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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
FREDERICO DE SOUSA SILVA
APOCOLOCINTOSE DO DIVINO CLUDIO
Traduo, notas e comentrios
So Paulo
2008
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
APOCOLOCINTOSE DO DIVINO CLUDIO
Traduo, notas e comentrios
Frederico de Sousa Silva
Dissertao apresentada ao Departamento
de Letras Clssicas e Vernculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo
(USP), para obteno do ttulo de Mestre
em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Jos R. Seabra F.
So Paulo
2008
Silva, Frederico de Sousa S586 Apocolocintose do Divino Cludio: traduo, notas e comentrios/ Frederico de Sousa Silva; orientador: Jos Rodrigues Seabra Filho
So Paulo, 2008. 145 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas. rea de Literatura latina) Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. 1. Sneca, o jovem, ca. 4 a.C.-65 2. Tibrio Cludio Csar Augusto Germnico, Imperador de Roma, de 41 a 54 - 3. Literatura latina (Crtica e interpretao) - 4. Stira menipia I. Ttulo 21 CDD: 878
RESUMO: A Apocolocintose do divino Cludio a desconstruo da apoteose atribuda
pelo senado romano a Cludio, princeps morto em 54 d.C. e penltimo Csar da
dinastia Jlio-Claudiana. Este texto de Sneca estrutura-se de acordo com o gnero
stira menipia, em que se mesclam prosa e verso, coloquialismos e formas cultas, alm
de intensas relaes que se estabelecem com outros textos greco-romanos. Para isso,
Sneca insere fatos da vida de Cludio e relaciona-os com situaes inesperadas no cu,
na terra e no inferno, em um percurso fictcio que o princeps romano realiza nesta
dessacralizao. O texto de Sneca uma reao ao exlio sofrido nas mos deste
mesmo princeps, a quem o filsofo veio a servir em 49 d.C. Tambm uma reao aos
desmandos e crueldades perpetradas por Cludio e uma forma de enaltecer a imagem de
Nero, alado ao governo de Roma aps a morte de Cludio. Esta dissertao de
Mestrado compreende uma introduo ao gnero stira menipia, seguida de traduo e
notas da Apocolocintose do divino Cludio, bem como de um comentrio crtico-
analtico em que se examinam as intenes de Sneca nesta invectiva contra Cludio.
PALAVRAS-CHAVE: Stira menipia; Sneca; divinizao; Cludio; dessacralizao.
ABSTRACT: Divine Claudios Apocolocintose is the destruction of the apotheosis
given by the Roman senate to Claudio, princeps who died in 54 after Christ, and the
penultimate Caesar of the Julian-Claudian dynasty. The text by Seneca is, in its
structure, in accordance with the genre menippean satire, in which prose and verse,
colloquialism and erudite forms of composition are entwined. Besides, the text has
intense links with other Greek-Roman texts. In order to do that, Seneca inserts facts of
Claudios life and relates them with unexpected situations in heaven, on earth and in
hell, in a fictitious path the Roman princeps carries out in this dissacralization. Senecas
text is a reaction due to the exile he had to undergo through the hands of the princeps
himself, who the philosopher served in 49 after Christ. Its also a reaction to the whimsy
deeds and cruelties done by Claudio, and a way of highlighting Neros image, who took
the government after Claudios death. This Masters degree paper comprehends and
introduction to the genre menippean satire, translation and notes of Divine Claudios
Apocolocintose as well as a critic-analytic comment on which Senecas intentions are
examined in the invective against Claudio.
KEY WORDS: Menippean satire; Seneca; divinization; Claudio; dissacralization.
NDICE
Introduo ...................................................................................................................... 5
A stira menipia e o texto de Sneca ......................................................................... 7
Apocolocintose do divino Cludio. Traduo e notas .............................................. 15
Comentrio crtico ....................................................................................................... 53
Consideraes finais .................................................................................................. 140
Bibliografia ................................................................................................................. 142
5
INTRODUO
Discusses polticas, costumes, relacionamentos entre personalidades do mundo
romano da corte de Cludio, frente de Roma entre 41 e 54 d.C., e principalmente a
zombaria em relao figura do imperador entrelaam-se na obra Apocolocyntosis Diui
Claudii, escrita por Sneca pouco depois da morte do soberano romano. Lcio Aneu
Sneca, nascido entre 4 a.C. e o ano 1 de nossa era, dedicou-se a vrios gneros
literrios e em cada um deles mostrou versatilidade na arte da escrita. Brilhante e
verstil naquilo que escrevia, grande orador, despertou a inveja de Calgula 1 , foi
hostilizado por Cludio que o exilou2 e, depois de ser o preceptor e principal
conselheiro de Nero, suicidou-se por ordem do mesmo imperador a quem educara3.
Ativo participante da sociedade e da poltica romanas, Sneca nunca perdoou a Cludio
por este t-lo exilado em 41 d.C. Com a morte do princeps, o filsofo tem a
oportunidade de escrever uma invectiva, texto traduzido e comentado neste nosso
trabalho de pesquisa. O texto de Sneca pe em contestao o ttulo de divino, atribudo
a Cludio postumamente, e o faz sugerindo no a transformao de Cludio em um
deus, mas sim em um escravo no inferno.
A Apocolocintose a confluncia de vrios aspectos que se acumularam durante
alguns anos, como o ressentimento de Sneca, por ter sofrido o degredo determinado
pelo prprio imperador Cludio, a quem passou tambm a servir de 49 a 54 d.C. Alm
disso, a Apocolocintose mostra tambm o desprezo de Sneca pela figura do imperador
Cludio, considerado no s incapaz para o cargo que ocupava, mas tambm tido como
abobalhado por quase todos que o cercavam. A Apocolocintose , desse ponto de vista,
a prpria clera de Sneca contra as atrocidades que Cludio cometera contra o filsofo
e contra o ideal de governo romano. De outro lado, o texto de Sneca tambm pode ser
lido como uma obra que enaltece novos tempos para os romanos, como o prenncio de
uma nova idade do ouro, com a elevao de Nero ao comando de Roma. Nesse sentido,
a Apocolocintose tambm critica as atitudes de Agripina, me de Nero, que pretendia
1 A eloqncia de Sneca nos discursos provocou a ira de Calgula e este s lhe poupou a vida porque o princeps escutou uma brilhante interveno de Sneca no senado e porque uma das amantes de Calgula afirmou que Sneca morreria doente em pouco tempo. Cf. Suetnio (Calgula, 53), Dion Cssio (LIX, 19, 7) e o crtico moderno Ettore Paratore na obra Histria da Literatura latina, p. 581. 2 Orador reconhecido, em 41 d.C., no governo de Cludio, Sneca foi acusado de adultrio com Jlia Livila, irm de Calgula. Mandado para a Crsega, Sneca retornar a Roma em 49 d.C. A mgoa do exlio, juntamente com os desmandos de Cludio, fornece matria para a Apocolocintose. Cf. Tcito (Anais, XIII, 42), Dion Cssio (LX, 8) e Suetnio (Cludio, 29). 3 Cf. Tcito, Anais, livros XIII e XIV.
6
ser a esposa de um deus, possibilidade que poderia contrapor-se os projetos de Nero.
Entendida dessa forma, a Apocolocintose, por meio da derriso, por meio da destruio
da imagem de Cludio, tem o propsito de colocar em posio de destaque o novo
soberano dos romanos, ou seja, instalar Nero altura dos deuses.
Este nosso trabalho de estudo e pesquisa apia-se na teoria do gnero stira
menipia apresentada por Mikhail Bakhtin, Northrop Frye e Enylton Jos de S Rego,
com as respectivas obras Problemas da potica de Dostoievski; Anatomia da Crtica; O
calundu e a panacia: Machado de Assis, a stira menipia e a tradio lucinica.
Aps o desenvolvimento da teoria a respeito da stira menipia, gnero textual utilizado
por Sneca para compor a Apocolocintose, apresenta-se a traduo do texto,
acompanhada de notas. Em seguida, comenta-se a Apocolocintose do divino Cludio
luz da stira menipia. Para a traduo desta obra latina, utilizou-se a edio
estabelecida por Ren Waltz para a editora Les Belles Lettres. Como suporte para
eventuais dvidas em relao a alguns termos latinos, consultou-se a edio da
Apocolocintose da editora Loeb Classical Library. Dicionrios, gramticas e livros
referentes literatura e histria romanas completam o rol de obras utilizadas para a
presente traduo, comentrio e notas que perpassam esta pesquisa.
7
A STIRA MENIPIA E O TEXTO DE SNECA
A antigidade clssica fornece posteridade uma gama de gneros textuais,
dentre os quais h um campo especialmente frtil que os antigos denominaram de srio-
cmico, em oposio aos chamados gneros elevados como a epopia, a tragdia e a
histria, entre outros.
Entre as caractersticas dos gneros do srio-cmico, reunidas e analisadas por
Mikhail Bakthin na obra Problemas da potica de Dostoievski, cita-se primeiramente o
tratamento que dado realidade. Para Bakthin, a histria no se passa em um passado
remoto ou absolutamente no campo das lendas: O objeto da representao sria (e
simultaneamente cmica) dado sem qualquer distncia pica ou trgica, no nvel da
atualidade, na zona do contato imediato e at profundamente familiar com os
contemporneos vivos (...)4. A Apocolocyntosis Diui Claudii, texto em estudo nesta
pesquisa, foi escrita logo aps ou poucos anos depois da morte do imperador Cludio,
motivo da invectiva de Sneca. Portanto, grande parte dos acontecimentos relatados no
libelo ora estudado era de conhecimento e de, at, testemunho da sociedade romana da
poca.
Outra peculiaridade do srio-cmico refere-se anlise crtica que se faz na
obra: (...) os gneros do srio-cmico no se baseiam na lenda nem se consagram
atravs dela. (...) na maioria dos casos seu tratamento da lenda profundamente crtico,
sendo, s vezes, cnico-desmascarador5. Mesmo que Sneca tenha tambm o propsito
de rebaixar o imperador morto para assim realar as caractersticas de Nero, o novo
imperador, em toda a Apocolocintose o autor pe a nu os defeitos de Cludio com a
clara inteno de destruir a imagem de divino, concedida pelo senado romano a
Cludio.
A terceira particularidade refere-se pluralidade de estilos e tons em uma
mesma obra. H uma combinao do sublime com o vulgar, do elevado com o baixo,
em uma variedade de gneros intercalados. H uma renncia unidade estilstica ou
unicidade estilstica, segundo Bakthin. Os gneros elevados, como a epopia e a
tragdia, tratam de deuses e de personagens prximas divindade, levando-se em conta
as realizaes humanas em sua dimenso ideal e grandiosa. Na Apocolocintose, pode-se
perceber que a crtica a Cludio e o conseqente desprezo pela figura do imperador se
4 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski, p. 108. 5 Idem, ibidem, p. 108.
8
do a partir da estrutura da obra, uma vez que o autor sabe que, ao fazer essa mistura de
gneros em um mesmo texto, est elaborando uma obra baixa, em contraposio aos
gneros elevados. Logo, a forma escolhida por Sneca j remete o leitor da poca para o
ridculo ou a mediocridade, neste caso para Cludio, descrito na obra como homem
inferior e tolo.
