entre evoluo antropogentica eclima, bem como para o conhecimento das linhas evolutivas a partir de um ancestral comum (Fig 1).

    Nos Australopithecus, a bipedia associa-se a maior especializao dos ps, proporcionada pela perda daoponncia do polegar (futuro hlux) e sua reaproximao dos demais dedos dos membros inferiores, destinandoos mesmos a assumirem definitivamente as funes da marcha. Este fato foi fundamental na libertao definitivadas mos, legitimando sua funo na coleta de alimentos e na confeco de objetos. Um melhor arranjo da arcadadentria ampliou a oferta alimentar, permitindo que os homindeos primitivos passassem de uma dietapredominantemente herbvora para uma dieta onvora. A partir destas modificaes, encontram-se nos crniosfsseis, particularmente no gnero Homo, marcante diminuio do prognatismo, bem como um aumentoprogressivo do volume craniano.

    Mesmo nos Australopithecus primitivos, desde o Australopithecus anamensis que teria vivido entre cercade 4,2 e 3,9 milhes de anos ou do Ardipithecus que teria antecedido a este em cerca de duas centenas de milharesde anos10, j possvel observar modificaes anatmicas importantes, que testemunham os caminhos evolutivos.Na anlise do crnio do Australopithecus anamensis, nota-se, apesar de seu pequeno volume, uma base cranianae um forame magno j bastante prximos do padro humano, demonstrando uma conexo entre tronco e medulae uma estrutura crnio-cervical, sede do aparelho fonador, bem prxima aos padres morfolgicos atuais.

    Fig 1. Evoluo provvel da linhagem humana e tempo provvel de aparecimento.

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    As modificaes cranianas ocorridas nos Australopithecus mais recentes, particularmente a partir doAustralopithecus afarensis, possvel ancestral do homem que viveu entre 3,6 e 2,8 milhes de anos, demonstramum crnio com propores ainda pequenas, mas j apresentando aumento de seu volume. Os importantes registrosfsseis descobertos nos stios arqueolgicos da regio leste africana apontam para uma bipedia j instituda, usoprioritrio das mos na atividade exploratria e possvel convivncia grupal. As famosas pegadas descobertasem Laetoli, Tanznia, em 197811, atribudas a um grupo de trs Australopithecus afarensis, confirmam tais hipteses.Convivendo com outras espcies de Australopithecus como o Australopithecus africanus e o Australopithecusrobustus, as quais foram extintas sem aparente continuidade evolutiva, o Australopithecus afarensis, apesar dopequeno volume enceflico, j utilizava algumas ferramentas mais primitivas e possvel que possusse rudimentosde linguagem12.

    Tais modificaes tornam-se particularmente evidentes nos primeiros ancestrais do gnero Homo, quesurgiram h de cerca de 2,5 milhes de anos (Homo habilis) evoluindo depois para as formas primitivas de Homoerectus, h aproximadamente 2 milhes de anos. Apesar de sua convivncia com outras formas de paranthropus,como o Australopithecus Boisei (h cerca de 2 a 1,6 milhes de anos), que j apresentavam algumas caractersticasfaciais que os aproximam do gnero Homo13, alteraes marcantes que ocorreram no esqueleto dos homindeos,particularmente a aquisio definitiva da postura ereta e as transformaes da estrutura craniana, proporcionaramnotvel aumento do volume cerebral caracterizando-os como uma linha evolutiva prpria. Fsseis homindeosde cerca de 1,6 milhes de anos, classificados como o Homo ergaster, primitiva forma de Homo erectus,demonstram que eles possuam crebros com volume mdio entre 900 a 1200 cm3. Portanto, bem prximo dovolume mdio de 1500 cm3 presente no homem atual12.

    Um fator a ser observado que tais modificaes cranianas, acompanhadas do crescimento da massaenceflica, principalmente fronto-tmporo-parietal, possibilitaram o fabrico de ferramentas e outros produtos daindstria paleoltica, de grande interesse ao estudo neurofisiolgico dos ancestrais do homem. O aumentosignificativo do nmero de instrumentos fabricados e sua padronizao, pelo Homo erectus, por exemplo, umfato de suma importncia ao estudo da linguagem, pois indica a hiptese de transmisso dos conhecimentos e dastcnicas de fabricao de instrumento, fato que somente possvel com a presena de uma linguagem eficiente.

