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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL ELIS FERNANDA CORRADO “O Tekoha como uma criança pequena”: uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

ELIS FERNANDA CORRADO

“O Tekoha como uma criança pequena”:

uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)

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ELIS FERNANDA CORRADO

“O Tekoha como uma criança pequena”:

uma etnografia de acampamentos Kaiowá em Dourados (MS)

Dissertação apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas como

parte dos requisitos exigidos para a

obtenção do título de Mestra em

Antropologia Social.

Orientadora: PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA RANGEL LOERA

Coorientadora: PROFA. DRA. ALINE CASTILHO CRESPE

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA PELA ALUNA ELIS

FERNANDA CORRADO, E ORIENTADA

PELA PROFA. DRA. NASHIELI CECÍLIA

RANGEL LOERA.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Mestrado, em sessão pública realizada

em 28 de novembro de 2017, considerou a candidata Elis Fernanda Corrado aprovada.

Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida e aprovada pela

Comissão Julgadora.

Profa. Dra. Nashieli Cecília Rangel Loera (orientadora)

Profa. Dra. Antonádia Monteiro Borges (UnB)

Prof. Dr. Antonio Roberto Guerreiro Junior (IFCH/Unicamp)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Julgadora, consta no processo de

vida acadêmica da aluna.

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Aos Kaiowá e Guarani

que compartilharam

comigo suas histórias de

vida e de luta.

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Agradecimentos

Os caminhos que me trouxeram até aqui têm a presença de cinco mulheres

muito fortes que foram fundamentais para minha construção enquanto pessoa e

antropóloga: minha mãe, Edenea Pinto Corrado; minha avó, Dona Nice; minha irmã,

Amanda Roberta Corrado; minha orientadora e mentora intelectual, Nashieli Rangel

Loera e Aline Crespe, que desde os tempos de graduação sempre me acolheu em

Dourados e generosamente sempre dividiu comigo sua pesquisa e seu conhecimento

sobre os Guarani e Kaiowá. Os exemplos dessas mulheres me inspiram todo os dias.

Agradeço ao meu pai, José Roberto Corrado que através do seu jeito doce e

tranquilo sempre me ajudou a me lembrar de onde vim e que conviver com a felicidade

pode ser muito mais simples do que muitas vezes pensamos.

Agradeço aos meus amigos queridos de Rincão e ao meu amigo Diogo que

nunca desistiram de mim, mesmo com todas as minhas ausências.

A querida Márcia Soares agradeço pela elaboração dos croquis e

principalmente pela nossa amizade de muitos anos.

Pela companhia, as conversas, o apoio e as pipocas compartilhadas agradeço

aos meus amigos Allan, Angelo, Luiza, Thiago, Karen e Cris. Amizades essas que me

ajudaram a enfrentar as vicissitudes da vida acadêmica.

Ao Caue, João, Vini Ribeiro, Vini Zanoli, Vini Mattos, Denise, Carla e Beto,

amigos da graduação e que agradeço por continuarem na minha vida, apesar das

distâncias.

Aos amigos de pós-graduação em especial ao Jonathan, Carol, Duvan e

Marcela.

Agradeço ao grupo de orientandxs da Prof. Dra. Nashieli Loera, pelas várias

sugestões desse trabalho e aos colegas do CERES, em especial a Luciana que esteve

comigo em diferentes fases desse trabalho.

As pessoas queridas de Dourados que me receberam de braços abertos, em

especial a Dona Durvalina, que me tratou como uma filha; a Cláudia pelos vários

almoços e risadas e ao Pedro por sua leveza de criança.

Também agradeço ao Levi Marques Pereira, Silvana, Diógenes, Lauriene,

Vander, Ellen e Marcelo e em especial ao Homero, antropólogo do MPF de Dourados,

pelas inúmeras orientações.

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Ao Instituto de Filosofia de Ciência Humanos e ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social pelas oportunidades oferecidas e a todos os

professores que sempre contribuíram com a minha formação.

A banca de qualificação, Antonio Guerreiro e José Manuel pelos comentários

e contribuições valiosas.

Agradeço a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo) e a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela

bolsa de mestrado concedida, número de processo 2015/06850-1.

E, por fim, agradeço especialmente a todos os Kaiowá e Guarani que me

receberam e tornaram esse trabalho possível, em especial a Vice-liderança do Tekoha 2, a

Liderança do Tekoha 1 e a Liderança do Tekoha 2.

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Nunca saí daqui, este é meu chão... não

deixo esta terra... vou morrer por aqui

mesmo, aqui nesta região... Sou kaiowá e

índio kaiowá gosta muito de ter família

por perto... queremos ter todos em volta,

morando sempre juntinhos... eh!... a vida

de um é a vida de outro... só deixo esta

terrinha quando Deus me chamar, quando

a minha fala não sair mais, quando ela

morrer...

(...)

Somos filhos de Ñhanderú e Ñhandesi e

Ñhanderamoue é nosso protetor... é o

protetor da mata... kaiowá quer dizer filho

da floresta, da madeira, da mata... kaiowá

é a natureza... protegido de

Ñhanderamoe... em guarani a gente fala

txe-dja-ri...

Capitão Ireno

Canto de Morte Kaiowá

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Resumo

Desde os anos 1990, as ocupações de terra e montagem de acampamentos conhecidos

como “de lona preta” se tornaram uma das formas de demandar desapropriação e

distribuição de terra ao Estado brasileiro. Nos últimos 30 anos, esta forma de

reivindicação havia sido associada a trabalhadores rurais sem-terra. No entanto, indígenas

Kaiowá da região de Dourados, no sul do Mato Grosso do Sul, também têm se utilizado

dessa linguagem de demanda para reivindicar terras consideradas por eles como tekoha,

isto é, como seus territórios ou espaços de vida tradicionais. Essa dissertação pretende

refletir sobre as características dessa “linguagem” simbólica entre os Kaiowá e Guarani, e

a partir da etnografia de dois acampamentos indígenas: Tekoha 1 e Tekoha 2, localizados

no município de Dourados/MS, explorar os sentidos das áreas de retomadas para eles.

Nessa perspectiva dois temas se tornaram essenciais: os sentidos de terra para os Kaiowá

e Guarani e seus modos de mobilidade, como fundamental para manutenção e reprodução

de novos acampamentos.

Palavras-chaves: sociabilidade; territorialidade; acampamentos indígenas; modos de

mobilidade; Kaiowá e Guarani.

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Abstract

Since the 1990s, the land occupations and the establishment of encampments, known as

"black canvas", have become one of the ways to claim land expropriation and

redistribution to the Brazilian state. Over the last 30 years, this form of claim has been

associated to landless rural workers. However, the indigenous Kaiowá, in the region of

Dourados in Mato Grosso do Sul state, have also been using this language of demanding

to claim land they consider to be Tekoha, that is, their traditional life territory or spaces.

The aim of this dissertation is to analyse the features of such symbolic language among

the Kaiowá and, from an ethnography of two Kaiowá’s encampments, Tekoha 1 e Tekoha

2, located in the city of Dourados in Mato Grosso do Sul state, to comprehend the

different meanings that the Kaiowá ascribe to the claimed lands. From such perspective,

two topics become essential: the meanings of land to the Kaiowá and Guarani and their

ways of mobility, crucial for the preservation and reproduction of new encampments.

Key Words: Sociability; Territoriality; Indigenous Encampments; Ways of Mobility;

Kaiowá and Guarani.

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Lista de Tabelas

Tabela 1: Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928. ......................................................... 38

Tabela 2: Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031. .............. 40

Tabela 3: Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive áreas em

estudo......................................................................................................................................... 49

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Lista de ilustrações

Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.

........................................................................................................................................................ 18

Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016,

48). ................................................................................................................................................. 34

Figura 3. Croqui 1 - Tekoha 1, junho de 2011 ................................................................................ 63

Figura 4. Croqui 2 - Tekoha 1, janeiro de 2012 .............................................................................. 64

Figura 5. Roça de um morador. Foto: CORRADO, 2016. ............................................................... 66

Figura 6. Roça de um casal de moradores. Foto: CORRADO, 2016 ................................................ 66

Figura 7. Croqui 3 - Tekoha 1, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa

etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia

Soares. ............................................................................................................................................ 68

Figura 8. Reprodução do desenho da liderança ............................................................................. 69

Figura 9. Croqui 4: Tekoha 2, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa

etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia

Soares. ............................................................................................................................................ 81

Figura 10. Dia de reunião no Tekoha 2. Foto: CORRADO, 2016. .................................................... 84

Figura 11. Ao futuro das crianças. Foto: CORRADO, 2016. ............................................................ 95

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Lista de abreviaturas e siglas

CAND: Colônia Agrícola Nacional de Dourados

CIMI: Conselho Indígena Missionário

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

CPT: Comissão Pastoral da Terra

FAF: Federação da Agricultura Familiar

FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FUNAI: Fundação Nacional do Índio

IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICP: Inquérito Civil Público

INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MPF: Ministério Público Federal

MS: Mato Grosso do Sul

MST: Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

NERA: Núcleo de estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária

OIT: Organização Internacional do Trabalho

PEC: Projeto de Emenda Constitucional

SPI: Serviço de Proteção ao Índio

RJ: Rio de Janeiro

SESAI: Secretaria Especial da Saúde Indígena

TAC: Termo de Ajustamento de Conduta

TI: Terra Indígena

UFGD: Universidade Federal da Grande Dourados

UPA: Unidades de Pronto Atendimento

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Sumário

Apresentação ..................................................................................................................... 16

Introdução: As direções não previstas ............................................................................... 19

Capítulo I - A espiral das retomadas: contextualizando os acampamentos indígenas na

região sul de Mato Grosso do Sul. ..................................................................................... 31

1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do Mato

Grosso do Sul ................................................................................................................ 32

1.2 A vida na aldeia antiga .......................................................................................... 36

1.3 A espiral das retomadas indígenas: vai fazendo a cabeça .................................. 41

Variações da “forma acampamento” .......................................................................... 44

As fases do acampamento .......................................................................................... 53

Capítulo II - “A gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para sair” ................... 56

2.1 Tekoha 1 – O acampamento que sempre foi tekoha ........................................... 56

Não aceita mais pessoa que não é aparentada ............................................................ 64

Não é muito nem é mais ............................................................................................. 69

A vila tá vindo, chegando a cada ano ........................................................................ 71

2.2 O Tekoha 2: um barraco colado no outro ........................................................... 78

A reunião da comunidade .......................................................................................... 83

A História da retomada .............................................................................................. 87

Sabia falar bem, sabia das coisas .............................................................................. 88

Capítulo III - “Uma retomada é uma criança pequena”: Os sentidos dos acampamentos

para os Kaiowá e Guarani. ................................................................................................. 94

3.1 A terra como corpo ................................................................................................ 95

Índio igual [formiga] lava-pé, só mora eles, não tem um pretinho no meio ........... 103

3.2 ‘igual maribondo’: circulação e modalidades de perambular ......................... 108

Andar igual marimbondo ......................................................................................... 111

Andanças pela vizinhança ........................................................................................ 116

Considerações Finais ....................................................................................................... 120

Bibliografia ...................................................................................................................... 123

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Anexos ............................................................................................................................. 129

Glossário ..................................................................................................................... 129

Sessão Fotográfica ...................................................................................................... 130

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Apresentação

Em uma ocasião, nos meus primeiros trabalhos de campo, ainda como aluna

de graduação, me disseram que quem conhece os Kaiowá uma vez, sempre acaba

voltando para reencontrá-los. Essas palavras carregavam as experiências de outros

pesquisadores e soaram como brincadeira para uma jovem estudante. No entanto, elas

acabaram se profetizando. Este trabalho é o reflexo de algumas, várias idas e voltas ao

Mato Grosso do Sul e de encontros e reencontros com os Kaiowá e Guarani, da região de

Dourados.

Esta história tem início a partir da pesquisa que começou no ano de 2011,

como uma Iniciação Científica, integrante do projeto Jovem Pesquisador, intitulado As

Formas Acampamentos (2010 – 2015), coordenado pela professora Dra. Nashieli Loera

com financiamento da Fapesp1. O projeto de Iniciação Científica De índios a sem-terra:

variações da forma acampamento, surgiu da inquietação da pesquisadora ao tomar

conhecimento da existência de grupos de índios Kaiowá que viviam em acampamentos

de lona preta no Mato Grosso do Sul (doravante MS), bem como das informações do

Nera2, que havia contabilizado mobilizações a nível nacional e identificado retomadas

indígenas e principalmente acampamentos Kaiowá, como o grupo que ocupava a quinta

posição em mobilizações por terra.

Um dos principais objetivos desse projeto, que comecei a realizar quando

cursava o terceiro ano de graduação no curso de Ciências Sociais da Unicamp, era refletir

sobre a “forma acampamento” como linguagem simbólica de demanda coletiva tendo

como lócus empírico os acampamentos indígenas. Nesse sentindo, ao iniciar a pesquisa

em 2011, minha primeira atividade foi me familiarizar a bibliografia que tratava da

temática do mundo das ocupações de terra.

Outro objetivo da iniciação era fazer um mapeamento de temas e textos que

colocavam em discussão a existência de fronteiras entre campos de estudos

aparentemente diferenciados, como os Estudos Rurais e Etnologia Indígena, por isso, a

bibliografia inicial também foi dedicada a esse assunto. Refletir sobre a permeabilidade

desses dois campos de estudos possibilitou entender um antigo debate nas ciências

sociais, no Brasil, e reatualizar o diálogo a partir de um caso empírico. Essa experiência

se mostrou profícua e por isso essa perspectiva se estende também ao trabalho de

mestrado.

1 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 2 Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – Unesp, Presidente Prudente.

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Outra atividade a qual me debrucei foram as leituras dos trabalhos de Lévi

Marques Pereira (2003, 2004, 2007) e Aline Crespe (2009), um dos primeiros

antropólogos a escreverem sobre os acampamentos Guarani e Kaiowá. Essas leituras me

introduziram na problemática dos acampamentos indígenas no MS.

A escolha pelos acampamentos como lócus etnográficos desta pesquisa foi

delimitada após o primeiro trabalho de campo, que colocou a equipe do projeto As

Formas de Acampamento mais próxima da realidade vivenciada pelos indígenas e

pesquisadores da região sul do MS.

A colaboração com pesquisadores da UFGD (Universidade Federal da

Grande Dourados) nos ajudou a delimitar os acampamentos que seriam o lócus da

pesquisa etnográfica. Nesse sentindo, e com o auxílio da Profa. Dra. Aline Crespe,

coorientadora deste trabalho - fez parte da equipe Jovem pesquisador e realizou pesquisa

na região - os acampamentos escolhidos foram: Tekoha 13 e Apyka’i. O primeiro por ser

um acampamento com o qual os pesquisadores da UFGD já tinham contato e por estar

localizado em uma área na qual se tinha uma relação “tranquila” com o proprietário da

terra. Num contexto de extrema violência contra as populações Kaiowá e Guarani, esse

local se tornava mais seguro para a realização do trabalho de campo. E o segundo por ser

um acampamento que, na época, reproduzia uma configuração particular com poucos

barracos e contato cotidiano com um acampamento de sem-terra próximo, organizado

pela Federação da Agricultura Familiar – FAF, ambos montados na beira da estrada, e

muito próximos de bairros considerados como à “periferia” da cidade de Dourados.

Foi nesse primeiro campo também que iniciamos o diálogo com setores do

estado, como a Fundação Nacional do Índio (doravante Funai) e o Ministério Público

Federal (doravante MPF), e com o Conselho Indígena Missionário (doravante CIMI4). As

visitas de campo seguintes ajudaram a aproximar as relações com esses múltiplos

interlocutores, relação essa necessária para compreender todos os aspectos que envolvem

a situação dos acampamentos indígenas na região.

Durante a iniciação o foco principal da pesquisa foi a organização social dos

acampamentos e para isso também foram realizadas pesquisas de documentos na regional

da Funai de Dourados. Essas pesquisas, juntamente com os dados etnográficos levantados

nos acampamentos, possibilitaram criar mapas de mobilidades das famílias guarani e

kaiowá com o objetivo de traçar relações entre os acampamentos. A questão sobre a

3 Irei chamar de Tekoha 1 e Tekoha 2 as duas áreas que foram foco da pesquisa etnográfica dessa pesquisa. 4 Organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, criado em 1972.

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mobilidade dos acampados, que surgiu nos últimos anos da pesquisa de iniciação foi um

dos temas que ganhou destaque no mestrado, pois se mostrou sociologicamente relevante

para entender a manutenção e formação de novos acampamentos indígenas.

Fazer parte de um grupo de pesquisa durante a graduação e a realização de

trabalhos de campos coletivos - como era uma das propostas do projeto As formas de

Acampamento - possibilitou também conhecer os acampamentos organizados por sem-

terra e por indígenas Guarani Mbyá no estado de São Paulo. Esse trabalho coletivo foi

fundamental para minha formação enquanto aluna e pesquisadora.

A dissertação de mestrado pretende desenvolver os desdobramentos

etnográficos e analíticos surgidos a partir da pesquisa anterior de iniciação, ainda que a

preocupação antropológica inicial se mantenha: a de refletir acerca dos sentidos que meus

interlocutores Kaiowá e Guarani conferem aos acampamentos e os efeitos que têm nas

suas vidas. Desta maneira dedico este trabalho a eles, pois, seis anos transcorrido da

minha primeira visita aos Kaiowá e Guarani, talvez tenha entendido a frase que inicia

essa introdução. Foi na relação de cativar e de se deixar cativar por eles5, por suas

histórias de vidas e por suas lutas cotidianas, que permanece o desejo das voltas e dos

reencontros.

Figura 1. Aty Guasu, agosto de 2011. 6 Fonte: Arquivo fotográfico “As formas de acampamentos”.

5 Referência ao livro O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, em que cativar é descrito como o ato pelo qual

criam-se laços e nos tornam responsáveis por aqueles que cativamos. 6 Essa foto foi tirada na primeira Aty Gassu que estive presente, realizada no Tekoha Passo Piraju (Dourados - MS) em

agosto de 2011, a pedido de Faride (ao meio), uma das lideranças do Tekoha Laranjeira Ñanderu, a quem tive a

oportunidade de reencontrar em junho de 2016. Ao lado esquerdo está o antropólogo kaiowá Tonico Benites.

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Introdução:

As direções não previstas

“Nunca somos no campo uma pessoa clara, resolvida. A memória

das construções de outros, de pessoas de uma difícil decifração, como

nós somos sempre, precisa, entre os atores e as culturas, realizar às

avessas, em direção convergente e contrária à nossa própria

investigação, uma outra, através da qual uma certeira antropologia

ingênua – a deles sobre nós e nosso mundo - elabora e redesenha a

nossa identidade (1998, 192).

Carlos Brandão em Memória Sertão (1998)

As Questões

O projeto de mestrado, Índios de lona preta: uma etnografia de

acampamentos Kaiowá em Dourados (MS), partiu de duas questões principais: os

significados que os acampamentos têm para os Guarani e Kaiowá, e, a segunda, sua

relação com seus modos de mobilidade como fundamental na formação de novos

acampamentos. Assim, o objetivo inicial era mapear a circulação e a mobilidade dos

Kaiowá e Guarani entre os acampamentos e as reservas da região, a fim de avaliar o

rendimento etnográfico e teórico de se pensar esses acampamentos como mais uma

alternativa de mobilidade, onde as teias de relações de parentesco e de aliança se

ampliam, e se produzem e reproduzem formas de socialidades específicas.

Estas questões têm ainda, como pano de fundo, refletir os acampamentos

indígenas como parte de uma linguagem simbólica de demandas sociais coletivas e,

quando se mostrou pertinente, a aproximação do diálogo entre Estudos Rurais e Etnologia

Indígena; temáticas essas que perpassam o trabalho como um todo. Analiticamente

busca-se relacionar a forma social e a linguagem dos acampamentos às concepções e aos

sentidos Kaiowá e Guarani de terra e de mobilidade.

A perspectiva de considerar os acampamentos e as retomadas Guarani e

Kaiowá como uma linguagem simbólica, vem do modelo de análise, proposto por Lygia

Sigaud (2000), da “forma acampamento”, como uma linguagem simbólica para

reivindicar benefícios ao Estado. Sigaud, ao estudar as ocupações de terra em

Pernambuco, apresenta a lona preta e a montagem dos barracos como um dos símbolos da

demanda por terra, e, por sua vez, como o conjunto dos elementos acionados nessas

reivindicações tornou-se uma linguagem que é entendida tanto pelos acampados, pelos

participantes dos movimentos sem-terra e por membros do Estado.

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Autores como Marcelo Macedo (2005), Nashieli Loera (2006, 2014) e

Marcelo Rosa (2009), também se utilizaram da proposta da “forma acampamento” ao

descrevem, em diferentes contextos etnográficos, como a ocupação de terras e a

montagem de acampamentos se tornou uma linguagem legítima para demandar a reforma

agrária ao Estado brasileiro. Este é o referencial que me motivou a buscar os elementos

da “forma acampamento” dos Guarani e Kaiowá, onde as retomadas de terras se

configuram como um dos símbolos principais na reivindicação dos territórios tradicionais

desse povo. Além disso, essa abordagem permite traçar tanto, aproximações como

distinções entre a linguagem comumente adotada pelos movimentos sem-terra, e a que

está sendo adotada pelos Guarani e Kaiowá. No entanto, se a forma de organização

desses movimentos, muitas vezes podem se assemelhar, o mesmo não se pode dizer dos

sentidos que os acampamentos têm para esses atores, pois os sentidos são muito mais

variáveis e, como irei mostrar no decorrer deste trabalho, podem nos levar para diferentes

lugares.

Portanto, embora descrever os acampamentos Guarani e Kaiowá como

linguagem, seja parte constitutiva desse trabalho, é ao explorar os sentidos que esses

espaços têm para os meus interlocutores que consigo avistar as contribuições mais

significativas dessa pesquisa. Assim, refletir sobre os sentidos das áreas de retomadas se

transformou no eixo distintivo desse trabalho.

Todavia, este trabalho também passa a ter um sentido para os meus

interlocutores. Para a liderança do Tekoha 1, esta dissertação é como um documento que

conta a sua luta e a luta da sua família pelo tekoha. Quando comentei que poderia

suprimir o nome da vice-liderança do Tekoha 2 na dissertação, para preservar sua

identidade, ela me respondeu: “mas aí ninguém vai saber da minha luta”7. No entanto,

considerando o contexto atual de extrema violência vivenciado pelos Guarani e Kaiowá:

segundo o relatório da CPT sobre Conflito no Campo Brasil 2016, no MS houveram dez

tentativas de assassinatos8, cinco ameaças de mortes e um assassinato9, todos de índios ou

lideranças indígenas vivendo em áreas de retomada. Frente a esse cenário atroz e por se

tratar da versão final da dissertação, a banca de defesa em conjunto com minha

7 As frases ditas pelos meus interlocutores serão destacadas em itálico e acrescidas de aspas e as palavras

em itálico fazem referências aos termos nativos. 8 O MS é o terceiro estado com mais tentativas de assassinatos. 9 O assassinato foi de Clodiodi Souza que aconteceu em junho de 2016, quando pistoleiros atacaram o

Tekoha Guapoy, no município de Caarapó, esse ataque deixou mais seis índios feridos a bala e no mês de

junho um novo ataque foi perpetrado deixando mais três indígenas baleados. Esses ataques passaram a ser

conhecidos como o “Massacre de Caarapó”.

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orientadora aconselharam em deixar os nomes das áreas e dos meus interlocutores no

anonimato, para preservar sua segurança. Assim, embora fosse o desejo dos meus

interlocutores manter seus nomes e os nomes dos tekoha originais, a necessidade de

omiti-los também é uma tentativa de visibilizar o quão violento e o quão violentado são

os Guarani e Kaiowá no MS.

***

Os primeiros passos da pesquisa tiveram início com um levantamento

bibliográfico levando em consideração produções clássicas sobre os Guarani, trabalhos

mais específicos sobre os Kaiowá e a questão territorial, sobre o processo histórico do

MS e produções dos estudos rurais que dialogam com o meu tema de pesquisa, bem

como um levantamento de textos e artigos atuais que discutem a questão dos Guarani e

Kaiowá no sul do estado. Fiz igualmente, um levantamento de trabalhos, principalmente

da etnologia indígena que tratam sobre: a mobilidade, o parentesco, as trocas e a

cosmologia Kaiowá e Guarani.

Especificamente sobre os Kaiowá e a questão dos acampamentos indígenas é

importante destacar trabalhos como de Aline Crespe, “Mobilidade e temporalidade

Kaiowá: do tekoha à reserva. Do tekoharã ao tekoha” (2015), referência central, uma vez

que mobiliza as categorias de mobilidade entre os Kaiowá, analisadas também a partir da

situação das reservas e do movimento de retomada. Outros trabalhos sobre mobilidade

Kaiowá relevantes, é a tese “Mais além da “aldeia”: território e redes sociais entre os

Guarani de Mato Grosso do Sul” (2007) de Alexandra Barbosa da Silva que questiona o

conceito utilizado por Brand (1993, 1997) de “confinamento”. Segundo a antropóloga, a

noção de “confinamento” deixa de considerar a dinâmica de circulação dos indígenas,

como se o processo de territorialização fosse feito apenas pela ação do Estado. Assim, a

proposta da autora é focar nas redes de relações, através da trajetória de famílias extensas

e não no local que os índios estão.

Ao trabalhar com diferentes fontes documentais, o livro de Graciela

Chamorro, História Kaiowa. Das origens aos desafios contemporâneos (2015), faz um

recuo no tempo até os séculos XVI e XVII para contar a história dos Kaiowá, relatando

suas práticas culturais, o processo de aldeamento até chegar ao movimento de retomada.

Além disso, traz dados recentes sobre os números de acampamentos indígenas na região

das cidades de Dourados e Ponta Porã, ajudando assim no mapeamento dos

acampamentos.

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Ademais do levantamento bibliográfico, também foi feita uma busca por

notícias em jornais online que tratassem especificamente sobre a situação dos

acampamentos indígenas, principalmente aqueles que se localizam na região da cidade de

Dourados. Outro importante levantamento realizado foram os dados sobre os conflitos de

terras compilados em relatórios produzidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e que

estão disponibilizados online10. Nesse levantamento alguns acampamentos indígenas

foram citados.

É importante considerar que esses primeiros elementos da construção

metodológica do trabalho da pesquisa, bem como a formação, que inclui disciplinas

cursadas, levantamento bibliográfico são as fases da pesquisa das quais temos mais

“controle”, e muitas vezes antecedem o trabalho de campo. Se até aqui tudo pode ser

descrito como numa linha contínua, o trabalho de campo, por sua vez, obedece a uma

lógica própria, da qual você só ‘dá conta’ parcialmente, pois é justamente o campo que

nos leva por caminhos inusitados e por direções não previstas, inicialmente não pensadas

no projeto, e muitas vezes nos faz repensar e redefinir nossos objetivos e lócus da

pesquisa.

O campo e seus imponderáveis

Se a mobilidade dos meus interlocutores era uma questão presente no projeto

inicial, pensar sobre a minha mobilidade se tornou uma questão que surgiu durante o

trabalho de campo. Como chegar aos acampamentos numa região de confrontos

cotidianos entre indígenas e fazendeiros e na qual não é fácil, e pode resultar até arriscado

estar sozinha em campo, se tornou uma questão nada banal, e de fato foi um dos motivos

que me levaram a mudar o lócus de um dos acampamentos para outro. No projeto inicial,

as áreas indicadas para realização da pesquisa de campo eram os acampamentos Tekoha 1

e Apica’y. Essa escolha pretendia dar continuidade aos contatos e campos anteriormente

realizados que reunia um material etnográfico importante. O acampamento Apica’y se

localizava na margem da BR 455 (que liga Dourados a Ponta Porã) e em 2014 o grupo,

liderado por Dona Damiana realizaram uma retomada e passaram ocupar uma área

localizada dentro da Fazenda São Fernando11.

A dificuldade de circular por esse acampamento, e a preocupação com a

minha segurança em campo fizeram com que começasse contatos em outro

10 Fonte: http://www.cptnacional.org.br/ 11 Dona Damiana, liderança do Apica’y, e mais oito famílias que ocupavam uma parte da Fazenda São

Fernando, foram despejados da área no dia 06 de julho de 2016.

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acampamento. A minha coorientadora, Aline Crespe, me sugeriu trabalhar no Tekoha 2,

um outro acampamento também próximo da área urbana, o que facilitaria minha

circulação, além disso, ele também fica ao lado da reserva e próximo a outro

acampamento indígena conhecido como Tekoha 3.

Do mesmo modo, foi notável o interesse e a preocupação com que os

moradores dos acampamentos passaram a ter com a minha mobilidade, desde a minha

primeira visita sozinha as áreas12. Minha ida a Dourados, igualmente, foi motivo de

interesse e especulação por parte dos Guarani e Kaiowá, principalmente no início do

campo. Quando as pessoas descobriam que eu não era de Dourados, logo mostravam

interesse em saber de onde vinha, qual era a distância de Campinas a Dourados, quanto

tempo eu demorei para chegar, se tinha ido de ônibus, carro ou avião, se a viagem tinha

sido cansativa. Ao chegar aos acampamentos sozinha, eles também sempre me

perguntavam como eu tinha ido da cidade até lá. Quando falava que havia conseguido

uma carona até as proximidades eles se alegravam e faziam comentários do tipo: “que

bom que conseguiu uma carona”.

A esse respeito é relevante pontuar que, na maioria das vezes, minha

circulação por essas áreas se deu caminhando, eu chegava aos acampamentos a pé,

diferentemente da maioria dos pesquisadores e funcionários do estado, por exemplo, que

utilizam carro. Essa minha forma de acessar os acampamentos, a pé, colocou um “certo

dilema classificatório” aos meus interlocutores (COMERFORD, 2003), uma vez que eu

não me encaixava no perfil de visitantes vindo das universidades, ou de alguma outra

entidade do Estado. Ao mesmo tempo, esta forma de chegar, também me aproximou

deles, pois caminhar a pé e pegar carona é uma das formas mais corriqueiras dos Kaiowá

e Guarani para irem às cidades e visitarem seus parentes. Comerford, em sua pesquisa

sobre os sindicatos rurais, do mesmo modo chamou atenção para o “dilema

classificatório” ao analisar como o “caminhar a pé”, na sua entrada em campo, na zona

rural da Zona da Mata de Minas Gerais, alterou a percepção dos seus interlocutores, que

antes o viam como um integrante do sindicato (aqueles que estão sempre circulando de

carro) para alguém que se busca aproximar e até se aparentar.

12 Minha primeira ida aos Tekoha 1 e Tekoha 2 foi acompanhada por minha coorientadora, Aline Crespe,

que já havia trabalhado em os ambos acampamentos. Nessa primeira visita fui apresentada as lideranças, no

caso do Tekoha 1, já conhecia a liderança, o que facilitava esse primeiro contato. Falei sobre a pesquisa de

mestrado e sobre o consentimento deles em realizá-la. As duas lideranças consentiram e mostraram

interesse pela pesquisa, apenas ressaltando que eu precisaria informá-los sempre das minhas idas, essas

também seriam pautadas na disponibilidade das lideranças em me receberem.

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Em campo, muitos cuidados e preocupações foram dirigidos ao meu caminhar

a pé. Ao deixar os acampamentos, por exemplo, principalmente a vice-liderança do

Tekoha 2, fazia questão que sua filha me acompanhasse pela estrada de terra que levava

até a rodovia, bem próximo ao Bairro 3, ela mesma me acompanhou uma vez. Em visita a

família de um morador do Tekoha 2, sua esposa também fez questão que ele me

acompanhasse pela estrada de terra. A liderança do Tekoha 1, por sua vez, em uma das

nossas conversas me dizia que ele avisará os moradores do tekoha que eu os visitaria por

um tempo e que não era para ninguém mexer comigo e assim, sempre que eu chegasse ao

Tekoha 1 poderia ficar tranquila pois estaria segura. Quando passei a frequentar o Tekoha

2 com uma amiga, também antropóloga, as lideranças comentavam como era bom eu ter

arrumado uma companhia. Todos esses gestos de cuidados e interesse pela forma de

como chegava e deixava os acampamentos, além de refletir a preocupação com a minha

segurança, diante do cenário de conflito que vivenciam cotidianamente, dizia também

sobre a sociabilidade Kaiowá e Guarani.

***

De modo geral, para a pesquisa do mestrado, o trabalho de campo foi

realizado de janeiro a maio de 2016. Durante esse período me mudei para a cidade de

Dourados e assim pude frequentar cotidianamente os Tekoha 1 e Tekoha 2 e realizar um

levantamento de documentos na regional da Funai de Dourados, no MPF e na Secretaria

Especial da Saúde Indígena (SESAI).

Mas se a escrita consegue condensar resumidamente o que foi o campo, a

pesquisa etnográfica, por outro lado, pertence ao domínio dos “imponderáveis”, pois é

com a vida real que nos defrontamos e não com os nossos cronogramas de projeto, que,

de tão sincrônicos que os construímos, parece até nos trazer alento. Enquanto meu

cronograma previa que o período do trabalho de campo, inicialmente terminaria em

março, eu acabei ficando mais um mês e meio, pois como minha coorientadora já me

alertará, o campo com os Kaiowá e Guarani não acontece quando nós queremos, mas sim

quando eles querem.

Além disso, outros antropólogos, interlocutores fundamentais no meu

trabalho, como Lévi Pereira, me chamavam a atenção sobre como os Kaiowá são

desconfiados tendo também uma temporalidade própria para estabelecer relações de

confiança. Ficava claro, que o tempo da pesquisa e o tempo dos meus interlocutores não

era o mesmo, com certeza. Lidar com as expectativas do que será o campo – no início

imaginava que estaria todos os dias nos acampamentos, mas prontamente os Kaiowá me

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mostraram que não funcionava bem assim - e de como o campo realmente se mostra,

leva, muitas vezes, o pesquisador a ficar apreensivo e ansioso, é quando o sentimento de

desânimo invade. E não foi diferente comigo. A esse respeito, Malinowski (1922) já

havia escrito como o trabalho etnográfico passa por momentos de desânimo e muitas

vezes por “sentimentos de desespero e desalento” (1922, 23).

No entanto, fui percebendo que meu campo estava sendo o tempo todo e não

acontecia apenas quando visitava as áreas de retomadas. Assim, me atentei mais aos

diálogos com amigos e pesquisadores, a relação com a cidade, com a Funai e MPF e com

interlocutores das universidades.

Por outro lado, aprenderá também a importância de cada uma das visitas

realizadas nas áreas de retomada. As lideranças indígenas e os seus parentes foram as

pessoas com quem eu tive mais contato em campo, toda vez que visitava a liderança do

Tekoha 1, e a vice-liderança do Tekoha 2, essas idas se transformavam sempre numa

nova chegada.