A Apocolocintose do Divino Cludio insere-se, portanto, no estilo do srio-
cmico e especificamente no gnero stira menipia. A utilizao da expresso stira
menipia ainda vaga, carecendo de estudos mais aprofundados. Entretanto, Mikhail
Bakthin, com sua obra Problemas da potica de Dostoievski, Northrop Frye e sua
Anatomia da Crtica e a pesquisa de Enylton J. de S Rego6 norteiam o presente
trabalho de pesquisa, visto que so crticos que se debruaram sobre o gnero citado.
Quintiliano (Institutiones Oratoriae, X, 1, 93) afirma que a stira um gnero
essencialmente latino. Tornou-se famoso e reconhecido o trecho satira quidem tota
nostra est. Crticos e mais crticos debruam-se sobre teorias acerca da stira e, quase
sempre, inscrevem como escritores satricos latinos Luclio, Horcio, Prsio e Juvenal.
Deixam de fora Sneca, talvez por este ter-se firmado como grande filsofo e no
satirista, ou por ter escrito um nico texto satrico que no se enquadrasse na afirmao
de Quintiliano, uma vez que a Apocolocyntosis Diui Claudii guarda reminiscncias
gregas, no sendo considerada simplesmente uma stira, mas uma stira menipia. O
prprio Quintiliano, alm dos crticos citados acima, faz meno a uma stira de estilo
diferente quele formulado pelos romanos: Alterum illud etiam prius saturae genus, sed
non sola carminum uarietate mixtum condidit Terentius Varro, uir Romanorum
eruditissimus7 (Terncio Varro, o homem mais erudito entre os romanos, estabeleceu
tambm outro gnero de stira anterior quele, no somente de uma nica variedade,
como tambm de versos misturados).
A stira portanto assume diferentes vertentes. No mundo romano, a stira mais
conhecida e reconhecida tem fundo moralizante, e o prprio Horcio expressa o
ridentem dicere uerum quid uetat? 8 . Mesmo que o satirizar seja um sentimento
universal, a stira latina surge da observao dos vcios e das distores sociais e
morais. Seus alvos so, ao mesmo tempo, morais, sociais e polticos, e seu esprito,
6 S REGO, Enylton Jos de. O calundu e a panacia: Machado de Assis, a stira menipia e a tradio lucinica. 7 Instituies Oratrias, X, 1, 95. 8 Que impede, a quem ri, dizer a verdade? Horcio, Sermones, I, 1, 24.
9
essencialmente conservador 9 . Com a mudana abrupta da antiga vida campesina
romana para a nova vida ao estilo dos helnicos, Roma presencia costumes at ento
desconhecidos. Os romanos, antes de conhecerem a Grcia e seus costumes, tinham
como caractersticas o amor prpria terra e aos produtos dela, o amor famlia e a
sujeio ao paterfamilias, o mos maiorum obedincia incondicional aos mais velhos e
s tradies , que leva ao senso de moralidade e tinham, enfim, um apego
simplicidade no viver.
A vida e, conseqentemente, os costumes romanos agrrios sofreram profundas
transformaes com as conquistas territoriais e, principalmente, com o contato com
civilizaes to dspares como a grega. Horcio, nas epstolas (II, 1, 156-157), remete a
isso quando escreve Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti Latio (a
Grcia vencida conquistou o fero vencedor e trouxe as artes ao Lcio agreste). Mesmo
com essas revolues sociais, a sociedade romana ainda podia ser considerada
conservadora, de modo que os satiristas latinos conhecem o sucesso por meio da
mordacidade e zombaria contra aqueles que iam de encontro aos traos originais da
agrria civilizao romana. De um lado ento est a stira exclusivamente em versos,
dedicada a uma censura s vezes ferina, a uma invectiva mordaz e sem sutilezas contra
aqueles que no correspondiam ao antigo padro romano.
Por outro lado, surge tambm em Roma uma stira que admite versos de
variados metros mesclados prosa, tambm invectiva, mas com direito pardia
refinada. Essa a stira menipia, cujas origens remontam ao mundo grego,
especificamente a Menipo de Gadara, que havia formulado um tipo especial de
literatura, no sculo III a.C., mordaz, agressiva e polmica. O romano Varro, no sculo
I a.C., escreveu, entre vrios gneros, textos que resultaram na unio do srio com o
jocoso. Varro seguiu Menipo na mescla de prosa com versos, no uso de uma
linguagem rica em recursos, como jogo de palavras, citaes em grego, formas cultas
aliadas a formas vulgares.
Sobre a stira menipia, Mikhail Bakhtin informa:
Esse gnero deve a sua denominao ao filsofo do sculo III a.C. Menipo de
Gadara, que lhe deu forma clssica. No entanto, o termo, enquanto denominao
de um determinado gnero, foi propriamente introduzido pela primeira vez pelo
9 MINOIS, George. A histria do riso e do escrnio, p 87.
10
erudito romano do sculo I a.C., Varro, que chamou sua stira de saturae
menippeae. (...). Uma stira menipia clssica o Apolokyntosys Claudii de
Sneca. O Satyricon, de Petrnio, no passa de uma stira menipia
desenvolvida at os limites do romance. A noo mais completa do gnero ,
evidentemente, aquela que nos do as stiras menipias de Luciano que
chegaram perfeitas at ns (...). So uma stira menipia desenvolvida as
Metamorfoses (O Asno de Ouro) de Apuleio (assim como sua fonte grega, que
conhecemos pela breve exposio de Luciano). (...). Esse gnero carnavalizado,
extraordinariamente flexvel, capaz de penetrar em outros gneros, teve uma
importncia enorme, at hoje ainda insuficientemente apreciada, no
desenvolvimento das literaturas europias10.
Northrop Frye, em Anatomia da Crtica, escreve que anatomia, no livro de
Robert Burton Anatomy of Melancholy , significa disseco ou anlise, e que estas
caractersticas pertencem tambm menipia. Frye adota, ento, o termo anatomia para
designar a stira menipia. Sobre ela, tece vrios comentrios que citamos:
A stira menipia lida menos com pessoas, como pessoas, do que com atitudes
espirituais. Profissionais de todos os tipos, pedantes, fanticos, excntricos,
adventcios, virtuoses, entusiastas, rapaces e incompetentes, so tratados de
acordo com seus liames profissionais com a vida, de modo distinto de seu
comportamento social. (...). Em sua maior concentrao, a stira menipia
oferece-nos uma viso do mundo nos termos de uma simples configurao
intelectual. A estrutura intelectual construda a partir da estria favorece
violentas deslocaes na costumeira lgica da narrativa, embora o surgimento da
indiferena resultante reflita apenas a indiferena do leitor ou de sua tendncia a
julgar segundo um conceito de fico centrado no romance. (...). O satirista
menipeu, cuidando de temas e atitudes intelectuais, mostra sua exuberncia em
peculiaridades intelectuais empilhando enorme massa de erudio sobre seu
tema ou soterrando seus alvos pedantescos sob uma avalanche de seu prprio
palavreado. (...) mas a narrao digressiva, as listas, a estilizao da personagem
por linhas de humor, a maravilhosa jornada do grande nariz [aqui ele se refere
10 BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. p. 112-113.
11
obra Tristam Shandy], as discusses simposacas e o constante escrnio de
filsofos e de crticos pedantes so traos peculiares anatomia11.
Na obra O calundu e a panacia: Machado de Assis, a stira menipia e a
tradio lucinica, Enylton J. de S Rego faz um aprofundado estudo de algumas obras
da segunda fase de Machado de Assis e relaciona-as como stiras menipias. Para isso,
menciona, exemplificando, vrios textos da Antigidade e entre eles a Apocolocintose.
Segundo ele, Uma anlise textual da Apocolocintose de Sneca revelou-nos portanto
algumas de suas [da menipia] caractersticas principais: o carter parodstico, a mistura
de estilos populares e elevados, assim como o andamento irregular de sua forma
narrativa12. Ainda no estudo de S Rego, este cita:
Na definio da stira menipia, no entanto, a afirmao de que ela uma
mistura de prosa e verso parece exigir uma certa modificao. De fato, no basta
que o verso seja introduzido em meio prosa, ... pois isto pode acontecer, por
exemplo, no caso de citaes ou de dilogo em muitas formas de composio. O
que encontramos aqui o prprio autor, falando em sua prpria pessoa,
mudando de um estilo de expresso a outro, sem nenhuma desculpa visvel a no
ser o seu tom coloquial. A essncia da stira menipia exatamente o seu
andamento variado e desenfreado, andando, correndo e tropeando, de vez em
quando se permitindo at uma cabriola retrica. Ball13, citado por Enylton Jos
de S Rego, apud O calundu e a panacia: Machado de Assis, a stira menipia
e a tradio lucinica, p. 42.
A Apocolocintose inegavelmente uma stira menipia tanto na forma como no
contedo. H na obra de Sneca passagens em que se utiliza s vezes linguagem vulgar,
outras vezes linguagem erudita. Ainda se fazem presentes citaes gregas, e os gneros
srios, como a epopia, a tragdia, a histria e a retrica clssica, so parodiados.
Northrop Frye conceituou a stira menipia assim como S Rego tambm a relacionou
em sua obra. No h um estudo sistemtico e detalhado dedicado exclusivamente
11 FRYE, Northrop. Anatomia da crtica, pgs. 304 a 306. 12 S REGO, Enylton Jos de. Op. cit. p. 42. 13 Ball, The Satire of Sneca, p. 62.
12
caracterizao da stira menipia; entretanto, Bakhtin estudou e elencou quatorze
particularidades da stira menipia, que arrolamos abaixo.
A primeira caracterstica relacionada por Bakhtin liga-se ao elemento cmico.
Na Menipia, segundo o autor, h a presena acentuada do elemento cmico. A palavra
cmico chegou at ns por meio dos gregos, via latim14. Pode-se afirmar que o cmico
se d pela conciliao de situaes aparentemente incompatveis, com a inteno de
produzir o riso. O riso oriundo da fuso de uma idia lgica e, simultaneamente,
absurda. Aristteles o primeiro terico a esboar dois tipos de riso, um riso
vituperioso que pressupe por necessidade a invectiva pessoal, e um riso sem
vituprio, sem dor, que o filsofo vincula de modo arbitrrio comdia (...)15.
A caracterstica seguinte diz respeito excepcional liberdade de inveno do
enredo e filosfica. Isso no cria o menor obstculo ao fato de os heris da menipia
serem figuras histricas e lendrias16. Alm disso, a menipia est livre das histrias
que pretendem ser Histria e no h nela nenhuma exigncia de verossimilhana.
Na terceira particularidade, muito amide o fantstico assume carter de
aventura, s vezes simblico ou at mstico-religioso. Mas, em todos os casos, ele est
subordinado funo puramente ideolgica de provocar e experimentar a verdade17.
Portanto o recurso da fantasia utilizado como instrumento para experimentar a verdade
e, por meio desse recurso, as idias e os temas apresentam maior importncia. Dessa
forma, com o objetivo de criar situaes inesperadas, os heris vo ao cu, ao inferno, a
caminhos desconhecidos e so colocados em situaes extraordinrias reais. Por fim, a
fantasia serve busca, provocao e experimentao da verdade.
