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7 Textos selecionados Prof. José Antônio Baêta Zille Belo Horizonte 2008 POLÍTICAS E ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL

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Textos selecionados

Prof. José Antônio Baêta Zille

Belo Horizonte 2008

POLÍTICAS E ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

BÁSICA NO BRASIL

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2 APRESENTAÇÃO

Em se tratando de Educação Brasileira, muitas são os aspectos que necessitam ser

analisados para que se fundamente uma discussão da educação contemporânea da

população. Assim, para que alguma discussão seja feita nesse sentido, deve-se partir do

princípio de que a realidade atual sofre conseqüências culturais e históricas, permeadas

por interferências políticas, econômicas e sociais.

É inegável que, no campo da política educacional, as pautas governamentais têm um

peso extremamente significativo. Suas propostas e ideologias chegam à Instituição Escola

com fortes traços de obrigatoriedade de efetivação. Essa relação de transmissão de

valores e políticas por parte da Escola se caracteriza pelo fato desta Instituição ser

considerada a “formadora” da população.

Discutir as políticas educacionais e o papel da Escola como seu agente aplicador, é sem

duvida, compreender a função da Escola na contemporaneidade. Em educação, como em

todas as áreas, a reflexão e a ação devem ser inseparáveis. Reflexão e ação não são, de

forma alguma, dicotômicas. A reflexão desvinculada da prática conduz a uma teorização

vazia. Por sua vez, a ação que não é guiada pela reflexão leva a uma rotina desgastante

e rígida.

Sob essa perspectiva, procurou-se aqui gerar subsídios no sentido de se indagar a função

da Escola e levantar o questionamento quanto o papel do Estado na formulação de

políticas educacionais. Além disso, investir na análise da educação no Brasil seja como

um ato político social ou como um ato eminentemente político econômico. Não deixando

de lado a intenção de se estabelecer um diálogo com o aluno e futuro docente e incentivá-

lo à inquietação necessária para a prática docente no contexto atual.

Os tópicos a serem incluídos são amplos e variados. Com essa coletânea não se

pretende esgotar o assunto. Ela apenas visa introduzir o aluno no vasto campo das

Políticas Educacionais Brasileiras, oferecendo-lhe um referencial para o questionamento

da prática docente e aprofundamentos futuros.

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Sumário

Plano de curso .............................................................................................................. 04 Cronograma do curs o.................................................................................................. 06 Texto 01: Cultura e humanização.................................................................................. 07 Texto 02 : As relações de trabalho.................................................................................. 13 Texto 03 : As relações de poder..................................................................................... 19 Texto 04 : As relações culturais...................................................................................... 28 Texto 05 : Conceito de educação.................................................................................... 36 Texto 06 : Pressupostos políticos da educação.............................................................. 40

Parte I: Tendência liberal....................... 40 Parte II: Tendência socialista................. 45

Texto 07 : Política educacional: uma retrospectiva histórica.......................................... 49 Texto 08 : Diretrizes para uma pedagogia da qualidade ................................................ 61 Texto 09 : Fundamentos estéticos, políticos e éticos do novo ensino brasileiro............. 75

Texto 10 : Comentários sobre o parecer diretrizes nacionais para a organização

curricular do ensino médio, de Guiomar Namo de Mello.............................. 81

Texto 11 : PCN nas escolas: e agora?............................................................................

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PLANO DE CURSO

CURSO: Licenciatura em Música DISCIPLINA: Política Educacional e Organização da Educação Básica no Brasil DEPARTAMENTO: Comunicação e Expressão Artística CARGA HORÁRIA: 36 h/a SEMESTRE: 1º PERÍODO: I ANO: 2008 PROFESSOR(A): José Antônio Baêta Zille

EMENTA: Análise e interpretação da legislação básica do atual sistema educacional brasileiro e sua aplicação no ensino fundamental e médio.

PRÉ-REQUISITO: Nenhum.

OBJETIVOS: Geral: - Propiciar condições para a compreensão e análise crítica dos parâmetros básicos sobre os quais se

estruturam o modelo educacional brasileiro. Específico: - Estudo dos conceitos de cultura, educação e política e análise da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional e dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino das artes.