    As fortes evidncias de uma origem africana comum para o homem moderno, a partir do Homo erectus,e do Homo sapiens, tm sido reforadas pelos recentes estudos genticos do mtDNA14 e das pesquisascromossomiais com o Locus CD415, indicando uma localizao africana inicial, acompanhada de uma fixaoposterior nos demais continentes. Os processos migratrios do Homo erectus em direo sia e Europa,permitiram a descoberta de inmeros artefatos fabricados por estes ancestrais, em distintos stios arqueolgicosdos trs continentes, apresentando bastante semelhana entre si16. A presena de uma indstria de armas,ferramentas e outros utenslios de uso cotidiano, obedecendo caractersticas comuns nos trs continentes emantendo-se por centenas de milhares de anos, indica um padro artesanal estvel e comprova a presena de umalinguagem transmissora de tais conhecimentos.

    A indstria de artefatos aumenta sobremaneira com o aparecimento das formas primitivas de Homosapiens, h cerca de 600 mil anos. A anlise comparativa dos registros fsseis, descobertos nos inmeros stiosarqueolgicos, demonstra sofisticada indstria paleoltica associada a domnio maior das atividades motorasmanuais e possivelmente a uma linguagem verbal e gestual j bastante adiantada. O estudo dos crnios demonstra

    Tabela 1. Relao entre os padres evolutivos e o volume cerebral correspondente nos pr-homindeos ehomindeos.

    Padro evolutivo Tempo aproximado Volume cerebral mdio Perodode surgimento

    Australopithecus 5 milhes de anos 700 cm3 Plioceno

    Homo habilis 2,5 milhes de anos 800 cm3 Pleistoceno inferior

    Homo ergaster 2 milhes de anos 1200 cm3 Pleistoceno inferior

    Homem de Neanderthal 200 mil anos 1500 cm3 Paleoltico mdio

    Homem moderno 100 mil anos 1500 cm3 Paleoltico mdio

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    a presena de estrutura morfolgica bem prxima do homem moderno. Um significativo aumento do volumecerebral ocorreu a partir do Homem de Neanderthal, antecessor imediato do homem moderno, cujo volumeatinge o padro mdio atual: cerca de 1500 cm3. Entretanto, apesar de apresentar volume semelhante ao dohomem moderno, o crnio e principalmente o crebro dos neanderthalenses possua caractersticas prprias. Nacaixa craniana, algumas diferenas anatmicas so caracterizadas por uma base mais plana17 e presena de umlabirinto sseo menor18. No crebro, estas alteraes se refletiam principalmente em menor desenvolvimento dasregies frontais anteriores, notadamente dos giros orbitrios e da rea pr-frontal, o que explicaria um aumentodas funes cognitivas como a linguagem, o pensamento abstrato e as funes de previso no Homem moderno.A Tabela 1, demonstra desenvolvimento do volume cerebral, nas vrias etapas da evoluo dos homindeos epr-homindeos.

    Ao se cruzar os dados anatmicos e sociais trazidos pelas pesquisas arqueolgicas, possvel notar queum processo lento e gradual de aumento do crnio a partir dos arcantropos proporcionou o desenvolvimentocerebral das regies frontais inferiores e ampliou o crescimento em leque das regies fronto-tmporo-parietal,fundamentais aos mecanismos da linguagem em seus aspectos verbais, gestuais e motores. Nesta evoluo, ocrescimento das regies frontais mdias, particularmente o das regies pr-centrais e dos giros frontal mdio einferior, possui importncia capital nos mecanismos de expresso da linguagem. Cabe destacar que odesenvolvimento destas regies ocorre num processo concomitante e associado, promovendo o crescimentoneural simultneo das reas de linguagem, dos centros de planejamento motor complexo (rea pr-motora emotora suplementar) e das reas motoras da mo e da face localizadas no giro pr-central, em ntimo contatoanatmico com as anteriores (Tabela 2).