Outro dado apresentado por Bakhtin diz respeito conjugao ou mistura de
elementos do fantstico com o mundo das camadas mais baixas da sociedade, ao
submundo humano. As aventuras da verdade na terra ocorrem nas grandes estradas,
nos bordis, nos covis de ladres, nas tabernas, nas feiras, prises, orgias erticas dos
cultos secretos, etc. Aqui a idia no teme o ambiente do submundo nem a lama da
vida 18 . Bakhtin ainda afirma que essa caracterstica da menipia relacionada ao
naturalismo desenvolveu-se de modo pleno no Satyricon, de Petrnio.
14 Do grego para o latim comicus. 15 OLIVA NETO, Joo ngelo. Letras Clssicas, n. 7, p. 85 16 BAKHTIN, Mikhail. Op. cit. p. 114. 17 Ibidem. P. 114. 18 Ibidem. P. 115.
13
Apresentar o homem na sua essncia e na sua totalidade a quinta caracterstica
da menipia no estudo de Bakhtin. Importante atributo da anatomia termo utilizado
por Frye , apresenta-se aqui uma extrema capacidade de ver o mundo. Procura
apresentar, parece, as palavras derradeiras, decisivas e os atos do homem, apresentando
em cada um deles o homem em sua totalidade e toda a vida humana em sua
totalidade 19 . A menipia, de acordo com essa caracterstica, pe em oposio as
atitudes finais do homem no mundo, j livre das convenincias sociais.
A sexta marca da menipia traz como manifestao a estrutura em planos, a
saber, da Terra para o Olimpo e deste para o inferno. Dilogos no limiar, ou seja, no
limite ou entrada do cu e/ou do inferno so apresentados tambm como peculiares
stira menipia e o prprio Bakhtin exemplifica o texto de Sneca em estudo nesta
pesquisa como um dos melhores exemplos.
Na menipia surge a modalidade especfica do fantstico experimental,
totalmente estranho epopia e tragdia antiga. Trata-se de uma observao feita de
um ngulo de viso inusitado, como, por exemplo, de uma altura na qual variam
acentuadamente as dimenses dos fenmenos da vida em observao20. Essa nova
experincia ou novidade na escrita marca a stima caracterstica descrita por Bakhtin.
Os estados psicolgico-morais anormais do homem loucura do heri,
amnsias, dupla personalidade, devaneios incontidos, sonhos extraordinrios, paixes
limtrofes com a loucura marcam a oitava caracterstica da stira menipia. A
destruio da integridade e da perfeio do homem facilitada pela atitude dialgica,
que aparece na menipia. As fantasias, os sonhos e a loucura destroem a integridade
pica e trgica do homem e do seu destino: nele se revelam as possibilidades de um
outro homem e de outra vida, ele perde a sua perfeio e a sua univalncia, deixando de
coincidir consigo mesmo21.
A nona caracterstica est na linha da violao das normas. Cenas de escndalos,
de comportamentos excntricos, de declaraes inoportunas tambm esto presentes.
Incluem-se a as violaes do discurso com a mistura do formal com o informal, com os
escndalos e manifestaes extravagantes nas cenas descritas. A palavra inoportuna
19 Ibidem. P. 115. 20 Ibidem. P. 116. 21 Ibidem. P. 117.
14
inoportuna por sua franqueza cnica ou pelo desmascaramento profanador do sagrado ou
pela veemente violao da etiqueta22.
O alto e o baixo, os contrastes agudos e jogos de oxmoros, a elevao e a
decadncia e as mudanas bruscas marcam a caracterstica seguinte da menipia,
retratada por Bakhtin.
O elemento utpico tambm integra a menipia, com a apresentao de lugares
exticos, misteriosos, com o mundo s avessas, marcando assim uma outra
caracterstica da stira menipia.
Importante trao a dcima segunda caracterstica apresentada por Bakhtin, em
que o autor relata que o uso de gneros intercalados so uma constante nas menipias.
Alm disso, h a fuso dos discursos da prosa e do verso, como j havia sido comentada
por Quintiliano (Inst. Or. X, 1, 95) no sculo I d.C. e, sobre os versos, Bakhtin afirma:
As partes em verso se apresentam com certo grau de pardia23.
A variada gama de gneros refora a multiplicidade de estilos no interior da
menipia e essa outra marca da stira, assim como tambm, para finalizar as
caractersticas apresentadas por Bakhtin, o enfoque em tom mordaz que o texto d
atualidade, com discusso aberta com diversas escolas ideolgicas, filosficas e
religiosas. H uma constante presena de figuras atuais ou recm-desaparecidas e uma
variada aluso a acontecimentos da poca.
Portanto, levando-se em conta o que os trs tericos apresentaram a respeito da
menipia, pode-se dizer que h em comum, nesta teoria da stira menipia, uma tcnica
de desintegrao, de corroso, de um homem ou de um tema. Com isso, aps a traduo
do texto de Sneca, acompanhada de notas e do texto latino, estudamos e a aplicamos
em nossa pesquisa sobre a Apocolocintose as caractersticas mais evidentes da stira
menipia de que Sneca fez uso e que os tericos supracitados relacionaram.
22 Ibidem. P. 118. 23 Ibidem. P. 118.
15
SNECA
APOCOLOCINTOSE DO DIVINO CLUDIO
TRADUO E NOTAS
16
A STIRA SENEQUIANA
APOCOLOCINTOSE DO DIVINO CLUDIO
DIVI CLAVDII
I. 1 Quid actum sit in caelo ante diem III. idus Octobris anno nouo, initio saeculi
felicissimi, uolo memoriae tradere. Nihil nec offensae nec gratiae dabitur. Haec ita
uera si quis quaesiuerit unde sciam, primum, si noluero, non respondebo. Quis
coacturus est? Ego scio me liberum factum, ex quo suum diem obiit ille qui uerum
prouerbium fecerat, aut regem aut fatuum nasci oportere. 2 Si libuerit respondere,
dicam quod mihi in buccam uenerit. Quis unquam ab historico iuratores exegit?
APOCOLOCINTOSE DO DIVINO CLUDIO24
Lcio Aneo Sneca
I. 1 Desejo transmitir histria aquilo acontecido no cu no terceiro dia antes dos
idos de outubro25, em um ano-novo, no incio de um sculo muito feliz. Sobre ofensa e
sobre gratido no ser dito nada. Dessa maneira, essas so as verdades. Caso algum
pergunte de que lugar as conheo, primeiramente, se eu no desejar, no responderei.
Quem obrigado a falar? Quanto a mim, sei que me tornei livre desde que morreu
aquele que fizera verdadeiro o provrbio ser conveniente nascer ou rei ou tolo. 2 Se
for prazeroso responder, direi aquilo que me vir boca. Quem avaliou alguma vez os
juramentos de um historiador?
24 A palavra grega significa aboborizao ou transformao em abbora. O radical apo-, que aparece por exemplo em apoteose transformao em deus , juntou-se palavra latina colocynthis, cujo significado erva cabaa, da famlia das cucurbitceas. A palavra latina cucurbita significa tambm abbora. Como nesta obra senequiana no se trata de transformao literal do imperador Cludio em abbora, o termo adquire aqui os sentidos, tambm presentes nos dicionrios, de bobo, fraco, tolo, abestalhado. 25 Treze de outubro. Essa a data oficial da morte de Cludio. No calendrio romano, os idos equivalem ao dia quinze nos meses de maro, maio, julho e outubro. Nos demais meses, os idos correspondem ao dia treze.
17
Tamen, si necesse fuerit auctorem producere, quaerito ab eo qui Drusillam euntem in
caelum uidit: idem Claudium uidisse se dicet iter facientem non passibus aequis.
Velit nolit, necesse est illi omnia uidere quae in caelo aguntur: Appiae Viae curator est,
qua scis et Diuum Augustum et Tiberium Caesarem ad deos isse. 3 Hunc si
interrogaueris, soli narrabit. Coram pluribus nunquam uerbum faciet: nam, ex quo in
senatu iurauit se Drusillam uidisse caelum ascendentem et illi pro tam bono nuntio
nemo credidit, quod uiderit, uerbis conceptis affirmauit se non indicaturum, etiam si in
medio Foro hominem occisum uidisset. Ab hoc ego quae tum audiui certa, clara affero,
ita illum saluum et felicem habeam.
Todavia se tiver sido necessrio apresentar um fiador, procura aquele que viu Drusila,
que ia para o cu26: ele dir ter visto que Cludio percorria com passos desiguais27 o
mesmo caminho. Queira ou no, para aquele que viu Drusila ascender inevitvel ver
todas as coisas que se passam no cu: ele o encarregado da via pia, por onde sabes
que no s o divino Augusto, mas tambm Tibrio Csar foi para junto dos deuses. 3 Se
a este tiveres interrogado, ele contar somente a ti. Na presena de muitos /Lvio
Gemino28/ no dir uma palavra: pois, desde que no Senado jurou ter visto Drusila, que
subia para o cu e em prol de to boa notcia ningum acreditou nele29 , com palavras
inflamadas afirmou que no revelaria o que teria visto, ainda que tivesse visto um
homem assassinado no meio do Frum. Dele, ento, eu ouvi estes fatos, provados e
esclarecidos, que conto. Dessa maneira, que eu o tenha saudvel e feliz.
26 Quaerito ab eo qui Drusillam euntem in caelum uidit. Literalmente procura da parte daquele que viu Drusila, que ia para o cu. O verbo quaerito marca textual atravs da qual Sneca se dirige a um interlocutor. No Latim, a estrutura da segunda pessoa uma das possibilidades de se exprimir o sujeito indeterminado. Alm disso, a segunda pessoa pode ser influncia diatrbica, recurso em que o dirigir-se a um interlocutor fictcio faz parte do jogo persuasivo, com a inteno de retomar uma idia, comprov-la ou ilustr-la, como na passagem. Jlia Drusila, irm de Calgula. Segundo os historiadores Suetnio e Dion Cssio, Calgula tentou divinizar a irm Drusila e, para conseguir isso, subornou Lvio Gemino, encarregado de inspecionar a via pia, por onde os cortejos fnebres de Augusto e Tibrio passaram. Lvio Gemino, depois de receber dinheiro de Calgula, jurou no Senado ter visto Drusila subir aos cus. 27 Observa-se no trecho Drusillam euntem in caelum idem Claudium uma aliterao de m que, por ser bilabial, associa-se ao efeito de parar e prosseguir, referindo-se passagem seguinte em que Cludio chega mancando, com passos desiguais. Non passibus aequis parte de um verso de Virglio retirado da Eneida (II, 724), em que o pequeno Iulo se agarra mo de Enias e o segue com passos desiguais, trpego. Sneca alude deficincia fsica de Cludio. 28 Vide nota 26. 29 Et illi pro tam bono nuntio nemo credidit. Trecho propositalmente ambguo e irnico. Boa notcia diviniz-la ou, de forma irnica, boa notcia a irm de Calgula ter morrido.
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II. 1 Iam Phoebus breuiore uia contraxerat ortum
Lucis et obscuri crescebant tempora somni;
Iamque suum uictrix augebat Cynthia regnum,
Et deformis Hiemps gratos carpebat honores
Diuitis Autumni, iussoque senescere Baccho
Carpebat raras serus uindemitor uuas.