DIDÁTICA: Metodologia: - Transmissão de conhecimento - Desenvolvimento de habilidades Técnicas/recursos: - Aula dialógica - Discussão/debate - Estudo dirigido - Estudo e texto - Produção de texto (verbal e não verbal)

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO:

Unidade I – Cultura - Cultura e sociedade: . Relações de trabalho

. Relações de poder

. Relações culturais - Cultura e educação

Unidade II – Introdução ao conceito de política da educação - Conceito de política - Política e ideologia - Educação e política - Pressupostos políticos da educação: . Tendência liberal

. Tendência socialista Unidade III – Legislação educacional brasileira - Histórico - Estudo da LDB 9394/96 – fundamentos: . A estética da sensibilidade

. A política da igualdade

. A ética da identidade - Estudo dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação. São Paulo: Moderna, 1989 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Art. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pcn_l.php?t=001. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Lei 9.394 de 20/12/1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Conselho Nacional de Educação – Câmara de educação básica. Parecer no. CEB 0/98. 29/01/98. Disponível em: http://www.mec.gov.br/cne/pdf/PCB04_1998.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRASIL. Conselho Nacional de Educação – Câmara de educação básica. Parecer no. CEB 15/98. 01/06/98. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf. Acesso em: 12/02/2005. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. SP:Brasiliense, 2004. (Coleção primeiros passos 20). Cadernos CEDES nº 55. Políticas públicas e educação. Campinas: UNICAMP, CENTRO DE ESTUDOS EDUCAÇÃO E SOCIEDADE, 2001. CAVALCANTE, Francisco L. dos Santos. Proposições liberais e não liberais e as reformas Educacionais no Brasil (Período de 1889 a 1989). Disponível em: http://www.conteudoescola.com.br/site/content/view/118/42/. Acesso em 10/08/2004. CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. DEMO, Pedro. A nova LDB: ranços e avanços. Campinas: Papirus, 1997. MARTINS, Clélia. O que é política educacional. SP:Brasiliense, 2004. (Coleção primeiros passos 282) RIBEIRO, João Ubaldo. Política. 3.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. SAVIANI, Dermeval. Da nova LDB ao novo plano nacional de educação: por uma outra política educacional. Campinas: Autores Associados, 1999. SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. SP:Brasiliense, 1994. (Coleção primeiros passos 110). SOUZA, Paulo N. P. ; SILVA, Eurídes B. Como entender e aplicar a nova LDB. SP: Pioneira, 1997.

AVALIAÇÃO:

A metodologia de avaliação privilegiará a observação contínua do aluno, que consiste em:

a) Atividades em sala [em grupo ou individuais]: Testes, produção de texto (verbal e não verbal), relatórios, apresentações orais, envolvimento e participação.

b) Atividades extra-classe [em grupo ou individuais]: produção de texto (verbal e não verbal) e relatórios c) Auto-avaliação

Todas as atividades ao longo do semestre terão o mesmo valor de cem pontos. Destes, 10%

corresponderão a atitudes positivas, 20% corresponderão a competências alcançadas e 70% corresponderão a conhecimentos adquiridos. A nota final do semestre será dada pela média aritmética dos valores obtidos em cada uma das atividades.

O aluno obterá aprovação se alcançar o mínimo de 60 pontos e freqüência de 75% no semestre.

Alguns Sites interessantes: Mec - http://portal.mec.gov.br/ LDB - http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf Parecer 04/98 - http://www.mec.gov.br/cne/pdf/PCB04_1998.pdf Parecer 15/98 - http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf PCN’s - http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pcn_l.php?t=001 PCN Artes - http://www.mec.gov.br/sef/estrut2/pcn/pdf/livro06.pdf Legislação Educacional - http://portal.mec.gov.br/index.php?option=content&task=view&id=78&Itemid=221 Acrobat Reader - http://www.adobe.com/products/acrobat/readstep2.html [esse site permite fazer o

download gratuito do programa que permite abrir arquivos com extensão pdf]

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CRONOGRAMA DO CURSO DE Políticas Educacionais Turma 1 o Período Licenciatura Música – Noite Prof. José Antônio Baêta Zille Aula Dia Mês Conteúdo Procedimento Avaliação

01 14 02 Apresentação/Introdução do curso Interação Professor Aluno Análise do Programa

Sondagem dos espaços recíprocos Observar reações dos alunos quanto ao apresentado

02 21 02 03 28 02

Cultura, sociedade e educação Introdução à cultura - Debate Estudo do texto: Cultura e humanização

04 06 03

05 13 03 06 27 03

As três esferas da cultura: Relações de trabalho Relações de poder Relações culturais

Estudo dos textos: Relações de trabalho Relações de poder Relações culturais

07 03 04 Conceito de educação Debate a respeito do texto: Conceito de educação

08 10 04

09 17 04

Pressupostos políticos da educação: - Tendência liberal - Tendência socialista

Pressupostos políticos da educação Jure simulado

10 24 04 A educação no Brasil Estudo do texto 07

11 08 05

12 15 05

Estudo da LDB 9394/96 – diretrizes para uma pedagogia de qualidade: - Currículo por competências - Interdisciplinariedade - Contextualização