O conflito

Como mencionei antes, as escolhas pelas áreas trabalhadas, em diferentes

etapas da pesquisa, sempre levaram em conta a questão do conflito e da violência

intrínseca a ele. Essa preocupação, não apenas minha, mas, de amigos, de pesquisadores,

de funcionários da FUNAI e do MPF, bem como dos Kaiowá e Guarani me

acompanharam em campo e chegavam até a mim na forma de orientações e pedidos de

cautela. Recordo uma vez, no final de fevereiro de 2016, logo após uma ocupação

indígena nas proximidades do Tekoha 2, em que uma funcionária da Funai entrará em

contato comigo pedindo para que naquela semana eu evitasse ir ao acampamento, pois

como o clima estava tenso por causa da nova ocupação, uma pessoa estranha, não

indígena, circulando nas proximidades seria um tanto perigoso.

No entanto, o conflito não se dava apenas em relação às escolhas pelas áreas

trabalhadas, ou no adiamento de uma visita, por exemplo. O conflito está sempre presente

e tem efeitos na vida dos Kaiowá e Guarani, bem como das pessoas que se encontram

trabalhando ou pesquisando com eles.

No meu caso, não foram poucas vezes que senti medo, mesmo sem um

motivo aparente. Esse medo vinha sempre quando estava a caminho dos acampamentos:

achava que alguém podia me parar e perguntar o que estava fazendo por aquelas regiões.

Mesmo andando pela cidade, as vezes acreditava que alguém estava me observando, ou,

se um carro se aproximasse, pensava que poderia ser alguém que ficou sabendo que eu

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estava frequentando os acampamentos Guarani e Kaiowá. Esse relato pode parecer

estranho para as pessoas que não conhecem o contexto do MS, acontece que o conflito

entre indígenas e proprietários de terras reverbera nas cidades, nos espaços públicos e

privados. Um exemplo concreto disso pode ser expresso nos acontecimentos que se

iniciaram no fim de fevereiro de 2016 em Dourados, quando aconteceu uma retomada ao

lado do Bairro 3, bem próximo ao Tekoha 2 e ao Tekoha 313. A retomada, que semanas

depois foi desfeita, parece, por outro lado, ter disparado outras retomadas por áreas

próximas, que ficam ao lado do Tekoha 3, nas proximidades com a Reserva de Dourados.

A primeira, aconteceu num sábado, no dia 05 de março de 2016. Essas novas retomadas

causaram um furor na cidade, pois os indígenas ocuparam uma região de chácaras e os

proprietários ficaram muito preocupados e nervosos com a ação dos índios.

Com as retomadas ocorrendo o clima na cidade ficou mais tenso14. Muitas

pessoas falavam sobre o assunto, e faziam comentários de que haveria enfrentamento

entre os proprietários e os indígenas. Nas semanas seguintes às retomadas era frequente

aparecerem algumas notícias nos jornais locais falando das novas ocupações, havia, por

exemplo, uma notícia sobre uma senhora que abandou sua chácara com medo do

conflito15. Nas notícias sempre era relatado o fato dos índios estarem nervosos e armados

com facões e enxadas e, por isso, foram pedidos reforços policiais. Mas, na cidade,

também ouvíamos que os chacareiros estavam revoltados com as ocupações e que

estavam se armando para expulsar os indígenas de suas terras16. O temor do acirramento

do conflito se concretizou no dia 12 de março, quando um indígena foi baleado num

confronto com fazendeiros em uma das áreas recém retomadas17.

É comum, entre os moradores da cidade, principalmente daqueles contrários às

retomadas, a reprodução de um discurso que enfatiza uma legitimidade da manutenção da

13 A retomada citada é a mesma que me referi, quando a funcionária da FUNAI me alertou para não ir a

campo, naquele período, por causa do clima de tensão instaurado com a retomada. 14 Como venho apresentando, o clima de tensão, vivenciado pelos meus interlocutores é algo cotidiano,

mas, determinados acontecimentos, como novas retomadas, ou atentados aos acampamentos Guarani e

Kaiowá, parecem intensificar a tensão e o conflito. 15 http://www.folhadedourados.com.br/noticias/dourados/indiosocupamsitioedeixaproprietariaassustada 16 Seguem alguns títulos de notícias que circularam na época:

- PF investiga conflito indígena em Dourados – Jornal o Progresso

http://www.progresso.com.br/policia/pfinvestigaconflitoindigenaemdourados

- Clima é tenso em área invadida por índios e polícia teme conflito – Dourados News

http://www.douradosnews.com.br/dourados/climaetensoemareainvadidaporindiosepoliciatemeconflito

- Tensão toma conta em região invadida por famílias indígenas – Dourados News

http://www.douradosnews.com.br/dourados/tensaotomacontadeareainvadidaporindigenasepoliciaeacionada

ateolocal 17 Indígena é baleado em área de conflito em Dourados - MS Notícias

http://www.msnoticias.com.br/editorias/interior-mato-grosso-sul/indigena-e-baleado-em-area-de-conflito-

em-dourados/66218/

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terra por parte dos proprietários, alvo das retomadas, pelo trabalho realizado na

propriedade, sendo muitas vezes, fonte de renda. Esse discurso, ao mesmo tempo é uma

forma de deslegitimar as ocupações e os acampamentos indígenas, vistos pela maioria

como de “desocupados”. Ao discutir o conceito de terra, tendo como pano de fundo os

sem-terra, Borges (2014) mostra exatamente, como a terra é fundamentalmente pensada

enquanto propriedade privada, fortalecida pelo discurso da produtividade e, ainda

acrescenta, que no Brasil, como em outros países, está concepção de terra é intimamente

ligada ao passado colonial, e expressa a relação de poder entre os que tem a propriedade

de um lado, e por outro, os que tem a posse ou, na maioria dos casos, nem isso. Por outro

lado, pontua como, no cenário brasileiro, as reivindicações indígenas aparecem na

contramão do discurso da propriedade, chamando a atenção para outros conceitos, outras

formas de pensar e agir referente a terra.

Em momentos de intensos conflitos como esses, não é difícil que

antropólogos que já realizaram pesquisas ou laudos antropológicos entre os Guarani e

Kaiowá, sejam identificados, pelo senso comum, como articuladores e incitadores das

retomadas no MS. Como vimos recentemente pela CPI do INCRA e da FUNAI 18, e a

PEC 215, junto com o marco temporal19, muitas vezes, esse senso comum, tomado como

base de um processo jurídico, tem implicações e afeta a vida dessas pessoas, que por sua

vez, também se veem vivenciando um clima de insegurança constante e, às vezes, de

ameaças, como é o caso de colegas que residem no estado de MS20.

Para os Guarani e Kaiowá a violência marca seu o cotidiano. Seja através de

ameaças, atentados, assassinatos, ou aparece de maneira não tão direta, como o problema

do alcoolismo, o preconceito que os indígenas enfrentam nas idas as cidades, o

impedimento de fazer roças no Tekoha 1, propostas de acordos para remover os índios da

área de retomada, a construção de um muro numa área de ocupação indígena, ou o

18 Em 30 de março de 2017 o relatório da CPI foi concluído e pediu o indiciamento de mais de 60 pessoas

entre lideranças indígenas e quilombolas, antropólogos e servidores, incluído o antropólogo Levi Marques

Pereira. 19 A PEC 215 prevê alterar os procedimentos para demarcação de terras indígenas no Brasil. Entre as

modificações propostas está a implantação da tese do marco temporal, como principal critério para

demarcação. Segundo a tese passariam a ter direito a terras apenas os povos indígenas que as estivessem

ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988, desconsiderando o

processo histórico de esbulho do território indígena pela qual passou povos como os Guarani e Kaiowá. 20 No dia 17 de março de 2016, tomei conhecimento de uma notícia que circulou no site do MPF. Nela o

MPF requisitava que a Polícia Federal abrisse inquérito para averiguar ameaças de fazendeiros ao

antropólogo Lévi Marques Pereira, segundo a notícia, os fazendeiros acreditavam que o antropólogo era o

responsável pelo laudo das áreas que haviam sido ocupadas. Consultar notícia em:

http://www.mpf.mp.br/ms/sala-de-imprensa/noticias-ms/mpf-ms-requisita-a-pf-investigacao-sobre-ameaca-

a-antropologo-em-dourados

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próprio discurso do avanço da modernidade onde o crescimento da agroindústria e o

crescimento urbano são expoentes. A violência mais explícita ou mais velada tem, como

denominador comum, efeitos devastadores na vida dos meus interlocutores.

Um caso, que exemplifica o que estou querendo dizer, foi a situação recente

pela qual passou o Tekoha 1. O Tekoha 1 localiza-se na região metropolitana de

Dourados, nos limites da cidade e com o avanço urbano vem sofrendo com a especulação

imobiliária21. Em junho de 2016 tomei conhecimento de uma proposta feita a liderança da

área. Na ocasião uma “antropóloga”, que não se tinha informações de onde vinha, havia

visitado o acampamento e durante uma reunião com a liderança propôs que a comunidade

do Tekoha 1 deixasse a área que ocupam há mais de 40 anos e em troca eles ganhariam

um outro lugar, onde conforme ela prometia teriam casas, poços artesianos, energia

elétrica, entre outras promessas. A liderança chamou esse acordo de "a trocação". Mas

tarde, ficamos sabendo, que essa proposta veio por parte da Incorporadora Colombo -

dona de parte do território, reivindicado pelo Tekoha 1- que, com esse acordo, poderia dar

continuidade ao loteamento João Carneiro Alves, loteamento esse que se sobrepõe a área

do Tekoha 1 e, por esse motivo, teve seu avanço barrado por recomendação do MPF. A

proposta passou a ser investigada pelo MPF e acabou não sendo aceita pela comunidade.

No entanto, o que gostaria de destacar é que a palavra, especificamente sob a forma de

promessa, da ‘trocação’ teve efeitos no acampamento, desequilibrando a comunidade do

Tekoha 1, uma vez que nem todos os moradores queriam aderir ao acordo. Assim, essa

proposta é um caso concreto que reflete a disputa pelos espaços de vida e que tem como

efeitos o conflito, a violência e a precariedade.

Abrindo caminhos

Nem todas as questões abordadas nesse trabalho foram desenhadas durante o

processo do trabalho de campo, de estar no local, existem aquelas que se tornaram mais

claras e relevantes no processo da escrita pois, como Strathern (2014) salientou, a escrita

cria um segundo campo, que do mesmo modo que o trabalho de campo, também tem

dinâmicas e trajetórias próprias. A violência dos conflitos, por exemplo, não afetará por

tanto, apenas o meu trabalho de campo, ele também afetou a própria escrita deste

trabalho, finalizado num período de intensa crise política a nível nacional e num

momento em que os direitos dos povos indígenas vêm sofrendo violentos ataques.

21 Esse tema será explorado com mais atenção no capítulo II.

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Nessa conjuntura, faz-se cada vez mais necessário uma discussão ampla

acerca do conflito vivenciado pelos grupos indígenas, entre eles os Guarani e Kaiowá no

Mato Grosso do Sul que estão reivindicando novas demarcações de terra através das

retomadas. Questão que envolve uma discussão sobre o contexto e a ameaça a direitos

fundamentais dos povos indígenas. Ademais, ressalto que existiam poucas pesquisas

antropológicas sobre acampamentos Guarani e Kaiowá, situação essa que vem mudando

nos últimos dez anos, quando a literatura sobre esse grupo indígena vem aumentando.

Meu trabalho vem integrar essa parcela de trabalhos recentes que busca abrir caminhos e

trazer contribuições efetivas sobre as dinâmicas e os sentidos das áreas de retomadas

Kaiowá e Guarani e, por conseguinte, colaborando para dar contornos concretos aos

conflitos territoriais no MS.

Cabe agora apresentar a estrutura da dissertação. A dissertação foi dívida em

três capítulos, o primeiro dele aborda, brevemente o contexto histórico de divisão e

disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de reservamento

das populações indígenas no estado, bem como o processo de reivindicação e ocupação

de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e Guarani. Também é apresentado

um levantamento atual dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados,

baseado em bibliografias recentes que trataram sobre o tema e nos dados etnográficos.

O segundo capítulo trata especificamente da etnografia realizada nos Tekoha

1 e Tekoha 2, tendo como foco a organização social e a mobilidade nessas áreas,

passando pelos conflitos e pelo espaço no interior das áreas de retomada como parte

também daquilo que movimenta e produz vínculos e relações entre seus moradores, com

a reserva, e com outras áreas de retomada.

O terceiro capítulo, tem como objetivo refletir sobre as áreas de retomadas

como uma possibilidade de retorno ao tekoha, que se soma à possibilidade de

fortalecimento das mobilidades tradicionais Guarani e Kaiowá bem como uma das

maneiras desses povos lidarem com o que eles consideram um excesso de mistura (com

brancos e índios de outras etnias) apontada pelos Kaiowá como um dos maiores

problemas dentro das reservas, e um dos fatores que favorece a desarticulação da

parentela. Sendo assim, esse capítulo é dedicado a pensar sobre os sentidos que as áreas

de retomadas têm para os Kaiowá e Guarani.

Por fim é pertinente explicar, porque, na maior parte desse trabalho utilizo

Kaiowá e Guarani, ou apenas Kaiowá. Primeiro, as duas áreas lócus da pesquisa

etnográfica eram de maioria Kaiowá. O segundo motivo e, que complementa o primeiro,

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é que durante meu campo, em diferentes momentos, tanto os Kaiowá como os Guarani

apresentavam distinções entre eles, seja na forma de cantar, no jeito de ser como também

na utilização de algumas expressões linguísticas. Dessa forma, achei que não fazia

sentido, inclusive para meus interlocutores, usar a designação Guarani-Kaiowá, que passa

a impressão de que eles sejam o mesmo povo e não como povos que pertencem à mesma

família linguística Tupi-Guarani. Porém, é importante ressaltar que tanto para os

indígenas, como para alguns pesquisadores é relevante a utilização do termo Guarani e

Kaiowá para assinalar que são aliados políticos, por esse motivo, quando me referir ao

movimento de retomada no sentido mais geral, optei por usar o termo Guarani e Kaiowá.

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Capítulo I

A espiral das retomadas: contextualizando os acampamentos indígenas na região sul de Mato

Grosso do Sul.

Embora meu lócus empírico sejam dois acampamentos indígenas, as questões

que os envolvem são mais amplas, pois, como bem pontuou Joan Vincent (1977) os

limites da observação e os limites da investigação são distintos. Buscando apresentar as

questões mais amplas, esse capítulo se debruça na descrição das condições históricas de

divisão e disputa territorial indígena no MS que permite situar o processo atual de

reservamento das populações indígenas no sul do MS, bem como o processo de

reivindicação e ocupação de áreas consideradas tradicionais pelos povos Kaiowá e

Guarani. Nesse sentido, a dimensão histórica é abordada aqui, porque, compreendo as

retomadas indígenas fazendo parte de um quadro mais amplo, tanto histórico, como

social. Juntamente com a problematização, pretende-se apresentar um levantamento atual

dos acampamentos indígenas na região da Grande Dourados, baseado em bibliografias

recentes que trataram sobre o tema.

***

O estado de Mato Grosso do Sul – MS concentra 56,3% da população

indígena da região Centro Oeste do Brasil, são 51.801 indivíduos22, 37% dessa população

vive em áreas de reservas demarcadas pelo o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, entre

1915 e 192823. Somente na Reserva Indígena de Dourados vive 18% dessa população,

numa área de 3.539 hectares, sendo a reserva com maior densidade populacional do

estado. A população Kaiowá, da família linguística Tupi-Guarani, no MS é a segunda

maior do país: são 43. 401 indivíduos, garantindo à região Centro Oeste o terceiro lugar

com a maior concentração de indígenas, segundo informações da FUNAI24 e do Censo

Demográfico de 2010. Ainda, segundos dados do IBGE de 2010, a população

autodeclarada indígena vivendo na área urbana no MS é de 2.803 indivíduos, só em

22 Para Cavalcante (2013) o número da população Guarani e Kaiowá pode chegar a cerca de 60.000

indivíduos, por levar em consideração que, boa parte dos índios que vivem nos centros urbanos, não foram

contabilizados. 23 Apesar da reserva englobar a categoria jurídica de Terra Indígena, isto é, uma terra demarcada, faço a

distinção entre essas duas categorias, optando por usar reserva para mencionar as áreas criadas pelo SPI até

1928 no MS e que não levaram em consideração as especificidades de uma terra indígena, como as

questões de reprodução física e cultural do grupo. 24 Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?limitstart=0#>. Acesso

em 01 de jun 2017.

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Dourados são 688. Também estima-se que 2.630 indígenas vivam em acampamentos no

MS25.

Embora esses dados sejam expressivos para dar um panorama da situação

atual dos Kaiowá e Guarani, eles não refletem, por si só os processos por trás dos

números e o que eles representam para as pessoas de carne e osso. É na compreensão

desses processos que me detenho a seguir.

1.1 O processo de esbulho das terras dos Guarani e Kaiowá no sul do

Mato Grosso do Sul

Os contatos com os Kaiowá e Guarani, por parte dos brancos26, no contexto

da colonização, segundo fontes históricas, datam de meados do século XVII com a

presença das reduções jesuíticas e de viajantes. No entanto, o processo histórico de

esbulho do território Kaiowá e Guarani no sul do MS27 e o contato interétnico mais

intensivo iniciaram no final do século XIX. Esse momento pode ser descrito por três

diferentes e subsequentes fases.

A primeira delas é iniciada, após a Guerra do Paraguai (1864-1870)28, ainda

no século XIX com a instalação da Companhia Matte Laranjeira em 1882, quando

Thomaz Laranjeira29 conseguiu a concessão para explorar a erva mate, em terras

brasileiras30. A Companhia se estabeleceu em território indígena e durante o tempo que

realizou a atividade de extração e exportação da erva nativa se utilizou da mão de obra

indígena (BRAND, 1997). O monopólio da Companhia Matte Laranjeira chegou a ter

cinco milhões de hectares (CAVALCANTE 2013, 22) e atuou na região até 1943. A

25 Os dados apresentados acima constam no Censo Populacional do IBGE de 2010, na SESAI e na FUNAI.

Para mais informações também consultar Cavalcante, 2013. 26 Branco é uma das categorias utilizadas pelos Guarani e Kaiowá (como por outros povos indígenas) para

se referir aos não indígenas, embora em campo também tenha ouvido os termos como bahiano, paraguaio,

maranhense para fazer essa distinção. O termo nativo Karaí também é usado para se referir aos não

indígenas, mas ele, da mesma forma, pode ser usado para falar de índios de outras etnias. De modo geral, a

categoria branco é utilizada com mais frequência, principalmente quando os indígenas falam dos

fazendeiros. Essa categoria e seus diversos sentidos, mereceria um estudo específico e um investimento

etnográfico e reflexão mais aprofundada inclusive, trazendo uma contextualização histórica, uma vez que

contribui também para discutir temas como da mistura entre as sociedades indígenas, temática já tratada por

uma ampla bibliografia da etnologia indígena. Me limito, neste trabalho a mobilizá-la conforme meus

interlocutores a acionavam quando se tratava dos sentidos dados aos acampamentos. 27 Vale ressaltar que até 1978 só existia o estado do Mato Grosso. O estado de Mato Grosso do Sul foi

desmembrado e oficializado em 1º de janeiro de 1979. Sem desconsiderar esse fato histórico, mas, com

uma finalidade prática, nesse trabalho sempre será feita referência ao estado de MS. 28 A Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, também impactou a vida do Kaiowá e Guarani, pois grande

parte das áreas onde se travou a guerra, ocorreram no território ocupado pelos indígenas, afetando

principalmente a mobilidade desses povos. 29 Thomaz Laranjeira, também atuou na comissão de demarcação de fronteiras entre Brasil e Paraguai. 30 Do lado paraguaio, Thomaz Laranjeira já fazia a exploração dos ervais desde 1877.

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33

Companhia é apontada por vários autores por ter preservado as áreas sobre o seu

domínio, visto seu caráter extrativista, garantindo que os Guarani e Kaiowá, nesse

momento, não fossem expulsos e continuassem a viver em seus territórios. Em

contrapartida, outro elemento unânime entre os pesquisadores, é quanto a exploração da

mão de obra indígena, sendo muitas vezes caracterizado como um regime de escravidão

ou semiescravidão, que acabou contribuindo para a desagregação social dessa população.

A esse respeito Crespe escreveu:

Se a companhia teve pouco impacto sobre os territórios, o mesmo não

pode ser afirmado no que se refere à mobilidade indígena. À época

muitos homens saíram para trabalhar nos ervais, promovendo o

deslocamento de muitas famílias, ou parte delas, para os acampamentos

de trabalhadores da companhia (2015, 95).

Nesse mesmo sentindo, Chamorro (2015) afirma que uma das principais

consequências da atuação da Companhia para os Kaiowá da região foi o fim do

isolamento dessa população, uma vez que favoreceu o crescimento de centros

populacionais - muitas pessoas vinham em busca de trabalho nos ervais. Os

deslocamentos dos Kaiowá, é apontado pela autora como uma “mobilidade forçada, que

dispersou as comunidades indígenas e perturbou as suas formas de produção, consumo e

sociabilidades tradicionais” (2015, 122).

A segunda fase, faz referência ao período entre os anos de 1915 a 1928,

quando o Serviço de Proteção ao Índio (doravante SPI) 31 criou oito reservas no sul de

MS destinadas aos índios dos povos Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva (ambos da

família linguística Tupi-Guarani) e Terena (pertencentes à família linguística Aruak). De

1915 a 1924 foram criadas as seguintes reservas: Benjamin Constant (1915), atualmente

TI Amambaí; Francisco Horta (1917), TI Dourados e a reserva José Bonifácio (1924), TI

Caarapó. Em 1928 foram criadas mais cinco reservas: TI Aldeia Limão Verde, no

município de Amambaí; TI Pirajuy em Sete Quedas; Porto Lindo, hoje, TI Yvy-Katu, em

Japorã; TI Sossoró em Tacuru e TI Takuapiry em Coronel Sapucaia. É flagrante

mencionar que destas oito Terra Indígenas, apenas a Takuapiry, não teve sua área

reduzida no processo de demarcação (Crespe, 2015: 112).

31 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), foi criado em 1910 pelo tenente-coronel Cândido Marino Rondon,

visando não apenas a proteção dos povos indígenas, mas também a garantia do processo de integração dos

índios. No início dos anos 1960, o SPI foi abalado por denúncias de corrupção e genocídio das populações

indígenas. E em 1967 ele é extinto para dar lugar à recém-criada Fundação Nacional do Índio - FUNAI,

órgão que perdura até os dias atuais.

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34

Figura 2. Reserva Indígenas criadas pelo SPI em MS entre 1924 e 1928. Fonte: MORAIS (2016, 48).

Segundo Souza Lima (2002) o SPI, se utilizava da forma de atuação de

tradição sertanista, isto é, as populações indígenas, assim como ocorria no período

colonial, foram atraídas e pacificadas – no período colonial, o processo de reservamento

da população indígena contou com a ajuda das missões jesuíticas e com a catequização

dessa população. Contudo, no tempo do SPI, a política sertanista apareceu também com o

rótulo de proteção dessas populações, se veicula essa imagem ao mesmo tempo em que

liberavam as terras indígenas para o “interesse nacional” e ocupação colonial. A criação

dessas reservas são, portanto, reflexo de uma política indigenista que, tinha como

objetivo a integração e a tutela dos povos indígenas, esses últimos usurpados de suas

terras, sempre que havia interesses econômicos pelo território, com a finalidade de abrir

novas fronteiras de colonização agrícola, como o caso do MS.

Com a criação das reservas, a população indígena no sul do MS sentiu o

impacto da colonização. Diversas famílias destas etnias foram retiradas do seu território e

“confinadas” nas reservas, como defendeu o historiador Antônio Brand (1993; 1997). As

reservas se tratavam de pequenas unidades administrativas que não levavam em

consideração a organização social dos diferentes grupos étnicos relacionados. Assim,

esses espaços não apresentavam as condições necessárias para a reprodução física e

cultural das sociedades em questão (PEREIRA, 2014; BARBOSA da SILVA, 2007;

CRESPE, 2009). Segundo Barbosa da Silva, “o SPI territorializaria os indígenas,

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35

obrigando-os a residir em espaços restritos, com fronteiras fixas. Tal processo,

obviamente tinha como corolário a liberação de terras para a colonização da região”

(2007:46).

Anteriormente a isso, os Kaiowá nunca haviam vivido a experiência da

reserva e nem concebiam a existência das fronteiras em seu território, estas fronteiras

tomaram contornos concretos ao serem instituídas pelo órgão indigenista oficial e pelas

cercas das fazendas. As oito reservas demarcadas no MS se localizavam perto de cidades

e/ou vilarejos, mais uma estratégia que destinava aos Kaiowá o papel de mão de obra

barata para agricultura e pecuária na região. Para Antônio Brand, o processo de esbulho

das terras Kaiowá e a violência contra essa população indígena aconteceu com a omissão

e a conveniência do SPI, que estava a serviço da terra produtiva (1993:68).

Outra estratégia praticada pelo SPI no estado de MS foi a de inserir alguns

grupos de indígenas da etnia Terena, principalmente na reserva de Dourados, para

acelerar o processo de integração dos Kaiowá à sociedade, pois os Terena eram vistos

pelos indigenistas, que instituíam as políticas de Estado, como um povo pacificado e mais

“civilizado”.

Os anos de 1930 é marcado pela chegada de Getúlio Vargas ao poder, depois

da Revolução de 30. Durante o Estado Novo, entre os projetos de maior destaque desse

período está o da política intitulada Marcha para o Oeste. O governo, neste momento,

volta seu interesse aos interiores do país, principalmente a região central, com o intuito de

povoar, colonizar e aumentar as fronteiras agrícolas no interior. Essa política atingiu

diferentes populações indígenas, como os Kaiowá no MS, dado que, esses povos, na

maior parte das vezes, eram obrigados a deixar suas terras, sendo levados para as áreas de

reservas criadas pelo órgão indigenista oficial - SPI.

É nessa conjuntura que em 1948 é criada a Colônia Agrícola Nacional de

Dourados (CAND). A CAND tinha como plano a instalação de colonos em pequenas

propriedades estimulando a agricultura (BARBOSA da SILVA, 2007). Essa política

representou um aumento demográfico na região da grande Dourados, principalmente nos

anos 1950 com a chegada de migrantes vindos, principalmente, do Nordeste e nos anos

1960 e 1970, vindo do Sul do país. As áreas das colônias destinadas aos

migrantes/colonos, foram implementadas em território indígena - embora isso não tenha

sido levado em consideração pelo governo. Por isso, a terceira fase do processo de

colonização do MS foi marcada pela chegada da CAND, que representou o aumento de

fazendas na região e o avanço das atividades agropecuárias, agravando ainda mais a

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36

situação dos Kaiowá e Guarani, expulsos de suas terras e coagidos pelas cercas das

fazendas.

Nos anos de 1970 o MS vive um grande período de desmatamento, reflexo do

aumento das plantações de soja e cana-de-açúcar no estado, gerando um impacto

ambiental com a consequente destruição dos restos de mata que ainda existiam nas

fazendas. Muitas famílias indígenas conseguiram permanecer nestas áreas de mata, ou

escondidos do fazendeiro, ou mantendo com ele vínculos de trabalho. Esses índios

ficaram conhecidos na literatura como índios de “fundos de fazenda” (BRAND, 1997;

PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009). Essas áreas eram habitadas por índios que além de

resistirem ao modelo de aldeamento, permaneciam nesses espaços de mata em troca de

trabalho, como uma maneira de não se afastar de seus locais de origens (BRAND, 1997;

PEREIRA, 2004; CRESPE, 2009 e 2015). Circular pelas mediações do seu antigo

território era uma possibilidade de manter viva a esperança de retorno ao seu lugar.

Acontece que, o desmatamento quase total do sul do MS completou o processo de

“expulsão dos índios das suas terras tradicionais, intensificando o confinamento nas

reservas” (BRAND, 1997:88).

Observa-se, que as transformações do modo de vida dos Kaiowá estão

intimamente relacionadas com o processo de colonização do sul do MS, bem como com o

projeto indigenista, ambos adotados num determinado contexto, amparados por um

discurso teórico e por estratégias políticas que deram sustentação para tais ações. As

retomadas e os acampamentos indígenas não podem ser compreendidos fora dessa lógica,

pois eles são reflexos desses mesmos processos (CRESPE e CORRADO, 2012).

1.2 A vida na aldeia antiga

A situação de contato e o interesse pela “terra produtiva” atingiram os

Kaiowá e Guarani promovendo alterações nas suas formas de vida, principalmente no que

se refere a sua territorialidade32. Além do mais, não foram apenas as fronteiras que as

reservas instituíram na vida desses povos. O processo, quase sempre violento de ida para

esses espaços, causou a dispersão de famílias e a dissolução de alianças. Novos padrões

de ocupação, convivências e o e surgimento de novos tipos de lideranças foram

instituídos.

Cardoso de Oliveira (1968), ao estudar o “processo de assimilação” entre os

Terena, identifica a constituição das reservas como potentes para desencadear o que

32 Essas questões serão abordadas com mais detalhes nos capítulos subsequentes.

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37

chamou de “crise de valores”, uma vez que a formação das aldeias passa a ter um modelo

urbano de organização: casas enfileiradas e separadas por ruas. A presença dos Postos

Indígenas, segundo Oliveira, também reforçava essa crise de valores, principalmente por

controlarem as relações interétnicas e ter um modelo assistencialista (1968: 52).

Para os Kaiowá e Guarani, similarmente, um dos principais impactos foram a

criação dos Postos Indígenas e, principalmente, a instituição da figura do capitão e de

chefe de posto nas áreas de reservas. Essas duas figuras instauradas pelo SPI, representou

uma concentração de poder para esses povos. Acontece que anterior às reservas, na maior

parte das vezes, a autoridade era representada pela liderança religiosa, ñanderu (rezador)

e ñandesy (rezadora). Barbosa da Silva (2007) relata que “a instituição do cargo de

capitão veio a subverter toda a lógica sócio-política tradicional desses grupos” (2007:

53)33.

Dessa forma, assim também como apontou Cavalcante (2013) a vida na

reserva em paralelo com a figura do capitão gerou uma sobreposição de lideranças de

parentelas, que por sua vez geraram tensões e outras formas de liderança, nem sempre

aceitas pelos Kaiowá e Guarani. O conflito pela liderança é apontado, por muitos

estudiosos dos Kaiowá, como um dos motivadores das retomadas de terras, pois, na

maior parte das vezes, esse conflito acaba com a mudança da parte mais enfraquecida do

grupo: “a sobreposição de lideranças em situações insustentáveis dá vazão a importantes

episódios de retomadas de terras observadas no território Kaiowá em Mato Grosso do

Sul” (Cavalcante, 2013: 155).

É importante salientar, que numa situação de não escassez de terra, como era

antes das instituições das fronteiras, o conflito entre as lideranças não era um problema

para os Kaiowá, pois em caso de indisposições, o grupo descontente procurava um novo

local, constituindo um novo tekoha e uma nova liderança. No entanto, a situação de

reserva e suas cercas dificulta essa dinâmica, mas, não interrompe, uma vez que, do meu

ponto de vista, os acampamentos e as retomadas tem sido também reflexo de tentativas

de resolver o problema da pouca terra e da densidade populacional nas reservas.

33 Nimuendaju ([1914] 1987), também escrevera que os Guarani não reconheciam outro líder, sem ser o

religioso. Segundo ele: “a subordinação espontânea (voluntária) á teocracia de seu pajé-principal era a

única organização profundamente alicerçada no caráter e nas concepções destas hordas, não substituível por

nenhuma outra” (76). E, ainda acrescentou, que além do Estado não ter levado em consideração esse fato,

ao instituir a figura do capitão, essa também foi uma estratégia adotada com o objetivo de “educar melhor

para o trabalho” os indígenas, uma vez que, os confrontos entre a liderança tradicional e as lideranças

autoritárias (os capitães) desarticulavam e desfaziam o grupo.

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38

Crespe, inspirada na noção de estabelecidos de Nobert Elias e John L Scotson

(2000), menciona que a reserva não é ruim para todos, pois os grupos que se assentaram

primeiro nelas conseguiram se consolidar e recompor, pelo menos em parte, sua

parentela. Acontece que os grupos que foram chegando posteriormente, principalmente

quando foram diminuindo os “fundos de fazendas”, tiveram mais dificuldades de se

estabelecer:

Neste sentido, as famílias que chegaram primeiro já estavam

estabelecidas quando os demais grupos chegaram a partir da década de

1980. O termo estabelecido remete aos grupos que se assentaram

primeiro e conseguiram se acomodar com suas famílias nas reservas

(2015: 183).

Sobre esse assunto, a vice-liderança do Tekoha 2, me contava que muitos

índios não concordam com as retomadas e, quando ocorre reintegração de posse, disse

que já ouvira indígenas dizendo: “era bem feito, quem mandou ir invadir terra”. Na

visão dela, isso ocorria, porque, para aquelas famílias estabelecidas na reserva, “eles não

precisam invadir terra mesmo, porque no passado alguém já fez isso para eles”, se

referindo ao processo de ocupação dos lotes na reserva de Dourados. Também disse, que

as pessoas da aldeia antiga, como ela comumente se refere as áreas de reserva, falam

dessa maneira, porque não procuram se informar e complementa: “se o meu filho não for

malcriado, reconhecer a luta, no futuro ele não vai falar isso para alguém, pois sabe que

seus pais precisaram invadir para ele ter terra”.

Todavia, o ponto de convergência entre os indígenas da região é quanto ao

problema da densidade demográfica nas reservas. Somente na reserva indígena de

Dourados vivem 11.880 indivíduos numa área de 3.474 hectares34, isso representa uma

média de 1,46 hectares por família35.

Tabela 1. Reservas Indígenas criadas entre 1915 e 1928.

Terra

Indígena

Grupo

étnico

Município População Área

(ha)

Área em

posse

dos

indígena

s (há)

Hectares

por família

– média de

5 pessoas

Amambai Kaiowa Amambai 7.934 2.429 2.429 1,53

Dourados Guarani

/ Kaiowa

e Terena

Dourados

/ Itaporã

11.880 3.474 3.474 1,46

34 Atualmente a coordenação da FUNAI de Dourados estima uma população de cerca de 13.000 pessoas. 35 Consultar tabelas abaixo.