2 Puto magis intellegi si dixero: mensis erat october, dies III. idus octobris. Horam non
possum certam tibi dicere: facilius inter philosophos quam inter horologia conueniet.
Tamen inter sextam et septimam erat. 3 Nimis rustice! Adquiescunt omnes poetae, non
contenti ortus et occasus describere, ut etiam medium diem inquietent: tu sic transibis
horam tam bonam?
II. 1 Febo j havia reduzido ao mais curto caminho a origem de luz, e os sonos
sombrios estendiam as horas, e a vitoriosa Cntia30 elevava seu reino. Tambm o
disforme Inverno arrancava os agradveis enfeites do rico outono e, com Baco
ordenado a envelhecer, o tardio vindimadeiro colhia as ltimas uvas.
2 Considero que serei mais bem compreendido se tiver dito: era o ms de outubro,
terceiro dia de seus idos. No posso dizer-te a hora exata: ajustar-se- isso mais
facilmente entre os filsofos do que entre os relgios. Todavia era entre a sexta e a
stima hora31. 3 Muitas vezes grosseiro! Consentem todos os poetas, descontentes em
descrever o nascer do Sol e o ocaso, que tambm atormentem o meio-dia. Tu, assim,
passars hora to boa?
30 Febo tambm o nome de Apolo. Entre vrias atribuies, Febo o deus da luz e considera-se o Sol o seu carro. Tambm deus guerreiro, capaz de, com seu arco e suas flechas, enviar a morte a algum. Cntia identificada na Grcia com rtemis e em Roma possui tambm o nome de Diana. Ela representa a Lua, alm de ser irm de Febo (Sol). Como o irmo, implacvel nas suas vinganas. Em Petrnio (Satyricon, CXXII), Cntia tambm se apresenta em versos que so pardia da alta poesia: parte alia plenos extinxit Cynthia uultus/ et lucem sceleri subduxit (em outra parte, Cntia ocultou-se toda e afastou sua luz do crime). Todo este trecho em versos uma crtica poesia frvola e afetada da poca. 31 A stima hora latina equivale ao meio-dia atual, hora oficial da morte de Cludio. Tcito, nos Anais (XII, 69), apresenta tambm a informao: Tunc medio diei tertium ante Idus Octobris, fortibus palatii repente diductis, comitante Burro Nero egreditur ad cohortem, quae more militiae excubiis adest (ento ao meio-dia do terceiro dia antes dos idos de outubro, de repente se abrem as portas do palcio, e Nero, seguido por Burro, dirige-se coorte que ali fazia, de costume, a guarda).
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4 Iam medium curru Phoebus diuiserat orbem
Et propior nocti fessas quatiebat habenas,
Obliquo flexam deducens tramite lucem.
III. 1 Claudius animam agere coepit, nec inuenire exitum poterat. Tum Mercurius, qui
semper ingenio eius delectatus esset, unam e tribus Parcis seducit et ait: Quid, femina
crudelissima, hominem miserum torqueri pateris? Nec unquam tam diu cruciatus
cesset? Annus sexagesimus quartus est, ex quo cum anima luctatur. Quid huic et rei
publicae inuides? 2 Patere mathematicos aliquando uerum dicere, qui illum, ex quo
princeps factus est, omnibus annis, omnibus mensibus efferunt.
4 J tinha dividido Febo com seu carro metade da rbita e, mais prximo da noite
dirigindo por oblquo caminho a inclinada luz, agitava as desgastadas rdeas.
III. 1 Cludio comeou a exalar sua alma e no encontrava uma sada 32 . Ento
Mercrio, que sempre tinha sido agradado pelo engenho dele33, chamou parte uma das
trs Parcas34 e disse: Como, mulher crudelssima, tu permites que um homem infeliz
seja torturado? Nem alguma vez, depois de tanto tempo de suplcio, /tu consentes que
ele/ descanse35? So sessenta e quatro anos com os quais ele luta com sua alma. Por que
invejas a ele e Repblica? 2 Deixa que os astrlogos finalmente digam a verdade,
aqueles que, desde que o prncipe foi nomeado, enterram-no todos os anos, todos os
meses.
32 H na passagem um possvel jogo de palavras com o vocbulo anima, devido ao carter irnico do texto. No trecho Claudius animam agere coepit nec inuenire exitum poterat, o termo anima significa tanto sopro, vento, exalao, cheiro, como tambm alma. 33 Identificado com o deus grego Hermes, Mercrio protege os viajantes e os comerciantes. Portanto o trecho faz uma ironia ao tratamento dispensado por Cludio s relaes comerciais. 34 As Parcas so divindades do destino. Em nmero de trs, tropo, Cloto e Lquesis so representadas como fiandeiras na mitologia romana, imbudas de regular a durao da vida desde o nascimento at a morte. tropo fiava a vida, Cloto a enrolava e Lquesis a cortava, quando a existncia de um ser chegava ao fim. 35 Nec unquam tam diu cruciatus cesset? Poder-se-ia traduzir a passagem por Nem alguma vez, depois de tanto tempo de suplcio, ele descansar? Neste caso, o verbo cesso, cessare, que no trecho est no presente do subjuntivo (cesset), traduz-se pelo futuro do presente do indicativo para manter a correlao verbal do portugus.
20
Et tamen non est mirum si errant et horam eius nemo nouit: nemo enim unquam illum
natum putauit. Fac quod faciendum est:
dede neci, melior uacua sine regnet in aula.
3 Sed Clotho: Ego, mehercules! inquit, pusillum temporis adicere illi uolebam, dum
hos pauculos qui supersunt ciuitate donaret:constituerat enim omnes Graecos, Gallos,
Hispanos, Britannos togatos uidere. Sed, quoniam placet aliquos peregrinos in semen
relinqui et tu ita iubes fieri, fiat. 4 Aperit tum capsulam et tres fusos profert. Vnus erat
Augurini, alter Babae, tertius Claudii.
Entretanto no espantoso que os astrlogos erraram e ningum soube a hora dele.
Ningum, com efeito, calculou que ele tivesse nascido36. Faze aquilo que deve ser feito:
dede neci, melior uacua sine regnet in aula (entrega-o morte, consente que o melhor
reine no palcio desocupado)37.
3 Entretanto Cloto diz: Eu, por Hrcules, desejava aumentar um pouquinho a vida dele,
at que premiasse aqueles poucos que restam com o direito de cidadania ele tinha
determinado, com efeito, que todos, gregos, gauleses, hispanos, britanos, fossem vistos
com a toga38 . Mas conveniente que alguns estrangeiros sejam conservados para
semente e tu ordenas assim ser feito, ento que se faa. 4 Ento ela abre uma caixinha
e tira trs rolos: um era de Augurino, outro de Baba e o terceiro de Cludio39.
36 Illum natum putauit. A mesma idia est presente tambm em Petrnio (Satyricon, LVIII): (...) te natum non putat (no te imagina nascido). 37 Virglio, Gergicas, IV, 90. No texto de Virglio, aconselha-se um apicultor, quando na colmeia houver dois reis, a matar o pior para que o melhor governe. Aluso a Cludio e a Nero, o pior e o melhor, respectivamente, para Sneca. Na passagem, Hermes aconselha a Parca a proceder como um apicultor. 38 Cludio concedeu, alm da cidadania, o direito de outros povos serem nomeados para o senado romano. Tcito (Anais, XI, 24) reproduz o discurso de Cludio a respeito do assunto; tambm Dion Cssio (LX 17) faz meno ao assunto da cidadania. 39 Vnus erat Augurini, alter Babae, tertius Claudii. Sobre Baba, o mesmo Sneca refere-se a ele nas Cartas a Luclio (II, 15, 9) como um modelo que no deve ser seguido, devido estupidez. Augurino desconhecido, mas conjectura-se que Sneca o tenha usado para formar o ABC (Augurino, Baba, Cludio), em aluso crtica reforma do alfabeto promovida pelo Imperador. Tcito afirma nos Anais, XI, 13: ac nouas litterarum formas addidit uulgauitque, comperto Graecam quoque litteraturam non simul coeptam absolutamque (e novas formas de letras [Cludio] acrescentou e propagou, reconhecendo como certo que do mesmo modo as letras gregas no tinham sido empreendidas e completadas ao mesmo tempo). Ainda nos Anais, XI, 14 o historiador relata: quo exemplo Claudius tres litteras adiecit, quae usui imperitante eo, post oblitteratae (...) (Cludio, seguindo o exemplo, acrescentou trs letras que, estando em uso enquanto ele governou, depois esquecidas ...). Suetnio tambm escreve sobre a reforma no alfabeto em Cludio, 41: nouas etiam commentus est litteras tres ac numero ueterum quasi maxime necessarias addidit (inventou trs novas letras e as adicionou ao antigo nmero de letras, como se fossem muito necessrias).
21
Hos, inquit, tres uno anno exiguis interuallis temporum diuisos mori iubebo, nec illum
incomitatum dimittam. Non oportet enim eum qui modo se tot milia hominum sequentia
uidebat, tot praecedentia, tot circumfusa, subito solum destitui. Contentus erit his
interim conuictoribus.
IV. 1 Haec ait et, turpi conuoluens stamina fuso,
Abrupit stolidae regalia tempora uitae.
At Lachesis, redimita comas, ornata capillos,
Pieria crinem lauro frontemque coronans,
Candida de niueo subtemina uellere sumit,
Felici moderanda manu, quae ducta colorem
Assumpsere nouum. Mirantur pensa sorores:
Mutatur uilis pretioso lana metallo;
Aurea formoso descendunt saecula filo.
Nec modus est illis: felicia uellera ducunt
Et gaudent implere manus; sunt dulcia pensa.
Ordenarei, diz, que esses trs, neste ano, morram separados por pequenos intervalos de
tempo, para no mandar este sem companhia. Com efeito no convm, de forma sbita,
ser deixado sozinho aquele que h pouco via tantos milhares de homens que o seguiam,
tantos que o precediam, tantos que o cercavam. Por enquanto, ser enterrado com esses
companheiros de mesa.
IV. 1 Assim Cloto disse e, os fios das Parcas no disforme rolo envolvendo, interrompe
os tempos de rei de uma vida insensata. Mas Lquesis, cingindo e enfeitando os cabelos,
com o potico louro coroando a cabeleira e a face, toma de uma nvea l os puros fios
para serem temperados por mo feliz, os quais, conduzidos, adquirem cor nova. As
irms admiram sua l fiada: muda-se a l comum em precioso metal, do fio formoso
sculos de ouro aproximam-se. E no h limite para elas, que conduzem as
favorveis ls. E alegram-se em encher as mos com a l, doces que so esses deveres.
22
Sponte sua festinat opus nulloque labore
Mollia contorto descendunt stamina fuso:
Vincunt Tithoni, uincunt et Nestoris annos.
Phoebus adest cantuque iuuat gaudetque futuris,
Et laetus nunc plectra mouet, nunc pensa ministrat.