    Baseadas nestas informaes filogenticas necessrio ressaltar que tanto as reas anatmicas da expressoda linguagem quanto os centros de planejamento motor e dos movimentos faciais e das mos, encontram-se emestreita associao evolutiva. Esta observao permite referendar a hiptese assinalada por antroplogos eneurofisiologistas de um desenvolvimento concomitante dos processos lingusticos e motores. E, alm disso,aponta a estreita associao funcional observada entre a linguagem verbal, a linguagem gestual e os movimentosfaciais no homem. Na espcie humana, a dissociao espontnea dos movimentos faciais durante a fala praticamente inexistente. Do mesmo modo a atividade gestual como fator auxiliar na comunicao verbal marcante. As trs formas combinadas de expresso, caracterizam a linguagem humana e fazem parte de umgrande conjunto de elementos neurais desenvolvidos pela natureza, altamente especializados e que agemconjuntamente na comunicao.

    Parte constituinte de um sistema motor refinado, a linguagem encontra-se tambm associada aos mesmospadres especializados de atividade motora que possibilitaram, dentre outros avanos, a fabricao de instrumentos.Alguns cientistas e estudiosos dos processos filogenticos da linguagem humana propem uma sintonia evolutivadas atividades de fabricao de objetos e da linguagem permitindo se supor, pela anlise da utensilagem fabricadapelos pr-homindeos, que a linguagem possivelmente j se mostrava presente, de forma rudimentar, nosarcantropos mais primitivos5.

    Pensar a linguagem falada, em ntima associao com a mmica facial e com a atividade gestual, auxiliano somente a compreenso dos mecanismos fisiolgicos da linguagem, mas tambm os seus aspectos clnicos.Essa evidncia mostra-se particularmente presente no paciente afsico. Ao se analisar os casos mais graves deafasia motora, por exemplo, nota-se o comprometimento concomitante das trs formas superiores de linguagem,levando impossibilidade ou a um grande prejuzo no ato de se comunicar voluntariamente pela linguagem

    Tabela 2. Abertura em leque das regies fronto-tmporo-parietais. Diferena evolutiva dos ngulos de aberturaobservada no primatas superiores.

    Padro evolutivo Espcie ngulo de abertura

    Macacos inferiores Macaco cololo 65o

    Macacos superiores Gorila 70

    Arcantropos Australopithecus 85o

    Paleantropos Homem de Neanderthal 90o

    Neantropo Homo sapiens 105o

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    verbal, gestual e facial. Nestes casos a comunicao limita-se aos padres emocionais, de origem lmbica,filogeneticamente mais antigos e circunscritos s expresses estereotipadas e espontneas.

    CONCLUSO

    de inegvel valor a anlise dos vetores antropolgicos e filogenticos para o estudo daneurolingustica e dos fatores funcionais a ela associados. Um melhor conhecimento das etapasevolutivas nos ancestrais do homem contemporneo, associadas s informaes trazidas pelapaleoantropologia, permitem uma viso global dos mecanismos de formao das funes superiores,notadamente a linguagem, em seus aspectos neurolingusticos. Auxilia ainda o entendimento damorfologia cerebral, sua funcionalidade e sua aplicabilidade clnica. O comprometimento globaldas formas de expresso da linguagem, observado nos pacientes portadores de afasia motoras, porexemplo, mostram as razes evolutivas da comunicao nos seres humanos e seus desdobramentosclnicos e funcionais.

    Apontando para questes importantes a serem avaliadas luz das modernas tcnicas deexplorao neurofisiolgicas, genticas e embriolgicas, os antigos e os novos elementos trazidospelo estudo multidisciplinar da linguagem ampliaro, sem dvida, o seu conhecimento e seusdesdobramentos teraputicos a serem utilizados pela medicina e reas afins. Numa cincianeurobiolgica de extrema complexidade, em que as informaes cientficas trazem questes cadavez mais amplas e aprofundadas, o auxlio de outros campos do conhecimento pode ser, muitasvezes, o elemento elucidativo, transformando o elo perdido num importante elemento de ligaona intricada cadeia do conhecimento neural.

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    ANA STERRealce