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39

Caarapó /

Te’yikue

Guarani

/ Kaiowa

Caarapó 5.200 3.594 3.594 3,45

Porto

Lindo /

Jacarey

Guarani Japorã 4.242 1.649 1.649 1,94

Taquaperi Kaiowa Coronel

Sapucaia

3.180 1.777 1.777 2,79

Sassoró /

Ramada

Kaiowa Tacuru 2.300 1.923 1.923 4,18

Limão

Verde

Kaiowa Amambai 1.330 668 668 2,51

Pirajuí Guarani Paranhos 2.184 2.118 2.118 4,84

Totais

38.525 17.632 17.632 2,82

Dados fornecidos pela FUNAI, população estimada a partir do Censo populacional de 2010 e do SIASI –

Sistema de Informações sobre Atenção à Saúde Indígena da SESAI – Secretaria Especial de Saúde

Indígena, Ministério da Saúde. Os dados refletem a situação até fevereiro de 2013.

Fonte: CAVALCANTE (2008: 89).

A superpopulação das reservas não afeta apenas a agricultura praticada pelos

Kaiowá e Guarani como também causa a diminuição progressiva das áreas de matas,

afetando consequentemente as áreas de coletas e caças (Cavalcante, 2013). As principais

reclamações que ouvia dos Kaiowá e Guarani, quanto ao número de pessoas na reserva de

Dourados era: a falta de espaço para poder ter uma roça, a preocupação com a falta de

terras para os filhos, o aumento do número de casos de violência em conjunto com a

dificuldade de atuação da liderança nesses contextos. Nesse mesmo sentindo Bruno

Morais, ao escrever sobre a violência e morte entre os Guarani e Kaiowá, apresenta a fala

de uma das suas interlocutoras: “Aqui na reserva, nem defunto tem lugar” (2016:34).

Outro ponto levantado principalmente pelos Kaiowá era em relação a mistura36com

outros povos, pois, desde o início da criação da reserva os Kaiowá foram obrigados a

viverem com os Terena. Algo que só se agravou com o tempo e com o aumento da

população. Para Cavalcante (2013) a situação atual das reservas

[...] permite afirmar que essas áreas são hoje verdadeiros

aglomerados de exclusão, onde os indígenas num movimento de

reterritorialização permanecem precariamente territorializados enquanto

buscam maneiras alternativas para voltar a se territorializar de uma

forma que julguem mais apropriada a seus padrões sociais e culturais

(2013, 94).

36 Esse tema será abordado com mais detalhe nos próximos capítulos.

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Tabela 2. Projeção da população guarani e kaiowa em reservas entre 1991 e 2031.

Reserva

Indígena

População

1991 2001 2008 2011 2021 2031

Amambai 2.416 5.106 7.108 7.934 10.694 13.434

Dourados 6.300 9.090 11.036 11.880 14.670 17.460

Caarapó 1.800 3.500 4.682 5.200 6.900 8.600

Limão

Verde

350 840 1.185 1.330 1.675 1.820

Sassoró 2.692 - 2.178 2.300 2.700 3.000

Taquaperi 1.400 2.290 2.912 3.180 3.802 4.070

Pirajui 604 1.394 1.939 2.184 2.729 2.974

Porto

Lindo

1.237 2.877 4.030 4.517 5.670 6.157

Adaptado de (CAECID et alli, 2010, p. 6), com dados do CIMI, FUNASA, ISA, NEPPI e NEPO. A

população de Sassoró apresentou decréscimo entre 1991 e 2008. Isso se deve provavelmente a um

intenso movimento em direção a esta reserva por razões políticas em 1991, população que ali não

permaneceu nos anos seguintes.

Fonte: CAVALCANTE (2013, 92).

Segundo Crespe (2015), a imposição do modelo de vida em reserva não

atende às lógicas organizacionais dos Kaiowá, a imposição de viverem em fronteiras

demarcadas com outras parentelas e povos dos quais não tinham afinidade, somados aos

problemas atuais como a falta de terra e a superpopulação das reservas, é o que acaba

agravando os conflitos interno e cria a condição de possibilidade de demandas pela

demarcação dos territórios indígenas. A esse respeito a autora escreveu:

Os novos problemas que surgem na reserva é o ponto central para se

compreender a não permanência de algumas parentelas nelas, e

consequentemente, o estabelecimento de formas alternativas de

assentamentos. Estas novas modalidades de assentamento são formas de

recusa à reserva e às formas de vida experimentada dentro delas, assim

como, tentativas de recompor formas de sociabilidade possíveis no

passado (2015, 115).

Para Morais, as reservas não são apenas medidas do Estado, mas também,

“um projeto colonial de reorganização do espaço e do sistema social que passa pelo

corpo” (2016:75). E, em outra parte, ainda acrescenta: “Ora, se as reservas são ‘o melhor

produto da política tutelar’, os acampamentos são o melhor produto da resistência

indígena” (2016:149).

É nesse sentindo, que uma das hipóteses consensuais entre autores,

principalmente historiadores e antropólogos que tem se dedicado ao estudo dos

acampamentos Kaiowá e Guarani é a de que, insatisfeitas com a vida na reserva, muitas

famílias passam a retornar as áreas das quais foram expulsos e reivindicar sua

demarcação.

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1.3 A espiral das retomadas indígenas: vai fazendo a cabeça37

Nos finais dos anos 1970 alguns grupos de índios Guarani e Kaiowá

começaram a retornar aos seus antigos tekoha, ou, como em outras situações, grupos que

conseguiram permanecer vivendo em pequenas áreas do seu território, como no fundo de

matas, passaram a reivindicar a demarcação de suas terras. O antropólogo Levi Marques

Pereira, chamou esses acontecimentos de “movimento étnico-social” no seu artigo

intitulado O movimento étnico-social pela demarcação das terras guarani em MS (2003),

onde relata o processo de recuperação das terras indígenas e o movimento que surgiu em

seu entorno.

No artigo, Pereira destacou o caso de Pirakuá, uma área de fundo de fazenda

onde viviam algumas famílias Kaiowá. Em 1989, o líder da comunidade Lázaro Morel

liderou um amplo movimento que, ao se recusar a deixar suas terras, se mobilizou em

busca de apoio de outras comunidades guarani. Através de visitas, Lázaro foi informando

as outras lideranças sobre o conflito que a comunidade de Pirakuá passou a enfrentar

com o fazendeiro, o qual queria expulsá-los de suas terras. Juntamente com o apoio de

outras lideranças, Lázaro também pediu apoio de setores do Estado e exigiu que a Funai

se posicionasse diante do conflito. Para Pereira, esse movimento foi fundamental para

que outras comunidades passassem a se mobilizar:

Os líderes das comunidades cujas terras ainda não foram reconhecidas e

demarcadas pelo Estado, denominadas por eles como "áreas de

conflito", constataram, a partir da experiência de Pirakuá, que a garantia

de suas terras só virá se forem capazes de mobilizar o apoio de outras

comunidades guarani, de setores do indigenismo e da sociedade civil,

como afirmou Liderança do Tekoha 2, líder da comunidade de

Guyraroká: “se o índio ficar só esperando do governo e não tomar a

frente e lutar pelos seus interesses, nada acontece, o governo só fica

sentado atrás da mesa". (2003, 140)

Rancho Jacaré é outra Terra indígena que foi demarcada no ano de 1983,

após os indígenas retornarem ao seu território de ocupação tradicional em 1978, uma vez

que esses haviam sido deslocados forçosamente para outra área. A retomada de Rancho

Jacaré é, assim, outro evento emblemático no processo de luta pela demarcação de terras,

sendo umas das primeiras áreas demarcadas após 1928. Outras Terras Indígenas

37 Conforme será descrito, a espiral das retomadas, refere-se a uma sucessão de retomadas de antigas áreas

de ocupação indígena. A espiral inicia principalmente nos anos 1980 e desde então as áreas retomadas

estão de alguma forma relacionadas umas com outras através de laços principalmente de parentesco e que

vincula de alguma forma a primeira delas, de 1980, aos acampamentos mais recentes. Esta ideia inspira-se

no livro de Loera (2006), A espiral das ocupações de terra, que descreve a existência desta forma social

para o caso dos sem-terra, no qual um assentamento está sempre vinculado com outro em formação ou em

processo, como é o caso dos acampamentos sem-terra.

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demarcadas após 1980, sempre depois de terem resistido aos conflitos com fazendeiros

são: Takuaraty-Yvykuarusu, Jaguapiré, Jaguari, Jarara, Guasuti, Sete Cerros.

Durante uma conversa com Luciano Arevolo, antiga liderança da Aldeia

Bororó, por cerca de 18 anos, ele me relatou a história das retomadas, me contando que

elas começaram com a retomada da aldeia Pirakuá, ele mesmo teria participado dessa

retomada e posteriormente outras teriam acontecido: a da aldeia Sete Cerros, nos anos

1990, Sossoró, a Aldeia Jaguapiré e a Aldeia Jarará, na Vila Juti (município Juti), depois

teria sido a Aldeia Jaguari, localizada no município de Amambaí, seguida da Aldeia

Paraguasu (referência a Takuaraty-Yvykuarusu) e depois “já veio o Marcos Verón, da

área de Taquara”.

Luciano citou essas áreas nessa ordem, sem dar muitos detalhes e contou que

participou de algumas dessas retomadas, e que elas aconteciam porque “vai fazendo a

cabeça”. Quando perguntei o que ele queria dizer com isso, ele falou que “vai sabendo

que é tekoha”, os índios durante os Aty Guasu38 recordavam e falavam sobre os antigos

tekoha e se mobilizavam para enviar cartas de reivindicação para a Funai de Brasília.

O tekoha é um termo polissêmico que corresponde, não apenas ao espaço

físico que é reivindicado, mas também às relações sociais (PEREIRA, 2004). Para Pereira

(2004) o tekoha pode também ser compreendido como uma rede político-religiosa entre

fogos39 e parentelas: “o lugar (território) onde uma comunidade Kaiowá vive de acordo

com sua organização social e seu sistema cultural (cultura)” (2004: 116).

Na tese de Tonico Benites (2014) ao descrever o processo de recuperação de

quatro áreas: Jaquapiré, Potrero Guasu, Ypo’i e Kurusu Amba, ele mostra como essas

retomadas só se efetivaram após deliberações nos Aty Guasu. Segundo o antropólogo, os

Aty Guasu são realizados há mais de três décadas e são reflexo das primeiras lutas por

demarcação, quando se discutia com mais ênfase sobre “os tekohas retirados”, bem como

sobre outros problemas que passaram a afligir essa população. Benites ainda, ao contar a

história do Aty Guasu, na visão dos indígenas, pontua, que desde de 1979 o Aty Guasu

atua “para reverter ou contestar a dominação colonial dos territórios tradicionais (...)”

(2014: 191). Para Pimentel, desde os anos 1980, o objetivo central dos Aty Guasu é a

recuperação das terras Guarani e Kaiowá (2012:235).

38 Os Aty Guasu (Grandes Assembleias) são reuniões organizadas pelos Guarani e Kaiowá para discutir

principalmente as retomadas de terras, mas também abordam temas como educação e saúde. 39 Referência ao “fogo doméstico”: conjunto de relações entre parentes próximos que compartilham os

alimentos e a residência (Pereira, 2004).

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43

Nesse sentindo os Aty Guasu foram importantes para a “articulação de

líderes das famílias extensas guarani e kaiowá expulsas dos seus tekoha” (2014: 188).

Essas reuniões caracterizadas por serem uma ocasião festiva e de reencontro de parentes,

são ao mesmo tempo um lugar de transmissão de saberes, onde as lideranças mais jovens

tem a oportunidade, por exemplo, de relembrar as trajetórias de lideranças assassinadas,

ou, como colocou Luciano e Benites, de aprenderem sobre antigos tekoha. Do mesmo

modo, que Luciano, Benites também acrescenta que são nos Aty Guasu que se discutem

as formas e as táticas de retomada e onde as lideranças encontram apoio e reforçam suas

decisões.

Loera (2006) que realizou etnografia em acampamentos sem-terra no estado

de São Paulo descreve, para o caso dos movimentos sem-terra, a existência de uma rede

de relações que se estende no tempo e no espaço ligando os acampamentos mais recentes

aos primeiros assentamentos configurando uma forma social que ela chamou “a espiral

das ocupações de terra”. Essa rede entre acampados e assentados que possibilita o

surgimento e a manutenção de novas ocupações, uma vez, que os velhos assentados ou

acampados mobilizam novas ocupações.

No caso das retomadas indígenas, a exemplo das mobilizações de Pirakuá e

Rancho Jacaré, desencadearam outras retomadas40. Na fala de Luciano e nas etnografias

citadas, destaca-se o papel fundamental dos Aty Gasu, como espaços que surgiram quase

que concomitantemente às primeiras retomadas, como espaço de sociabilidade e de

consolidação de redes de relações, onde informações e conhecimentos vão sendo

trocados. Em referências ao movimento de demarcação dos anos 1980, Crespe também

salientou:

A partir do sucesso de reconhecimento das primeiras áreas que passam

a ser reivindicadas no início da década de 1980 outras famílias que

haviam sido expulsas começaram a se organizar para retornar as áreas

das quais foram expulsas. As mobilizações da década de 1980 também

podem ser pensadas à luz da Constituição Federal de 1988 que ampliou

os direitos indígenas no que se refere à demarcação de terras

tradicionais. É dentro deste contexto de abertura política e

fortalecimento dos movimentos sociais que ocorreu a formação do

movimento étnico-social Guarani e Kaiowá (PEREIRA, 2003).

Também é durante a década de 1980 que começaram a surgir os

primeiros acampamentos em beira de estrada, resultado das expulsões

das fazendas e da recusa à vida na reserva (2015, 135).

40 Uma vez, em visita ao acampamento Apyca’i encontrei uma militante do MST, que durante a nossa

conversa me disse que seu pai, também militante, contara a ela que o MST havia se inspirado nas

retomadas indígenas para realizar as ações de ocupação.

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44

Dessa maneira, podemos pensar as demarcações das Terras Indígenas nos

anos de 1980 como fruto de um primeiro momento da espiral das retomadas Guarani e

Kaiowá que vão culminar com os acampamentos indígenas nos anos de 1990, criando

condições para a continuidade de outras retomadas e acampamentos, na atualidade, como

forma de reivindicação de terras41. Assim os acampamentos e as retomadas Guarani e

Kaiowá se configuram enquanto linguagem simbólica e como tal, como uma

possibilidade para os indígenas reorganizar e levantar o tekoha, limpando a mistura e

abrindo a possibilidade de voltar a viver como antes dos primeiros sarambi42, como será

visto ao longo do trabalho.

Variações da “forma acampamento”

A antropóloga Lygia Sigaud (2000), ao analisar os processos sociais e

históricos que levaram Pernambuco a se tornar, nos anos 1990, o estado com maior

número de ocupações de terra, observou como o ato de ocupar terra somado a montagem

de acampamento se transformou numa forma apropriada de reivindicar a reforma agrária

ao Estado brasileiro, que por sua vez, legitimou

essa “forma de demanda” ao desapropriar e redistribuir terra as famílias acampadas. É

através desse estudo que a antropóloga propõe “a forma acampamento” ao se atentar aos

aspectos “ritualizados de realizar ocupação” e aos elementos simbólicos presentes nas

ocupações e nos acampamentos. Assim, “a forma acampamento” é uma linguagem

simbólica, uma forma de reivindicar terras ao Estado através de um movimento, das

reuniões para organização das ocupações, da escolha da área a ser ocupada, da

organização do acampamento, da bandeira e da lona preta. Além disso, essa forma se

tornou eficaz para dialogar com o Estado, uma vez que, quando ocorre uma ocupação se

cria um fato social: o conflito por terra, que por sua vez gera processos para uma possível

desapropriação, ou seja: “as ocupações de terras com montagem de acampamentos

constituem uma linguagem simbólica, um modo de fazer afirmações por meio de atos, e

um ato fundador de pretensões à legitimidade”. (2000: 66)

Esta proposta como modelo de análise pode iluminar outros contextos

etnográficos e, neste caso é inspiradora para pensar a especificidade indígena. Loera

(2006) em seu estudo sobre a trajetória de acampamentos e assentamentos no interior de

41 Loera para o caso dos acampamentos sem-terra menciona que, as “ocupações se institucionalizaram

como modalidade apropriada para reivindicar a reforma agrária ao Estado brasileiro” (2006: 61). 42 Fragmentação da parentela causada principalmente após a expulsão dos grupos de seus territórios. Esse

termo será explorado no Capítulo III.

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45

São Paulo, mostra como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi

central na produção da “forma acampamento” como uma estratégia legítima e

fundamental para reivindicar desapropriações de terra. Marcelo Rosa (2009), inspirado

em Sigaud e ao analisar uma ocupação urbana em Belford Roxo/RJ, menciona que a

“forma acampamento” era uma linguagem em expansão e que extrapolava os espaços

agrários, concluindo ainda: “que lutas (...) existem socialmente quando reconhecidas, isto

é, quando tornadas linguagem, quando pronunciadas e quando refutadas” (2009a: 110).

Crespe & Corrado (2012, 2013), a respeito dos acampamentos Guarani e

Kaiowá, na região de Dourados, do mesmo modo, escreveram que as retomadas e os

acampamentos fazem parte de uma linguagem social, que se soma as práticas tradicionais

para demandar ao Estado a demarcação de terras. Ao discutir sobre o termo acampamento

em sua pesquisa sobre os Guarani e Kaiowá, Morais menciona a diversidade de formas

que ele abarca, mas, principalmente os acampamentos seriam espaços de resistências, nos

termos do autor: uma modalidade de “territorialização de resistência” (2016:87).

Nesse sentindo, concordo quando Morais escreve: “Assim pensando como

uma perpetuação das relações de troca de objetos, pessoas e afetos, essas redes de

acampamento aparecem como espaços de resistências e contestação da territorialidade

impostas nas reservas” (2016: 146). Os acampamentos indígenas podem, portanto, serem

entendidos como parte das reivindicações políticas dos Guarani e Kaiowá, tal como uma

tentativa de recriar essas relações sociais vividas no tekoha e que o modelo de reserva

implementado pelo SPI inviabilizou. Os acampamentos Kaiowá e Guarani neste sentido

são um espaço de sociabilidade onde se procura reorganizar as relações sociais. (CRESPE

e CORRADO, 2012, 2013), uma oportunidade de retornar a viver de acordo com o teko

katu43, de reconstruir o tekoha.

A ideia de territorialização de resistência conforme tratada analiticamente

pelo Morais pode ser profícua, uma vez que se caracteriza empiricamente o que está

sendo chamado de resistência no contexto das mobilizações por terra entre os Kaiowá por

exemplo, pois não é um termo autoexplicativo. No entanto, discordo do autor quando ele

acredita ser um “deslize” pensar os acampamentos de retomada como uma estratégia de

pressão do movimento indígena ao Estado. O autor, também faz uma crítica à

comparação possível na forma de mobilização de sem-terra e indígenas contrapondo uma

43 Forma bonita e correta de se viver (Pereira, 2004).

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46

suposta unidade do movimento sem-terra à multiplicidade dos Kaiowá e Guarani44. Desta

maneira, me parece que pensar os acampamentos Guarani e Kaiowá como uma

linguagem simbólica não exclui a possibilidade deles serem uma forma de resistência,

como coloca Morais, ao mesmo tempo que é uma forma de reivindicação ao Estado.

Benites (2014) argumenta que os Aty Guasu são fundamentais para o

movimento de retomada, ao escrever que a base fundamental da organização política

Kaiowá e Guarani é a articulação de famílias extensas aliadas, e essas alianças são

fortalecidas pelos aty gassu e pelos jeroky guasu, grandes rituais religiosos (2014:39).

Pimentel também argumenta, ao descrever uma teoria Kaiowá da política, que a Aty é “o

terceiro elemento necessário à compreensão de uma teoria Kaiowá da ação coletiva...”

(2012:235)45.

Alarcon (2013), ao analisar o conflito fundiário envolvendo os Tupinambá da

Serra do Padeiro, também chama a atenção para a forma acampamento como um modelo

profícuo para pensar os processos de reivindicação territorial indígena, além de propor “a

forma retomada” como uma linguagem de ação coletiva. Ao trazer exemplos de

retomadas indígenas que aconteceram no final dos anos 1970 e início de 1980, como o

caso dos Kiriri e da retomada da Ilha de São Pedro pelos Xokó, a antropóloga coloca a

retomada de terra como uma forma de ação política da mobilização indígena no Nordeste

brasileiro. No caso descrito por ela, sobre os Tupinambá da Serra do Padeiro, a retomada

é uma “maneira encontrada pelos indígenas para ‘fazer pressão’, em favor do avanço do

processo demarcatório da TI” (2013: 106). Alarcon também reconhece que “fazer

pressão” é apenas um dos elementos acionados na retomada, é o elemento que dialoga

com o Estado.

Para Fábio Mura: “os tekohas reivindicados representam a soma de espaços

sob jurisdição dos integrantes de determinadas famílias extensas, onde serão

estabelecidas relações políticas comunitárias e a partir dos quais esses sujeitos poderão

determinar laços de parentesco inter-comunitários numa região mais ampliada” (2006:

122, 123).

Ainda, em relação ao trabalho de Alarcon (2013) é interessante olhar para a

descrição dos processos da retomada realizadas pelos Tupinambá da Serra do Padeiro. Os

elementos que compõem essa “forma retomada” são: a realização do toré, logo após a

44 Os estudos empíricos realizados em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, citados anteriormente, e a

série de etnografias que debatem a questão da “forma acampamento” demonstram a diversidade do

movimento sem-terra, sendo a ideia de unidade um senso comum. 45 Os outros dois elementos são, respectivamente, o lugar da chefia ameríndia e o xamanismo.

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retomada; a vigia da área a ser retomada e após essa ação; limpeza do local e realização

de rezas, com intuito de afastar os inimigos; consulta aos encantados (realizadas antes e

durante a retomada) e adoção de processos de segurança, como cuidado com a água,

escolha do horário e das pessoas que vão realizar a retomada. Alarcon ainda enfatiza,

como o respaldo dos encantados e suas orientações são fundamentais para a proteção e a

realização da retomada (2013, 116, 117).

Na descrição de Benites sobre “as táticas do Jaike Jevy (recuperação) dos

territórios tradicionais”, podemos vislumbrar uma “forma retomada” guarani e kaiowá,

que se aproxima dos elementos acionados pelos Tupinambá da Serra do Padeiro. Assim,

ao falar das táticas de recuperação, Benites apresenta a seguinte expressão: “o termo jaha

jaike jevy é para dizer algo parecido com ‘vamos entrar e morar outra vez no tekoha’, e é

marcadamente uma resposta ou reação, organizada através do Aty Guasu, para fazer

frente à expulsão de seus territórios” (2014: 195). Essa organização é marcada por três

elementos principais: a necessidade de envolvimento de lideranças políticas juntamente

com as lideranças espirituais, os ñanderu (rezadores); a participação nos jeroky guasu

(grande ritual religioso), realizados dentro dos Aty Guasu. A esse respeito, Benites

explica que:

A realização dos rituais religiosos durante os Aty Guasu é para buscar a

proteção dos nossos irmãos invisíveis (ñande ryke‘y) do cosmo e dos

guardiões das terras (tekoha jára kuera). Assim, cotidianamente os

integrantes das famílias se sentem protegidos pela presença de seus

parentes invisíveis (divindades) nos locais reocupados em que passam a

viver. Já a proteção dos seres invisíveis dos yvaga (patamares celestes)

evocada através da ação dos líderes espirituais é vista pelas pessoas

como uma técnica de luta ou de guerra para ter êxito nos processos de

enfrentamento com jagunços das fazendas, principalmente no momento

de reocupação dos tekoha (2014: 196)

E por último, quando o grupo já se encontra reunido, deve-se pedir o apoio

(ñomoiru ha pytyvõ) a outras lideranças do Aty Guasu:

O significado de ñomoiru ha pytyvõ é muito importante para se

compreender a articulação dessas diversas lideranças. Ñomoiru significa

“se articular”, “se juntar em grupo”, “se proteger”, “ser companheiro

(a)”. A expressão Pytyvõ quer dizer “prestar apoio”, “cooperar”, “dar

força”, “encorajar”, “solidarizar”, “escoltar”, etc. Nesse sentido,

Ñomoiru ha Pytyvõ pode ser definido como uma série de táticas que são

postas em prática no momento de reocupação dos tekoha. O Ñomoiru

ha Pytyvõ foi sendo cada vez mais refletido e melhorado ao longo de

vários anos no seio do Aty Guasu (idem).

Observa-se que a “forma retomada” entre os Guarani e Kaiowá passa

impreterivelmente pelo Aty Guasu. Além disso, outros elementos são acionados: “a

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equipe de frente das retomadas”, formada principalmente pelos casais de lideranças

políticas e lideranças religiosas, nos cinco dias que antecedem a retomada, tem que

participar, obrigatoriamente do jeroky, durante três noites, no mínimo. O rezador é quem

autoriza a partida para a retomada. Elementos como pintura corporal e o porte de arcos e

flechas também são acionados na descrição de Benites, que ainda acrescenta:

As pessoas se deslocam a pé em direção à terra antiga indicada,

localizada a distância variável do local de partida, em geral, a partida é

de uma reserva indígena ou de um acampamento. No momento da

partida cada integrante do grupo deve levar consigo seus pertences

pessoais assim como alguns alimentos, um pedaço de lona para armar

barraca e utensílios e os instrumentos rituais para proteção. Feita a

reocupação da terra, os integrantes do grupo procuram caçar e pescar no

interior do tekoha reocupado (que já bastante conhecido por eles),

buscando alimentação.

Em todas as terras reocupadas é imediatamente construído um altar

sagrado (yvyra‘i Marangatu) pelos rezadores (Guarani ou Kaiowá),

onde são realizados com frequência rituais religiosos (Jeroky) e

assembleias (Aty), sendo também um espaço de recepção de visitantes -

indígenas e não indígenas (autoridades e apoiadores). (2014: 198)

É difícil afirmar que todas as retomadas Guarani e Kaiowá acontecem da

mesma maneira, pois há uma diferença significativa, mas, essa é a forma legitimada tanto

pelo Aty Guasu e até recentemente pelo Estado46. Para meus interlocutores, o insucesso

de uma retomada, seguida por uma reintegração de posse ou com a morte de algum

integrante são diretamente relacionados ao descumprimento dessa forma - principalmente

a não participação nos rituais religiosos (jeroky) ou a falta de apoio dos conselheiros do

Aty Guasu. Em campo, também percebi, que os Guarani e Kaiowá, quando não apoiam

alguma retomada, justificam esse posicionamento, mencionado que ela não foi realizada

da maneira correta e que por isso também teria grande chances de não se efetivar.

***

Atualmente, no sul do MS, presume-se que exista uma média de 50

acampamentos indígenas47 (conforme tabela abaixo). Assim, em Dourados, foram

contabilizados doze acampamentos indígenas: Boqueirão, Apyka’i (também conhecido

como Curral de Arame), Ithaum, Ñu Porã (também conhecido como Mudas MS), Ñu

Verá, Pacurity, Passo Piraju, Aldeinha, Chácara Califórnia, Ita Poty, Yvu Verá e o

46 Da mesma maneira, para o caso das ocupações sem-terra, como já demonstrou alguns autores (ver

Macedo, 2005; Loera, 2015) apesar de existirem formas padronizadas dos movimentos para realizarem

ocupações e acampamentos, há também diferenças significativas entre elas. O fracasso ou sucesso de uma

ocupação entre os sem-terra, pode também ser avaliada a partir do respeito ao cronograma estabelecido e

conforme demonstra Loera (2016) a ter mantido ou não o segredo sobre a mobilização. 47 Esse número é aproximativo, pois, novos acampamentos podem ser criados, enquanto outros são

desfeitos. Também há uma questão sobre a classificação das áreas, que como será visto adiante, interfere na

contabilização.

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49

acampamento conhecido pelo nome de Dona Edite. Esses três últimos acampamentos,

foram retomadas que aconteceram no mês de março de 2016.

Tabela 3. Acampamentos guarani e kaiowa no sul de Mato Grosso do Sul – inclusive

áreas em estudo48

Município Acampamento População

estimada

Etnia Localização e Classificação

Aral

Moreira

(1)

Guaiviry 320 Kaiowá

e

Guarani

Área retomada em 2011. Ocupam partes

de uma fazenda que reivindicam.

Acampamento de retomada

Antônio

João

(1)

Nhanderu

Marangatu

160

(famílias)

Kaiowá

e

Guarani

Área homologa em 2005 com 9.300

hectares, mas, foi posteriormente

anulada pelo STF. Acampamento de

retomada.

Amambai

(2)

Ka’ajary 268 Kaiowá

e

Guarani

Perto da reserva Limão Verde

Samakuã 52 Kaiowá

e

Guarani

Perto da reserva Limão Verde

Bataguassu

(1)

Bataguassu (São

José)

09 Kaiowá Acampamento de beira de estrada. Sem

reivindicação de terra tradicional.

Caarapó

(5)

Nova América 11 Kaiowá

e

Guarani

Localizado na periferia do distrito de

Nova América. Acampamento em

contexto urbano.

Guyra Roka 22

(famílias)

Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de retomada.

Pindo Roky 33

(famílias)

Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de retomada.

Itaguá - Kaiowá

e

Guarani

Grupo que se desmembrou de Pindo

Roky. Acampamento de retomada

Tey Jusu 06

(famílias)

Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de retomada

Coronel

Sapucaia

(1)

Kurusu Amba 245 Guarani

e

Kaiowá

O acampamento dentro da fazenda

reivindicada. Acampamento de

retomada.

Douradina

(2)

Itay Ka’aguy

Rusu

190 Kaiowá Área contígua à aldeia Lagoa Rica,

dentro de área já delimitada.

Acampamento de retomada.

Guyra Kambiy 85 Kaiowá Área contígua à aldeia Lagoa Rica,

dentro de área já delimitada.

Acampamento de retomada.

Dourados

(12)

Passo Piraju 120 Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de retomada. Área

parcialmente ocupada, resultado de um

acordo judicial, os índios estão

48 Essa tabela foi feita com dados em Cavalcante (2013), em Chamorro (2015) e no levantamento de

documentos na regional da Funai de Dourados e de Ponta Porã, bem como dados fornecidos pela SESAI e

colhidos na pesquisa etnográfica. Os dados correspondem até o período de abril de 2016.

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50

ocupando cerca de 40 hectares da área

em estudo.

Aldeinha

Picadinha

19 Guarani

e Terena

A comunidade ocupa 1ha, faz 40 anos,

próximo à área reivindicada.

Acampamento na margem da rodovia.

Ñu Porã (Mudas

MS)

97 Kaiowá

e

Guarani

Há 5 Km do centro de Dourados. Ocupa

área reivindicada. Acampamento de

retomada.

Apyka’i (Curral

de Arame)

7 Kaiowá

e

Guarani

Localizada na margem da rodovia que

liga Dourados a Ponta Porã. O grupo já

dentou ocupar várias vezes a área

reivindicada. Acampamento de beira de

estrada.

Ñu Verá 101 Kaiowá

e

Guarani

Área de 23 há contígua à aldeia Bororó.

Acampamento de retomada.

Itahum –

Jaguary

100 Kaiowá

e

Guarani

Vivem na periferia do distrito de

Itahum, município de Dourados.

Pakurity 62 Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de beira de estrada.

Acampamento de retomada.

Chácara

Califórnia

19 Terena Localizada na periferia de Dourados.

Pedido de usucapião por parte dos

indígenas.

Boqueirão 34 Kaiowá

e

Guarani

Comunidade ocupa área de 5 há,

contígua à aldeia Bororó. Acampamento

de retomada.

Ita Poty - Kaiowá

e

Guarani

Próximo a aldeia Bororó. Acampamento

de retomada.

Yvu Verá - Kaiowá

e

Guarani

Próxima a aldeia Bororó. Acampamento

de retomada.

Dona Edite - Kaiowá

e

Guarani

Próximo a saída para o município de

Itaporã. Acampamento de retomada

Guia Lopes

da Laguna

(1)

Cerro’i (Ita

Vera’i)

41 Kaiowá

e

Guarani

Até 2007, à margem da rodovia BR

267, a 75 Km de Maracaju, na direção

de Jardim. Depois, sobre 17 há cedidas

por um fazendeiro.

Iguatemi

(2)

Pyelito Kue 170 Guarani

e

Kaiowá

Localizado no perímetro da Terra

Indígena Iguatemipegua I. A área foi

retomada em 2011.

Mbaraka’i 120 Guarani

e

Kaiowá

À beira do Rio Iguatemi. Com

dificuldade de permanecer no varjão da

área reivindicada e sem liderança

efetiva, parte da comunidade de

Mbaraka’i circula por Sassoró,

Jaguapiré e Yvy Katu, e parte está

misturada com a comunidade de Pyelito

Kué. Acampamento de retomada.

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51

Japorã

(2)

Agrolac/São

Jorge (Yvy Katu

1); Fazenda

Brasil (Yvy

Katu 2); Paloma

(Yvy Katu 3)

211 Guarani Ocupam uma pequena parcela da área

reivindicada.

Remanso Guasu 211 Guarani Ocupam uma pequena parcela da área

reivindicada.

Jardim

(3)

Laranjal

Takuaju

45 Kaiowá

e

Guarani

Dista 11 Km do município de Jardim na

margem da rodovia. Acampamento de

beira de estrada.

Bouqueirão 54 Kaiowá

e

Guarani

Acampamento sobre uma área de terra

cedida pela fazenda que fica a 30 km de

Jardim e é fruto de um acordo.

Acampamento de beira de estrada.

Água Clara 07

(famílias)

Kaiowá

e

Guarani

Acampamento de beira de estrada.

Juti

(3)

Aldeinha IBC 30 Kaiowá

e

Guarani

Trata-se de uma área cedida de 3

alqueires, que a comunidade ocupa

desde o início da década de 1980. A

área fazia parte da Fazenda ICB,

vendida em 2009. A comunidade

reivindica a terra. Acampamento de

fundo de fazenda.

Juti 205 Kaiowá

e

Guarani

Não estão aglomerados em um único

ponto da cidade. Vivem de maneira

esparsa na periferia da cidade.

Acampamento urbano.

Taquara49 ___ Guarani

e

Kaiowá

Ocupam uma parcela da área

reivindicada.

Laguna

Carapã

(1)

Urukuty 109 Kaiowá

e

Guarani

A comunidade reside transitoriamente

na Terra Indígena Guaimbé.

Reivindicam terra.

Naviraí

(5)

Tarumã 55 Kaiowá

e

Guarani

Reivindicam a área de Santiago Kue.

Acampamento de beira de estrada.

Juncal 27 Kaiowá Aproximadamente 50 km de Naviraí.

Reivindicam a área de Santiago Kue.

Acampamento de beira de estrada.

Mborevi Arroio 111 Kaiowá

e

Guarani

Parte da comunidade reside na cidade

de Naviraí, outra parte foi para o

acampamento Tarumã e outra continua

no local. Reivindicam terra.

Acampamento em contexto urbano.