Detinet intentas cantu fallitque laborem;
Dumque nimis citharam fraternaque carmina laudant,
Plus solito neuere manus humanaque fata
Laudatum transcendit opus. "Ne demite, Parcae,
Phoebus ait; uincat mortalis tempora uitae
Ille mihi similis uultu similisque decore,
Nec cantu nec uoce minor. Felicia lassis
Saecula praestabit legumque silentia rumpet
Por sua prpria vontade, Lquesis apressa a obra. Sem nenhum esforo, os flexveis fios
saem do emaranhado rolo. Eles em anos excedem os de Titono e de Nestor 40 . E
enquanto numerosas vezes louvam a ctara e os fraternos versos, presente est Febo e,
com seu canto, auxilia e alegra-se com o que h de acontecer e, satisfeito, ora toca a lira,
ora dirige as tarefas. Com seu canto deleita as aplicadas Parcas e alivia o trabalho. Mais
habituadas as mos fiam, e os destinos humanos a excelente obra perspassam. No
lanais nada, Parcas, diz Febo, que ele dos mortais exceda o tempo de vida a mim
semelhante em rosto e em beleza semelhante, nem em canto nem em voz inferior. Aos
desventurados, felizes sculos oferecer e romper o silncio das leis.
40 Titono esposo de Aurora. Ela, depois de vrios amores, raptou-o e levou-o para a Etipia, pas do Sol nas antigas lendas. Aurora solicita a Zeus a imortalidade para Titono, mas se esquece de pedir em prol deste a eterna juventude. Por fim, Aurora transforma em cigarra Titono, envelhecido pelos anos. J Nestor vivera, segundo a mitologia, at uma idade muito avanada por vontade de Apolo, que por ter tirado a vida das tias e tios de Nestor, recompensou-o com o nmero de anos dos parentes. Sua idade avanada permitiu-lhe desempenhar o papel de conselheiro na Ilada. Foi a ele que Menelau pediu conselho, logo aps o rapto de Helena. Alm disso, Nestor acompanhou Menelau por toda a Grcia enquanto este reunia os heris.
23
Qualis discutiens fugientia Lucifer astra
Aut qualis surgit redeuntibus Hesperus astris,
Qualis, cum primum tenebris Aurora solutis
Induxit rubicunda diem, Sol aspicit orbem
Lucidus et primos a carcere concitat axes,
Talis Caesar adest, talem iam Roma Neronem
Aspiciet. Flagrat nitidus fulgore remisso
Vultus et adfuso ceruix formosa capillo.
2 Haec Apollo. At Lachesis, quae et ipsa homini formosissimo faueret, fecit illud plena
manu, et Neroni multos annos de suo donat. Claudium autem iubent omnes ,
. Et ille quidem animam ebulliit, et ex eo desiit uiuere
uideri. Exspirauit autem dum comoedos audit, ut scias me non sine causa illos timere.
Como Lcifer dissipando os astros que fogem ou como Hspero levantando-se aos
astros que tornam a vir, como a Aurora vermelha quando das trevas dissolvidas conduz
o dia, o Sol, radiante, contempla a terra e lana do nascente seus primeiros raios. Tal
Csar est presente, agora Roma olhar tal Nero. Brilha com lmpida honra seu
resplandecente rosto, e com o cabelo solto sua bela nuca.41
2 Essas coisas disse Apolo. Mas Lquesis, para que ela mesma favorecesse ao
formosssimo homem, com a mo cheia fez Nero e com muitos anos o brinda.
Contrariamente, a Cludio todos desejam , .
(alegres e entusiastas lev-lo para fora de casa)42. E ele, com efeito, morreu e, desde
isso, deixou de viver e de ser visto. Expirou, seguramente, enquanto ouvia atores
cmicos, para que saibas que no sem motivo que os receio.
41 O ltimo perodo indica uma semelhana entre Apolo e Nero. O prprio imperador se dizia parecido com o deus, como relata Suetnio (Nero, 53): quia Apollinem cantu, Solem aurigando aequiperare existimaretur (...) (porque igual a Apolo no canto, ao guiar um carro tinha julgado comparar-se ao Sol...) 42 Verso de uma tragdia perdida de Eurpedes, citado por Ccero (Tusculanas 1, XLVII, 115). Enterrar logo o morto, isto , livrar-se dele, a inteno da passagem.
24
3 Vltima uox eius haec inter homines audita est, cum maiorem sonitum emisisset illa
parte, qua facilius loquebatur: Vae me! puto concacaui me. Quod an fecerit nescio.
Omnia certe concacauit.
V.1 Quae in terris postea sint acta, superuacuum est referre. Scitis enim optime, nec
periculum est ne excidant memoriae quae gaudium publicum impresserit: nemo
felicitatis suae obliuiscitur. In caelo quae acta sint audite: fides penes auctorem erit.
3 Foi-lhe este o ltimo som ouvido entre os homens, quando teria deixado escapar os
maiores barulhos daquela parte, com a qual mais facilmente falava43: Ai de mim, creio
que me caguei44. No sei se ele fez isso45. O certo que emporcalhou todas as coisas.
V. 1 Aqueles fatos posteriormente acontecidos na Terra desnecessrio reproduzir.
Com efeito, vs os conheceis perfeitamente46, nem h risco de que sumam da memria
aquelas coisas que a satisfao pblica gravou. Ningum se esquece de sua felicidade.
Escutai o que acontecia no cu: a garantia do fato estar em poder de uma autoridade.
43 Ironia senequiana (cum maiorem sonitum emisisset illa parte, qua facilius loquebatur) com uma possvel lei que permitia soltar flatulncias mesa com convidados. Cf. Suetnio (Cludio, 32). 44 Vae me! puto concacaui me. Entre as caractersticas da menipia, h a fuso do erudito com o coloquial. Na passagem, o termo chulo (concacaui) colocado na boca do imperador associa-se a uma estrutura formal. Da maneira como foi articulado, o perodo no apresenta o conectivo ut (puto ut concacaui me). Usando-se a conjuno ut, ter-se-ia uma orao subordinada desenvolvida em ut concacaui me. Entretanto, mesmo com a ausncia da conjuno, o verbo no se apresenta no infinitivo, como praxe nas oraes subordinadas reduzidas (puto me concacare). Dessa forma, em puto concacaui me h duas oraes que se justapem. 45 Quod an fecerit, nescio. Literalmente: Caso tenha feito isso, no sei. Na interrogativa indireta, o Latim usa freqentemente o subjuntivo (fecerit); o portugus, o indicativo: No sei se ele fez isso. 46 Scitis enim optime. Sneca opta pela forma plural e quebra, assim, a uniformidade do texto ao utilizar o verbo scitis. At ento, ele preferira a forma singular (nota 26) ao se dirigir a um interlocutor. Infere-se no trecho a vontade de expressar com o plural o quanto a fama de Nero positiva e extensa; pois, ao se dirigir a vrios interlocutores, deixa claro que so muitos os que conhecem Nero.
25
2 Nuntiatur Ioui uenisse quendam bonae staturae, bene canum; nescio quid illum
minari, assidue enim caput mouere; pedem dextrum trahere. Quaesisse se, cuius
nationis esset: respondisse nescio quid perturbato sono et uoce confusa. Non intellegere
se linguam eius: nec Graecum esse nec Romanum, nec ullius gentis notae. 3 Tum
Iuppiter Herculem, qui totum orbem terrarum pererrauerat et nosse uidebatur omnes
nationes, iubet ire et explorare quorum hominum esset. Tum Hercules primo aspectu
sane perturbatus est, ut qui etiam non omnia monstra timuerit: ut uidit noui generis
faciem, insolitum incessum, uocem nullius terrestris animalis, sed, qualis esse marinis
beluis solet, raucam et implicatam, putauit sibi tertium decimum laborem uenisse.
2 Anuncia-se a Jpiter que algum de boa estatura, bem virtuoso, chegou; ignoro o que
profere, pois incessantemente move a cabea e arrasta o p direito. Perguntaram-lhe de
que nao era. Respondeu no sei o que com estrondoso rudo e confusa voz. No se
compreende a lngua dele, no Grego, nem Romano, nem de algum povo conhecido.
3 Ento Jpiter ordena a Hrcules47, que tinha percorrido todo o orbe da Terra e parecia
ter conhecido todas as naes, ir e verificar de que gnero humano Cludio seria. Ento,
com um primeiro olhar, Hrcules inteiramente se perturba, como quem no teria
tambm temido todos os monstros. Quando Hrcules viu a aparncia da nova espcie,
com passos desiguais, ouviu uma voz que no era de nenhum animal terrestre, mas era
tal qual a que est habituado a ouvir de animais marinhos, retumbante e inarticulada,
pensou que havia chegado o seu dcimo terceiro trabalho48.
47Herculem, forma no acusativo. O verbo ordenar, com dois objetos, privilegia no Portugus o nome prprio como objeto indireto. 48 Hrcules casou-se com Mgara, filha do rei de Tebas, Creonte. Num acesso de loucura, matou os filhos que tivera com a esposa e, aps isso, consulta o orculo de Delfos. Este ordena que Hrcules se coloque disposio do primo Euristeu e, sob as ordens do prprio parente, realize doze trabalhos que tinham como finalidade libertar o mundo de alguns monstros.
26
4 Diligentius intuenti uisus est quasi homo. Accessit itaque et, quod facillimum fuit
Graeculo, ait:
; ;
Claudius gaudet esse illic philologos homines: sperat futurum aliquem Historiis suis
locum. Itaque, et ipse homerico uersu Caesarem se esse significans, ait:
. Erat autem sequens uersus uerior, aeque
homericus: , .
4 Ao examin-lo com mais ateno, o aspecto pareceu ser de quase um homem. Desse
modo, aproximou-se dele e aquilo foi muito fcil para um greguinho49 disse:
; ; (Quem s? De que pas vens?
Onde esto tua cidade e teus pais?)50. Cludio alegra-se de ali haver homens eruditos51 e
tem esperana de que dever existir algum lugar para suas histrias52 . Assim, ele
mesmo, para parecer um Csar que expressa bem em verso homrico, disse:
(o vento, afastando-me de lio, impeliu-me aos
Cconos)53. Entretanto, o verso seguinte era mais correto, e igualmente homrico:
, (l eu saqueei a cidade e destru os
defensores).54
49 O heri mitolgico satirizado em todo o texto e na passagem o termo greguinho usado de forma pejorativa. 50 Vrias vezes na Odissia, Homero usa essa estrutura frasal para que uma personagem questione um estrangeiro de onde este vem. Na passagem h a inteno parodstica. 51 Cludio era um devoto da lngua grega. Citava sempre versos de Homero no tribunal. Suetnio (Cludio, 42) relata: amorem praestantiamque linguae occasione omni professus. (...). Multum uero pro tribunali etiam Homericis locutus est uersibus (e professava um poderoso amor em toda a ocasio pela lngua [grega]. (...). Na verdade, pronunciava tambm muitos versos de Homero em seu tribunal). 52 Cludio escreveu em grego a histria dos Etruscos e a dos Cartagineses. Conforme Suetnio (Cludio, 42), denique et Graecas scripsit historias, Tyrrhenicon uiginti, Carchedoniacon octo (enfim, escreveu vinte livros em grego acerca das Histrias dos Tirrnios e oito sobre a dos Cartagineses). Alm disso, Cludio escreveu a histria de Roma a partir da morte de Jlio Csar, uma defesa de Ccero e a prpria biografia. Cf. Suetnio, Cludio, 41. 53 Verso da Odissia (IX, 39). Cludio responde a Hrcules em grego como um sbio que se utiliza de passagens de Homero. Nesta citao, refere-se ascendncia troiana dos Jlios. 54 Ironia de Sneca. Ele transcreve o verso seguinte da Odissia (IX, 40) com o intuito de criticar o imperador pela destruio de Roma. Portanto na passagem o termo (l) refere-se a Roma, numa insinuao de que a capital encontrava-se de forma catica.