Aquino 15 Kaiowá

e

Guarani

Periferia de Naviraí. Acampamento em

contexto urbano.

49 A área de Taquara não aparece na lista da FUNAI classificada como acampamento, mas sim como aldeia,

no entanto por se tratar de uma área que enfrenta problema judicial e por estar reivindicando a

regularização e demarcação do seu território que a incluo nessa tabela.

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Teju’i 14 Kaiowá

e

Guarani

A comunidade acampa há 10 anos nas

proximidades de Naviraí.

Acampamento de beira de estrada.

Paranhos

(2)

Arroio Kora 250 Kaiowá

e

Guarani

O acampamento está na área contígua

às 700ha ocupadas pela comunidade,

cuja a população total chega a 650

pessoas. O acampamento é uma

pequena fração das 7.175ha já

homologadas e suspensas.

Acampamento de retomada.

Ypo’i 180 Guarani Ocupam 10% da reserva legal da

fazenda reivindicada. Acampamento de

retomada.

Ponta Porã

(1)

Kokue’i 120 Kaiowá

e

Guarani

O grupo ocupa há 10 anos uma área

abandonada, ainda não identificada.

Acampamento de retomada.

Rio

Brilhante

(3)

Aldeinha Sete

Placas

(Acampamento

Wilson

25 Kaiowá Rodovia Rio Brilhante-Maracaju

Acampamento de beira de estrada.

Alegam terem sido expulsos de

fazendas da região, mas continuam

trabalhando como diaristas nestas

mesmas áreas. Não reivindicam terra.

Aroeira 80 Kaiowá Localizado na periferia do Distrito

Prudêncio Thomaz. Acampamento em

contexto urbano.

Laranjeira

Nhanderu

166 Kaiowá Acampamento de retomada.

Vicentina

(1)

Vila Rica 51 Guarani

e

Kaiowá

18 Km do centro de Douradinha. O

grupo reside no distrito de Vila Rica.

Não reivindicam terra. Acampamento

em contexto urbano.

Novo

Horizonte

do Sul

(1)

Novo Horizonte

do Sul

40 Guarani

e

Kaiowá

Estrada para São Paulo, perto de

Ivinhema. Reivindicam terra.

Acampamento de fundo de fazenda

Além dos dados como número de acampamentos, número de famílias e

localização, na quinta coluna há uma classificação dos tipos de acampamentos. Nela

observa-se que nem todos os acampamentos são de retomadas ou em beira de estrada.

Existem acampamentos em contexto urbano e nas periferias das reservas e até mesmo

dentro delas. Outro ponto importante a ser ressaltado, é que nem todos os acampamentos

indígenas estão reivindicando a demarcação de terra tradicional, como o caso do

acampamento Bataguassu e Aldeinha Sete Placas. O acampamento Chácara Califórnia,

em Dourados, apresenta outra situação, pois os indígenas, na sua maioria Terena, estão

com pedido de usucapião da área em que ocupam. Essa diversidade de situações de

acampamento foi chamada por Crespe (2015) de “outras modalidades de assentamentos”,

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possíveis como formas alternativas a vida nas aldeias, destacando as fazendas, as áreas de

retomadas, os centros urbanos e as periferias das reservas.

Dessa maneira, o termo acampamento é um debate, não um consenso; é uma

categoria analítica que me permite pensar o processo e a forma de reivindicação dos

Guarani e Kaiowá no MS.

As fases do acampamento

Existe uma disputa classificatória em relação aos acampamentos e seus

sentidos, seja pelos indígenas ou por representantes do Estado. A esse respeito, a

conversa que tive com o coordenador da regional da Funai de Dourados e com o

funcionário responsável pelo pedido de cestas básicas é ilustrativa. Quando perguntado a

eles se sabiam quando se passou a chamar as áreas de ocupação indígena de

acampamento, foi me dito que não havia um marco, era apenas uma das maneiras que

passaram a chamar as ocupações indígenas. Então perguntei que termo utilizavam para

falar dessas áreas. A resposta foi que não havia um termo específico e, que na verdade

dependeria com quem estivessem falando. Por exemplo, se precisassem entrar em contato

com a Companhia de Energia Elétrica para fazer algum pedido a uma área de retomada,

prefeririam dizer o nome da comunidade, ao invés de tekoha - que é o termo que os

indígenas preferem - pois para ele o primeiro termo comunicaria mais. No entanto, se ele

fosse escrever para a Funai de Brasília, não haveria nenhum problema em utilizar o termo

Tekoha. Contudo, o funcionário informou, que no setor dele, por se tratar de pedidos de

cestas básicas, eles só utilizam a palavra acampamento, pois esse termo passa a ideia de

vulnerabilidade que os grupos vivem nesse contexto. É válido pontuar que as políticas

sociais do Estado priorizam os grupos considerados em situação de vulnerabilidade50.

Assim, no contexto apresentado pelo funcionário, a categoria acampamento é aquela que

comunica e dialoga com as políticas do Estado, ou seja, nessa situação, acampamento se

configura como uma categoria de intermediação com o Estado.

Em campo, uma funcionária da FUNAI de Ponta Porã quando interroguei

sobre qual era o critério de classificação das áreas de retomada indígenas ela mencionou:

se a ocupação ainda era recente e/ou área fosse muito precária, como falta de saneamento,

de água, de luz elétrica, dificuldade de acesso à escola e a saúde, essa área era

50 Segundo consta no site do Ministério da Justiça e Segurança Pública são considerados grupos vulneráveis

aquelas “populações historicamente subalternizadas e invisibilizadas em suas demandas sociais”. Integram

essa categoria: LGBT, deficientes, situação de rua, indígenas, estrangeiros, crianças e adolescentes pessoas

idosas, população negra, entre outros.

Disponível em: http://justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/diversidades/grupos-vulneraveis

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categorizada como acampamento, no entanto, se na área de ocupação já tivesse alguma

estrutura, como poço artesiano, para captar água, e escola, por exemplo, essas áreas não

seriam chamadas de acampamentos, mesmo se a situação da terra ainda não estivesse

regularizada. A esse respeito, o antropólogo do MPF, me explicava que havia “fases dos

acampamentos”, esses poderiam ser mais precários ou “mais consolidados”. Os mais

consolidados, com postos de saúde e escola, dificilmente continuavam sendo

classificados, por essas instituições, como acampamento51.

Além disso, existem diferentes situações fundiárias em que se encontra o

território Guarani e Kaiowá, podem ser acampamentos: a) com ou sem reivindicação de

terras; b) áreas que estão em estudo; c) áreas em que os indígenas têm permissão judicial

para permanecer no local; d) áreas que foram declaradas e homologadas e, como vimos,

não há um consenso uno na Funai para classificar essas locais, o que dificulta um

levantamento mais preciso da quantidade de acampamentos. Morais, ao se referir aos

“imbróglios nas classificações” menciona que a área Guyraroka, que é uma área

declarada, conta na FUNAI como acampamento, por outro lado, Taquara que enfrenta há

anos problemas jurídicos é classificada como aldeia (2016: 137). Eu mesma, no momento

da construção da tabela, apresentada acima, tive dificuldade de classificar o que era

acampamento, pois as classificações são disputadas entre pesquisadores, funcionários do

MPF e Funai, tanto que, a área de Guyraroka está contemplada na tabela - lembrando que

estou chamando de acampamentos indígenas as áreas de retomadas ou de fundo de

fazenda, bem como as ocupações de beira de estrada que tem como finalidade a

reivindicação da terra tradicional, o que acredito que tenha consonância com a afirmação

de Morais de que, nem todo acampamento é uma retomada. “mas, seguramente toda

‘retomada é, ou foi, um acampamento” (2016: 100).

Em relação aos meus interlocutores indígenas eles preferem que use a palavra

tekoha ao invés de acampamento, também sendo muito frequente a utilização do termo

retomada, ou área de retomada, por eles. A liderança do Tekoha 1, por exemplo, me disse

que era para chamar o Tekoha 1 de aldeia ou tekoha. Para ele, o termo acampamento

51 As benfeitorias nas áreas de retomadas são conseguidas através de Termos de Ajustamento de Conduta

(TAC). Segundo consta no site do MPF, os “TACs, são documentos assinados por partes que se

comprometem, perante os procuradores da República, a cumprirem determinadas condicionantes, de forma

a resolver o problema que estão causando ou a compensar danos e prejuízos já causados”. Alarcon (2013),

para o caso dos Tupinambá da Serra do Padeiro, descreve o convênio com órgãos do estado para a

construção de casas de farinhas, como um elemento legitimador das retomadas. Acredito que os TACs

tenham esse mesmo efeito, e talvez por isso, as áreas que passaram por esses acordos deixam de ser

consideradas acampamentos, tanto pelo MPF, como pela FUNAI, uma vez, que de certo modo, o Estado

passa a reconhecer os direitos como água e educação nas áreas de retomada.

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passa uma ideia de que o fazendeiro pode tomar as terras de volta, “porque só é um

acampamento”, além de que, para a liderança esse termo transmite uma ideia de

impermanência, porém, existem retomadas com mais de dez anos, como a do Tekoha 1,

então “já é aldeia, e o fazendeiro não tem mais como tomar”. O tempo neste sentido se

torna também um elemento a mais considerado na disputa classificatória.

Como se observa, acampamento ou tekoha são categorias relacionais, pois

depende do contexto de enunciação e de quem é o interlocutor. Ou seja, para

entendermos os termos, é preciso localizá-los em situação (MALINOWSKI, [1935] 1965:

22). Colocar os termos em contexto era o que os funcionários da Funai de Ponta Porã e

Dourados faziam quando me explicavam como e quando eles usavam a categoria

acampamento.

Como os próprios Kaiowá e Guarani preferem que chamem os acampamentos

indígenas de área de retomada e principalmente de tekoha, ou seja, são esses os termos

que tem significado e particularidades para eles, utilizo-os, também, ao me referir aos

espaços de ocupação indígena em que o grupo reivindica a demarcação da terra

tradicional, principalmente quando estou descrevendo essas áreas, sem contudo, deixar de

acionar a categoria acampamento indígena, visto sua importância, como uma linguagem

simbólica de demanda, que tem significados e sentidos próprios.

***

A breve reconstituição histórica apresentada aqui, teve como finalidade situar

a conjuntura mais ampla, na qual estão inseridos os acampamentos indígenas no sul do

MS, bem como apresentar a espiral das retomadas Guarani e Kaiowá, que ilumina as

reflexões sobre a “forma retomada” e os atuais acampamentos como elementos

constituintes de uma linguagem simbólica acionadas na busca dos Guarani e Kaiowá,

para recuperarem seus territórios de ocupação tradicional, e como uma forma de

reorganizar e levantar o tekoha.

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56

Capítulo II

“A gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para sair”

Nesse capítulo descrevo a trajetória das duas áreas de retomadas que são o

lócus empírico da pesquisa, ambos localizados no município de Dourados/MS. O foco

aqui é a organização social e a mobilidade nesses dois acampamentos, passando pelas

lutas e conflitos cotidianos e pelo espaço no interior dos acampamentos como parte

também daquilo que movimenta e produz vínculos e relações entre seus moradores, com

a reserva, com outras áreas de retomada e com a cidade.

2.1 Tekoha 1 – O acampamento que sempre foi tekoha

O Tekoha 1 está localizado nas proximidades da Rodovia, dentro de uma área

arrendada. Diferentemente de outras áreas de retomada o Tekoha 1 permite refletir, não

apenas sobre a fluidez e mobilidade desses espaços, mas também, acerca da permanência

como parte deste processo, pois esse tekoha está fixado nessa área há mais ou menos 40

anos.

A liderança e a vice-liderança do Tekoha 1 são irmãos (no croqui 3, pode se

ver a localização dos barracos onde eles moram, estão representados pelos números 1 e

12, respectivamente). Os agregados a esse tekoha, estão vinculados principalmente por

laços de parentesco com a vice-liderança e a sua esposa52. A história de espoliação desse

território é narrada pela liderança. Na sua fala, sua família retornou para o Tekoha 1 no

final dos anos 1970, início dos anos 1980, após terem passado por diferentes reservas da

região. Segundo ele desde 1910 lá morava sua família, seus pais e avôs e já era

considerado tekoha. Mas, por volta dos anos 1930, a área foi comprada por um fazendeiro

que os expulsou de seu território.

Após a expulsão, a família das lideranças foi morar na Reserva de Amambaí

(1915) - aproximadamente 130 km de Dourados - depois passam por Rancho Jacaré53 e

eles estavam na Reserva de Caarapó quando seu pai decidiu retornar com a família, cerca

de 18 pessoas, para o seu antigo tekoha. Nessa época a liderança tinha 14 anos, como me

contou. Também me explicou que seu pai veio quietinho, não disse que ali era terra de

índio e pediu emprego em troca de morar no local. Essa teria sido a estratégia de seu pai,

52 Segundo Crespe (2009, 2015), as áreas de retomadas liderados por um casal conseguem agregar mais a

parentela. 53 Essa é uma das mobilizações, mencionadas no capítulo anterior, que faz parte da espiral das retomadas

na região.

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para voltar a morar no seu tekoha, e ao mesmo tempo evitar o confronto direto com o

proprietário, pelo menos num primeiro momento.

Na narrativa do meu interlocutor, a figura do seu pai foi muito importante

para ele se constituir enquanto liderança. Ele disse que “roubou a sabedoria54” do seu pai

“para saber viver no meio do seu povo”. Sobre a sua luta pelo tekoha, a liderança

também aponta o papel central que o pai teve, pois, é o pai quem lhe ensinou muita coisa,

o pai “deu uma história” e ele “marcou tudo no papel”. Essa é a história do Tekoha 1 e

como seu pai, a liderança também fez o seu filho continuar marcando a história deles.

Marcar tudo no papel, mais do que uma forma de não esquecer sua história, é um modo

de contar a história para os brancos, já que são eles quem produzem e regulam os termos

para a demarcação de suas terras. Nesse sentindo, a escola também foi fundamental para

a liderança poder organizar o conhecimento que adquiriu do seu pai55. Davi Kopenawa

(2016), a esse respeito, fala que o branco só aprende olhando para as peles de imagem,

por esse motivo entregou suas palavras a Bruce Albert para que os brancos pudessem

conhecer a história do povo da floresta.

Conhecer a história é um elemento ressaltado pela liderança do Tekoha 1 e

por outros interlocutores como indispensável a retomada. No contexto das ocupações

Guarani Ñandeva no sul de São Paulo, Ribeiro (2016) também menciona como o resgate

da história foi central para o grupo, oriundo da Reserva de Araribá (município de

Avaí/SP), realizar a ocupação de suas terras tradicionais. A autora conta que a retomada

aconteceu após Claudemir Marcolino (antiga liderança), sustentado pelos relatos de Curt

Nimuendajú em seu livro As Lendas da Criação e Destruição do Mundo (1987) ter feito

um levantamento documental em cartórios e paróquias que confirmaram a existência de

um antigo aldeamento indígena, localizado na região conhecida como “Mata dos Índios”

54 A liderança sempre utilizava a expressão roubar, para se referir a algo que aprendeu: como a viver no

meio do seu povo, aprender a luta pelo tekoha, bem como aprender o português. Acredito que é preciso

fazer um investimento etnográfico maior a expressão, que podem integrar pesquisas futuras. Roubar me

parece que se refere a “tomar” para si algo que era dele, um conhecimento, que é uma palavra, o que só é

possível “ouvindo”. Acredito que não seja possível “roubar” a palavra porque a palavra/conhecimento não

pode ser “roubada”, pois ela existe por si, é a própria existência/vida que é transmitida. O termo roubar

aqui é um empréstimo que muito provavelmente nada tem a ver com os sentidos que atribuímos a palavra. 55 A liderança sempre costuma ressaltar a importância de marcar tudo no papel. Uma vez em campo quando

perguntei se podia gravar nossa conversa ele disse que preferia que eu anotasse no papel. Comecei a

perceber também que ele ficava satisfeito quando eu anotava o que me contava no meu caderno, com o

passar do tempo ele mesmo me dizia: “anota isso também no seu caderno”. Em vista disso, o significado

que tem o papel nesse contexto, se tornou um dos temas que merecerá um investimento etnográfico na

pesquisa de doutorado. Os documentos do MPF podem ser uma entrada de reflexão, pois neles encontro

cartas da liderança e da comunidade. Vale ressaltar, que os Guarani e Kaiowá reconhecem a importância do

papel, pois é através dele que os não indígenas e o Estado ditam as regras, por isso, é muito comum, no

processo de reivindicação, que as lideranças enviem cartas tanto para a Funai como para o MPF, para fazer

pedidos, denúncias ou mesmo informar mudanças de liderança.

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no município de Itaporanga (SP). A história passa operar então, como uma categoria que

faz parte da linguagem de demanda, nesse sentido a história também é um elemento

mobilizado para reivindicar o pertencimento a terra.

No caso da liderança do Tekoha 1, “além do conhecimento da história, ele

precisou assimilar outros recursos e saberes necessários para a mobilização de um grupo,

assim como, para formalizar a demanda de regularização fundiária da área via FUNAI”

(CRESPE, 2015: 217). A esse respeito, a passagem dos irmãos por Rancho Jacaré é

central para entender onde eles aprenderam como é que luta56. Em Rancho Jacaré, os

irmãos, junto com seu pai tiveram a oportunidade de acompanhar as lideranças na

retomada e na luta política pelo tekoha. “Então ele me contou, ele me deu uma escola,

como é que luta. Eu não sei naquele tempo como é que luta, eu aprendi”

(CORRADO,2013: 144). Sobre as lideranças com quem aprendeu o processo de luta a

liderança do Tekoha 1 citou Gabriel Cavalheiro57, Agostinho Almeida e Lídio Moraes,

todos, na época, de Rancho Jacaré. Nesse período ele contou que tinha por volta de 12,

13 anos de idade e que também aprendeu ouvindo as conversas de seu pai com essas

lideranças nas rodas de tereré58 e complementa: “eu vi a luta dele e guardei isso”.

Ouvir as pessoas mais velhas, como pais e avós, é uma das formas de se

adquirir conhecimento para os Guarani e Kaiowá. Era comum a liderança do Tekoha 1

me falar sobre a importância de se dar e ouvir um bom conselho. Em campo também

observei como as crianças e os jovens ficavam próximas aos locais onde conversava com

as lideranças, elas não interrompiam a conversa, porém percebia que sempre prestavam

muita atenção. Adriana Testa, ao falar sobre criação e cuidado entre os Mbya, descreve a

fase pela qual os jovens devem aprender a falar com moderação e a sempre escutar,

chamada de omboguapy vy oendu aguã, cuja a tradução possível seria, ser conduzido para

sentar ouvir (2014: 90). Na própria descrição do meu interlocutor, ele diz que aprendeu

“como é que luta” e como ser uma boa liderança principalmente ouvindo e

acompanhando seu pai e outras lideranças. Ao analisar os relatos de seus interlocutores

Testa também observou “a importância de sentar (- guapy) e se concentrar/ escutar

atentamente (- japyxaka) para ouvir (- endu), pegar (- jopy) e guardar/cuidar (- ereko) das

palavras que são passadas pelas pessoas mais velhas” (2014: 152). Essa passagem é

elucidativa sobre esse modo de aprender e desse “pegar saberes”, que parece ter

56 Rancho Jacaré é uma das reservas demarcadas no MS nos anos de 1980, após intensas mobilizações

políticas de luta pela terra. É justamente nesse período que a família das lideranças viveu lá. 57 Gabriel Cavalheiro também foi casado com Damiana Cavanha, liderança do Apyka’i. 58 Bebida gelada feita com erva-mate.

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ressonância com a expressão roubar, utilizada pela liderança para se referir a algo que se

aprendeu.

Ainda sobre a retomada do Tekoha 1, os irmãos a descrevem por fases, pois,

“não entramos pelo atropelo” foi “estudando como a gente pode retomar essa área”.

Assim, a vice-liderança me descreveu quais são os primeiros passos para se fazer uma

retomada: “primeiro tem que saber fundamento”, o que seu irmão completou dizendo “a

história”, e depois é preciso “saber batalhar”. Esse batalhar se refere a retomar a área,

mas não de qualquer maneira, há todo um procedimento. Aqui, para meus interlocutores

toma um sentido de um evento produzido na minúcia, pensado, planejado, no trabalho de

estabelecer alianças, de chamar a parentela, de aprender a história da ocupação

tradicional daquela área, que implica roubar sabedoria e pedir ajuda. Em outras palavras,

como mencionava a liderança, é “cavucando por baixo”. Através das falas é

significativo perceber que elas não expressam apenas os passos de uma retomada, na

visão dos meus interlocutores, mas também imprimem as trajetórias e as vivencias dessas

lideranças. Por isso, ao me narrarem os passos da retomada, eles me relatavam a

possibilidade de “levantar o tekoha” (opuã) que se efetiva com a volta ao lugar de origem

e a liderança complementou: “a gente tem sabedoria só para entrar, mas não tem para

sair”. Sair do tekoha, para meu interlocutor, não está no horizonte de possibilidades. Ele

prefere “sofrer aqui mesmo”, porque no Tekoha 1 estão entre parentes e é lá que está o

cemitério onde foram enterrados membros de sua família.

Ainda sobre as fases de fazer uma retomada, me foi dito, que é muito

importante, após a entrada do grupo, batizar a terra. Sobre o batismo do Tekoha 1, a

liderança contou que foi seu pai quem o fez, porque, ele também era rezador: ele lavou o

Xirú e com essa água, ele a derramou nos quatro cantos da terra, “aí a área já está

batizada, confirmada”.59

Mauss definiu inicialmente no texto A Prece [1909] como “um rito é pois,

uma ação tradicional eficaz” (2013, 266). Na fala da liderança, ele me chamou atenção

justamente, para a eficácia do batismo, pois é ele que leva o medo para o coração do

fazendeiro, é ele que garante e confirma o retorno, e principalmente, a permanência no

tekoha, uma vez que, “os atos rituais [...] são por essência, capazes de produzir algo mais

59 Aponto para a relevância de se fazer um investimento analítico, em pesquisas futuras, sobre essa

‘linguagem de luta’ que meus interlocutores me apresentavam ao narrar suas histórias: guardar a luta, a

história, batalhar, cavucar, batizar, confirmar, saber o fundamento, remetem a uma série de práticas e

sentidos relacionados a esse contexto de demanda pelo tekoha.

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do que convenções; são eminentemente eficazes; são criadores; eles fazem” (Mauss,

2003: 56.). Sobre isso Pereira escreve:

Levantar uma comunidade tem como implicação o balizamento do

espaço físico no qual as relações sociais serão novamente erguidas, o

ato implica em tornar essa porção de terra bendita. As rezas purificam e

sacralizam as pessoas e o local onde vivem. É por esse motivo que os

xamãs kaiowá sempre batizam as terras que as comunidades vêm

reocupando em Mato Grosso do Sul, elas são inclusive nominadas a

partir do vocabulário religioso. Todo gesto de fundação ou refundação

de uma comunidade reproduz o ato original do criador, realizado pela

primeira vez em Yvy Pyte (2004, 360).

Além do batismo da terra é importante levar rezadores para a retomada. O

trabalho dos rezadores nessas áreas é considerado fundamental, porque, segundo os

Kaiowá e Guarani, os protegem dos conflitos violentos, além de assegurar a permanência

na área, através de suas rezas60. Além disso, como destacou Pereira:

O retorno da comunidade ao seu antigo território ressalta a importância

crucial da retomada das rezas e da recomposição do modo correto de se

viver – teko katu. Em conjunto, teriam o poder de fazer a mata crescer

novamente, trazer de volta os animais acompanhados de seus donos e

tornar as pessoas novamente fortes, saudáveis, calmas e felizes. Mais

que definir a condição humana ideal, a atualização das rezas possibilita

superar os condicionamentos históricos atuais. Retomando a prática das

rezas, os homens reatam o contato direto com as divindades e podem

conseguir que elas atuem em seu favor (idem).

Em A Prece, Mauss nos dá elementos para pensar a palavra como um ato

simbólico e que como tal imprime uma ação e tem efeito. Há por tanto um ponto de

convergência entre o ritual e a crença e “a oração sendo uma palavra, acha-se por isso

mesmo, mais próximo do pensamento” (2013, 233-234). Conforme Mauss:

A oração é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem

meta e um efeito; no fundo, é sempre um instrumento de ação. Mas age

exprimindo ideias, sentimentos que as palavras traduzem externamente

e substantivam. Falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar: eis por que a

prece depende, ao mesmo tempo, da crença e do culto (2013: 230).

A antiga liderança do Tekoha 1 era o pai das atuais lideranças. É apenas após

a sua morte que os irmãos passaram a dividir a liderança. A liderança tem papel

fundamental para a organização da retomada, pois é ela a responsável por articular o

grupo da sua parentela, bem como conseguir aliados políticos. Além disso, como

mencionado, outros atributos foram se fazendo necessários ao longo do processo de luta

política pelo território, como dominar o português, saber ler e escrever e estar em contato

60 Em uma reunião, ouvi uma indígena dizer que a morte de seu parente, num conflito em uma área de

retomada, se deu pela falta de rezas no local.

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com organizações do Estado como Funai, MPF, Universidades, entre outras. É nesse

sentido que entendo a divisão da liderança no Tekoha 1, pois a liderança é quem sabe ler

e escrever, além de ser ele quem dialoga com a FUNAI e com o MPF, sobre o pedido de

cestas básicas e sobre a situação das terras (CORRADO, 2012). Por outro lado, a vice-

liderança, por ser casado, reúne melhores condições de juntar os parentes e reorganizar a

parentela. Casados, ele e sua esposa, reúnem em torno de si mais parentes para apoiá-los

(CRESPE, 2009).

Os pais das lideranças não estão enterrados no Tekoha 1, eles estão enterrados

na Reserva Indígena de Dourados, na Aldeia Bororo. Sobre isso a liderança expressou:

“naquele tempo eu não estava com a cabeça boa”. Ele se referia ao fato de não ter

podido enterrar os pais no Tekoha 1, pois não sabia que eles tinham esse direito, na

época, “mas agora quem falece no Tekoha 1 é enterrado aqui mesmo”. No contexto das

retomadas os cemitérios, além de seu significado simbólico para os Kaiowá, têm se

tornado uma prova material importante no que se refere ocupação tradicional indígena na

área. Por causa disso, é comum ouvir denúncias de que fazendeiros mandaram destruir

antigos cemitérios. Outra questão, como a própria liderança levanta, é a proibição aos

indígenas de enterrarem seus mortos nas áreas de retomadas, o que muitas vezes leva ao

agravamento dos conflitos entre indígenas e fazendeiros.

A vice-liderança do Tekoha 2, também destacava como central o aprendizado

nas retomadas, e o processo no qual as pessoas vão adquirindo conhecimento na vivência

cotidiana na área de retomada e no circular por outras áreas, seja em reuniões como no

Aty Gasu, seja recebendo ou visitando parentes. Na fala tanto da liderança do Tekoha 1,

como da vice-liderança do Tekoha 2 é muito presente a saída para eventos em Brasília e

em conferências, é na circulação por esses espaços que eles também vão adquirindo

conhecimento. Como se verá no próximo capítulo, a mobilidade é um aspecto

fundamental da sociabilidade Guarani e Kaiowá, pois é no caminhar que também se

adquire conhecimento.

***

O Tekoha 1 é uma área de retomada “estável”, comparada com outras áreas.

O fato de estar localizado numa área arrendada, evita o conflito direto com o proprietário.

No entanto, acredito que essa situação também reflete a estratégia utilizada pelas

lideranças do local, pois como elas mencionaram, seu pai chegou “quietinho” e não disse

que ali era “terra de índio”, estabelecendo desde o início uma relação de trabalho com o

proprietário, em troca da permanência na área. A liderança reproduz o aprendizado e

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sempre fez questão de me afirmar, que ele “não abusava”, não plantava e nem construía

barracos onde existe a plantação do arrendatário.

A postura das lideranças com uma estratégia de não enfrentamento,

possibilitando a permanência de sua parentela no local, sem entrar em conflito direto com

o arrendatário é uma de muitas outras possibilidades de entrada nas terras na região, mas

conforme mencionado na introdução deste trabalho, nesta aposta é preciso levar em

consideração o contexto de extrema violência vivenciado pelos Guarani e Kaiowa61. Essa

postura também se expressa na organização do tekoha, com o crescimento e a

manutenção da sua parentela.

Através de dados existentes desde de 2008, percebe-se um pequeno aumento

do número de moradores nessa área. Em 2008, por meio de um censo realizado no

tekoha, por Crespe (2009), ela contabilizou 40 moradores e 11 casas no Tekoha 1. Em

junho de 2011, em meu primeiro campo, como parte do projeto Jovem Pesquisador,

fizemos um levantamento e contabilizamos 23 barracos e cerca de 48 moradores, o que já

apontava para uma estabilidade da área, uma vez que o número de moradores,

permaneceu quase o mesmo ao longo de três anos. Os barracos no tekoha eram feitos,

com troncos de árvore que são fincados ao chão e cobertos com lona preta que os

indígenas conseguem via Funai, ou podem ser lonas de caminhão ou algum outro

material que conseguiram coletar ou de madeiras que também coletam principalmente das

indústrias e galpões próximos ao Tekoha 1. Em 2011 todos os barracos estavam

montados dentro da faixa de mata.

Apenas a família das lideranças morava numa casa de madeira, que

antigamente era a casa do caseiro da propriedade. Os indígenas também haviam

construído um pequeno prédio de madeira com chão de cimento, que se localizava à

frente da casa das lideranças e funcionava como escola. O restante dos barracos estava

localizado em pequenas clareiras, dentro das matas. Os moradores costumam transitar

pela área, por trilhas conhecidas pelos Guarani e Kaiowá como tapes ou tape po’i62.

Os caminhos são um tema recorrente na cosmologia desses povos. É no

caminhar que os Kaiowá vão conhecendo, mapeando e tecendo seu território. Logo o

tekoha é composto pelos caminhos, tape po’i e pelos lugares e é essa intensa mobilidade

61 Não estou querendo dizer que existem estratégias melhores do que outras. Mas sim, que essa foi uma

estratégia possível para a área do Tekoha 1, a qual a liderança atual deu continuidade após o falecimento do

seu pai. Isso também não significa a inexistência de um conflito, ele só não é tão aparente como em outras

áreas de retomadas. Além disso, é flagrante o fato do grupo estar, aproximadamente, 40 anos ocupando a

região. 62 Significa caminho estreito.

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que fortalece a rede de relações entre os parentes. Para Pimentel (2012) os caminhos

seriam fontes importantes para pensar as relações sociais. Sobre os caminhos Crespe

expressa:

Acredito que tanto os caminhos, como os lugares conectados por eles,

são importantes para a construção e reprodução dos grupos, bem como

são importantes para uma melhor compreensão da territorialidade

produzida no passado e atualmente, pelos Kaiowá e Guarani. (2015:

301,302

Figura 3. Croqui 1 - Tekoha 1, junho de 201163

Em janeiro de 2012, realizamos um novo levantamento de moradores do

Tekoha 1, constatando 31 barracos e 22 duas famílias instaladas na área de retomada,

num total de 66 pessoas64. Em relação a distribuição pelo espaço, não havia muitas

alterações a não ser pela construção de novos barracos por causa da chegada de novas

famílias. Na época, a chegada de uma família vinda da reserva de Caarapó, cerca de 50

km de Dourados, nos chamou atenção. O homem se mudou para o Tekoha 1 com sua

família. Ele havia sido liderança na reserva de Caarapó, o que lhe garantia certo prestígio

63 Tekoha 1 (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6.

Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Diego Amoedo Martínez. 64 Família aqui tem o mesmo sentido que “fogo doméstico”, ou seja, “é o local onde a solidariedade e a

mutualidade atinge seu grau máximo de expressão, baseada na cooperação económica, co-residência e no

comensalismo” (PEREIRA, 2004: 154). Nesse sentido, o fogo doméstico é composto por um casal e seus

filhos, podendo também abrigar agregados, como genros. Como descrevi em trabalhos anteriores

(CORRADO, 2013), nos acampamentos, o fogo doméstico pode ser constituído por mais de um barraco,

pois existem o barraco para dormir, o barraco onde se cozinha e, também é comum que o filho mais velho

tenha um barraco só para ele, o mesmo acontece quando um filho e/ou uma filha se casa, no entanto, esses

barracos continuam pertencendo ao fogo dos seus pais, pois é apenas com a construção da sua própria

cozinha que irá se formar um novo fogo doméstico. Neste trabalho, também uso o termo fogo, quando falo

de família, transitando entre os dois.

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social. Quando veio morar no tekoha, ele se transformou num importante aliado das

lideranças nas reivindicações pela demarcação do território, ocupando, inclusive uma

área relativamente grande no Tekoha 1.

Figura 4. Croqui 2 - Tekoha 1, janeiro de 201265

Refletindo sobre a organização do Tekoha 1 e levando em consideração a

localização dos barracos e as relações de parentesco e mobilidade Crespe e Corrado

mencionam:

“...a localização dos barracos também diz sobre o status que a família

ocupa dentro do acampamento e o grau de proximidade que ela tem

com a liderança, bem como sua inclinação no processo da luta política

pelo território. Assim, de fato, a organização do acampamento e a

posição dos barracos representam a tentativa de reprodução do tekoha,

ou seja, várias famílias ligadas por laços de parentesco e de aliança com

a liderança, conformando assim uma parentela extensa, isto é, a

organização do tekoha, também pode ser observada na configuração

espacial dos acampamentos”. (CORRADO e CRESPE, 2012; 2013;

2016).

Não aceita mais pessoa que não é aparentada

Bem na entrada da área, logo quando sai da rodovia e entra na estrada de

terra, tem uma placa escrita “Aldeia” e embaixo a frase “Tekoha 1, Respeitar”. Em

visitas anteriores, durante a pesquisa de iniciação, as placas estavam no interior da área; a

65 Tekoha 1 (Dourados, MS). Fonte: Projeto “As Formas de Acampamento”. FAPESP 2010/02331-6.

Ceres/IFCH/UNICAMP. Elaboração do croqui: Marcia Soares.

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primeira delas era uma placa, próxima a antiga casa de madeira das lideranças, estava

escrito PARE!. Nas últimas visitas havia notado uma placa, pregada a uma árvore escrita:

“Área de conflito”. Mas nunca tinha visto uma placa próxima à rodovia, logo na entrada

da estrada de terra.66

Antes quando caminhava pela estrada de terra até chegar à casa da liderança,

podiam ser vistos alguns barracos entre a mata. Agora a mata parecia estar mais densa,

dificultando ver os barracos que ficam próximos da estrada. A mata também havia

avançado por onde existia anteriormente uma clareira que servia como um pátio, onde os

indígenas se reuniam e se sentavam para conversar e tomar tereré.