27
VI. 1 Et imposuerat Herculi minime uafro, nisi fuisset illic Febris, quae, fano suo
relicto, sola cum illo uenerat; ceteros omnes deos Romae reliquerat. Iste inquit
mera mendacia narrat. Ego tibi dico, quae cum illo tot annis uixi: Luguduni natus est.
Munatii municipem uides. Quod tibi narro, ad sextum decimum lapidem natus est a
Vienna, Gallus germanus. Itaque, quod Gallum facere oportebat, Romam cepit. Hunc
ego tibi recipio Luguduni natum, ubi Licinus multis annis regnauit. Tu autem, qui plura
loca calcasti quam ullus mulio perpetuarius, Lugudunenses scire debes et multa milia
inter Xanthum et Rhodanum interesse.
VI. 1 E Cludio havia enganado Hrcules, de modo algum esperto, entretanto estava
ali Febre55, a nica que, abandonando seu templo, tinha vindo com ele. Todos os outros
deuses, Cludio tinha-os deixado em Roma. Este, diz Febre a Hrcules, conta vulgares
mentiras. Digo a ti, eu que vivi numerosos anos com ele: nascido em Lugduno56, tu vs
um cidado de Muncio57. Nascido a dezesseis milhas de Viena58, o que eu te conto
que ele um Galo genuno59. Desse modo, apossou-se de Roma, que era dever de um
Galo60 fazer. Eu te garanto que este nasceu em Lugduno, onde Licino61 reinou por
muitos anos. Tu, todavia, que percorreste mais caminhos que algum muleiro em ao,
deves conhecer os cidados de Lugduno e deves saber que o Xanto e o Rdano62 esto
entre muitas milhas.
55 Divindade muito temida em Roma, principalmente nas regies que permaneciam midas por muito tempo. Durante quase toda a infncia e adolescncia, Cludio foi um doente. Suetnio (Cludio, 2) relata que chegaram a consider-lo inepto para qualquer funo pblica. Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus uariis et tenacibus morbis conflictatus est, adeo ut animo simul et corpore hebetato ne progressa quidem aetate ulli publico priuatoque muneri habilis existimaretur (tinha ainda pouca idade quando lhe morreu o pai e durante quase toda a sua infncia e a sua adolescncia viu-se atacado de vrias molstias pertinazes que lhe enfraqueceram de tal modo o esprito que chegaram a consider-lo inepto para toda e qualquer funo pblica ou privada). 56 Cidade francesa de Lyon, muitas vezes aportuguesada para Lio. Fundada em 43 a.C. pelos romanos com a designao de Lugdunum, era a capital da provncia da Glia, hoje a Frana. 57 Conjectura-se que seja Lcio Muncio Planco, fundador em 43 a.C. da colnia romana de Lugduno. 58 Capital da Glia Narbonense, provncia do Imprio Romano que abrangia as atuais Provena e Languedoc (Frana). 59 Cludio nasceu em Lugduno em 13 de agosto de 10 a.C. (Suetnio, Cludio, 2). 60 Os Gauleses invadiram e saquearam Roma por volta de 390-387 a.C. 61 Procurador nomeado em Lugduno por Augusto. Dion Cssio (LIV, 21) relata que Licino exercera o cargo tiranicamente. Sneca (Cartas a Luclio, XX, 119) e Marcial (VIII, 3) o retratam como smbolo de riqueza. 62 Por metonmia, o Xanto um dos principais rios da antiga provncia romana da Lcia, na sia Menor refere-se a a Tria; o Rdano, a Lugduno, pois banha esta cidade.
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2 Excandescit hoc loco Claudius et quanto potest murmure irascitur. Quid diceret nemo
intellegebat; ille autem Febrim duci iubebat, illo gestu solutae manus, et ad hoc unum
satis firmae, quo decollare homines solebat. Iusserat illi collum praecidi: putares
omnes illius esse libertos, adeo illum nemo curabat.
VII. 1 Tum Hercules: Audi me inquit tu desine fatuari. Venisti huc ubi mures
ferrum rodunt. Citius mihi uerum, ne tibi alogias excutiam! Et, quo terribilior esset,
tragicus fit et ait:
2 Cludio irrita-se com esta situao e, o quanto pode com sons inarticulados,
encoleriza-se. Aquilo que dissesse ningum compreendia. Todavia ele ordenava que
Febre fosse levada dali, com aquele gesto de mo frouxa63, mas somente para isto
bastante firme: porque estava habituado a degolar homens. Ele tinha decretado cortar o
pescoo de outros: considerarias tu que todos fossem libertos dele, mas at o momento
ningum se importou com ele.
VII. 1 Ento Hrcules disse: Escuta-me. Cessa tu de falar em excesso. Vieste para
aqui, onde os ratos roem o ferro64. A verdade mais depressa para mim, para que eu no
arranque de ti tolices. E para que ficasse mais pavoroso, /Hrcules/ se faz trgico65 e
diz:
63 Cludio balbuciava ao falar e era predisposto raiva e ao ressentimento. Irae atque iracundiae conscius sibi, utramque excusauit edicto distinxitque (como se sentisse predisposto clera e ao ressentimento, pedia desculpas destes dois defeitos num dito), como escreve Suetnio em Cludio 38. 64 Frase proverbial indicando que no h facilidade no cu. No Latim ubi mures ferrum rodunt h uma assonncia do u e uma aliterao do r. Conservou-se, em portugus, a aliterao com o r. 65 Sneca parodia com Hrcules o estilo da tragdia.
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2 Exprome propere sede qua genitus cluas,
Hoc ne peremptus stipite ad terram accidas:
Haec claua reges saepe mactauit feros.
Quid nunc profatu uocis incerto sonas?
Quae patria, quae gens mobile eduxit caput?
Edissere. Equidem regna tergemini petens
Longinqua regis, unde ab Hesperio mari
Inachiam ad urbem nobile aduexi pecus,
Vidi duobus imminens fluuiis iugum,
Quod Phoebus ortu semper obuerso uidet,
Vbi Rhodanus ingens amne praerapido fluit
Ararque, dubitans quo suos cursus agat,
Tacitus quietis adluit ripas uadis:
Estne illa tellus spiritus altrix tui?
2 Revela depressa em que cidade tu, gerado, serias famoso, isso para que no caias
aniquilado sobre a terra por meu basto. Esta clava bravios reis muitas vezes destroou.
O que de tua voz, com a pronncia vacilante, murmuras agora? Que ptria, que regio
produziu volvel indivduo? Explica-te bem. Quanto a mim, atacando dos trs reis os
longnquos reinos, de onde, do mar Hesprio, trouxe para a cidade de Argos um
conhecido rebanho66, vi prxima de dois rios uma cadeia de montanhas que Febo v
sempre em oposio ao nascer. Flui o Rdano extenso em corrente muito veloz; e o
Arar67, que hesita para onde leve seu curso, banha silencioso com ondas mansas as
margens. nutriz de teu esprito aquela terra?
66 Dos doze trabalhos, o dcimo foi matar o gigante Gerion, monstro de trs corpos, seis braos e seis asas, e tomar-lhe os bois que se achavam guardados. 67 Rio Sane atualmente. Rio do oriente da Frana, afluente do rio Rdano. Csar (De Bello Gallico, 1,12,1) define-o como um rio de incrvel suavidade: Flumen est Arar, quod per fines Haeduorum et Sequanorum in Rhodanum influit, incredibili lenitate (h o rio Arar, que faz fronteira entre os duos e os Squanos e que desgua no Rdano com incrvel suavidade).
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3 Haec satis animose et fortiter; nihilo minus mentis suae non est et timet
. Claudius, ut uidit uirum ualentem, oblitus nugarum, intellexit neminem
Romae sibi parem fuisse, illic non habere se idem gratiae: gallum in suo sterquilino
plurimum posse.
4 Itaque, quantum intellegi potuit, haec uisus est dicere: Ego te, fortissime deorum
Hercule, speraui mihi adfuturum apud alios, et, si qui a me notorem petisset, te fui
nominaturus, qui me optime nosti. Nam, si memoria repetis, ego eram qui tibi ante
templum tuum ius dicebam totis diebus mense Iulio et Augusto. Tu scis quantum illic
miseriarum tulerim, cum causidicos audirem diem et noctem, in quos si incidisses,
ualde fortis licet tibi uidearis, maluisses cloacas Augeae purgare: multo plus ego
stercoris exhausi. Sed quoniam uolo............
3 Hrcules diz essas coisas com bastante vigor e coragem, todavia no est em seu juzo
perfeito e teme (um golpe do estpido)68. Quando viu aquele valente
homem, Cludio compreendeu, esquecido das frivolidades, que ningum em Roma foi
semelhante a ele prprio, mas ele mesmo ali no possua o reconhecimento: um galo
pode muito em seu monte de esterco69. 4 Assim, do quanto pde ser entendido, pareceu
dizer estas coisas: Eu tinha esperanas em ti, Hrcules, o mais forte dos deuses, que
eu estaria presente junto aos outros, e se algum me tivesse pedido com insistncia um
avalista, eu te favoreceria devendo nomear a ti, que me conheceste muito bem. Pois se
voltas memria, eu era aquele que diante de teu templo consagrava para ti a justia o
dia inteiro nos meses de julho e agosto70. Tu sabes o quanto ali eu suportara de misrias,
quando dia e noite ouvia advogados. Se tivesses cado no meio deles, sem dvida ainda
que pareas corajoso, terias preferido limpar os esgotos de Augia71. Eu tirei para fora
muito mais esterco. Mas j que desejo.....72
68 Trocadilho com a expresso um golpe do deus, presente na Ilada (XVI, 816), aqui parodiada. 69 Gallum in suo sterquilino plurimum posse. Perodo que apresenta propositalmente uma ambigidade relacionada ao galinceo e ascendncia de Cludio. Vide nota 59. 70 Referncia ao templo de Hrcules em Tbur, onde Cludio muitas vezes exercia a Justia. Suetnio (Cludio, 14) relata: ius et consul et extra honorem laboriosissime dixit, etiam suis suorumque diebus sollemnibus, nonnumquam festis quoque antiquitus et religiosis ([Cludio] exerceu a justia com muito zelo, mesmo durante os dias solenes para si e para os seus e, muitas vezes, mesmo durante as festas e as cerimnias que remontavam mais alta antigidade). 71 Quinto trabalho de Hrcules. O heri limpou em um dia os currais do rei Augias, que continham trs mil bois e que havia trinta anos no eram limpos. Estavam to fedorentos que exalavam um gs mortal. Para limp-los, Hrcules desviou o curso de dois rios. 72 H uma lacuna no texto original. A continuao apresenta o conclio dos deuses. Infere-se que Cludio conseguira o apoio de Hrcules para sua apoteose e os deuses discutem a respeito disso.
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VIII. 1 . . . Non mirum quod in curiam impetum fecisti: nihil tibi clausi est. Modo dic
nobis, qualem deum istum fieri uelis. non potest esse:
. Stoicus? Quomodo potest rotundus esse, ut ait
Varro, sine capite, sine praeputio? Est aliquid in illo stoici dei, iam uideo: nec cor nec
caput habet. 2 Si mehercules a Saturno petisset hoc beneficium, cuius mensem toto anno
celebrauit Saturnalicius princeps, non tulisset illud, nedum ab Ioue, quem, quantum
quidem in illo fuit, damnauit incesti. Silanum enim generum suum occidit, oro, propter
quid? Sororem suam, festiuissimam omnium puellarum, quam omnes Venerem
uocarent, maluit Iunonem uocare.
VIII. 1 No admirvel aquilo que atacaste na Cria73: no h nada fechado para ti.
Dize-nos agora que deus que tu desejas que este seja nomeado. (um
deus epicureu) no pode ser: (ele nem
tem problemas nem causa problemas a outros)74. Estico? Como pode ser redondo,
como disse Varro, sem cabea e sem prepcio75? H algum trao de deus estico
nele, vejo agora: no tem corao nem crebro. 2 Se, por Hrcules, tivesse pedido com
insistncia essa graa a Saturno, cujo ms celebrava o ano todo, o prncipe das
Saturnais76 no teria obtido. Muito menos de Jpiter, quem decerto foi o mximo para
Cludio, j que condenou o deus por incesto. O Imperador, com efeito, matou seu genro
Silano, eu pergunto, por causa de qu? Porque este preferiu chamar de Juno a prpria
irm, a mais encantadora de todas as moas, a qual todas chamavam de Vnus77.
73 Cludio, Hrcules e divindades esto em uma espcie de Cria celestial, pardia do Senado Romano. Infere-se que uma das divindades dirige-se a Hrcules a respeito de Cludio, uma vez que o heri dos doze trabalhos est, a partir da passagem, a favor da divinizao do imperador. 74 Ironia em relao balbrdia provocada por Cludio no Olimpo, reflexo de sua conduta na Terra. 75 Os esticos identificavam os deuses e a sabedoria esfericidade do universo. Na passagem, Sneca alude a uma stira menipia de Varro em que se ironiza tambm o estoicismo. 76 As Saturnais romanas eram festas em dezembro em honra ao deus Saturno, associado paz e opulncia, em que a ordem social vigente era quebrada e em que se permitiam alguns excessos. Segundo Suetnio (Cludio, 32), o imperador ofereceu muitas festas o ano todo. Conuiuia agitauit et ampla et assidua ac fere patentissimis locis, ut plerumque sesceni simul discumberent (ofereceu notveis e repetidos festins e quase sempre em lugares to espaosos que, ordinariamente, tomavam assento neles, ao mesmo tempo, seiscentos convivas). 77 Lcio Silano era noivo de Otvia, filha de Cludio. Agripina, me do futuro imperador Nero, preparou intrigas incestuosas em relao a Silano e irm deste, Jnia Calvina. Cludio o condenou e este se matou no dia do casamento do Imperador com Agripina. Cf. Tcito (Anais, XII, 8): Die nuptiarum Silanus mortem sibi consciuit, siue eo usque spem uitae produxerat, seu delecto die augendam ad inuidiam (no mesmo dia das npcias se matou Silano, ou porque at aquele tempo ainda conservasse algumas esperanas de escapar, ou porque de propsito o escolhesse para fazer recair maior dio sobre os seus inimigos). Suetnio (Cludio, 29) tambm cita o caso.
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Quare inquis quaero enim, sororem suam? Stulte, stude: Athenis dimidium licet,
Alexandriae totum. 3 Quia Romae inquis mures molas lingunt, hic nobis curua
corrigit? Quid in cubiculo suo faciat nescio, et iam caeli scrutatur plagas! Deus fieri
uult: parum est quod templum in Britannia habet, quod hunc barbari colunt et ut deum
orant ?
Dizes Por que, pergunto, com efeito, sua irm? Insensato, instrui-te78: em Atenas isso
possvel metade; em Alexandria, a todos79. 3 Porque em Roma, dizes, os ratos
lambem farinha80. Este conserta para ns o que no direito? Desconheo o que faria
em sua alcova81 e j procura conhecer as extenses do cu82!
Quer ser feito deus: pouco para quem tem um templo na Bretanha83, pouco para
quem os brbaros cultuam e suplicam a ele como a um deus (a
fortuna de um estpido bem propcio)84?
Entende-se, ento, da passagem que Cludio mostra-se contrrio a Jpiter, pois o deus manteve relaes com Juno, a prpria irm. A relao Jpiter/Juno vista por Petrnio (Satyricon CXXVII), assim como por outros poetas dessa forma: cum se concesso iunxit amori Iuppiter et toto concepit pectore flammas (quando Jpiter se uniu a seu amor permitido e encheu todo o seu peito de chamas). Cludio tambm teve seu casamento com Agripina, sua sobrinha, legalizado pelo Senado Romano, porque se constitua em incesto pelas leis romanas. 78 H, no Latim, uma paronomsia (stulte, stude). Tentou-se, em portugus, sugerir uma assonncia com insensato, instrui-te. 79 Cornlio Nepos, em Cimon, I, 2, nos diz que o casamento entre irmos do mesmo pai era admitido em Atenas, portanto a metade citada no texto: [Cimon] habebat autem matrimonio sororem germanam suam nomine Elpinicen, non magis amore quam more ductus. Namque Atheniensibus licet eodem patre natas uxores ducere ([Cimon] tinha, todavia, a sua irm de nome Elpinice por esposa, o uso disso no mais por amor do que por costume. Com efeito, aos atenienses era permitido aos pais mesmos tomarem as filhas como esposas). No Egito, a lei permitia para todos o casamento entre parentes. 80 Em contraposio ao que foi dito por Hrcules (os ratos roem o ferro cf. nota 64), h aqui uma resposta colocada na boca de Cludio para dizer que em Roma os ratos tm vez, ou seja, comem. Ironia senequiana com as condies de Roma na poca, com os costumes licenciosos e com os diversos desgovernos. 81 Aluso irnica s traies de Messalina, esposa de Cludio anterior a Agripina. O imperador ignorava completamente o que fazia Messalina. Tcito nos seus Anais (XI, 13) escreve: At Claudius matrimonii sui ignarus... (mas Cludio ignorado de seu casamento...). Suetnio no deixa por menos em Cladio, 29 ao nos informar: Nam illud omnem fidem excesserit quod nuptiis, quas Messalina cum adultero Silio fecerat, tabellas dotis et ipse consignauerit, inductus, quasi de industria simularentur ad auertendum transferendumque periculum, quod imminere ipsi per quaedam ostenta portenderetur (o que parece incrvel que, na questo do casamento de Messalina com o adltero Slio, ele (Cludio) tivesse assinado de seu prprio punho as pranchetas do contrato, na certeza de que se tratava de uma simulao arranjada com o fim de afastar e de desviar para cima de outra cabea um perigo de que ele prprio se achava ameaado, pela manifestao de alguns prodgios). 82 Caeli scrutatur plagas. Fragmento do poeta nio (Iphignia). Ccero cita este fragmento de nio em De Re Publica, I, 30 e em De Divinatione, II, 13, 30. 83 O templo ficava em Camaloduno, na Bretanha. Tcito nos seus Anais (XIV, 31) informa que os habitantes consideravam o templo como um smbolo da escravido imposta por Roma. Ad hoc templum diuo Claudio constitutum quasi arx aeternae dominationibus adspiciebatur, delectique sacerdotes specie religionis omnes fortunas effundebant (acrescia ainda outro motivo, qual era o considerarem o templo,
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IX. 1 Tandem Ioui uenit in mentem, priuatis intra Curiam morantibus, nec sententiam
dicere licere nec disputare.Ego inquit P. C.., interrogare uobis permiseram, uos mera
mapalia fecistis. Volo ut seruetis disciplinam Curiae. Hic, qualiscumque est, quid de
nobis existimabit? 2 Illo dimisso, primus interrogatur sententiam Ianus pater. Is
designatus erat in kal. Iulias postmeridianus consul, homo quantumuis uafer, qui
semper uidet . Is multa diserte, cum in Foro uiuebat, dixit,
quae notarius persequi non potuit, et ideo non refero, ne aliis uerbis ponam quae ab illo
dicta sunt.
IX. 1 Por fim, Jpiter lembra-se de que no permitido85, com particulares, dentro da
Cria 86 examinar nem pronunciar parecer dos morosos senadores. Eu, diz, tinha
permitido a vs, senadores, interrog-lo, e vs fizestes daqui uma autntica choa.
Quero que conserveis o regulamento da Cria. Este, qualquer que seja a natureza, o que
pensar de ns? 2 Com Cludio dispensado, o primeiro a ter o pensamento questionado
a respeito disso o pai Jano87. Nas calendas de julho88, tinha sido designado cnsul da
tarde ele, homem sagaz tanto quanto possvel, que sempre v
(ao mesmo tempo atrs e em frente) 89 . Como quem vivia no Frum, ele disse
eloqentemente muitas coisas que o escrivo no pde acompanhar90, e por isso no as
reproduzo para no colocar outras palavras que por ele foram ditas.
dedicado ao divino Cludio, como um monumento da sua eterna servido, e o verem que os sacerdotes com mil pretextos religiosos lhe comiam quanto tinha). 84 Sobre esta passagem, a edio estabelecida pela editora Les Belles Lettres confirma a difcil interpretao das palavras gregas. 85 Literalmente: vem mente de Jpiter que no permitido. 86 Para os romanos, a Cria era de suma importncia, pois nesse templo as autoridades senatoriais reuniam-se, formulavam e debatiam as leis romanas. No trecho citado, Sneca evidencia a distino entre os polticos e as pessoas comuns, representadas por Cludio. 87 Um dos deuses romanos mais antigos. Possui dois rostos, um virado para frente e outro para trs, o que lhe permite analisar tudo sob todos os aspectos. De seu nome vem janeiro, o primeiro ms, que metaforicamente olha para o passado e projeta-se para o futuro. A palavra latina ianua (porta) tambm derivada de Jano. Em Roma, a porta de seu templo permanecia aberta em tempos de guerra, para que o deus pudesse socorrer os romanos, se necessitassem. No texto particularmente irnica a presena de Jano, no sentido de salvar os romanos ao votar contra a transformao de Cludio em deus. 88 Segundo o costume romano, os cnsules trabalhavam na parte da manh e folgavam tarde. Como Jano cnsul da tarde, Sneca ironiza o trabalho poltico. 89 Referncia a Homero (Ilada, III, 109). Na obra grega, a expresso aplicada a Pramo. 90 Aluso sarcstica verborragia dos polticos.