No local, onde antes residia o “fogo”67 da família da ex-liderança de Caarapó,

atualmente está tomado por uma parte de mata. A vice-liderança, desde 2013, mudou-se

para uma parte de mata, onde se chega atravessando a plantação do arrendatário, observei

que desde a última vez que estive lá, sua família já ocupa um espaço maior na região.

Conversando com Liderança do Tekoha 1 ele contou que foi o arrendatário quem

autorizou seu irmão a se mudar para aquele novo espaço.

Outra mudança perceptível era como a cidade havia crescido em torno do

tekoha. Atualmente, encontra-se um loteamento com casas já construídas bem próximo

ao fundo da área do Tekoha 1, o Bairro 1, que em 2013 estava em formação. Do outro

lado da Rodovia, também havia aumentado consideravelmente o número de galpões

comerciais que ficam próximos a estrada68. E, atrás dos balcões onde antes só existiam

terrenos, hoje é o Bairro 2 ainda em processo de urbanização, inclusive foi andando por

esse bairro que eu chegava ao Tekoha 169.

Ao andar com a liderança pelo tekoha também percebi que alguns moradores,

inclusive ele, tinham plantado roças. Essas roças eram motivo de alegria para seus donos

que me mostravam com orgulho suas pequenas plantações, pois significam a

possibilidade de plantar e consumir seu próprio alimento, seguido do desejo de poderem

ter roças maiores, o que era impossibilitado pelo o arrendatário da terra que os proibia de

avançarem na área de suas plantações. Próximo de alguns barracos também avistei alguns

pés de tomate e mamão plantados em vasos e, em alguns lugares pés de árvores frutíferas.

66 Como descreveu Marcelo Rosa (2009, 2009b), para o caso do movimento sem-terra, o conflito nesses

contexto, de ocupações e das retomadas Guarani e Kaiowá é um conflito específico que é gerado a partir da

demanda por terra. Uma vez o conflito instaurado, chama-se a atenção do Estado para as reivindicações

dessas populações. 67 Categoria sociológica referência ao fogo doméstico: conjunto de relações entre parentes próximos que

compartilham os alimentos e a residência (Pereira, 2004). 68 Ver em anexos Foto 2, pp. 132. 69 Veja croqui 3, pp. 68.

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Das cinco roças que foram me mostradas, os cultivos mais comuns eram: feijão,

mandioca, rama, além de pés de canas, e mamão70.

Figura 5. Roça de um morador. Foto: CORRADO, 2016.

Figura 6. Roça de um casal de moradores. Foto: CORRADO, 2016

A liderança, em diferentes ocasiões e visitas enfatizava a configuração atual

do tekoha ao afirmar que agora só mora parente no Tekoha 1: irmãos, tios e primos.

70 Uma vez em visita ao Tekoha 1 encontrei a liderança cuidando de sua roça, que fica ao fundo do seu

barraco (barraco 1, consultar croqui 3). Me contou que havia plantado mandioca, rama, feijão, cana, além

de alguns pés de árvores frutíferas como manga e mamão.

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Segundo a liderança, ele “não aceita mais pessoa que não é aparentada”, pois estar só

entre a família é mais “fácil para aconselhar e corrigir”.

Até abril de 2016 o Tekoha 1 estava composto por 26 famílias e cerca de 97

pessoas71. Dessas 26 famílias, constatei que apenas três não tinham relações de

parentesco com as lideranças (barraco 1 e 12). A maior parte do grupo era formado pelos

filhos da vice-liderança (barracos 5, 7, 8, 13 e 16) e da sua irmã e sobrinha

(respectivamente barracos 20 e 21) e pelos parentes da sua esposa: filho (barraco 11),

irmãos (barraco 3 e 10) e sobrinho (barraco 14). O único filho da liderança (barraco 26)

também vive no Tekoha 1 e este trabalha para o arrendatário da terra. Nesse cenário,

compreende-se porque a Liderança do Tekoha 1 insistia em reafirmar que agora só

morava parente no tekoha: irmãos, tios, primos, sobrinhos. Das três famílias que não

tinham laços de parentesco com as lideranças, duas delas eram parentes da ex-liderança

de Caarapó (barracos 17 e 18), mas uma dessas famílias (barraco 17) deixaram o Tekoha

1 no final de abril de 2016. A família da ex-liderança de Caarapó havia deixado o tekoha

no final do ano anterior e se mudara para o Tekoha 2.

O terceiro caso é o do morador do barraco 15. Segundo este morador,

antigamente sua família vivia no tekoha gassu que era composto pelo Tekoha 1 e

mencionara que já havia viajado muito e conhecido muita coisa72. A liderança ainda

contou que esse morador se mudou para o Tekoha 1 depois que rompeu com a esposa e

deixou sua casa se mudando de Caarapó para o Tekoha 1. Nas palavras da liderança, ‘deu

permissão para ele morar lá, mesmo não sendo parente, porque ele estava sozinho’ e,

também comentou que esse morador o ajudava em algumas coisas. Esse morador parecia

assumir um papel de articulador junto com as lideranças, relação que se expressa

inclusive espacialmente pois a localização do seu barraco é muito próxima ao barraco da

liderança, e na maioria das vezes, ele sempre acompanhava parte das conversas que eu

tinha com as lideranças.

Através da análise da organização e das relações entre os parentes do Tekoha

1, num dado período (2008-2016), assim como a constituição de alianças políticas, as

áreas de retomadas são espaço privilegiados para pensar tanto a mobilidade das pessoas

por esses espaços, como pensar os tekoha enquanto lugares de paradas e permanência.

71 Localizei algumas pessoas pelos números de barracos que pode ser consultado no croqui 3, pp. 68. 72 Entre os Guarani e Kaiowá noções como andar e caminhar são importantes porque se referem a modos de

conhecer e adquirir conhecimento. Esse tema será melhor explorado no próximo capítulo.

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Figura 7. Croqui 3 - Tekoha 1, fevereiro de 2016. Croqui elaborado a partir da pesquisa etnográfica realizada no

período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do croqui: Marcia Soares.

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Não é muito nem é mais

Quando perguntei a liderança do Tekoha 1 qual era a importância da

liderança ele respondeu que “não é muito nem é mais”, depois foi trazendo mais

elementos do que significa ser liderança, me explicava através de exemplos, ao dizer

que “é como mãe e pai” e com desenhos feitos no chão. Porém a característica que ele

mais ressaltava era ter sabedoria. Assim, no chão, com ajuda de um graveto, ele traçou

três linhas, as duas linhas externas se referiam respectivamente a sabedoria e ao

entendimento, e a linha do meio significa caminhando, a figura, desenhada na terra do

Tekoha 1 acompanhava a seguinte frase, dita por ele: “caminhando sabedoria para

corrigir”. Com esse desenho ele traduzia a figura da liderança através da metáfora de

uma caminhada73, ou seja, a liderança era uma caminhada guiada pelas margens da

sabedoria e do entendimento e, ainda acrescentou, que nesse caminho era “preciso

vigiar”.

Figura 8. Reprodução do desenho da liderança74

Essa sabedoria, segundo meu interlocutor, começou a ser adquirida, como

mencionado anteriormente, ainda na infância da liderança, “aprendendo ouvindo” a

conversa de seu pai e posteriormente de outras lideranças. Contudo, saber ouvir é algo

que uma boa liderança nunca deixar de fazer: “eu estou falando, mas também estou

ouvindo, meu ouvido está escutando”. Segundo ele, outras qualidades de uma boa

73 Exemplo esse nada banal para os Guarani que considerando o caminhar como uma das formas de se

adquirir conhecimento. O tema sobre mobilidade Kaiowá e Guarani será abordado no próximo capítulo. 74 Reprodução do desenho que a liderança do Tekoha 1 me fez, no dia 01 de março de 2016, quando

perguntei sobre como era ser liderança. Após fazer três traços no chão, ele acrescentou as iniciais das

palavras de cada linha, que se referem respectivamente a sabedoria, caminhando e entendimento, depois

fez um círculo envolta.

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liderança são pensar em toda a parentada, não beber e não brigar, “andar bem no meio

do povo”. Ser uma boa liderança também representa se corrigir e pensar: “corrigindo

minha sabedoria” e “tem que sofrer também”, se referindo ao processo de luta pelo

tekoha. Loera, em relação aos acampamentos do MST, mencionou que o “‘sofrimento’

se constitui como a medida legitimadora da luta” (2006: 94) para os acampados do

Terra Sem Males. Para meu interlocutor a luta também está associada ao sofrimento e

enquanto liderança “tem que sofrer também” como os outros moradores do Tekoha 1.

Outra característica ressaltada por ele é que a “liderança tem que pensar, tem que ter

vigilância para não cair em laçada do branco, do fazendeiro”.

Entre as obrigações da liderança, “dar um bom conselho” e corrigir era

algo sempre lembrado. Quando perguntava como ele lidava com as divergências dentro

do Tekoha 1, ele me dizia que primeiro tinha que conversar, levar um bom conselho.

Pereira descreve, que entre os atributos para ser uma cabeça de parentela (hi’u) - aquele

que tem a capacidade de reunir e manter parentes próximos e aliados – a capacidade de

proferir boas e belas palavras (ñei em porã) é essencial, uma vez que dar conselhos aos

seus co-residentes é uma das atribuições principais do hi’u (2014: 104).

Outro papel da liderança, e que lhe será exigido, é a sua capacidade de lidar

com o exterior. Acerca das lideranças indígenas, Clastres escreveu: “o líder primitivo é

principalmente o homem que fala em nome da sociedade quando circunstâncias e

acontecimentos a relacionam com outros” (2014 [1977]:139). Na conjuntura das

retomadas, esse elemento se faz ainda mais necessário e se soma a outras habilidades,

como saber ler e escrever, fundamental no diálogo com as instituições do Estado. No

caso do Tekoha 1, também é a liderança quem sempre busca a FUNAI e o MPF para

fazer alguma denúncia, reivindicar cestas básicas, atendimento médico a comunidade e

lonas, bem como solicitar informações e orientações75. Muitas das reivindicações feitas

são via carta, escrita pela liderança que posteriormente as entrega pessoalmente nas

instituições.

Certa vez, em uma das minhas idas a Funai, encontrei a liderança do Tekoha

1, nessa ocasião ele tinha ido conversar com o coordenador, porque, queria saber como

75 Além disso, a liderança do Tekoha 1 tinha o hábito de ouvir rádio diariamente, instrumento esse que se

utilizava para se informar desde o clima - era comum ele me passar a previsão do tempo quando

conversarmos, me alertando sobre a possibilidade de chuva – a política nacional e os aumentos de preço

dos combustíveis e alimentos. Outra característica, digna de nota, era como essa liderança aproveita a ida

de qualquer pessoa ao Tekoha 1, para tirar dúvida de um assunto que tinha ouvido (podia ter sido no rádio

ou em alguma reunião que tivesse participado), ou saber sobre algum conflito de outra área. Era comum

também, quando dizia que iria passar na FUNAI ou no MPF, ele dizer: “então aproveita que você está lá

e pergunta isso para mim”.

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71

andavam as negociações com a Concessionária CRR MSVia para a construção de uma

plataforma próxima a entrada do Tekoha 1 - reivindicação da comunidade - para evitar

atropelamentos, como ocorrera antes, causando inclusive a morte de um morador. Outro

momento que encontrei a liderança fora do Tekoha 1 foi na IV Sessão de Audiência –

Violação de direitos Indígenas na UFGD, numa postura sempre quieto, mas muito

atento, ele parecia estar ouvindo tudo com atenção.

Como liderança, participar de reuniões e de encontros como esse, além dos

Aty Guasu são habituais. Nesses espaços a liderança do Tekoha 1 sempre se informava

sobre os novos debates em torno das áreas de retomadas e se alguma decisão fosse

tomada, como, por exemplo, a decisão de não usar mais o termo área de conflito para se

referir aos tekoha, a liderança prontamente adotava a medida no Tekoha 1.

Tanto as explicações do meu interlocutor sobre ser uma boa liderança,

quanto os exemplos apresentados aqui o qualificam como um cabeça de parentela

(hi’u), aquele que “reúne seus descendentes e aliados pelo carisma, representa-os e por

eles fala nas reuniões gerais – aty – [...] devendo defender os interesses do seu grupo

familiar acima de qualquer outro interesse” (PEREIRA, 2014: 85). Outros requisitos

apontados por Pereira como fundamentais para um cabeça de parentela são a sabedoria

(o principal elemento elencado pela liderança do Tekoha 1 para ser uma boa liderança),

a capacidade de estabelecer vínculos políticos e expressar a generosidade. Clastres,

sobre a filosofia da chefia indígena também apresenta a generosidade como um dos seus

traços centrais, os outros traços, congruente com o cabeça de parentela são o talento

oratório e sua capacidade como conciliador de conflitos76.

Assim, embora meu interlocutor não seja idoso, nem tenha muitos filhos,

também características de um hi’u, é ele quem atua na vida política, e junto com seu

irmão, consegue manter parte da sua parentela unida, bem como agregar aliados. Nessa

caminhada como liderança há um autocorrigir e um corrigir o outro, que faz parte da

sabedoria e entendimento que é preciso ter, ao mesmo tempo em que “a liderança não é

muito nem é mais”.

A vila tá vindo, chegando a cada ano

Tanto no Tekoha 2 como no Tekoha 1, os comentários sobre a especulação

imobiliária da região e de como a cidade vem crescendo ao redor da reserva indígena de

76 Nesse trabalho Clastres ainda acrescenta um quarto traço, a poligamia, “como privilégio mais

frequentemente exclusivo do chefe” (2013 [1962]: 51).

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72

Dourados e de áreas que estão sendo reivindicadas pelos indígenas foi tema de várias

conversas. Assim, a questão do avanço da cidade nas áreas indígenas foi algo que

apareceu muito na fala dos meus interlocutores, e principalmente nas conversas com a

liderança do Tekoha 1. Não teve uma vez que ele deixou de falar que estavam querendo

construir um loteamento no seu tekoha e que inclusive já haviam feito as medições dos

terrenos. Ainda, segundo a liderança, o loteamento só não se concretizou porque o MPF

interveio.

Assim, da mesma maneira que Evans-Pritichard, teve que se dedicar ao

estudo da bruxaria e se “tornar um especialista em gado” (2005, 245), pois essa era a

gramática local entre os Zande e os Nuer respectivamente; no meu caso, o loteamento

era uma questão que parecia estar no centro das preocupações dos meus interlocutores.

Deste modo, em entrevistas com o perito antropológico do MPF, e através das consultas

aos documentos do mesmo órgão, tomei conhecimento, que atualmente, a área onde se

localiza o Tekoha 1 tem três títulos de propriedade: um pertence a Fazenda Coqueiro, o

outro a empresa BR FOODS e o terceiro a Incorporadora Colombo responsável por

fazer o loteamento na área do Tekoha 1.

Em 26 de junho de 2012, após diferentes idas da liderança ao MPF,

declarando a intenção dos proprietários de lotearem a área e um relatório produzido pelo

analista pericial em antropologia do MPF - depois de uma visita ao Tekoha 1, para

averiguar as denúncias - o Procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida

remeteu o OFÍCIO N° 899/2012/MADA/PRM-DRS/MS/MPF ao Prefeito Municipal de

Dourados pedindo informações sobre o loteamento que se sobreporia a área do Tekoha

1. Em 26 de setembro de 2012, o mesmo Procurador expediu a Recomendação

MPF/DRS/MS/MADA n° 25/2012, endereçada ao Prefeito Municipal de Dourados e o

Secretário Municipal de Planejamento da mesma cidade pedindo a paralização do

loteamento, embora os lotes já tivessem sido vendidos, alegando que a área está em

processo de estudo.

Contudo, a recomendação não foi seguida a contento e o MPF interveio

novamente, para barrar o avanço do loteamento João Carneiro Alves no ano de 201577.

O MPF só conseguiu impedir esses empreendimentos temporariamente, porque o

Tekoha 1 é uma retomada que já passou por estudos antropológicos realizado pela

77 Em 03 de outubro de 2014 o site do MPF publicou uma notícia a esse respeito: “MPF alerta para

loteamento incidente sobre área indígena de Dourados”. Consultar:

http://www.prms.mpf.mp.br/servicos/sala-de-imprensa/noticias/2014/10/mpf-alerta-para-loteamento-

incidente-sobre-area-indigena-de-dourados

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73

FUNAI, e os laudos, realizados pelo Grupo de Trabalho responsável (GT) pela região,

estão em processo de análise na FUNAI em Brasília. Por outro lado, o Tekoha 1

localiza-se na região metropolitana de Dourados, nos limites da cidade e com o avanço

urbano vem sofrendo com o assédio da especulação imobiliária e com os

descumprimentos das recomendações emitidas pelo MPF, que culmina no caso da

proposta de troca de área, apresentada na introdução desse trabalho.

A proposta, chamada pela a liderança de a trocação, foi feita durante uma

reunião no Tekoha 1 em 24 de junho de 2016, por uma mulher que se apresentara como

antropóloga. Nessa ocasião, conforme me relatou a liderança, essa antropóloga havia

dito ter uma área de 42 hectares no município de Douradina/MS e, se a comunidade

aceitasse o acordo, além da terra, eles teriam casas, escola, poço artesiano, entre outras

promessas. Segundo meu interlocutor, ela ainda acrescentou que a Funai e o MPF

estavam sabendo do acordo e que o mesmo havia sido supostamente sugerido pelo

MPF, pois sabiam que o "arrendatário não vai entregar nada para o indígena". No

entanto, a liderança pontuou que a maioria da comunidade não tinha aceitado o acordo

principalmente por causa do cemitério, onde estão enterrados parentes dos atuais

moradores e que as mulheres não queriam sair do Tekoha 1, justificando que ali existem

mais recursos.

Na época, o MPF e a FUNAI, não tinham conhecimento sobre essa

proposta. Em conversa com o coordenador da regional da FUNAI em Dourados, ele

comentou que houve um parecer administrativo sobre um acordo de troca da área no

Tekoha 1; no entanto, o procurador da Funai alegou impossibilidade de uma proposta

desse tipo, uma vez que se tratava de direito originário garantido pela Constituição

Federal de 1988. O coordenador afirmou que, de fato, ouvira algumas conversas sobre

uma mulher que estava andando pelas redondezas da cidade de Douradina/MS querendo

comprar terrenos na região. Essa história chegou até o coordenador, porque um indígena

desse município havia ligado perguntando por que a FUNAI iria comprar terra para

índio de Dourados, sendo que os índios de Douradina também estavam em área de

retomada e não queriam a chegada de outro grupo78.

78 A esse respeito, o perito analista pericial em Antropologia do MPF, no Laudo Técnico nº 6/2017

solicitado pelo Procurador da República Marco Antônio de Almeida, justamente para averiguar o suposto

aceite do acordo para a saída da comunidade do Tekoha 1, escreveu: “No que concerne à área de 42

hectares no Município de Douradina há dois pontos importantes a ressaltar. Primeiramente, que a

proposta apresentada foi a de aquisição de uma propriedade inserida no perímetro já identificado e

delimitado pela FUNAI da Terra Indígena Panambi/Lagoa Rica. Roubar Pedro para pagar Paulo. Cobrir a

cabeça para descobrir os pés. Cobrir um santo para descobrir o outro. Seja lá qual for o ditado utilizado, a

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74

Após mais de seis meses desse acontecimento, a proposta de troca de área

não apenas continuou como tomou grandes proporções. No início de 2017, após o MPF

ter sido notificado pelo advogado da Incorporadora Colombo sobre o suposto aceite da

proposta que removeria a comunidade do Tekoha 1 para outra área - podendo dessa

forma dar prosseguimento ao loteamento - o Procurador da República Marco Antônio

de Almeida solicita a elaboração de um laudo pericial para averiguar a suposta anuência

da comunidade do Tekoha 1 ao acordo. O Laudo Técnico nº 6/2017, realizado por

Marcos Homero Ferreira Lima, analista pericial em Antropologia, aponta para várias

falhas no processo de consulta à comunidade, entre elas o não seguimento dos

pressupostos para que essa seja prévia, livre e informada, conforme prevê a Convenção

169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse sentido o analista pericial

arguiu:

O argumento defendido, desde o início, é o de que o que foi

apresentado pela pesquisadora contratada pela “Altomare e

Gonçalves” não foi uma “Consulta” nos moldes da Convenção

169/1989 da OIT, mas, tão-somente, um “projeto” que, sem muita

fundamentação, na melhor das hipóteses, poderia ser visto como de

“etnodesenvolvimento” (2017: 61). 79

Esse caso é um exemplo concreto dos conflitos vivenciados por essa

comunidade em relação ao avanço imobiliário e que tem efeitos na vida das pessoas; um

possível atrito com os indígenas de Douradina e a pressão vivenciada pela comunidade

do Tekoha 1 são só alguns exemplos dos efeitos desencadeados a partir dessa disputa.

***

A vice-liderança do Tekoha 2, ao qual irei me referir adiante, em algumas

conversas também me chamava atenção para a proximidade da cidade com a reserva, e

isso era facilmente observado. Eu mesma percebia o crescimento da cidade, comparado

com as primeiras vezes que estive em Dourados. Ademais, para acessar as áreas de

retomadas, circulei por bairros que cinco anos atrás não existiam.

Atenta a essas questões, também passei a pesquisar sobre o Plano Diretor de

Dourados e descobri que no ano de 2011 a câmara de vereadores da cidade aprovou o

aumento de 150% do perímetro urbano da cidade passando de 82 km² para 211,69km²80.

Além disto, ainda no ano de 2015 foi aprovada uma nova ampliação do perímetro aparente resolução da situação [no Tekoha 1] criariam problemas muito mais graves em Douradina,

colocando índios de uma comunidade contra outra. Qualquer antropólogo minimamente informado sobre

o que ocorreu com os Kaiowá durante os deslocamentos para as Reservas até os anos 1980 saberia as

consequências desastrosa de se colocar grupos distintos para conviver lado a lado”. 79 Destaque do autor. 80 Fonte:http://www.campograndenews.com.br/cidades/interior/camara-aprova-ampliacao-em-quase-150-

do-perimetro-urbano-de-dourados

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urbano, sendo que apenas um vereador votou contra a proposta, o vereador Elias Ishy

(PT)81. Em entrevista com Elias Ishy ele disse que o motivo de ter votado contra a

proposta de ampliação, foi porque ela não passou por um amplo debate público82.

Pelas razões acima expostas, a questão do crescimento urbano se torna uma

questão a ser levada em consideração para pensar os acampamentos indígenas na região

de Dourados, não apenas no sentido de que a cidade está avançando nas áreas indígenas,

o que por si só já é relevante, mas também pensar, como já pontuou Crespe (2015),

como os indígenas também estão “cercando” a cidade em suas mobilizações para

retomar seus territórios.

Nessa perspectiva, a obra de Andrello (2006) traz alguns elementos

interessantes. Andrello, em seu trabalho com a comunidade de Iuaretê, opera uma

dissolução da oposição entre os estudos de contato e da etnologia clássica. Para

desenvolver sua pesquisa se preocupa em entender a história, bem como entender quem

são esses povos indígenas, mas também parte da perspectiva do conhecimento

etnológico para buscar compreender o que os próprios indígenas pensam sobre Iauaretê.

A escolha de Iauaretê pelo autor se dá por ser uma localidade plural e apresentar

diferentes modalidades de relacionamento entre os indígenas da região e outros atores

sociais e por apresentar uma alta concentração populacional e aspecto urbano.

Assim, em Cidade do Índio (2006), Andrello se pergunta em que medida

as etnografias clássicas o ajudam a entender Iauaretê e quais são os novos processos que

estão lá ocorrendo. Nas palavras do próprio antropólogo: “no rio Negro a pergunta que

eu não podia deixar de fazer dizia respeito às novas dinâmicas de urbanização e ao

grande interesse demonstrado pelos índios em participar dos debates e dos

encaminhamentos relativos ao desenvolvimento da região” (2006: 33). Em busca de

responder essas questões Andrello observa que o termo civilização vai ganhando mais

contorno na própria fala dos indígenas, o que levou a civilização a se tornar o conceito

chave de sua análise. O autor também incorpora as reivindicações indígenas à análise e

se preocupa em como se expressa a consciência multiétnica em Iauaretê, bem como

mostra como os povos indígenas estão entendendo e procedendo com as transformações

causadas pelo contato. Essa visão permitiu que Andrello, pensasse as populações

81Fonte:http://www.douradosnews.com.br/dourados/ishyquestionanovaampliacaodoperimetrourbanodedo

urados 82 Elias Ishy também falou que a ampliação do perímetro urbano é motivada principalmente pela

especulação imobiliária. Em outros trabalhos consultados, também são apontadas que as questões

ambientais não foram levadas em conta no projeto de ampliação do perímetro urbano.

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indígenas como também englobando a sociedade nacional, ou seja, como um

movimento de mão dupla e não unidirecional.

Andrello, contudo, não nega a voracidade do capitalismo entre a população

indígena. No entanto, aponta que apesar de os indígenas do Rio Negro estarem

conscientes de que se transformaram, acreditam que se transformaram de uma maneira

própria; ora, está mostrando que os “rionegrinos” são sujeitos do contato bem como são

transformados por ele, porém, através das suas perspectivas, pois, a cosmologia do Rio

Negro está em constante desenvolvimento e transformação. Isso se torna claro quando

os indígenas dizem que são civilizados e que se fazem brancos, o que não significa dizer

o mesmo que se virou ou que se é branco.

Partindo de uma concepção parecida, Cristiane Lasmar em De volta ao Lago

de Leite (2005), que também tem como lócus de pesquisa o Alto Rio Negro, está

interessada em entender as transformações que ocorrem no modo de vida indígena

quando esses deixam a sua comunidade para viverem em cidades como São Gabriel da

Cachoeira. Assim, também busca compreender, como Andrello, qual a visão dos

próprios indígenas sobre as suas relações com os brancos. A novidade do trabalho de

Lasmar é que ela aborda esse tema pela problemática do gênero, ou seja, quer conhecer

as perspectivas das mulheres indígenas sobre suas experiências na cidade tal como suas

relações com os brancos.

A cidade para os Kaiowá e Guarani é também um ponto importante para

acessar recursos. É na cidade que muitos indígenas fazem as suas compras, pedem

ajudas para os comerciantes conhecidos para conseguirem doações de lenha, materiais

que ajudem nas construções dos barracos e as vezes roupas e alimentos. Além disso, a

proximidade com a cidade é importante pois representa a oportunidade de se arrumar

um emprego e dos jovens continuarem seus estudos em escolas técnicas e faculdades.

Porém, a proximidade com os centros urbanos pode trazer problemas, por isso a relação

com a cidade nunca deixa de ser uma relação tensa e controlada.

Em conversa com a liderança do Tekoha 1, ele me relatava que um dos

motivos de gostar de viver no Tekoha 1 era porque estava perto da cidade, assim,

quando ele precisava ir à Funai ou ao MPF resolver algum problema, ou fazer alguma

reivindicação para a sua comunidade, ele conseguia acessar esses lugares facilmente.

Outro ponto positivo apontado por ele, era de estar perto da UPA83. Através da narrativa

83 Unidades de Pronto Atendimento.

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da liderança, também percebia sua relação com as pessoas da cidade, conseguindo

inclusive articular “benfeitorias” para o Tekoha 1. Nesse sentindo duas histórias são

relevantes. A primeira dela foi quando ele conseguiu 30 cadeiras e mesas para escola

que funciona no Tekoha 1. Quando eu perguntei como ele conseguira essas carteiras

escolares, ele me contou, que um freteiro, que costuma levar algumas coisas ao tekoha,

o avisou que haviam mesas na escola que descreveu como “Terra Roxa” - é uma escola

que fica na cidade, perto do estádio Douradão, como ele me explicou. Então ele e seu

irmão foram ver as carteiras e conseguiram trazer para o Tekoha 1 junto com a ajuda do

freteiro.

A outra história se refere as caixas de madeira que estavam espalhadas na

área e que me chamavam atenção desde a minha primeira visita. A liderança havia

conseguido essas caixas, de uma fábrica que as descartara como resíduo de produção e

os moradores as utilizavam como lenha. A relação com a cidade se dava também nas

idas ao mercado e com vendedores que vendem carne, sorvete e outras coisas no Tekoha

184. Assim, ao circular pela cidade os indígenas também vão conhecendo pessoas e

articulando uma rede de ajuda que somada a capacidade da liderança pode garantir

alguns recursos para o grupo. Por outro lado, a cidade também representa perigo,

principalmente pelo acesso fácil, como menciona a liderança, “a bebida alcoólica e as

drogas”, por isso, uma das regras do Tekoha 1, como do Tekoha 2, é a proibição de não

indígenas nos tekoha. A liderança do Tekoha 1 também relatava que ‘colocou segurança

no tekoha’ justamente para o pessoal da cidade “ter respeito”, aliás, a palavra respeito

está na placa logo no início da estrada que dá acesso ao Tekoha 1.85 A liderança em

outro momento também falou que uma das intenções de colocar a placa era por causa do

pessoal dos bairros vizinhos, principalmente o Bairro 1, que entram no Tekoha 1 para

levar bebida. Nas palavras da liderança, “essas pessoas não têm respeito”, todavia,

colocando a placa eles viriam que ali era uma aldeia e que não se pode fazer o que quer,

ficando mais receosos para entrarem.

Controlar o que é de fora é importante para manter a estabilidade do grupo e

evitar conflito, além disso, a preocupação do que vem de fora está associado

diretamente ao controle da mistura, como será visto no próximo capítulo. Enquanto que,

estar entre parentes é “mais fácil para aconselhar e corrigir”.

84 Esses vendedores são conhecidos como mascateiros, pelos indígenas. 85 Essa segurança mencionada pela Liderança do Tekoha 1, se refere a um grupo de jovens e adultos,

alguns sobrinhos da liderança, além da vice-liderança. Algumas vezes quando eu cheguei ao tekoha, esse

grupo vestia um coleto escrito SEGURANÇA.

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2.2 O Tekoha 2: um barraco colado no outro

O Tekoha 2 é uma retomada Kaiowá e Guarani que está localizado numa

área contínua a aldeia Bororó e a margem da estrada, próximo à área urbana, onde se

localiza o Bairro 3. Além da proximidade com a reserva e com a cidade, ao lado do

Tekoha 2, também às margens da estrada, se encontra outra retomada, o Tekoha 3 86.

A liderança do Tekoha 2 é um senhor entre 50 e 60 anos de idade. Sua

família é oriunda da Reserva de Amambai. Ele é casado e sua esposa é quem conseguiu

reunir alguns de seus filhos na área (três filhas e um filho). O espaço em que está

montado o barraco da liderança fica próximo da estrada (ver croqui 4, abaixo) e está

cercado por madeiras. Existe uma entrada larga, que dá acesso aos barracos. Logo na

frente, colado com a cerca tem um barraco de madeira que não é muito alto, próximo a

esse barraco existe um outro ainda maior.

A área da liderança está dividida pela plantação de bananeiras que fica do

lado direito mais próxima à rodovia e pelas construções dos barracos, no lado direito.

Na área mais ao fundo é onde costuma-se plantar milho e ramas, e seguindo a plantação

de bananas, ao fundo, tem o barraco de uma das filhas de sua esposa. O terceiro barraco,

mais ao meio da área, coberto com palha é a cozinha, e ainda existiam mais dois outros

barracos. Esses barracos são construídos de madeira e estavam cobertos de telha Eternit.

Apenas a cozinha era coberta com lona e folhas secas. A configuração da área que a

liderança ocupa no tekoha tem um formato de um U, o espaço aberto é uma espécie de

pátio para onde os barracos estão voltados e onde está a cozinha. A plantação de banana

estava muito bonita, havia vários pés, e a maioria deles estavam com grandes cachos, a

liderança me falava com orgulho do número de cachos de bananas.

A vice-liderança e sua família vivem na outra extremidade do Tekoha 2,

próxima a uma escola da aldeia Bororo. A vice-liderança é uma mulher de 34 anos de

idade, casada e mãe de três filhos: uma menina adolescente e mais dois meninos, um de

9 anos e outro de 11 anos de idade87. A área onde a família da vice-liderança mora é

bem espaçosa. Nela existe uma casa em construção88. Ao lado do barraco da casa tem

um barraco grande, maior do que o primeiro utilizado como cozinha. Na frente da

86 Ver croqui 4, pp. 81. 87 Detalhes sobre a trajetória da vice-liderança do Tekoha 2 será apresentada no Capítulo III. 88 Na primeira vez que estive no acampamento havia bastante materiais e madeiras espalhadas pelo chão.

Das outras vezes que estive no local o pátio estava limpo e a vice-liderança falou que tinha adiantado a

reforma do barraco, mas que ainda estava terminando. Também encontrei algumas vezes seu marido

trabalhando nessa reforma.

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cozinha há um barracão que serve como uma varanda e nos fundos tem um espaço

fechado para guardar materiais e ferramentas. Do lado esquerdo desse barracão tem um

barraco menor, com piso no chão e existe um balcão que separa da área construída na

frente. Dentro desse cômodo havia chinelos pendurados, biscoitos salgados e doces,

bem como chicletes e balas. Esse espaço funciona como uma venda e lanchonete que

atende os moradores do tekoha, mas principalmente as crianças e adolescentes que

frequentam a escola.

Todos os barracos são feitos de madeiras grossas que envolvem as laterais

da estrutura, segundo a vice-liderança, ela costuma pedir madeira para algumas pessoas

da cidade. Apenas a cozinha é coberta com lona preta, os outros três barracos são

cobertos com telhas Eternit que ela comprou ou aproveitou de outros espaços. O chão

do barraco que serve como dormitório é feito de cimento.

As lideranças vivem em lados opostos da área do Tekoha 2, essa localização

permite que as lideranças acompanhem o movimento de entrada e saída de pessoas no

tekoha89. Assim, a localização dos moradores nas áreas de retomadas, também são

importantes para pensar, não só em termos de organização, mas também de estratégia de

vigilância e de segurança, uma vez que os moradores dessas áreas, temem algum tipo de

ataque.90

Em relação a estrutura física dessa retomada, os moradores não têm luz

elétrica nem água encanada. Para ter acesso a água eles abrem poços. As lideranças já

haviam feito pedido, tanto para conseguirem água, como energia elétrica para o Tekoha

2, mas por ser uma área de ocupação, na qual ainda não foi realizado nenhum estudo, a

Funai avisou que o fornecimento de energia elétrica poderia não se concretizar.