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3 Multa dixit de magnitudine deorum; non debere hunc uulgo dari honorem: Olim,
inquit, magna res erat deum fieri; iam Fabam mimum fecistis. Itaque, ne uidear in
personam, non in rem dicere sententiam, censeo ne quis post hunc diem deus fiat ex his
qui aut ex his quos alit . Qui contra hoc
senatus consultum deus factus, dictus pictusue erit, eum dedi Laruis et proximo munere
inter nouos auctoratos ferulis uapulare placet. 4 Proximus interrogatur sententiam
Diespiter, Vicae Potae filius, et ipse designatus consul, nummulariolus: hoc quaestu se
sustinebat, uendere ciuitatulas solebat. Ad hunc belle accessit Hercules et auriculam illi
tetigit. Censet itaque in haec uerba:
3 Ele disse muitas coisas a respeito da magnitude dos deuses e que essa honra no deve
ser entregue ao vulgo. Outrora, diz, era grande coisa ser transformado em deus: agora
vs fizestes a comdia em fava91. Assim, para que no parea afirmar sobre esta pessoa
e sobre esta sentena, prescrevo que ningum aps este dia seja feito deus daqueles que
(comem o fruto da Terra), ou daqueles que
(a fecunda terra)92 alimenta. Quem contrariamente a este decreto do Senado ou
for feito ou dito deus, ou pintado de deus, eu o ofertarei s Larvas93 e no prximo
espetculo ser do agrado que ele leve chibatadas entre os novos gladiadores. 4 O
prximo que tem o parecer questionado o cnsul designado e tambm pequeno
banqueiro Dispiter, filho de Vica Pota94: com esta renda ele se sustentava: tinha o
costume de vender direitos de cidado95 . Sutilmente Hrcules aproximou-se dele e
tocou-lhe a orelha96. Dessa forma, Dispiter manifesta-se com estas palavras:
91 Ou seja, a transformao de Cludio em deus ser algo ridiculamente grotesco, um embuste total, sem nenhum valor. 92 Citaes de Homero retiradas da Ilada VI 142 (comem os frutos da Terra) e Ilada II 548, Odissia XI 309 (a fecunda terra). Referncia potica aos homens. 93 Entre os antigos romanos, as Larvas eram um esprito malfazejo de um morto que vagueava entre os vivos para aterroriz-los. 94 Dispiter: pai da luz. Antiga divindade confundida posteriormente com Jpiter. Vica Pota: deusa da vitria, me de Dispiter. Ambos so deuses genuinamente romanos. 95 Nova referncia venda de cidadania, apreciada por Cludio. Vide nota 38. 96 Como costume romano, tocava-se a parte de baixo da orelha para se ter algum como testemunha. Plnio (Historia Naturalis, XI, 103) considera a orelha a sede da memria: Est in aure ima memoriae locus, quem tangentes antestamur ( no p da orelha o local da memria, local que tomamos por testemunha ao toc-la). Horcio tambm faz meno ao costume em Sermones I, 9, 77: Licet antestari? Ego uero oppono auriculam. (posso tomar-te por testemunha? Eu, na verdade, apresento a orelha).
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5 Cum Diuus Claudius et Diuum Augustum sanguine contingat, nec minus Diuam
Augustam auiam suam, quam ipse deam esse iussit, longeque omnes mortales sapientia
antecellat, sitque e re publica esse aliquem qui cum Romulo possit feruentia rapa
uorare, censeo uti Diuus Claudius ex hac die deus sit, ita uti ante eum qui optimo iure
factus sit, eamque rem ad Metamorphosis Ouidi adiciendam. 6 Variae erant
sententiae, et uidebatur Claudius sententiam uincere. Hercules enim, qui uideret ferrum
suum in igne esse, modo huc, modo illuc cursabat et aiebat: Noli mihi inuidere, mea
res agitur; deinde tu si quid uolueris, in uicem faciam; manus manum lauat.
5 Como o divino97 Cludio tenha relao de sangue no s com o divino Augusto
como tambm com a divina Augusta, sua av, que ele mesmo decretou ser divina98, e
que de longe ele exceda todos os mortais em sabedoria, e que seja na repblica algum
que possa devorar nabos fervidos com Rmulo99, declaro que o divino Cludio, a
partir deste dia, seja deus, assim como antes dele aquele que com todos os direitos tenha
sido feito, e este fato acrescentado s Metamorfoses de Ovdio100. 6 Vrias eram as
opinies e Cludio parecia ganhar a proposio. Com efeito Hrcules, que examinaria
seu ferro que estava no fogo101, pouco antes ali e agora aqui102 corria e dizia: No me
queiras embaraar; meu interesse exercer um cargo: depois se desejares, farei por ti
igualmente. Uma mo lava a outra103.
97 Observe-se que Dispiter j trata Cludio como divino, apostando assim na prpria argumentao para transform-lo em deus. 98 Lvia, av de Cludio, fora divinizada no incio do governo deste imperador. Suetnio diz em Cludio, 11: Auiae Liuiae diuinos honores et circensi pompa currum elephantorum Augustino similem decernenda curauit (concedeu sua av Lvia honras divinas e, na pompa do Circo, um carro de elefantes semelhante ao carro de Augusto). Cludio filho de Antnia (filha de Otvia, irm de Augusto) e de Druso (filho do primeiro casamento de Lvia, a qual depois se casou com Augusto). 99 Rmulo foi divinizado. Cf. Metamorfoses, 772-828, de Ovdio. Ainda assim, segundo as tradies, Rmulo continuou a alimentar-se frugalmente. Marcial relata isso em Xnia (XIII),16: Haec tibi brumali gaudentia frigore rapa/ quae damus, in caelo Romulus esse solet (estes rbanos, apreciadores do frio invernal,/ que te damos, costuma-os comer Rmulo no cu). Sneca assim rememora ironicamente os hbitos alimentares e a sabedoria de Cludio. Relata Suetnio, Cludio, 33: Cibi uinique quocumque et tempore et loco appetentissimus (a qualquer hora e estivesse onde estivesse, sentia sempre grande vontade de comer e de beber). 100 Nas Metamorfoses, de Ovdio, j havia, como dito, a apoteose de Rmulo. Alm disso, constava tambm a transformao de Csar em deus e a futura apoteose de Augusto. Note-se que os dizeres de Dispiter esto em oposio aos de Jano e isso se d principalmente no que se refere comida, pois Rmulo deus e, mesmo assim, um daqueles que comem os frutos da Terra, na citao da Ilada, VI, 142. 101 Ou seja, Hrcules estava correndo o risco de suas artimanhas no darem certo, da a metfora do ferro no fogo. 102 Modo huc modo illuc parte de um verso de Catulo (3,9). Apesar de ser uma expresso comum no Latim, significativo aqui citar o poema de Catulo porque ele ser retomado adiante por Sneca. 103 O usual adgio popular uma mo lava a outra, dito aqui por Hrcules. Esse provrbio presentifica a caracterstica da menipia de mesclar o grandioso, Hrcules, com expresses populares. No trecho Sneca
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X. 1 Tunc diuus Augustus surrexit sententiae suae loco dicendae et summa facundia
disseruit. Ego inquit P.C., uos testes habeo, ex quo deus factus sum, nullum me
uerbum fecisse. Semper meum negotium ago. Sed non possum amplius dissimulare et
dolorem, quem grauiorem pudor facit, continere. 2 In hoc terra marique pacem peperi?
Ideo ciuilia bella compescui, ideo legibus Vrbem fundaui, operibus ornaui, ut... Quid
dicam, P.C., non inuenio: omnia infra indignationem uerba sunt. Confugiendum est
itaque ad Messalae Coruini, disertissimi uiri, illam sententiam: Pudet imperii. 3 Hic,
P.C., qui uobis non posse uidetur muscam excitare, tam facile homines occidebat quam
canis excidit. Sed quid ego de tot ac talibus uiris dicam?
X. 1 Ento o divino Augusto ergueu-se do lugar e discorreu com extrema eloqncia
seu discurso: Eu, diz, tenho a vs, pais conscritos, como testemunhas que nenhum
discurso fiz desde que fui feito deus. Sempre me ocupo de minha obrigao. Entretanto
no posso fingir por mais tempo nem guardar a dor que a vergonha faz mais
insuportvel. 2 Obtive a paz na terra e no mar para isto? Com que inteno contive as
guerras civis? Com que inteno assentei solidamente a cidade, ornei-a com obras, para
qu?104 Pais conscritos, no encontro o que diga: todas as palavras so inferiores
minha indignao. Desse modo deve-se procurar auxlio naquela sentena de Messala
Corvino, homem muito eloqente: tenho vergonha do poder105. 3 Este106, senadores,
que a vs parece no poder despertar uma mosca, to facilmente matava homens quanto
um co se assenta. Mas o que eu falarei de tantos e semelhantes homens?
faz crtica aos polticos e seus interesses pessoais em detrimento dos interesses coletivos. Tambm Petrnio (Satyricon, 45,13) escreve: Munus tamen, inquit, tibi dedi: Et ego tibi plodo. Computa, et tibi plus do quam accepi. Manus manum lauat (eu dei um bom espetculo a ti; e eu te aplaudi. Faze as contas, eu dou a ti mais do que recebi. Uma mo lava a outra.) 104 H uma mudana no tom com o discurso de Augusto. Deixa-se de lado o tom jocoso e assume-se uma inflexo mais sria, com uma ironia mais sutil. Percebe-se, ainda, que Sneca deixa extravasar sua fria pessoal contra Cludio. O discurso de Augusto pode ser lido como um libelo de Sneca contra Cludio. 105 Nos Anais, VI, 11, Tcito relata que, com a vastido do Imprio, Augusto elegeu um magistrado para que tivesse todo o direito de castigar os escravos. Messala Corvino foi o primeiro eleito por Augusto, mas em poucos dias deixou o cargo alegando pouca aptido para o ofcio. Em Augusto, 58, Suetnio afirma que Messala toma a iniciativa de outorgar a Augusto o nome de Pai da Ptria. 106 Os ataques de Augusto so diretos a Cludio, que parece estar novamente na Cria.
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Non uacat deflere publicas clades intuenti domestica mala. Itaque illa omittam, haec
referam; nam, etiam si sormea graece nescit, ego scio: .
4 Iste quem uidetis, per tot annos sub meo nomine latens, hanc mihi gratiam rettulit, ut
duas Iulias proneptes meas occideret, alteram ferro, alteram fame, unum abnepotem L.
Silanum: uideris, Iuppiter, an in causa mala; certe in tua, si aequus futurus es. Dic
mihi, diue Claudi, quare quemquam ex his quos quasque occidisti, antequam de causa
cognosceres, antequam audires, damnasti? Hoc ubi fieri solet? In caelo non fit.
Ele no emprega o tempo em chorar as desgraas pblicas com a depravao familiar
que o contempla. Dessa forma deixarei de lado aqueles fatos e trarei estes: pois mesmo
que *** desconhea o grego, eu o conheo: (o joelho est mais
perto do que a panturrilha)107.
4 Este, a quem vedes, por numerosos anos escondendo-se sob meu nome restituiu-me a
graa, ainda que matasse duas Jlias, minhas bisnetas. Uma com o ferro, outra com a
fome108. E um trineto, Lcio Silano, tu o ters visto, Jpiter,