89 Era notório como as lideranças com quem eu conversei estavam sempre muito atentas com tudo que

acontecia ao seu redor. A liderança do Tekoha 1, por exemplo, avista uma pessoa chegando a área a uma

longa distância, uma vez também, enquanto conversámos ele viu um carro branco na rodovia e comentou

que era o carro da Sesai, tempo depois esse carro chegou ao tekoha. 90 A preocupação com a segurança é cotidiana, visto o longo histórico de ataques que a população

Guarani e Kaiowá vem sofrendo no MS. Exemplos disso são os ataques que ocorreram nos meses de

junho e julho de 2016 no Tekoha Guapoy, no município de Caarapó. Pistoleiros com tratores e

caminhonetes atacaram os moradores. No primeiro ataque, no mês de junho, o agente de saúde Clodiodi

Souza foi assassinado e mais seis indígenas foram hospitalizados. Um mês depois, na mesma área, outro

ataque a população e mais três indígenas foram baleadas. A violência desses ataques, foi tamanha, que

algumas pessoas passaram a denominá-lo de “massacre de Caarapó”

(http://cimi.org.br/massacredecaarapo/cronologia/). Em Dourados, em março, após retomadas que

aconteceram nas proximidades do Tekoha 2 e Tekoha 3, o indígena Isael Reginaldo foi baleado durante

um ataque de fazendeiros contra o tekoha Ita Poty, na divisa dos municípios de Dourados e Itaporã (MS).

Infelizmente, esses são só dois exemplos da violência cotidiana enfrentada pela população Guarani e

Kaiowá.

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O tekoha conta com uma área de 26 hectares, as famílias estão espalhadas

pelo terreno ocupado. Essa distância entre os barracos e o relativo espaço da área

permite que as famílias plantem algumas coisas, como rama, feijão e as vezes milho. É

comum ver próximos aos barracos dos moradores áreas cultivadas. A vice-liderança por

exemplo, além dos cultivos costumeiros, já citados, e de hortas, também cria patos e

galinhas. Além disso, ela e seu marido plantaram várias árvores frutíferas. As árvores

frutíferas, além das suas qualidades práticas como a produção de frutas e sombras para

as pessoas, podem ser pensadas, nesses contextos, como expressões simbólicas do

desejo de permanência no tekoha retomado. Micaelo (2014) ao estudar um

assentamento rural na Zona da Mata dedicou parte do seu trabalho para falar da

“importância das árvores enquanto elemento indissociável da posse da terra para os

habitantes de Arupema e a história das suas tensões na região” (2014, 167). As árvores

frutíferas são descritas como um atributo de autoridade por estabelecer uma relação

mais duradoura com o local, motivo pelo qual, muitos fazendeiros proibiam que os

trabalhadores rurais as plantassem nos seus locais de moradia, e acrescenta: “as árvores

de fruto ganham com efetividade um lugar específico nesta luta pela posse da terra que

se articula também com outros sentidos de uma identificação entre pessoa e o chão [...]”

(2014, 168).

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Figura 9. Croqui 4: Tekoha 2, fevereiro de 2016. Representação elaborada a partir da pesquisa etnográfica realizada no período de fevereiro a abril de 2016. Elaboração do

croqui: Marcia Soares.

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A organização desse tekoha foi um dos elementos que me chamou atenção.

Distinto de outras áreas de retomada que conheci, no Tekoha 2 há um cadastro de

moradores, ele foi feito e era atualizado pela vice-liderança. Os barracos dos moradores

são numerados e há um regulamento, o qual foi escrito e, inclusive enviado para a Funai

e o MPF. Nesse regulamento constam as normas de convivência na área, a principal

delas refere-se a proibição de bebida alcoólica no tekoha. Ademais, no Tekoha 2,

também existe a figura dos conselheiros. Segundo a vice-liderança são 12 conselheiros

divididos por áreas: saúde, educação, criança e adolescente, mulheres, segurança e

agricultura.

Também é realizado no Tekoha 2 reuniões com os moradores, a cada 15

dias. Nessas reuniões, que as lideranças chamam de “reunião da comunidade”,

geralmente são discutidas as normas do tekoha, bem como informações sobre o

processo de estudo da terra e os principais problemas que eles enfrentam. Em conversa

com a ex-liderança de Caarapó91, atualmente morador e conselheiro de saúde no Tekoha

2, ele me contou que foi ele quem pediu para as reuniões acontecerem com maior

frequência:

Nós pedimos para reunião, reunião 15 em 15 dias né, conversar

com a comunidade, né. Conversei com a [vice-liderança], com

[liderança], aí nós tivemos reunião. Aí nós agendamos a cada

15 dias vai ter que ter reunião, conversar com o pessoal,

organizar. O que quer dizer organização, o pessoal tem que

entender, porque se eu falar organização eles não sabem, mas

tem que explicar o que quer dizer organização, né. Por isso que

eu falei lá, muitas vezes se fala, ‘vamos se organizar?’ Todo

mundo fala vamos, mas, você não sabe se ele está entendendo o

que ele está falando. Organização não é tão fácil, como se

organizar. Estava falando, nós somos equipe de 11 pessoas né,

da comissão, eu estava falando, para a [vice-liderança] esses

dias, estava aqui sentado, eu falei para ela: ‘vamos organizar

primeiro uma equipe, porque se a equipe não se organizar,

como que nós vamos organizar a comunidade. Tem que

organizar a equipe primeiro, para depois organizar a

comunidade. Como começamos, agora já teve primeira reunião,

domingo que passou né, esse domingo vai ter, outra vai ter de

novo, então vamos começar.

Esse tipo de organização é incomum nas áreas de retomadas indígenas. Por

outro lado, há uma extensa bibliografia, sobre a temática do mundo das ocupações sem-

terra, que descreve as organizações de acampamentos, como os do Movimento Sem

91 A ex-liderança de Caarapó e sua família são antigos moradores do Tekoha 1, como mencionado

anteriormente.

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Terra (MST), situando os cadastros de moradores, a numeração de barracos e o

regulamento interno, com a proibição de bebidas e agressões dentro dos acampamentos

como uma das principais regras para gerir o cotidiano nesses espaços92.

As reuniões acontecem num barracão que foi construído especialmente para

ocasiões como essa. Segundo me informou a vice-liderança, o barracão foi construído

por iniciativa dela, quando ainda não era vice-liderança, e de outras mulheres do tekoha,

elas o ergueram em conjunto. O barracão é feito com madeiras e troncos de árvores, o

teto e suas laterais são cobertos com uma grande lona. Nas duas laterais estão dispostas

tábuas em cima de pedaços de troncos de árvores que servem como bancos para as

pessoas se sentarem nos dias de reuniões, além desses bancos o outro objeto que fica

dentro do barracão é uma mesa, também de madeira.

A reunião da comunidade

Em um domingo de abril de 2016, participei pela primeira vez da reunião

da comunidade, após o convite da vice-liderança, a quem já vinha mostrando meu

desejo de participar dessas reuniões há um tempo. Quando cheguei ao Tekoha 2 para a

reunião, ainda não tinha ninguém no barracão, mas, aos poucos algumas mulheres

foram chegando e a vice-liderança pediu para nós nos dirigirmos ao barracão. Seus

filhos levaram uma cadeira para ela se sentar e outra para mim. Nessa reunião, a maioria

das pessoas que participaram foram mulheres que vieram junto com seus filhos

pequenos. A presença masculina se restringia a liderança, ao marido da vice-liderança e

a ex-liderança de Caarapó. Como eu, mais dois mascateros (vendedores) que

comercializam no Tekoha 2, também foram convidado para participar dessa reunião (os

motivos exponho a seguir), a liderança, fez questão de agradecer a nossa presença, em

mais de uma ocasião.

A reunião foi conduzida pela liderança, o único que não se sentou, ficando

atrás de uma mesa, alocada mais ao fundo do barracão. Em cima da mesa tinha os

documentos que a liderança havia levado, dentro de uma pasta e que foram espalhados

pela mesa e uma garrafa de dois litros com água usada para preparar o tereré faziam a

composição final da mesa. Nessa reunião os principais temas tratados foram: as eleições

para prefeitos e vereadores de 2016, o fornecimento de energia elétrica ao Tekoha 2, o

cultivo de roças na área, as regras de participação nas reuniões e, como se aproximava o

92 Para mais informações consultar Sigaud, 2002, 2009; Macedo, 2005; Loera, 2006, 2014; Rosa, 2009.

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dia 19 de abril, a maior parte da reunião foi para organizar a festa do dia do índio, para a

qual foi pedida contribuições, principalmente aos mascateros.

Figura 10. Dia de reunião no Tekoha 2. Foto: CORRADO, 2016.

A liderança começou a reunião falando a respeito do encontro que havia

participado na Aldeia Jaguapiru, onde estavam presentes políticos locais que buscavam

apoio para as eleições de 2016. Segundo a liderança esse é um assunto relevante para o

Tekoha 2 porque “uma retomada também é política, está na política”. Depois de algum

tempo transcorrida a reunião, ele voltou a falar do encontro com os políticos/candidatos

e disse, que nessa ocasião, pediu para que eles visitassem “acampamento por

acampamento, porque retomada faz parte da política”, era preciso que eles chegassem

ao acampamento e perguntassem como estavam, “ver nossa situação” e perguntar que

tipo de ajuda a ‘comunidade’ precisa e mais uma vez mencionou que “uma retomada

não está fora da política”. A ex-liderança de Caarapó, ainda complementou dizendo

que “todas as coisas são com política que se faz”. Com relação a esse assunto a vice-

liderança disse que não vendia seu voto e que era preciso que o candidato trouxesse uma

proposta, dizer “que propósito você tem para povos indígenas” e “ouvir nossos

propósitos e ver o que a gente precisa”, ela citou, por exemplo, que o tekoha precisava

de muita segurança, de uma vigilância 24 horas.

Boa parte dessa discussão aconteceu em guarani, a questão era se eles iam

apoiar os candidatos da reunião, da qual a liderança do Tekoha 2 participara, ou não. Por

isso, levantaram a necessidade dos candidatos conhecerem as áreas de retomadas, as

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realidades de seus moradores e apresentarem proposta, não bastava eles visitarem

apenas as áreas de reserva, como é comum em época de eleições.93

Outro ponto da reunião foi a respeito do documento sobre o fornecimento de

energia elétrica. O documento apresentado pela a liderança, que também pediu para a

ex-liderança de Caarapó ler e dar sua opinião, era da agência de fornecimento de

energia. Esse assunto não tomou muito tempo e a maior parte dele foi dita pela liderança

em guarani, um dos poucos comentários ditos em português foi que a “energia faz parte

da saúde”.

Depois disso os temas abordados na reunião giraram entorno das questões

internas ao Tekoha 2. Nessa parte, a vice-liderança é quem tomou a frente da reunião.

Foram citados os nomes das pessoas que, pela segunda vez, não vieram à reunião; a

vice-liderança também apresenta reclamações de algumas famílias e acrescenta que

quem não comparecer a três reuniões seguidas terá que ir embora do tekoha. Outro

ponto mencionado foi sobre o que eles chamam de ‘lotes sujos’, as áreas que não estão

sendo cultivadas pelos seus moradores e estão com mato alto. A esse respeito, decidiu-

se que os moradores que não tem terra plantada, vão ter seu lote dado a outra família,

ficando apenas com o local da sua casa, pois, como a vice-liderança disse, “eles iriam

dar prioridade para quem plantar”. Ela ainda ressaltou que tudo que eles plantam dá

para ser vendido, porque eles estão próximos da cidade.

Por fim, o tema central da reunião era acerca da organização da festa de

comemoração do dia do índio e sobre a contribuição dos mascateros que, por venderem

no Tekoha 2, deveriam colaborar com três eventos ao ano. Nessa parte da conversa, que

também foi coordenada pela vice-liderança, ela dissera que “quem entrar vai pagar

tudo”. Nessa discussão foi levantada a questão de quais mascateros continuariam

liberados para vender no Tekoha 2, com a proposta, inclusive, de criar uma licença para

aqueles que conseguissem a permissão. Então a vice-liderança começou a fazer uma

lista dos mascateros que conheciam e vendiam para os moradores do tekoha, com a

ajuda dos outros participantes da reunião. Essa lista tinha duas finalidades: escolher a

contribuição de cada mascatero para a festa do dia do índio. O mascatero que não

ajuda, ou ajuda pouco, teria que contribuir com uma maior parte. A segunda função da

lista era decidir quais mascateros continuariam tendo permissão para vender na área.

Assim, os nomes dos mascateros foram sendo citados e aqueles que sempre ajudavam e

93 As falas durante a reunião se dividiram entre o português e o guarani. O que não consegui entender

durante a reunião perguntei para a vice-liderança ao final.

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vendiam bons produtos, recebiam um ‘OK’, aqueles que nunca ajudaram, ou que foram

acusados de levar produtos de má qualidade, ou estragados, seriam suspensos.

Com a reunião chegando ao fim, a vice-liderança colocou um caderno em

cima da mesa e pediu para que todos que participaram da reunião assinassem a lista de

prresença, feita por ela numa folha de caderno.

A descrição dessa reunião, além de mostrar uma das formas de organização

interna das áreas de retomadas, nos diz acerca das relações, trocas e arranjos

estabelecidos. Por exemplo, as pessoas que mais falaram na reunião foram as

lideranças, mas a esse respeito, um ponto interessante a ser ressaltado é que a fala da

liderança tratava sobre questões externas do Tekoha 2, como o encontro com candidatos

na aldeia Jaguapiru e a questão da carta sobre a energia elétrica, enquanto todas as

questões relativas as regras de condutas no tekoha, as regras das reuniões, bem como

toda a discussão sobre os mascateros foram conduzidas pela vice-liderança. Isso pode

nos dizer sobre o papel que cada liderança assume na área. A liderança do Tekoha 2 é

conhecido pelas pessoas de fora e em nossas conversas também percebi que era ele

quem ia a Funai fazer algum pedido ou reivindicação, era ele também, como

mencionado, que estava cuidando do pedido da energia elétrica para a retomada. Por

outro lado, a vice-liderança se debruçava sobre as questões internas da área, a própria

liderança, me dizia que sobre os assuntos de regulamento do Tekoha 2 eu poderia

perguntar para sua vice, porque era ela quem cuidava disso.

A ex-liderança de Caarapó também participou mais ativamente da reunião.

Ele se sentou próximo da liderança do Tekoha 2 e a carta da agência de energia elétrica

foi compartilhada apenas com ele. Embora a ex-liderança de Caarapó esteja a pouco

tempo no Tekoha 2, ele já tem uma conduta de destaque na área e, como mencionado

anteriormente, foi ele quem sugeriu que essas reuniões acontecessem com mais

frequência.

A questão dos mascateros é um caso interessante para perceber como essas

relações não são pautadas apenas pela compra e venda como, num primeiro momento,

podem parecer, mas operam também pelo princípio da dádiva, de dar, receber e retribuir

(Mauss, 1925). O mascateiro que não ajuda é aquele que não deve ter a licença para

vender no Tekoha 2, ou seja, é aquele que deixa de participar da troca, enquanto que

aquele que ajuda e contribuí nos dias de festas, mantem sua relação com a comunidade,

que por sua vez retribuí mantendo a permissão de comercializar na área e comprando

seus produtos.

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A fofoca também foi um elemento presente. A partir das fofocas que

circulam é possível aprender como se organizavam as relações nestes espaços. Em

momentos de conflito e disputa, tanto a fofoca como “a feitiçaria é um aspecto central

na vida dos grupos Guarani, e as acusações constituem um aspecto fundamental no

estabelecimento dos conflitos – e das relações em geral - entre as pessoas” (BARBOSA

da SILVA, 2007: 56). O cotidiano Kaiowá e Guarani, envolve disputas, acusações,

fofoca e feitiçaria, mas antes de serem elementos desagregadores, eles fazem parte de

uma forma específica de se relacionar com os espaços e com as pessoas, bem como de

se fazer política. Através das fofocas, informações vão circulando, tornando-se um

mecanismo da verdade que pode tanto agregar como excluir coisas, pessoas e relações.

A História da retomada

A retomada do Tekoha 2 aconteceu no final do mês de maio de 2011, numa

manhã de domingo. A antiga liderança do tekoha foi quem organizou a retomada. Nas

palavras da minha interlocutora, a antiga liderança organizou a retomada, chamando

principalmente conhecidos da aldeia Bororo, “então eles foram convidando as famílias

para irem morar no acampamento para reforçar a retomada”. A vice-liderança e sua

família foi uma das convidadas.

Essa retomada foi motivada principalmente por duas questões: a primeira

delas é por causa da falta de terras e da superpopulação na Reserva de Dourados, sendo

que muitas famílias, contam com espaços muito restritos de moradia e sem lugar para

plantar. Essas famílias são principalmente, aquelas que chegaram após os anos 1980 e

tiveram dificuldade para se assentar nesses locais (CRESPE, 2015). Sobre essa questão

Crespe escreveu:

“Se acomodar em outras áreas, onde já viviam outros grupos, não se

trata de uma tarefa fácil, ainda mais quando levado em consideração a

falta de espaço dentro das reservas. Assim, depois da expulsão é

comum que as famílias fiquem passando de reserva em reserva até se

“lembrarem” de voltar ao tekoha.

Quanto ao [Tekoha 2], chama atenção a não acomodação do grupo à

situação de reserva. Os moradores que vem para o [Tekoha 2] não são

estabelecidos dentro dela. A tentativa das pessoas do local é produzir

condições de vida melhores daquelas encontradas dentro da reserva”

(2015: 246).

A segunda questão, se refere a diminuição do perímetro da Reserva de

Dourados quando está foi criada. Como foi pontuado anteriormente, das reservas

criadas pelo SPI entre 1915 a 1928, apenas uma não teve seus limites diminuídos. No

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caso da Reserva de Dourados a área prevista para sua criação era de 3.600 hectares, mas

de fato, foram demarcados 3.539 hectares, ou seja, 61 hectares a menos. São esses

hectares subtraídos no ato da demarcação da reserva, que, tanto o Tekoha 2, como o

Tekoha 3 reivindicam. Somam a essa reivindicação as informações dos indígenas de

parentes e conhecidos que viveram nessa região, dos quais foram sendo expulsos e

empurrados para reserva com as chegadas das fazendas.

Numa reportagem que saiu na época da ocupação destaco dois trechos que

tocam nessas questões:

O grupo justifica a ocupação alegando que as terras são indígenas, já

que os antepassados guaranis teriam residido no local. Eles citam o

indígena guarani Sapriano Gonçalves, avô de uma das lideranças. “Ele

era dono destas terras. Arrendou para um branco plantar, que por sua

vez vendeu as terras, sem que fossem dele”, explica. (Jornal o

Progresso, 06 de jun. de 2011)

E logo abaixo:

Segundo o cacique, a ampliação da Reserva de Dourados é necessária,

porque as famílias indígenas estão “sufocadas” nas aldeias. O fato,

segundo ele, contribui para que a população local sofra com a miséria

e violência que tomaram conta das aldeias. (idem)94

A retomada chegou a contar com o apoio de 120 famílias no início, como

relatou meus interlocutores. Mas, após o primeiro momento da ocupação,

permaneceram no local quatro famílias e só depois foram chegando novas famílias ao

tekoha. Essa fase é narrada pela vice-liderança como um momento de muita tensão. Ela

conta que eles montaram os barracos próximos a estrada, e que naquela época o Tekoha

2 não tinha a configuração que tem hoje – as residências estão espalhadas pelo terreno

ocupado e muitas famílias mantêm hortas próximas aos seus barracos. Assim, no início

do acampamento morava todo mundo junto, “um barraco colado no outro”. O motivo

principal dessa configuração era por causa do medo de represália do proprietário da

terra, dessa forma, os moradores ficaram próximos para garantir a segurança do grupo.

Sabia falar bem, sabia das coisas

Nas narrativas das atuais lideranças do Tekoha 2, a antiga liderança passou a

apresentar problemas. A antiga liderança era acusada de alcoolismo e de não controlar

a entrada de bebida alcoólica na área e havia reclamações do excesso de sua autoridade.

Segundo minha interlocutora, esses foram os motivos, que após morar durante quatro

94 Fontes: http://www.progresso.com.br/caderno-a/rural/indios-das-etnias-caiuas-e-guaranis-ocupam-

fazenda-em-dourados

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meses no Tekoha 2 a fizeram ir embora, voltando com sua família para a Aldeia Bororo.

Porém, ela contou que, transcorrido um tempo, a antiga liderança a procurou e pediu

que ela e sua família voltasse a morar no Tekoha 2. Ela voltou com a condição de que

não moraria mais “perto de todo mundo”, que iria “escolher um canto para ela” e

acrescentou que quando se mudou havia transito de jagunços armados pela região, mas

que ela não tinha medo e que continuou no lugar atual. Ela ainda relata que foi só após

montar o barraco em outro local que as outras famílias começaram a se espalhar pela

área.

As indisposições com a antiga liderança reiniciam quando minha

interlocutora recebe a ajuda de um antigo professor e funcionário da Funai. Ele levava

mudas de plantas e ela as distribuía com os outros moradores do tekoha. Segundo

descreveu, a antiga liderança começou a se incomodar e, certa vez, ao ver o funcionário

sozinho falou que não era para ele levar mudas para ela, mas para a liderança. As

tensões entre os dois foram agravando a relação entre moradores e a antiga liderança,

sempre somadas a alguma nova denúncia. Uma delas, relatada pela liderança atual,

acusava a antiga liderança de ter recebido dinheiro e uma camionete num suposto

acordo com os fazendeiros em troca de sair da área. Para a liderança atual essa não era a

atitude que correspondia a um “Pai de Comunidade”95. Meu interlocutor também me

contou sobre o episódio do dia em que a antiga liderança chegou bêbado em sua casa

dizendo que era para ele e sua esposa, pegarem suas coisas e irem para o Tekoha 3.

Nessa ocasião, a liderança atual disse que passou um sermão, falou sobre o estado dele,

se ele achava certo um líder andar daquele jeito.

O desfecho dessas desavenças se deu quando a atual vice-liderança pediu

para ele ser a liderança do Tekoha 2, pois ele era “um homem correto e que não bebia”.

Meu interlocutor disse que aceitaria se as pessoas o vissem como um “Pai de

Comunidade”. Em reunião com a comunidade do Tekoha 2 foi produzido um

documento onde descreviam as denúncias da antiga liderança e o comunicado que a

partir daquele dia as novas lideranças assumiam as responsabilidades do Tekoha 2.

Cópias desse documento foram posteriormente entregue a Funai e ao MPF pela a

liderança atual.

Na narrativa dos meus interlocutores, percebe-se, como a vice-liderança

teve um papel essencial na saída da antiga liderança, estando presente, inclusive, nas

95 Pai de Comunidade era o termo que muitas vezes a liderança do Tekoha 2 usava para se referir a seu

papel como liderança. Não ouvi outras pessoas usarem essa expressão, além dele.

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articulações da escolha por uma nova liderança para o tekoha. A liderança do Tekoha 2,

aliás, se referia a vice-liderança como uma defensora das mulheres e sobre o seu

trabalho de proteção as crianças no tekoha96. Na época da pesquisa, era a vice-liderança

quem registrava e mantinha atualizados o cadastro de moradores da área.

Segundo minha interlocutora, ela havia indicado o nome da liderança atual,

porque ele não bebia e “ele sabia falar bem, sabia das coisas”. Falar bem não é um

atributo nada banal para uma liderança, pois “saber falar, no sentido de proferir palavras

edificantes para a boa convivência, é um atributo imprescindível para a sociabilidade

Kaiowá” (PEREIRA, 2004: 100)97. Ela ainda disse que nunca pensou em ser a vice-

liderança do Tekoha 2 e não esperava que aquele dia o pessoal a aceitasse. Quando

perguntei a ela sobre onde tinha adquirido conhecimento para lidar com as atribulações

de uma área de retomada, ela me contou sobre um dos seus irmãos, que mora no tekoha

Pueblito Kuê, no município de Iguatemi – área retomada desde 2008 – foi ele quem a

orientou em alguns momentos, e acrescentou que também aprendeu vivendo na área de

retomada.

Outro evento no qual a vice-liderança teve papel importante foi quando

chegou um pedido de reintegração de posse da área. Quando isso aconteceu, a liderança

do tekoha já havia mudado. No entanto, na ordem de reintegração de posse constava o

nome da antiga liderança, então ela disse: “vocês levam esse pedido pra ele, ele e o

pessoal dele que tem que sair daqui, porque o papel veio no nome dele, agora a

liderança daqui sou eu e [o pai de comunidade], então ninguém vai sair daqui, quem

tem que sair é ele”. Na fala dela, sua astúcia em perceber que o pedido de reintegração

de posse não estava no nome das lideranças atuais, impediu que ocorresse um despejo

no Tekoha 2, pois a ordem não pode ser entregue.

Por outro lado, a mudança de liderança gerou um clima de instabilidade no

Tekoha 2. Além disso, não foram todas as famílias que apoiaram as lideranças atuais,

ficando, por sua vez, do lado da antiga liderança. Como essas famílias permaneceram no

tekoha, elas demandam bastante habilidade das novas lideranças. Essas famílias são

geralmente acusadas também de não estarem seguindo as regras do Tekoha 2.

96 A vice-liderança é conhecida por alguns indígenas e por alguns representantes do estado, como uma

defensora dos direitos das mulheres. 97 Como visto, saber falar é uma das características principais do líder indígena (Clastres, 1962).

Trabalhos recentes realizados em outros contextos etnográficos tendo como lócus outros coletivos

indígenas também vêm destacando como o poder oratório e a capacidade de proferir belos discursos são

atributos centrais de uma boa liderança (ver Farage, 1998; Pichinao Huenchuleo, 2012; Guerreiro Júnior,

2015).

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A esse respeito o episódio de troca de liderança é central, para se

compreender algumas particularidades do Tekoha 2 em relação ao Tekoha 1, pois se a

segunda é apontada por ser uma área relativamente estável, o mesmo não acontece com

a primeira, tendo uma rotatividade de moradores. Mais que a localização do Tekoha 2,

as desavenças com a antiga liderança contribuíram para uma maior circulação de

moradores.98

Ainda, ao contrário do Tekoha 1, as lideranças do Tekoha 2 não estão

amparadas por uma parentela extensa, mas sim por algumas alianças políticas. Essa

característica pode refletir na instabilidade das lideranças e nas divergências dentro da

área, pois “o acampamento só existe enquanto unidade estável se estão associadas em

parentesco as famílias que os compõem. Quanto mais distantes em grau os parentes

efetivos ou em potencial, maior o risco de facção” (MORAIS, 2016: 145). A liderança

atual, embora reúna algumas qualidades de um hi’u como saber falar e proferir

conselhos, não conseguiu reunir a maior parte da sua parentela, ele mesmo não tem

nenhum filho vivendo no Tekoha 2. Além disso, no contexto atual outras, qualidades

estão sendo exigidas da liderança; o jeito calmo e respeitoso do meu interlocutor, que

está sempre disposto a conversar nas situações de conflitos, qualidades essas muito

apreciadas para ser uma liderança, no cotidiano do Tekoha 2 se confundia com falta de

pulso. Por outro lado, a vice-liderança também não conseguiu agregar sua parentela na

área e ela é acusada de ser muito autoritária, traço esse pouco tolerado pelos Kaiowá e

Guarani99. Essa situação, por sua vez, abalou a vice-liderança que ao final do meu

campo já apresentava sinais de desgastes.

Como a liderança do Tekoha 1 me falava, “é mais difícil corrigir quem não

é aparentado”, algo perceptível no Tekoha 2, pois as desentendimentos com a antiga

liderança e o grande número de moradores sem laços de parentesco na retomada

impunham dificuldades as lideranças que lidavam com uma gama de problemas:

alcoolismo, casos de agressões, desemprego, falta de água e energia elétrica, fora as

questões relativas a retomada da terra, como a possiblidade de uma violência vinda do

proprietário da terra e o medo de uma reintegração de posse. Na tentativa de lidar com

essa diversidade de questões, um conjunto de regras e as reuniões da comunidade foram

98 Em conversa com o indigenista especializado da Funai de Dourados, ele também apontou os

desentendimentos pela liderança como um dos fatores da instabilidade dos moradores na área. 99 Clastres (1962) pontuou que a propriedade mais notável de um chefe indígena era a obliteração da sua

autoridade. Trabalhos recentes sobre os Kaiowá e Guarani mencionam medidas para evitar os excessos da

liderança (Ver Pereira, 2004; Benites 2012; Pimentel 2012, Morais, 2016).

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estabelecidos. A liderança me contava que não aceitava bebida no tekoha e nem

permitia roubos e, quando sabia de alguma coisa ele chamava a polícia e dizia:

“estamos fechados com a polícia civil e ambiental aqui, no começo o pessoal também

estranhou esse modo, mas era necessário para organizar o Tekoha 2”.

Contudo, não conseguir agregar a parentela reflete também na dificuldade

em manter a liderança, essa pode ser disputada por uma outra pessoa que reúne

qualidades suficientes para isso. Nesse sentido, nas últimas semanas de campo, a vice-

liderança passou a reclamar muito da ex-liderança de Caarapó e na sua intervenção nas

decisões tomadas para o tekoha. O status desse morador dentro do Tekoha 2 tinha

crescido tanto que passou ameaçar, principalmente, a vice-liderança.

A atuação da família desse morador nas retomadas e a experiência dele

como ex-liderança da Reverva de Caarapó lhe conferem certo prestígio. Ele, por sua

vez, voltou a ter um status, tanto no Tekoha 1, como no Tekoha 2, que perdera após

deixar a liderança em Caarapó. Ele e a sua esposa também conseguiram manter sua

parentela unida – todos os filhos e filhas do casal moram no Tekoha 2, bem como seus

genros, uma qualidade distintiva de um hi’u (cabeça de parentela). Todos esses aspectos

o qualificam como uma pessoa que tem experiência e cujo conhecimento pode ser

aproveitado. A liderança do Tekoha 2, por exemplo, sobre a vinda dele, comentou que

ele veio reforçar a luta do tekoha. Mesmo com pouco tempo no tekoha, esse morador já

tinha estabelecido laços importantes com as lideranças e inclusive já era conselheiro da

saúde no Tekoha 2. Quando perguntei porque ele havia sido escolhido para essa função

ele respondeu:

eu já trabalhava em Caarapó como presidente do conselho de

saúde local. Da saúde a gente conhece um pouco. Pergunta

como é que é, a gente foi contanto a história, o povo sabe

conhece né. Eu trabalhei oito anos como conselho da saúde

local, por isso que chamaram.

A ex-liderança de Caarapó e sua família estavam estabelecidos na área e sua

roça, na qual plantava milho, banana, cana, abobrinha, maxixe e mandioca, já era

motivo de orgulho. Outro exemplo da sua importância no Tekoha 2 se reflete nas

reuniões da comunidade, que passaram a ser a cada quinze dias após suas sugestões,

como aludido anteriormente. Percebia que esse morador acabará assumindo um papel de

conselheiro das lideranças, algo que já havia acontecido no Tekoha 1, pois as duas

lideranças passaram o consulta-lo para a tomada de decisões. O status que ele passou a

ocupar dentro do Tekoha 2 era expressiva, status esse que não passou desapercebido

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pela vice-liderança que se viu ameaçada, pois esse morador não é apenas um bom apoio

na luta, ser um cabeça de parentela, somada as suas experiências o qualificam também

como uma potencial liderança. E diferentemente da liderança do Tekoha 1 que reunira

grande parte da sua parentela no tekoha, o mesmo não acontecia com as lideranças do

Tekoha 2.

***

Nesse capítulo percorremos as narrativas de pessoas que se entrelaçam com

as histórias dos Tekoha 1 e Tekoha 2. Ademais de olhar para organização social das

áreas de retomada, apresentamos o cotidiano das lideranças e as suas estratégias, e das

suas famílias, na luta pelos seus espaços de vida e pelo espaço de seus mortos,

resistindo ao avanço da cidade sobre seus territórios tradicionais. Se nesse capítulo

falamos dos efeitos das áreas de retomada na vida das pessoas, no próximo capítulo

vamos em busca dos sentidos que essas áreas têm para os Kaiowá e Guarani, onde terra

e mobilidade nos dizem a respeito de um jeito de ser e de estar no mundo.

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Capítulo III

“Uma retomada é uma criança pequena”: Os sentidos dos

acampamentos para os Kaiowá e Guarani.

“... não é que a terra pertença aos

indígenas, são os indígenas que pertencem

a terra. Pertencer à terra em vez de ser seu

proprietário é o que caracteriza um

indígena. Está é a diferença que, à primeira

vista, aos nossos olhos parece

incompreensível”

(Dom Roque Paloschi, presidente do CIMI)

Esse capítulo será dedicado a pensar sobre os sentidos que têm as áreas de

retomada para os Kaiowá e Guarani. Nessa perspectiva dois temas se tornaram

essenciais: os sentidos de terra e o tema da mobilidade. Dessa forma, o objetivo desse

capítulo será refletir sobre as áreas de retomadas como uma possibilidade de retorno ao

tekoha, que se soma a possibilita de fortalecimento das mobilidades tradicionais

Guarani e Kaiowá, bem como uma das maneiras desses povos lidarem com o excesso de

mistura (com brancos e índios de outras etnias) apontada pelos Kaiowá como um dos

maiores problemas dentro das reservas e um dos fatores que favorece a desarticulação

da parentela.

***

Um dia caminhando com a liderança Tekoha 1 chegamos ao barraco de sua

sobrinha, onde vivia com seu marido e filhos, logo as crianças se aproximaram, curiosas

com a minha presença. Nesse dia eu andava com a máquina fotográfica na mão para

tirar as fotos dos barracos e das roças que a liderança estava me mostrando e aproveitei

para tirar algumas fotos das crianças. A liderança, ao ver meu interesse chamou as

crianças para que eu tirasse uma foto delas juntas e pedia para que elas sorrirem para

mim. Quando o pai das crianças chegou, perguntei se não tinha problema em tirar as

fotos, ele respondeu dizendo que seria bom para elas, porque assim, elas poderiam ver

sua luta pelo tekoha e completou dizendo que essa luta era para garantir o futuro das

crianças.

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Figura 11. Ao futuro das crianças. Foto: CORRADO, 2016.

Uma vez a vice-liderança do Tekoha 2 me disse: “uma retomada é uma

criança pequena” e, portanto, ela tem que ser cuidada como tal. A sombra das crianças

se projeta na terra, a mesma terra onde se apoiam seus pés descalços e que representa

seu futuro e que compartilha no presente os mesmos cuidados proferidos às crianças

pequenas.

3.1 A terra como corpo

Em uma das conversas que tivera com a vice-liderança do Tekoha 2, pedia

para ela me explicar por que os Kaiowá e Guarani começaram a fazer retomada, ela por

sua vez dissera que no início também não sabia: “quando falava de retomada nem eu

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não sabia, né”. E posteriormente complementa: “mas já tinha os outros que já

reivindicavam... o tekoha né, então, só que eu não entendia”. Porém, ao se mudar para

o Tekoha 2, embora tenha vivido em outras áreas de retomadas, é que ela passou a

entender o porquê, o motivo. E após essa explicação, ela segue com o seu entendimento

sobre o processo de retomada:

Mas na verdade, retomada de volta o tekoha, porque, como eu

disse anterior, semana retrasada para o pessoal, é que as

aldeias tão ficando pequenas, as aldeias ficam pequenas,

aumenta família, e o espaço está sendo bem apertado lá dentro

né, e sendo que a gente tem o nosso tekoha. Só que está ocupado

pelos fazendeiros, plantava soja, plantava milho né. Então a

gente... é .... como diz... a gente pensou na maneira da gente

querer de volta a nossa terra, porque, se nós não fizéssemos

isso, ou seja, aqui ou em qualquer lugar, que foi retomada, se a

gente não fizer isso, a gente nunca mais vai ter a terra de volta,

porque os fazendeiros sempre né, plantando, colhendo né,

ficando rico em cima da terra e nunca disse: não eu vou

devolver para os povos indígenas, né, nunca disse, ao contrário

né, esse lugar é meu, comprei, sempre eles falam isso aí, né.

Então a única forma de querer de volta a nossa terra é

entrando, né, entrando de volta, ocupando.

E quando inquirida sobre se essa era melhor forma para recuperar as terras,

minha interlocutora fez uma analogia aos tekoha com a de um objeto emprestado, que

quando não é devolvido, o seu legítimo dono tem que ir atrás para poder tê-lo de volta:

Seria essa mesma, porque a gente esperou tantos anos e nenhum

né, chegou e falou: toma aqui a terra é de vocês. Não disse e

nem vai dizer. Então foi dessa forma, a gente entra para ocupar

de volta, para avisar e dizer para eles que a gente está voltando

e a gente quer de volta o que era o nosso tekoha, né. Então, e

dessa forma funcionou, em cada lugar, em cada terra, aqueles

que falam invadiu, isso e aquilo, mas na verdade, não é invasão,

é apenas né, a mesma coisa que você for emprestar um objeto, a

pessoa te empresta você vai usar... se você não devolver,

esquecer de devolver, uma hora o dono vai vir e vai levar de

volta e tem todo esse direito, porque a pessoa é dona do objeto.

Então é dessa forma a terra também, então já ocuparam, já

fizeram e outra nós, é, ocupamos mais as terras porque estão

acabando com as plantas, as árvores né, as terras estão bem

sugadas já. Então nós índios, povos indígenas, a gente nunca

precisa desmatar árvore para plantar, para ter uma roça, nunca

precisou.

Na fala da vice-liderança do Tekoha 2, ela comprara a terra a um objeto

emprestado. O problema maior seria não o fato de outros terem pegado “emprestadas”

as terras dos indígenas, mas sim não as terem devolvido.

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Autoras como Strathern (2009) e Borges (2014) pontuaram, em contextos

etnográficos distintos (melanesiano e brasileiro, respectivamente), como as

reivindicações indígenas aparecem na contramão da noção de propriedade privada

prevalecentes na nossa sociedade. Chamam a atenção para outros conceitos, outras

formas de pensar e agir referente à terra, que era o que minha interlocutora tentava me

traduzir ao dar continuidade a sua fala:

Somente né, não tem um pé de árvore, algum lugar que tem,

outros lugares que não tem né. Então, como diz o outro, é um

pouco para a gente defender também as árvores que existem

ainda, porque se depender deles [os fazendeiros] acaba com

tudo, e a gente sempre preservou. É antes, no passado tinha as

plantas, eu lembro do meu vô né, que eu era menininha, eu

lembro como se fosse num sonho, meu vô tinha uma plantação

de mandioca, milho e de melancia, que se você olhava assim era

tudo mato, eles não derrubavam nada, ali no meio eles

limpavam, eles plantavam o que tinha para plantar ali, quando

você vê assim se vê é somente mato, mas se você entrar de

baixo, você acha tanta planta e dava cada planta nesses meios

de mato. Eu lembro, a roça do meu vô, quando ele falou para

nós que era para buscar melancia, nós tínhamos acabado de

chegar né, aí ele falou: se vocês não tiverem muito cansados

vão lá e arranca melancia, que a gente estava com vontade, aí

nós fomos lá, eu e as minhas tias, fomos lá. Quando eu cheguei

lá, eu olhei assim, você, olha árvore fechada, mas as plantas

coisa mais linda no meio. Então, nossos antepassados não

derrubavam as árvores, não precisavam destruir como eles

destroem agora para poder plantar soja, isso, isso aquilo, então

não precisava e hoje é tudo destruído.

Nesse sentido, as falas da minha interlocutora ainda apresentam duas

considerações importantes. A primeira, sobre o processo de ocupação das terras que

desconsiderou a presença indígena na região, ou seja, os antigos tekoha passaram a ser

ocupados pelos fazendeiros, que legitimam seu direito a terra através do ato de compra.

Em a Queda do Céu, Davi Kopenawa faz uma crítica semelhante ao dizer:

Seus antepassados não descobriram esta terra, não! Chegaram como

visitantes! Porém, logo depois de terem chegado, não pararam mais de

devastá-la e de retalhar sua imagem em pedaços, que começaram a

repartir entre si. Alegaram que estava vazia para se apoderarem dela, e

a mesma mentira persiste até hoje. Esta terra nunca foi vazia no

passado e não está vazia agora! (2015: 253)

A segunda consideração é a terra, definida como propriedade e como

produtora de riqueza, contraposta ao que minha interlocutora chamou de nossa terra, ou

como os Kaiowá e Guarani preferem, o tekoha. É justamente sobre as concepções e os

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sentidos de terra, descortinados a mim pelos Kaiowá e Guarani, que pretendo me

debruçar agora.

Chaguri (2016) no seu artigo intitulado “A terra como ponto de vista”

também alerta para as diferentes noções de terra, ou seja, o que é terra para o grande

proprietário, não é percebida da mesma maneira pelo camponês e pelo trabalhador rural,

esses últimos, percebem a terra por outros ângulos. Por isso, a autora defende a

necessidade de promover um alargamento das definições sociais, simbólicas e políticas

sobre terra.

A retomada, é para meus interlocutores, tanto a volta quanto a defesa e

proteção dessa terra que foi espoliada no passado e que vem sofrendo com a

monocultura. Esse argumento, aliás, é recorrente entre os Guarani e Kaiowá. Por

exemplo, como nos Aty Guasu, os ouvi defendendo a importância de retomarem seu

tekoha, porque a terra estava doente, não havia mais árvores, os rios estavam poluídos e

apenas restavam pastos e a plantação de monoculturas. A terra precisava ser cuidada e

tratada para que ela voltasse a ficar forte. E por sua vez, isso não beneficiaria apenas os

Guarani e Kaiowá, mas os não indígenas também, porque quando a terra fica doente, ela

pode causar o fim do mundo. Os kaiowá Anastacio Peralta e Eliseu mencionaram,

respectivamente, durante a IV Sessão de Audiência – Violação de direitos Indígenas:

“nós indígenas não somos problemas somos solução”, pois podem “ensinar o bom

viver” e “lutando pelas nossas terras, estamos lutando pela vida”.

Pimentel (2012), ao analisar o xamanismo, como uma das partes

constitutivas do que chamou teoria Kaiowá da política, também observou a relação

entre o discurso pela a retomada das terras somada ao discurso ambiental, assinalando

que a volta ao tekoha também é uma questão ambiental presente no discurso profético

dos ñanderu e ñandesy. O antropólogo ainda aponta que “há uma relação direta entre a

luta pela a terra, o xamanismo e a política” (2012: 212), sendo que no discurso profético

a natureza aparece como aliada da luta pela terra:

... o discurso profético sobre a recuperação das terras tradicionais

adquire feições ecológicas, fala frequentemente das consequências

desastrosas das alterações ambientais geradas pela ação dos Karai, por

um lado, ao mesmo tempo em que exalta a recuperação do meio

ambiente - dos poderes e forças relacionadas aos xamãs,

consequentemente - que advirá com a recuperação dos tekoha. (2012:

217)

Outro profetismo que une o direito pela terra ao discurso ambiental, se

tornou famoso nas palavras de Davi Kopenawa. Em A queda do Céu o xamã avisa ao

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povo da mercadoria que a busca pelo ouro e a destruição da floresta acarretará a morte

dos xamãs e quando todos esses desaparecerem “a terra e o céu vão despencar no caos”

(2015: 491), pois são eles, através dos xapiri (espíritos da floresta) e das suas rezas que

sustentam o céu para que este não caia. Os Kaiowá e Guarani também alertam para um

fim do mundo que está próximo, caso não mudemos nossas práticas predatórias que

colocam em risco a estabilidade da terra, através da destruição da floresta e rios,

assolados pela mineração e pela monocultura100. Para os Kaiowá e Guarani é necessário

que seus tekoha sejam devolvidos para que dessa forma eles voltem a cuidar da terra

para que essa se torne sã novamente e é assim que “lutando pelas nossas terras,

estamos lutando pela vida”.

Ao longo da pesquisa passou a me chamar muito atenção uma gramática do

cuidado acionada para falar da terra. Em diversos momentos, meus interlocutores me

descreviam uma terra como se fosse uma pessoa, ‘pode ficar doente’, ‘triste’ e,

principalmente, ‘precisa ser cuidada’. Sobre o cuidado entre os Mbya, Adriana Testa

(2014) menciona que assim como criam sujeitos e relações, os lugares também são

criados e por isso precisam ser sempre cuidados. Em outra passagem ao relatar os

cuidados com o umbigo da criança e com a placenta, que é enterrada na terra onde esta

nasceu, Testa, através de explicações de um rezador, escreveu:

A terra, além de ter dono (yvyja), também é um corpo, constituído por

carne (barro) e sistema circulatório (cursos d’água, principalmente os

subterrâneos). Então, o enterro da placenta também colocaria em

relação dois corpos: o da criança e o da terra (2014, 257).

A liderança do Tekoha 1, ao me explicar a importância do tekoha, destacou

que a terra é “a mesma coisa a gente”, por isso ela também “fica fraca” se não cuidar

dela corretamente. Contudo, a liderança, ao falar do tekoha disse que ele é “tipo de pai e

mãe” e complementou ao apontar que a “terra cuida do povo, porque dá alimentação,

se planta”. Assim, na explicação do meu interlocutor a terra não é apenas cuidada, ela

também cuida. Cuidar e ser cuidado são condições plausíveis, justamente se pensarmos

o corpo humano e a terra como dois tipos de corpos que estão em relação. E, é nesse

sentindo, que o rezador destaca a importância de enterrar a placenta na terra, pois “a

placenta da criança vai alimentar a terra que por sua vez, também vai produzir (ou

permitir a produção de) alimentos para a criança” (TESTA, 2014: 257).

Como descreveu Strathern (2009), para o contexto melanésio, a terra cria as

pessoas e tudo o que elas produzem (extensão análoga a criação). Existe uma distinção

100 Sobre as profecias Guarani de catástrofes (cataclismologia) ver Nimuendaju, 1987.

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100

entre terra estática, o que é intangível e a terra móvel, que é o que cresce nela: “existe

uma distinção, então entre a terra e as extensões, entre terra como criativa e extensões

como criações” (2009: 27). As criações da terra são consumíveis e transferíveis,

enquanto que a própria terra não. Essas distinções trazem um duplo sentido de

pertencimento: a ideia das pessoas possuindo a terra, ou seja, como fonte de recurso e

riqueza, e por outro lado a ideia da terra possuindo as pessoas, vista como a fonte da

vida.

Pereira, no tocante a terra, a descreveu como tendo o sentido, para os

Kaiowá, “como algo dinâmico que, semelhante aos homens e a formação social, nasce,

vive e morre” (2004, 250). Outro ponto levantado pelo antropólogo é sobre as causas de

infortúnios da terra que também teria correspondência entre os homens: “os Kaiowá

apresentam firme convicção de que os fatores que abalam a estabilidade da terra são de

natureza semelhante àqueles responsáveis pela desarticulação das formas societárias

entre os homens” (2004, 249). Dito isso, a terra e o homem teriam uma relação de

retroalimentação, relação essa que sempre implica cuidado.

No trabalho de Meliá, Grünberg e Grünberg (1976), ao escreverem sobre os

Paí – Tavyterã do Paraguai, assinalam o sentido da terra para este grupo em oposição a

propriedade privada, pois, “la tierra, igual como la gente, el agua, mbaraka, takuapu y

otros objetos rituales no se pueden comprar ni vender (no es mercancia)” (1976, 212).

E, a respeito do sentido de terra para esse povo, eles ainda escreveram:

La tierra es un bien común y el medio de producción principal,

entrega a los hombres por el Dios- Creador para el uso conforme a las

leyes divinas. Por eso, igual como el agua, los Paí rehusanen principio

comprar tierra, porque no puede ser privatizada. Sólo Dios posee la

tierra: el cultivo de la tierra y el cuidado de los cultivos es lo mismo

que criar niños. Comprar tierras, por consiguiente, sería lo mismo que

comprar al hombre, lo que significaría que ellos perderían el concepto

moral de seres humanos y en consecuencia la trascendental

determinación de ser hombre. Tierra y cuerpo humano es lo mismo:

porque los cuerpos se convierten en tierra después de la salida del

alma y asi ‘somos nosotros la tierra, nuestro antepasados y nuestros

hijos al mismo tiempo’. Como el cuerpo tiene pelo, la tierra tiene

árboles (yvyrague). No se debe alterar el equilibrio ecológico para no

enfermar a la tierra; así consideran el desmonte en grandes

extensiones para plantar pastos para ganadería como algo irracional

(omoperõmbañandeyvy). Observan y comentan problemas de erosión

de agua y viento (yvyeve) como indicios de la destrucción inminente

del mundo (1976, 204)101.

101Grifos meus.

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101

Nessa passagem os autores afirmam que a terra não é como corpo, mas que

são ambos a mesma coisa, que o corpo se transformaria em terra depois da saída da

alma. Nas áreas de retomadas, um dos discursos muito presentes entre meus

interlocutores é a relação da terra com seus mortos, concretizada com a presença dos

cemitérios, ou seja, a relevância de viver num território onde estão enterrados seus

antepassados. Borges (2011), no contexto sul africano entre o povo Zulu, também

assinala a importância da relação dos mortos e a terra. Nesse contexto a batalha é dos

farm dwellers, moradores negros em fazendas de proprietários brancos, para enterrar

seus mortos junto com seus ancestrais e os túmulos se tornam um documento que

inscreve a passagem dos farm dwerllers por aquele território. Marcelo Rosa que

também dedica reflexões acerca do sentido que os túmulos têm para os farm dwerllers

no contexto sul-africano, menciona que cumprem um “papel narrativo importante na

decisão de querer continuar vivendo em uma fazenda” (2012: 375). No contexto aqui

analisado, entre os Guarani e Kaiowá, os cemitérios se tornam uma prova material da

sua pertença a esse território.

Benites, ao descrever e analisar o processo de recuperação do tekoha

Potrero Guasu (retomada localizada no município de Paranhos – MS), relatou: “... o

sentimento de pertencimento à terra de ocupação antiga (em que foram enterrados os

seus antepassados) era determinante para o processo de recuperação do Potrero Guasu”

(2014: 120,121). Essa representação do corpo transformado em terra justificaria a

importância dos Kaiowá de permanecerem nas áreas onde formam enterrados seus

parentes. Nesse sentido, o direito à terra está imbricado da luta política de vivos e de

mortos (BORGES, 2011; ROSA, 2012). Além disso, Morais (2016), ao escrever sobre

os corpos Kaiowá, observou que na perspectiva Kaiowá o corpo e a terra partilham de

uma mesma substância (p. 204). A relação da terra com os mortos também é outro

ponto abordado pelo antropólogo, que a descreve como uma “relação de comunhão” (p.

217). No trabalho de Crespe encontramos outra passagem que é muito expressiva em

relação a esses sentidos:

Segundo um rezador que conheci no Apyka’y, eles querem viver na

terra porque são feitos da terra, têm a mesma substância que ela, a

mesma cor e por isso precisam viver nela, plantar e comer o que ela

produz. Na terra eles também podem permanecer próximos aos

parentes que já morreram, pode-se ter alimentos, bichos, matas, jára,

logo, ter saúde e viver bem. Sem a terra ocorre o contrário, o índio vai

ficando triste” (2015, 384).

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102

A vice-liderança do Tekoha 1, na ocasião em que me explicava sobre como

a mãe tem que cuidar do filho que nasceu mencionava: cuidar da criança igual cuida do

milho. A vice-liderança do Tekoha 2, me explicando sobre a retomada, mencionou:

“uma retomada é uma criança pequena”, por isso ela precisava ser cuidada,

principalmente nos primeiros anos. A liderança do Tekoha 1 também me explicava que

nos anos 1970 o tekoha “estava engatinhando”, se referindo aos primeiros anos de

retomada e que agora ele já andava. Retomada e terra aqui aparecem como sinônimos,

porque, não é qualquer terra que é retomada, mas sim o tekoha, que tem uma história,

onde viverem e foram enterrados seus ancestrais.

Melliá et al. ao descrever a concepção de terra para os Paí – Tavyterã do

Paraguai, compara o cuidado da terra com o cuidado das crianças: “o cultivo da terra e o

cuidado dos cultivos é o mesmo que criar crianças” (1976:2014). Pereira, ao discutir o

termo “levantar um tekoha”, descreve que “o verbo ‘levantar’ - opuã - é usado para se

referir ao crescimento de crianças, plantas cultivadas, parentela e tekoha” (2004: 224).

O tekoha é comparado a uma criança pequena, o cuidado da criança é comparado ao

cultivo do milho, o milho que nasce do cuidado com a terra e que também é cuidado é o

mesmo que alimenta as crianças e por sua vez também cuida dessas crianças. Neste

sentido o mesmo verbo opuã dá conta para os Kaiowá de descrever o crescimento de

todos eles. O ato de cuidar é pensado em extensão, não se cuida apenas de pessoas, se

cuida da terra e das plantas e essas por sua vez também cuidam das pessoas.

No ato do batismo estes cuidados extensíveis a diversos seres se fazem

visível. Como nos conta a liderança do Tekoha 1, o batismo da terra é uma das

primeiras coisas a ser feita após a retomada; já o batismo da criança (mita ñemongarai)

é importante, pois é através do batismo, nos primeiros anos de vida da criança, quando

se recepciona sua alma. Da mesma forma, os Kaiowá costumam realizar o batismo do

milho, conhecido como avati kyry.

Para os Kaiowá, o primeiro ano de vida das crianças é o que exige maior cautela,

porque se as crianças forem maltratadas a alma pode ficar triste e deixar o corpo, “por

essa razão, no primeiro ano de permanência no corpo, esta alma é sempre tratada com

reza (ñembo’e) e com carinho, no intuito de alegrá-la e fixá-la definitivamente no

corpo” (BENITES, 2009: 61). Como apresentado nos capítulos anteriores, as rezas são

fundamentais nas áreas de retomadas, principalmente se ela for recente, pois protegem

contra o conflito com os fazendeiros. Crianças com mais de sete anos (mitã tuixama) já

podem ser repreendidas, quando necessário. De modo geral, o cuidado com a criança

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103

implica uma atenção e vigilância constante. Nessa perspectiva, terra e criança estão

sempre em fabricação.

A gramática da terra acionada pelos meus interlocutores não está apenas

circunscrita a um espaço físico, a um lugar de produção de alimento, seus sentidos

extrapolavam essas categorias. A terra diz, acima de tudo, sobre o corpo, sobre práticas

de cuidados e sobre relações de parentesco, ou seja, uma terra pensada não apenas como

suporte de relações, mas também como componente das relações. Ao perguntar sobre a

terra, os Kaiowá me fizeram olhar para as crianças, ao perguntar sobre as crianças eles

me fizeram olhar para milho102.

Índio igual [formiga] lava-pé, só mora eles, não tem um pretinho no meio

Conforme descrito no capítulo II, sobre o episódio da placa e o incomodo da

liderança do Tekoha 1 com os não indígenas que não tem respeito e entram no tekoha,

me permite refletir acerca de outra questão que apareceu com força em campo e que

está intimamente relacionada aos sentidos que as retomadas têm para meus

interlocutores. A placa pedindo respeito na entrada do Tekoha 1, como afirmação

simbólica pretendia também um controle da circulação e principalmente da passagem

livre de não indígenas pelo local, uma vez que um bairro urbano está, por assim dizer

“comendo” o tehoha. Para os Kaiowá e Guarani o cuidado com as áreas de retomada

deve ser feito principalmente em relação ao controle com a mistura, em guarani Japora.

Pois como me falavam as lideranças do Tekoha 1, “mistura é perigo”.103

Em conversas com esses interlocutores eles me falavam que “o que estraga

é branco”. Eles também se referiam à mistura como causante dos problemas existentes

na reserva de Dourados – alcoolismo, violência, alta densidade demográfica. Segundo

eles, isso acontecia “porque lá tudo misturado, não é bom”. Morais (2016) aponta a

mistura como “categoria crucial para o entendimento das implicações do cerco na vida

Kaiowá e Guarani” (2016, 61). Para o autor, entre os Kaiowá, existe a “ideia de que

mistura (japora) se inscreve no sangue, na substância” (2016, 67).

Para meus interlocutores, os problemas começaram com o indígena

morando com branco, “leva para aldeia”, e ainda acrescentaram: “entrou terena,

102 Clarice Cohn aponta para a necessidade de analisar as concepções de infâncias, pois a noção de criança

está “ligada a uma concepção também de sentidos e percepção - e, portanto, de aprendizagem e de

possibilidades de conhecer e apreender o mundo – e de corporalidade e fabricação dos corpos” (2013,

225). 103 Sobre o tema da mistura entre os povos indígenas consultar também Kelly, 2005; Goldman, 2015

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104

paraguaio, brasileiro, baiano”. Como vemos, a categoria “branco” é uma categoria de

diferenciação para meus interlocutores, e pode englobar não apenas não indígenas, mas

também outros coletivos indígenas, como os Terena.

A vice-liderança do Tekoha 1, explicava o problema da mistura, usando uma

analogia com as formigas lava-pé: índio igual lava-pé, só mora eles, não tem um

pretinho [se referindo a outra espécie de formiga] no meio”, então, o índio tem que ser

igual a formiga lava-pé, “o índio não pode misturar com o branco”, porque “estraga”.

Testa (2014), no seu trabalho entre os Mbya - realizado, na maior parte em

Terras Indígenas do estado de São Paulo, onde acompanhou os Mbya percorrendo seus

próprios caminhos - escreveu que assim como os não humanos, os não indígenas

também representam perigo para os seus interlocutores, pois a atração que ocorre entre

humanos e não humanos está em paralelo a atração recíproca entre Mbya e não

indígenas, sendo o risco da predação o mesmo. Além disso, o casamento entre Mbya e

não indígena acarreta o enfraquecimento da vida ritual, porque os rezadores vão

enfraquecendo.

Outra expressão, comum para se referirem a mistura com branco é que “já é

diferente”. Quando indaguei porque é diferente, a vice-liderança do Tekoha 1 começou

a dizer o nome de várias “comidas de índio”, e disse que branco “já estranha”, já

comparou comida diferente”. A diferença entre os Kaiowá é estabelecida através de

outra substância, os alimentos consumidos, não somente o sangue, conforme encontrou

Morais (2016). Se o ato de cuidar conecta o tekoha, as plantas e as crianças, não

comer/estranhar comida de índio, é também romper com a comunhão entre terra e

pessoa, significa deixar de partilhar dessa relação. ‘Virar branco’ para meus

interlocutores parece uma diferença estabelecida no comportamento, intimamente

vinculado, dentre outras ações e substâncias, ao que se come.

A liderança do Tekoha 1, ainda preocupado em me fazer entender a questão

do perigo da mistura com o branco, me contou a história de uma moça moradora do

tekoha que tem um filho com “um branco”. Ele disse que foi aconselhá-la, porque, ela

não estava querendo “ensinar a criança pelo nosso idioma”, então ele havia advertido

que se ela não ensinasse a criança “ela vai estranhar nossa cultura”, “se não ensinou a

criança, não vai aprender nada”, e “vai se aproximar do pai”. Conforme Testa (2014),

entre os Mbya é explicitado o medo da criança virar branco, da transformação, pois, “é

possível observar que os jovens passam por um outro tipo de transformação ao se

“misturarem com os não indígenas” (2014, 62).

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105

Na história da liderança, ele me indicava que o problema da criança, fruto

de uma relação com não índio, poderia ser resolvido se a mãe ensinasse a cultura dela, a

sua língua, bem como, fazer a criança “comer comida de índio”. É através do alimento e

da sua partilha cotidiana, como já foi mencionado anteriormente, que se pode virar

parente. E ainda, acrescentava que as crianças são importantes porque são elas, quando

eles morrerem, “que vão levar a cultura do índio puro, vai ficar no nosso lugar,

levando a aldeia”.

Como alertou Testa, também para o caso dos Mbya, os processos de produção da

pessoa passam pelas práticas de alimentação, contribuindo para o desenvolvimento de

relações de parentesco. Por isso, o corpo deveria se alimentar de comidas consideradas

verdadeiras e originais (2014, 239), muito semelhante ao que meus interlocutores

tentavam me explicar em relação a comida de índio. E assim, como menciona Atanásio,

um dos interlocutores de Pimentel (2012), a volta ao tekoha também apresenta a

possibilidade de produzir novamente a comida de índio:

“Porque nós não temos dinheiro, nós apenas ficamos olhando à toa as

coisas (mercadoria). Então, pra gente não passar necessidade,

queremos a nossa terra, para poder plantar, para não se preocupar com

as coisas dos outros. Nós queremos o que é nosso, nós vamos nos

juntar e produzir nossa comida, para nossa carne vamos criar bichos.

Por isso é que nós lutamos para conseguir a nossa terra”. (2012: 206)

***

Os dados etnográficos, anteriormente apresentados, descrevem relações

entre cuidado, respeito, pessoa, crianças, retomada e terra. Elementos que meus

interlocutores me apresentam como constantemente conectados. Isso nos coloca uma

questão que é pensar a terra, não apenas como suporte das relações de parentesco, mas

também como componente dessas relações e que envolve tanto humanos quanto não

humanos.

Como coloca Borges (2014), terra é uma categoria etnográfica que só faz

sentido em contexto. A autora acrescenta: “terra é um conceito que, a despeito de sua

suposta transparência de significado, evoca conflitos de ordem tanto interpretativa

quanto política” (2014: 432). Chaguri (2016), por sua vez, chama atenção, em como o

Estado, na relação de mediador de conflito entre os proprietários e “as demais categorias

de não proprietários”, acaba reforçando a terra “como categoria a produzir hierarquias

que classificam e desclassifica socialmente o conjunto de atores envolvidos” (2016:11).

Direcionando o olhar para as populações indígenas brasileiras, a

antropóloga Dominique Gallois (2004), argumenta a necessidade de distinguir terras

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ocupadas, território e territorialidade. Através dessas distinções propõe ruir com a

equivalência entre terra e território, pois embora reconheça que a categoria terra é um

dos elementos constitutivos do território, um não é equivalente ao outro.

Na abordagem de Gallois dois pontos são relevantes e foram tratados

anteriormente para pensar os sentidos de terra: a questão do contato colonial e a questão

de pensar concepções mais abertas de território. Para a autora a situação de contato

gerou um confronto de lógicas espaciais. Dessa forma, o impacto colonial obrigou

muitas populações indígenas a se refugiarem em outras áreas, diferentes daquelas que

constituíam originalmente. Por isso, para a antropóloga, as Terras Indígenas “seriam

simplesmente uma parcela dentro de um território historicamente mais amplo” (2004:

39). Além disso, como já citado, Terra Indígena e território são termos completamente

distintos para Gallois, o primeiro se refere ao processo político-jurídico do Estado,

enquanto o segundo “remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da

relação entre uma sociedade específica e sua base territorial” (2004: 39).

As concepções de território indígena abrangem condições materiais,

ecológicas, ambientais como descreve a autora sobre a noção zo’é de –koha104. No caso

de povos indígenas no Brasil não podemos pensar o território em oposição a

mobilidade, e sim a mobilidade como parte da própria noção de território, como por

exemplo, a noção de territorialidade Guarani que é ativada na prática da mobilidade

territorial. Além disso, o território, para os Guarani não remete apenas a espaços físicos,

mas também a concepções cosmológicas. Para a antropóloga toda sociedade imprime no

espaço que ocupa uma lógica territorial.

Portanto, a análise de Gallois possibilita mostrar que a concepção de

território é fruto das relações de contato e das regularizações fundiárias que promoveu à

conversão dos territórios indígenas em terra. Essa transformação de território em terra

teve como consequência uma nova concepção que vincula terra a posse ou propriedade.

Sobre isso Carneiro da Cunha (2009), em diálogo com Strathern, menciona: “uma

cultura dominada pelas ideias de propriedade só pode imaginar a ausência dessas ideias

sob determinadas formas” (2009: 328). O contato trouxe o confronto de lógicas

espaciais e agora se faz necessário tanto o reconhecimento de direito à terra como a

necessidade de solucionar esse confronto, alerta Gallois.

104 Termo zo’é que expressa ‘modo de vida’, ‘bem viver’, como descreveu Gallois (2004, 38).

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Aqui é preciso tomar cuidado para “não jogar o bebê junto com a água do

banho”, ou seja, por que descartar a noção de terra, justamente quando ela está sendo

acionada pelos povos indígenas para encarar as restrições e retrocessos em relação aos

seus direitos frente a medidas do Estado como a tese do marco temporal105? Faz sentido

situar o modo como a categoria terra tem sido mobilizada por coletivos indígenas no

Brasil na demanda dos seus territórios tradicionais, muito semelhante à maneira como a

categoria cultura é acionada, conforme tratado por Carneiro da Cunha (2009), uma vez

que esta é retomada e resignificada pelos povos indígenas, transformando-se num

argumento político, a “cultura”.

Strathern (2009), através da pesquisa que realizou entre os Papua Nova

Guineenses, nos provoca a questionarmos sobre os outros possíveis sentidos de terra

que não esteja, necessariamente, ligado a noção de produtividade e propriedade. Borges

também propõe pensar a terra como propriedade intelectual e ressalta, que as

concepções de terra, como para os farm dwellers, escapam as nossas lógicas cartesianas,

“a terra é o que se conhece da terra e, por isso, trata-se de um bem precioso” (2011: 20).

Ora, não era isso que os Kaiowá estavam querendo me dizer ao me explicarem seus

sentidos de terra através das relações de cuidado de crianças e de plantas?

Uma análise dos sentidos de terra para os Yanomami, suas disputas e seus

efeitos é apresentada por Davi Kopenawa na seguinte narrativa:

Tornado fantasma, no tempo do sonho ou sob efeito da yãkoana, eu

costumava ver os brancos retalhando nossa terra, como fazem com a

deles... Não podemos aceitar que voltem [os brancos] para desenhá-la

e recortá-la desse modo! Talvez seja a vontade dos grandes homens

deles. Mas, se cedermos, morreremos todos! Com nossas palavras,

dizemos que os antigos brancos desenharam sua terra para retalha-la.

Primeiro cobriram-na de traços entrecruzados, formando recortes, e,

no meio deles, pintaram manchas redondas. É assim que os xamãs

podem vê-la. Esse traçado de linhas e pontos, como manchas de onça,

parece deixa-la muito bonita. Porém, esses desenhos são em seguida

colados num livro e aqueles que querem plantar sua comida nesses

espaços têm de devolver seu valor. Assim, os brancos alegam que

esses desenhos de terra têm um preço, e é por isso que os trocam por

dinheiro”. (2015: 327)

Marisol de la Cadena (2010), ao analisar as alianças do movimento indígena

com o movimento campesino no Peru,106 sugere terra como “equivocação”. Recuperar a

105 Segundo a tese do marco temporal passariam a ter direito a terras apenas os povos indígenas que as

estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988. 106 Marisol de la Cadena parte da noção de equivocação de Viveiros de Castro (2004). Segundo esclarece

o autor: “A equivocação é um conceito epistemológico que diz respeito a uma teoria da tradução, de

como o antropólogo dá sentido ao material que ele está descrevendo nos termos de seu próprio aparelho

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terra para os indígenas diz acerca das suas relações com a montanha, rios, plantas e

animais (other-than-humans) no entanto, essa noção de terra excedia a noção dos

ativistas de esquerda, assim pensar terra como equivocação foi o que possibilitou a

aliança entre os políticos de esquerda e os camponeses indígenas.

No processo de retomada os Guarani e Kaiowá reivindicam junto ao Estado

seus tekoha, associado comumente aos seus territórios tradicionais. Mas, para além

disso, realizar uma retomada significa a possibilidade da volta e da proteção de uma

terra que está em comunhão com o corpo Kaiowá e Guarani. É voltar para uma terra que

também é corpo e está em relação, uma relação de retroalimentação e de cuidados

mútuos. É uma terra que assim como as crianças está em constante fabricação e por isso

o controle da mistura é essencial. São sentidos de terra que extrapolam as noções de

propriedade, de economia e das próprias reivindicações políticas.

3.2 ‘igual maribondo’: circulação e modalidades de perambular

Para os Guarani e Kaiowá mover-se faz parte da constituição da pessoa,

fundamental também para adquirir conhecimento, sabedoria, para conhecer a história,

para conseguir mobilizar a parentela, conforme vimos anteriormente, mas também é

central, como veremos, para levantar tekoha e na produção cotidiana do território.

Na literatura sobre os Guarani e Kaiowá, duas modalidades de mobilidade

são destacadas: o oguata e o jeheka. Elas são consideradas modos de circulação e eram

mais comuns antes do contato colonial, quando as populações indígenas ainda viviam

nos seus territórios tradicionais. O oguata é o caminhar entre as casas dos parentes, se

refere ao fazer visitas, participar de cerimônias religiosas ou casamentos e festas.

Alexandra Barbosa da Silva (2007) traduz [o] guata como andança, caminhada e

acrescenta:

[...] é desta forma que se faz visitas a parentes em locais diversos, e se

realiza uma exploração e ampliação do conhecimento sobre o

território (e o mundo), sendo isto fundamental para o estabelecimento

e /ou para a manutenção das redes sociais entre esses grupos (2007:

78).

O jeheka foi descrito por Crespe como “uma forma de mobilidade

diretamente relacionada aos mecanismos de obtenção de recursos, mas que são produtos

e produtores de relações sociais” (2015: 320). A antropóloga ainda acrescenta que essa

modalidade contribuiu para o vínculo com o território tradicional que atualmente os

conceitual, o qual deve ser afetado, deslocado e contaminado pelo aparelho conceitual alheio” (Viveiros

de Castro, 2014).

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Guarani e Kaiowá reivindicam, fomentadas pela memória e pelas narrativas

relacionadas à mobilidade: “Trata-se de uma mobilidade realizada em espaços

humanizados pelos próprios Guarani e Kaiowá, marcados pelas suas fronteiras e por

uma malha de caminhos, como sugeriu Pereira (2004)” (2015: 321, 322).

A colonização e posteriormente a chegada das fazendas e suas cercas, bem

como as estradas e as cidades, não apenas impediram algumas formas de mobilidade,

como também gerou outros padrões de mobilidade para os Guarani e Kaiowá. As

principais são o sarambi e a changa.

A changa é o trabalho prestado pelos Guarani e Kaiowá nas fazendas.

Como esses trabalhos podem durar meses, os homens ficam longos períodos afastados

da sua parentela. Pesquisadores como Schadem (1974) já apontavam a changa, como

um dos fatores, responsável pela desorganização da economia doméstica Kaiowá.

O sarambi ou sarâmbipa é descrita como a mobilidade provocada após a

chegada das frentes de exploração, descritas no primeiro capítulo, que resultou no

processo de expulsão desses povos das suas terras tradicionais. Para Graciela Chamorro

“esse evento é um divisor de águas na história Kaiowá” (2015: 206). O sarambi,

também traduzido entre os indígenas como esparramo, foi considerado por alguns

autores como uma espécie de diáspora (CAVALCANTE, 2013) ou como um tipo de

mobilidade negativa (CRESPE, 2015; CHAMORRO, 2015), por ser identificado com

um momento de desordem, no qual os parentes foram esparramados:

Na língua indígena, esse processo costuma ser chamado de sarambi,

que significa “bagunça e espalhamento”. É uma ação realizada por

outrem, o que vem indicado pela partícula -mo-, que significa fazer

com que”. Assim, amosarambi quer dizer “espalho ou bagunço algo

ou alguém” e oremosarambi significa “alguém nos espalha, nos joga

daqui para lá, nos bagunça”. A época em que a maior parte das

comunidades indígenas vivia sob a iminência de ter que abandonar

seus lugares de referência costuma ser chamado de ñemosarambipa

(CHAMORRO 2015, 206).

Nas falas dos Guarani e Kaiowá, como apresentou Crespe (2015), também é

comum ouvir o verbo perambular, bem como expressões do tipo: “não encontrar

parada” e estar sem aldeia”, para se referir a essa mobilidade que está impressa nas vida

das pessoas que não conseguiram se estabelecer, ou não quiseram, dentro das reservas.

Como analisou Crespe, através da noção de estabelecidos de Nobert Elias e John L

Scotson (2000), os grupos que se assentaram primeiro nas reservas conseguiram se

consolidar e recompor sua parentela. Acontece que os grupos que foram chegando

posteriormente, principalmente quando foram diminuindo os “fundos de fazendas”,

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tiveram mais dificuldades de se estabelecer na reserva, é essa não acomodação nas áreas

pelos quais alguns indígenas passam que está expressa no perambular.

Crespe, ao se debruçar sobre a trajetória das lideranças das áreas em que fez

pesquisa descreve o perambular dessas pessoas até chegarem a fazer a retomada.

Conforme a autora, Dona Damiana Cavanha - liderança do tekoha Apyka’i - está

inscrita esta história deste perambular. Essa liderança e sua família, após serem expulsos

de uma área em que viveram até os anos 1980, passaram por diferentes reservas na

região, como a Reserva de Caarapó e a Reserva de Dourados, quando decidiu, junto

com o seu marido, retomar o tekoha onde viveu com sua parentela. Dona Damiana que

hoje é viúva, já vive há quase duas décadas acampada - nesse período fez retomadas,

passou por reintegração de posse e viveu na beira da estrada.

A vice-liderança do Tekoha 2, descreve o esparramo como aquilo que

descreve a situação e a atual relação com a reivindicação dos tekoha e seus ‘donos’,

pois, quando acontece uma retomada, os Kaiowá e Guarani vem de diferentes lugares:

…anteriormente eles conseguiam colocar a gente numa aldeia,

pegava daqui levava para outra. Porque cada dono dos tekoha

estava esparramado, um está aqui, outro está para lá em

Amambaí e assim por diante né, aí quando eles resolvem

reivindicar de novo a terra, onde se encontravam tudo de novo,

aí vem de outro lugar, então é assim, não estão só num lugar os

donos dos tekoha, eles estão esparramados né.

Quando perguntei o que ela queria dizer com estar esparramados e o motivo

pelo qual isso aconteceu, ela apontou tanto o processo de reservamento, quanto a

relação com os fazendeiros, como suas causas:

estão esparramados porque, as pessoas, os fazendeiros

pegavam os povos indígenas, aqueles que não conseguia matar,

eles levavam para uma aldeia, as vezes os povos indígenas não

aceitavam o lugar né, não gostavam do lugar, mudava para

outros lugares, onde eles habitam melhor. Então por essa razão

eles se esparramam, porque por eles, como eu disse para o

pessoal, que eles fizeram a aldeia, na verdade não é aldeia, na

verdade é um chiqueiro, que pode prender todo mundo ali, dali

para cá não pode passar, de lá também não. Então no caso eles

pensavam que jamais né, a gente ia volta a ocupar a nossa

terra. Então por essa razão eles juntavam a gente e colocava

ali, e as pessoas que não quisessem ficar, dali ia para outro

lugar, e ali formava família e assim por diante ia. Então as

pessoas se esparramaram né, não está só num lugar.

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Na fala da vice-liderança do Tekoha 2 é interessante perceber que, se o

processo de reservamento tinha como objetivo prender os Guarani e Kaiowá, na prática,

muitos grupos resistiram a imposição dessas fronteiras, não aceitando o lugar e se

mudando para onde viveriam melhor. Nesse sentindo, o esparramo, também pode ser

entendido como uma mobilidade de resistência e uma forma de buscar melhores

condições de vida:

As famílias as vezes procuram melhoria, então por isso que

cada um se esparrama. As vezes estão atrás de serviço, as vezes

o lugar é melhor, produz melhor, quem gosta de plantar né.

Então por essa razão eles mantem a distância um do outro. Aí

quando a gente ocupa, eles voltam tudo naquele lá.

Se por um lado a reserva foi uma tentativa de limitar os processos de

mobilidade espacial, ao impor um padrão territorial e uma fixação numa terra com

fronteiras delimitadas, por outro, ela também possibilitou a articulação de diversas

formas de mobilidade, uma vez que os indígenas continuaram a caminhar pelo seu

território, como demostrou Barbosa da Silva (2007) e a resistirem a se fixarem na

reserva, como esclarece minha interlocutora. A reserva também possibilitou que as

parentelas fossem reconstituídas e reelaboradas, após terem passado pelo sarambi, pois

se tornaram áreas de grande densidade e centros radiadores de relações (CRESPE, 2015,

BARBOSA da SILVA, 2007).

Nesses cenários de mobilidade estão também as retomadas indígenas, que

além de serem um processo de luta para o retorno ao seu território tradicional, também

se configura como mais uma alternativa de mobilidade, onde as teias de relações de

parentesco e de aliança se ampliam, bem como outras formas de sociabilidade são

produzidas.

Andar igual marimbondo

Se a bibliografia descreve a mobilidade Kaiowá e Guarani através das

categorias oguata, jeketa, sarambi, foi, contudo, na busca pelo sentido que as retomadas

e a terra tinham para meus interlocutores que a mobilidade apareceu como fundamental.

O movimento atravessava, ou era referido o tempo todo nas histórias dos meus

interlocutores. Numa conversa descontraída com a liderança do Tekoha 3, ao me contar

suas passagens pelas reservas e por outros tekoha, ele disse que “ficava igual

marimbondo”, até conseguir se fixar no local atual. Pensando tanto na sua história,

como a de tantos outros Kaiowá e Guarani, percebi que dizer que andava “igual

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marimbondo”, se referia menos as dificuldades de permanência pelos locais que passou,

e mais, a um modo específico de se movimentar, intrínseco a um modo de adquirir

conhecimento e capital político, ou, como me contava a liderança do Tekoha 1, de

aprender “como é que luta”.

A liderança do Tekoha 3, por exemplo, me relatava que no período em que

viveu no tehoha Passo Piraju atuou como vice-liderança - quando a liderança precisava

se ausentar da área era ele quem passava a ocupar seu lugar. Algo semelhante também

aconteceu quando este morara na Reserva de Dourados, porém, me descreveu essa

relação através do termo ajuda. Assim disse que ficou três anos ajudando a liderança da

aldeia Bororó. A circulação por diferentes lugares, incluindo áreas de retomadas, e sua

atuação como liderança, em alguns momentos, fez com que ele fosse convidado pela

antiga liderança do Tekoha 3, a participar da retomada e ser seu vice. Nesse sentindo, ao

me narrar suas andanças igual marimbondo, ele também falava dos espaços de

aprendizado e dos papéis políticos que assumira, o que de certa forma, o qualificava

como a liderança atual.

A trajetória da vice-liderança do Tekoha 2:

A trajetória dessa vice-liderança resume esse andar “como marimbondo”.

Até se estabelecer no Tekoha 2 ela circulou por “ambientes diversos” (BARBOSA da

SILVA, 2007), entre fazendas, cidades, reservas e áreas de retomada. Conforme ela me

contou, “cresci em fazenda e em cidade”. O período nas fazendas se referia ao tempo da

tenra infância quando seu pai trabalhava em fazendas em troca de moradia, prática

comum entre os indígenas da região:

Cresci na fazenda onde o meu pai trabalhou, naquela época eu

tinha o que, uns nove, oito anos, mais ou menos. Os fazendeiros

já mandavam os povos indígenas embora, demitia né. Porque os

povos indígenas, aqueles que não foram embora, que não foi

morto, permanecia e trabalhava para o fazendeiro, e onde o

meu pai trabalhou nessa fazenda, tinha os povos indígenas e

estavam trabalhando para o fazendeiro.

Ainda jovem muda-se para o Paraná onde passa a trabalhar como

empregada doméstica. Também morou um período no Paraguai e na cidade de Ponta

Porã, onde também trabalhou como empregada doméstica. Por volta dos 18 anos de

idade, quando morava na cidade de Iguatemi, casa-se. Já casada, vai morar com o

marido junto com o pai que na época trabalha numa fazenda na região de Iguatemi.

Porém conta que retornou a esta cidade quando engravidou da primeira filha e por lá

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permaneceu até seu nascimento. Contudo, deixam a cidade quando seu marido sofre um

acidente e perde o emprego. Nesse momento volta para perto do pai que se encontrava

morando em Taquara, uma área de retomada, localizada no município de Juti. Por

desavença com a liderança, ela e sua família ficam pouco mais que um mês em Taquara

e se mudam para outra área de retomada Jarará, também em Juti, motivada por uma

prima: tinha uma prima que morava em Jarará: aí ela falou para mim que o lugar era

bom, era assim, que tudo que plantava dava, isso aquilo, aí eu queria né, aí fomos para

lá. Fiquei lá um tempo, só que as coisas não são assim do jeito que ela falava né, e era

difícil, era recém retomada. Em Jarará ficou morando alguns meses e é onde tem seu

segundo filho. Segundo me contou, mais uma vez sentiu necessidade de mudar, porque

nessa área, pela distância que estava da cidade, ficava difícil conseguir a documentação

de seus filhos e ter acesso a saúde:

como as coisas eram muito difíceis, em Jarará não tinha serviço

e o pessoal de lá não dava emprego para os indígenas né,

estava difícil. E médico acho que em 15, 15 dias ou mais. Não

tinha escola, não tinha nada ainda, era recente ainda... e para

mim ficou difícil, meus filhos não tinham documento, não tinha

como tirar, e as coisas...cidade longe né, e os documentos tem

que vir para cá, aí foi onde que eu vim para cá.

É então quando se muda para o Tekoha Pyelito Kue, no município de

Iguatemi, área essa que também reside um dos seus irmãos. No entanto, motivada pela

possibilidade de estar mais perto da cidade, decide procurar uma irmã que morava na

aldeia Bororó, decidindo se mudar para lá, pois como me contava é diferente morar em

aldeia perto da cidade e em aldeia longe da cidade, na primeira “as coisas eram mais

fáceis”.

Ela e sua família moraram na aldeia Bororó por mais ou menos oito anos.

Logo quando chegaram ficaram alojados na casa da sua irmã e posteriormente seguiram

para um terreno no fundo da reserva, lá conseguia plantar e ter criações. O marido

arrumara um emprego na cidade: saia todos os dias as três da manhã de casa e seguia

para cidade a pé para poder entrar no serviço as sete horas da manhã. Para ficar mais

próxima da escola, mudam-se de novo, mas agora dentro da aldeia Bororó, porém para

um terreno menor, tendo que desfazer do cavalo que tinha e das suas 200 galinhas.

O desejo de poder voltar a ter a sua roça e as suas criações é a que leva

aceitar o convite, da antiga liderança do Tekoha 2, para fazer parte da retomada e

complementa: “quem tem terreno pequeno veio tudo para cá”. É nesse período que ela

se depara com um novo tipo de mobilidade, a mobilidade que leva a mobilização. Ao

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participar de uma retomada, a vice-liderança passou a frequentar os espaços da Aty

Guasu, a ir nas viagens para Brasília, e nessas viagens, conversando com as pessoas, diz

que começou a aprender, “a necessidade que me levou a conhecer essas coisas”, e em

outra fala acrescentou: tomei o gosto, como diz o outro, lutar pelas terras que foram dos

povos indígenas, não só o meu, da minha família, mas tem outras famílias. Porque

como todos os indígenas lutavam, eu também vou. Porque eu faço parte desses povos

né, então eu também vou e comecei.

A trajetória da ex-liderança de Caarapó:

Outro caso que pode ser expressivo desse andar igual marimbondo é o da

ex-liderança de Caarapó. Eu conheci ele e sua família pela primeira vez em janeiro de

2012, quando este tinha se mudado da Reserva de Caarapó, no município de mesmo

nome (cerca de 52 km de Dourados) para o Tekoha 1. Ele trouxera ao tekoha sua família

e sua experiência como ex-liderança da Reserva de Caarapó e como participante ativo

das Aty Gasu, como, na época, fazia questão de mencionar. Todas essas qualidades

davam prestígio a esse homem, passando a desempenhar um papel político na área com

a anuência das lideranças do Tekoha 1 (CRESPE e CORRADO, 2012).

Em 2016 encontrei a ex-liderança de Caarapó e toda a sua família, morando

no Tekoha 2. Essa mudança tinha apenas alguns meses, eles haviam se mudado em

novembro de 2015. É nesse novo encontro que ele me conta com mais detalhes sobre

sua vinda para Dourados. Ao perguntar o motivo pelo qual deixará a Reserva de

Caarapó ele responde prontamente:

Olha isso é uma coisa muito importante para mim, você

perguntar isso aí, por que nós saímos de Caarapó. Caarapó eu

tenho uma casa boa lá. Uma casa boa 6x12, uma casa material,

bem-feita. Só que nós saímos de lá porque não tinha serviço

para gente trabalhar. Eu trabalhava de liderança e a gente

conseguia alguma coisa. E a mulher trabalhava na escola, aí

entrou o vereador, elegeu o vereador lá e tiraram ela da escola,

aí eu saí da liderança, não tem serviço para mim e ela saiu da

escola, todo mundo ficou sem serviço. Aí nós começamos a se

preocupar, porque não tem onde nós conseguirmos nada né,

tinha que correr para cá, o único caminho era correr para cá.

Largamos a casa e viemos embora para cá. Cheguei aqui em

Dourados, no outro dia, eu trabalhei no sindicato, no sindicato

aqui em Dourados. Cheguei aqui e fui direto para sindicato, eu

trabalhei lá três meses no sindicato, depois fui trabalhar mais

30 dias numa empresa, trabalhei aqui no clube Indaía, 30 dias

também, aí eu fui para a Seara. Na Seara já estou com cinco

anos.

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Ele e sua família mudaram para Dourados no ano 2010. Eles foram primeiro

para a Reserva de Dourados onde moraram, por um tempo, na aldeia Bororó numa casa

doada pela irmã de sua esposa. Ainda na reserva de Dourados, vão morar na aldeia

Jaguapiru, na casa de uma prima da sua esposa. Como não encontraram uma casa para

morar na reserva, pois como me relatou o casal, não tinha lote, ele começou a procurar

uma casa na cidade para poder alugar:

não tinha lugar para morar, eu comecei a procurar casa de

aluguel para mim. Uma semana, quase duas semanas

procurando casa de aluguel, para alugar casa. Nós tínhamos

uma carroça e uma animal, e todo lugar que tem casa para

alugar me perguntava se tinha animal, carroça, e falei que

tinha. Então não pode, porque na cidade tem que ser uma área

grande para ter animal, né. E aí eu não consegui arrumar casa

para mim morar.

Após não conseguir alugar uma casa na cidade, ele decidiu, junto com sua

esposa mudar para o Tekoha 1, onde moraram durante cinco anos. Sobre o Tekoha 1 ele

ainda acrescenta:

... meu pai morava lá, finado meu pai. Mas não morava lá

mesmo, morava mais para cá, ali perto do Douradão mesmo...

muito tempo atrás. É que a cidade foi tomando lugar, tinha

cemitério ali. Eu não me lembro bem onde que era o cemitério,

mas me falaram que tinha cemitério, perto do brejo...

Antes de morarem no Tekoha 1 a antiga liderança de Caarapó e a sua esposa

contaram que há muito tempo participavam de retomadas. A primeira retomada que

participaram foi em Antonio João, depois em Iguatema, na área de retomada de Ivy

Katu. Também estiveram em Rancho Jacaré, em Laguna Carapã, em Taquara, e na

retomada Guaimbé em Amanbaí. Mas eles participaram dessas retomadas como apoio,

contaram que ficavam uns 15, 20 dias nas áreas de retomada, depois retornava para a

sua casa. Esse era o período da entrada, que como eles me disseram é o período mais

difícil, depois que normalizava, voltavam para a casa. A atuação dessa família em

importantes retomadas e seu tempo no Tekoha 1 e agora no Tekoha 2 era o que fazia sua

esposa dizer, ao se referir aos filhos e netos, que essa meninada que tá aí, crescemos na

luta mesmo, conhecemos tudo como que é regra de luta.

Como pontuaram meus interlocutores, muitas vezes eles se mudaram para

áreas nas quais tinham algum parente ou conhecido: “uma ação orientada por uma rede

de relações construídas, rede está fundamentada pelo parentesco” (Barbosa da Silva,

2007: 79). Além disso, através das narrativas aqui apresentadas, percebe-se que esse

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andar como marimbondo se refere a busca por um lugar, de preferência o retorno ao

tekoha, onde as relações familiares e a socialidade possa ser reproduzida. O

marimbondo, conforme breve pesquisa feita, é a única espécie de vespa, das mais de

30.000 conhecidas, que constrói casa, as outras espécies são chamadas de espécies

solitárias. Essa especificidade faz com que esses insetos gastem parte de sua vida

procurando um lugar adequado para construir o vespeiro. Coincidência ou não, a

liderança do Tekoha 3 não me falou que andava como uma vespa, ou como uma abelha,

ele falou que andava como marimbondo.

Andanças pela vizinhança

Os dados etnográficos dos Tekoha 1 e Tekoha 2, também permitem observar

como os moradores desses espaços tecem relações com outras áreas de retomadas, com

a reserva e com a cidade. Ambas as áreas estão localizadas próximo ao perímetro

urbano da cidade de Dourados. O Tekoha 1 está localizado próximo à Rodovia, há 5 Km

do centro de Dourados e o Tekoha 2 está próximo a margem de uma estrada, ficando

apenas alguns metros de distância do Bairro 3.

O Tekoha 2 é um bom exemplo para pensar a mobilidade, pois sua

localização inclusive a favorece, pois, além de estar próxima a cidade de Dourados, ele

ainda é vizinho da reserva indígena de Dourados e vizinho de uma outra área de

retomada, o Tekoha 3. Existe uma circulação dos moradores entre os dois tekoha. Essa

circulação é motivada principalmente pelas visitas de amigos e parentes, por pedidos de

ajudas, principalmente com o auxílio de alimentos, ou em relação a segurança das áreas.

Outro motivo para a circulação entre o Tekoha 2 e o Tekoha 3, é o atendimento médico.

Existe uma agente de saúde que mora no Tekoha 3 e que é responsável por atender as

duas áreas de retomadas. O atendimento da Sesai107 é realizado a cada quinze dias

intercalando as visitas entre as duas áreas de retomadas, ou seja, quando a Sesai está

atendo no Tekoha 3 todos os moradores do Tekoha 2 que precisam receber atendimento

médico vão para o Tekoha 3, quando o atendimento é no Tekoha 2, é a vez dos

moradores do Tekoha 3 irem para lá receber atendimento médico. Essa circulação

favorece com que os moradores das duas áreas se encontrem e possam conversar sobre

os últimos acontecimentos em ambas as áreas e sobre suas vidas.

107Secretária Especial de Saúde Indígena.

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A relação entre esses dois tekoha também é favorecida pela relação entre as

suas lideranças. Como me relatou a vice-liderança do Tekoha 2, a liderança do Tekoha 3

atualmente os ajuda. Essa ajuda se refere principalmente as questões relativas a

segurança das áreas de retomadas, problemas com o alcoolismo e com a violência

dentro da área, onde a liderança do Tekoha 3 é chamada para aconselhar sobre qual a

melhor medida a ser tomada, ou até mesmo conter uma situação de violência.

A proximidade com a reserva é uma via de mão dupla, garante a circulação,

proporcionando assim, a ligação com os parentes amigos e conhecidos, bem como,

permite acessar recursos importantes, como o posto de saúde, o acesso a água limpa e a

energia elétrica. No Tekoha 2 não são todas as famílias que tem poços de água, além

disso, em tempos de chuvas a água do poço fica suja, e não há energia elétrica. O acesso

à escola da reserva é outro recurso importante, possibilitado por essa proximidade, a

maioria das crianças e jovens que moram no Tekoha 2 frequentam a Escola que fica

próxima ao tekoha. Essa mobilidade entre as áreas de retomadas e reservas, contribui

para a manutenção de acampamentos existentes, além de fomentar o surgimento de

outros novos.

Mas, se por um lado a reserva é uma alternativa para acessar recursos, dos

quais são mais difíceis de conseguir em uma área não regularizada, por outro lado, a

reserva representa um modelo de vida do qual os moradores dos tekoha querem se

afastar. Assim a proximidade com a reserva, embora tragam benefícios, também

apresenta reclamações quanto aos problemas de violência. Segundo informações das

lideranças do Tekoha 2, existe um fluxo de moradores da Aldeia Bororó que vão para o

acampamento para “bagunçar” e levar bebida alcoólica, o que gera conflito entre os

moradores da Bororó e as lideranças do Tekoha 2.

A cidade, como mencionado anteriormente é ao mesmo tempo um ponto de

acesso a diferentes tipos de recursos, mas a relação com ela também passa por tensões e

controles. A liderança do Tekoha 1 sempre insistia na necessidade de construir uma

plataforma ou colocar uma sinalização na rodovia para os índios poderem circular mais

tranquilamente e diminuir o número de mortes por atropelamento. Essa reivindicação

tem como objetivo facilitar a circulação dos moradores do Tekoha 1, pois o tekoha não é

pensado como um espaço de confinamento, como a reserva muitas vezes é considerada.

Os tekoha também são visitados pelos parentes da reserva. Em uma das

visitas ao Tekoha 1, encontrei uma moça que contou que morava na aldeia de Bororó e

que estava ali visitando sua tia. Ela havia saído da Aldeia de Bororó pela manhã de

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bicicleta, atravessado a cidade e chegado ao Tekoha 1 por volta das dez horas da manhã,

lá acompanhou sua tia nas suas atividades, como lavar roupa e aproveitou para tomar

banho no açude, o que fez com muita satisfação lembrando que na reserva existem

muitos poucos lugares para se tomar banho de rio. No Tekoha 2, a irmã da vice-

liderança, que mora em outra cidade, veio visita-la com seus filhos, ela ficou quase duas

semanas na área, pois além da visita existia a expectativa dela se mudar para o tekoha.

Em uma das minhas visitas pelo Tekoha 2, encontrei uma moradora que me

contou que morava do Pacurity, outra área de retomada, mas que decidiu se mudar para

aquele tekoha porque sua filha estava matriculada na Escola, assim, a proximidade do

tekoha com a reserva foi o que impulsionou a mudança de uma área de retomada para

outra.

As visitas entre reserva, áreas de retomadas, cidade são um aspecto

relevante, pois nelas não circulam apenas as pessoas, circulam objetos, notícias de

outras áreas e de parentes, há uma intensa troca de informações. Esse fluxo é ilustrativo

desse andar “igual marimbondo” para pensar como as redes de circulação e as redes de

relações continuam a se desenvolver e como chamou atenção Barbosa da Silva, as

pessoas continuam circulando por vários “ambientes do seu território” (2007, 239).

Acredito que as retomadas indígenas possibilitam as tradicionais

mobilidades Guarani e Kaiowá, como o oguata e o jeheka descritas acima. Do mesmo

modo que uma mobilidade marcada pela circulação por espaços como a Funai, o

Ministério Público Federal, as Universidades e até mesmo as reuniões e os encontros

em Brasília para tratar das questões sobre as demarcações das terras e para reivindicar e

tentar resolver os problemas das suas comunidades. Este andar, “igual marimbondo” –

aponta também para articulação de novos modos de mobilidade e de reivindicações

políticas, bem como a criação de novas estratégias.

Os Kaiowá e Guarani não me falaram sobre sua mobilidade através dos

termos oguata, jekete e sarambi. Eles me explicaram suas formas de circulação pelos

aprendizados e pelas relações que teceram em cada lugar de parada, pelo seu

aprendizado da luta pela retomada do tekoha, por suas atuações, como lideranças, como

empregadas domésticas, como agentes de saúde, como merendeiras. Sua mobilidade

também era expressa pelo desejo de visitar um parente na reserva ou nos tekoha, pelo

desejo de arrumar um emprego ou continuar os estudos na cidade. Mas esse andar

como marimbondo, também expressa a esperança de encontrar parada numa terra onde

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se possa unir e viver com sua parentela. Onde os conflitos possam ser mediados com

mais facilidade e a mistura ser controlada.

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Considerações Finais

Em 13 de fevereiro de 2017 o então presidente da FUNAI Antonio Fernades

Toninho Costa em entrevista ao Jornal Valor Econômico disse “O momento da Funai

assistencialista não cabe mais, temos que produzir sustentabilidade, ensinar a pescar”.

No dia 08 de março de 2017 o então Ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB – PR)

em entrevista a folha de São Paulo proferiu a seguinte frase: "O que acho é que vamos

lá ver onde estão os indígenas, vamos dar boas condições de vida para eles, vamos parar

com essa discussão sobre terras. Terra enche a barriga de alguém?”.

E no dia 01 de novembro de 2017, quando finalizava esse trabalho, o atual

Ministro da Justiça, Torquato Jardim, noticiou que Michel Temer, pressionado pela

bancada ruralista, enviará ao Congresso Nacional a proposta de arrendamento de terras

indígenas para produtores rurais. E no Informativo 2017/2018 do Ministério da Justiça,

ainda acrescenta que, sobre a questão indígena, “busca por soluções inovadoras que

beneficiem tanto as comunidades indígenas quanto a produção agrícola brasileira.”108

Essas frases, além de apresentarem um senso comum e um desconhecimento

sobre os sentidos de terra para os grupos indígenas, expressa justamente as “disputas

entre visões de mundos” (BORGES, 2011). De um lado temos a terra da diferença, de

crianças, velhos e ancestrais, de outro temos a terra homogênea, retalhada pela

monocultura e pelos loteamentos. E essas disputas tem efeitos na vida das pessoas,

como tentei mostrar através das etnografias do Tekoha 1 e do Tekoha 2.

Como apresentado as retomadas no MS fazem parte de um quadro histórico

e social mais amplo, reflexo do processo de colonização e desenvolvimento do estado

do MS, somado à política indigenista praticada pelo SPI de reservamento da população

Kaiowá e Guarani. É na conjuntura do processo de esbulho das terras desses povos e

dentro das reservas superpovoadas e que não representam condições ideais para a vida

Kaiowá e Guarani que muitas famílias passaram a retomar e reivindicar seus antigos

tekoha.

O retorno está associado a uma “forma retomada” que reúne diversos

elementos. Além disso, destacou-se o papel fundamental dos Aty Gasu, como espaços

que surgiram quase que concomitantemente às primeiras retomadas, como espaço de

108 Ver noticia em: em https://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2017/11/01/governo-retoma-ideia-de-

arrendar-terra-indigena/

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sociabilidade e de consolidação de redes de relações, onde informações e

conhecimentos vão sendo trocados.

As etnografias do Tekoha 1 e do Tekoha 2, além de contar a história dessas

retomadas e apresentar os elementos acionados em cada uma delas, também mostrou

como no cotidiano das áreas de retomadas existe uma diversidade de relações. O

Tekoha 1, uma ocupação muito mais longa, é marcada pelo traço de uma liderança

estável articulada entre dois irmãos que conseguiram reunir sua parentela. Hoje no

Tekoha 1 só mora parente.

O Tekoha 2, por sua vez reúne diversos grupos de parentelas, exigindo

muita habilidade de suas lideranças. Na tentativa de controlar os conflitos dentro da área

e a mistura passaram a se organizar de uma maneira muito semelhante à adotada pelos

movimentos sem-terra - há um cadastro de moradores que sempre é atualizado, as

reuniões da comunidade são realizadas com frequência e há uma preocupação em

manter os lotes limpos e com roças.

Contudo é o “tekoha como uma criança pequena”, que me permitiu

visualizar os sentidos das áreas de retomadas para meus interlocutores. Pois, como

menciona Cayón, em sua etnografia sobre os Makuna, “[...] para os indígenas, o espaço

vai muito além de uma construção cultural ou da representação simbólica de uma

topografia previamente dada, posto que é parte fundamental do pensar, viver e sentir o

mundo, modificando e colocando em movimento conhecimentos profundos sobre o

mesmo” (2010: 189).

Para os Kaiowá e Guarani, retomar o seu tekoha, significa retomar sua

relação com a terra que faz crescer plantas e alimentos, tal como pessoas. Ao mesmo

tempo, significa entregar seus mortos na mesma terra que estão seus ancestrais. São

outros sentidos. A terra é pensada como um corpo, que assim como as crianças deve ser

cuidada e fabricada constantemente, ao mesmo tempo, gera “a comida de índio”.

Assim, a terra para os Kaiowá e Guarani, acima de tudo, diz sobre o corpo, sobre

práticas de cuidados e sobre relações de parentesco, ou seja, uma terra pensada não

apenas como suporte de relações, mas também como componente delas. Desta maneira,

parece estar tudo conectado: pessoas, terra, frutos da terra e corpos, que forma um

conjunto capaz de controlar a mistura.

A gramática da terra, acionada pelos meus interlocutores, não está apenas

circunscrita a um espaço físico, a um lugar de produção de alimento; seus sentidos

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extrapolam essas categorias a partir das quais tentam defini-la. Por outro lado, não só a

terra, mas seus sentidos estão sendo disputados.

A violência e assédios que a comunidade do Tekoha 1 vem sofrendo com

especulação imobiliária da cidade de Dourados é flagrante. Além disso, a disputa por

uma terra indígena dentro da área urbana do munícipio, também suscitou uma discussão

sobre o lugar do índio. Dourados é marcada por um senso comum entre habitantes da

cidade que veem os índios como preguiçosos, avessos ao trabalho, alcoólatras, violentos

e todo tipo de estereótipo que associa esses povos com algo ruim, perigoso e que deve

ser evitado. Estamos falando de um lugar marcado por preconceito étnico, muitas vezes

acompanhados de violência física contra pessoas destas etnias. Assim, para a população

local principalmente dos moradores da cidade de Dourados, que tem uma relação

cotidiana com as pessoas indígenas que circulam pela cidade, os índios devem viver nas

reservas, criadas pelo Estado, não tendo assim a necessidade de novas demarcações. Na

visão dos moradores locais, do setor do agronegócio e imobiliário, as terras indígenas já

foram demarcadas, mas não consideram em que condições estas terras foram

demarcadas e nem a condição atual em que elas se encontram. Esse argumento é um dos

exemplos, que demostra o quanto é necessário discutir os conflitos envolvendo o

conceito de terra para os grupos indígenas e para os demais segmentos locais.

Essa divisão do mundo social que “abarca relações de forças que são tanto

materiais como simbólicas” (BOURDIEU, 2003) é disputado por diferentes lógicas,

como fica expresso nas frases acima, nos comentários de que lugar de índio é na reserva

e na proposta do setor imobiliário de deslocar a comunidade do Tekoha 1 para uma

localidade previamente escolhida por eles. No caso do Guarani e Kaiowá, se no passado

o processo de reservamento no MS levou em consideração interesses econômicos e os

Guarani e Kaiowá se viram confinados (BRAND, 1997) nas reservas. Na atualidade,

além do agronegócio, os indígenas se defrontam com o crescimento das cidades e da

especulação imobiliária.

Nessa disputa, terra como propriedade privada tende a eclipsar a noção de

que “para o índio, a terra é um elemento central, ela não só enche a barriga, mas enche

também o sentido da vida para os indígenas"109.

109 Frase proferida por Cleber César Buzatto do CIMI em reação a fala de Osmar Serraglio: “terra não

enche barriga de ninguém”.

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Anexos

Glossário

Aty Guasu: grande assembléia

Avati kyry: batismo do milho

Hi’u: cabeça de parentela

Jaike Jevy: recuperação

Japora: mistura

Jeroky guasu: grandes rituais religiosos

Mita ñemongarai: batismo da criança

Mitã tuixama: criança com mais de sete anos

Ñandeci: rezadora

Ñanderu: rezador

Ñei em porã: palavra boa e bela

Opuã: levantar

Sarambi: fragmentação da parentela/esparramo

Tape po’i: caminho estreito

Te’yi: parentela

Teko katu: forma bonita e correta de se viver

Tekoha: termo polissêmico, compreendido como território

Xapiri: espírito da floresta (Yanomami)

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Sessão Fotográfica

Foto 1: Barracos e mata do Tekoha 1

Foto 2: Barraco Tekoha 1, ao fundo pode- se ver a cidade, que fica logo atrás da

rodovia.

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Foto 3: Caminhando pelos tapes poi no Tekoha 1.

Foto 4: Moradores do Tekoha 1 reunidos no dia 19 de abril.

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Foto 5: Barraco da vice-liderança do Tekoha 2, nesse período ela e seu marido estavam

ampliando-o.

O cotidiano nos tekoha

Foto 6: Mulheres do Tekoha 1, reunidas para tomar tereré

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Foto 7 e 8: Mulheres lavando roupa no açude do Tekoha 1

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As crianças nos tekoha

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