Apresentação do filme LDB e Texto 08

13 29 05

14 05 06

15 12 06

Estudo da LDB 9394/96 – fundamentos: - A estética da sensibilidade - A política da igualdade - A ética da identidade

Parecer 15/98 – Fundamentos do ensino brasileiro Textos 09 - 10

Atividades com produção de textos

16 19 06 PCN para o ensino da arte: - Objetivos - Conhecimento artístico

Exposição oral dos objetivos do ensino fundamental, dos saberes, e do conhecimento artístico

17 26 06 Das artes: artes visuais, música, dança, teatro Estudo PCN - ARTE

18 Obs.: Como todo planejamento é parte integrante de um processo, é dotado do mesmo caráter dinâmico de todo o processo assim, está sujeito a adequações e atualizações constantes.

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TEXTO 01 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

Cultura e humanização

Há muitos anos, nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um trata-do de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam, agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamim Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:

“(...) Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.

(...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens”.

(Apud Carlos Rodrigues Brandão) 1. Noção de cultura

Na linguagem comum, o homem “culto” seria aquele que tem instrução, teve acesso à produção intelectual da civilização a que pertence (ciência, filosofia, literatura, artes em geral). Muitas vezes, só porque alguém conhece algumas línguas estrangeiras, imediatamente é considerado “culto”, da mesma forma que, se não freqüentou os bancos escolares, é classificado como “inculto”.

Ora, esse modo de pensar resulta da sociedade hierarquizada, que separa o trabalho humano em atividades intelectuais e manuais, valorizando as primeiras em detrimento das últimas. E isso justamente o que está em questão na epígrafe do capítulo: os homens da civilização americana consideram um bem universal o que oferecem em suas escolas e, como tal, desejam estendê-lo aos indígenas, sem perceber que nas tribos não existe ainda a separação entre o pensar e o agir. Trata-se de uma outra cultura.

Agora, portanto, passamos a usar a palavra cultura como o resultado de tudo o que o homem produz para construir sua existência. No sentido amplo, antropológico, cultura é tudo o que o homem faz, seja material ou espiritual, seja pensamento ou ação. A cultura exprime as variadas formas pelas quais os homens estabelecem relações entre si e com a natureza: como constroem abrigos para se proteger das intempéries, como organizam suas leis, costumes e punições, como se alimentam, casam e têm filhos, como concebem o sagrado e como se comportam diante da morte.

O contato do homem com a natureza, com outros homens e consigo mesmo é intermediado pelos símbolos, isto é, signos – arbitrários e convencionais –, por meio dos quais o homem representa o mundo. Portanto, ao criar um sistema de representações aceitas por todo o grupo social (ou seja, a linguagem simbólica), os homens se comunicam de forma cada vez mais elaborada.

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Nesse sentido pode-se dizer que a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas. 2. O animal e a natureza

O animal vive em harmonia com a natureza. Isso significa que sua atividade é determinada por condições biológicas que lhe permitem adaptar-se ao meio em que vive, não sendo livre para agir em discrepância com a sua própria natureza, razão pela qual o comportamento de cada espécie animal é sempre idêntico.

Os insetos, por exemplo, que se situam nos níveis mais baixos de desenvolvimento dentro da escala zoológica, agem por reflexos e instintos e, por isso, sua atividade é a mais rígida possível. Essa rigidez dá a ilusão de perfeição quando observamos o animal executando determinados atos com extrema habilidade. Não há quem não veja com atenção e pasmo o “trabalho” paciente da aranha tecendo a teia, ou não tenha admirado a colméia, produto da abelha operaria.

Sendo a ação instintiva regida por leis biológicas, permanece idêntica na espécie e invariável de indivíduo para indivíduo. Por isso os atos dos animais não têm história, são os mesmos em todos os tempos, não se renovam, salvo as modificações resultantes da evolução das espécies e as decorrentes das modificações genéticas. Quando ocorrem tais mudanças, elas valem para todos os indivíduos da espécie, são transmitidas hereditariamente e não permitem inovações individuais. Mesmo as modificações que resultam de formas de adaptação ao ambiente são restritas, não podendo ser comparadas com as alterações de que o homem é capaz.

À medida que, na escala zoológica, subimos até os mamíferos, percebemos, porém, que as ações animais deixam de ser resultado exclusivo de reflexos e instintos e apresentam uma flexibilidade maior, típica dos atos inteligentes. Ao contrário da rigidez dos instintos, a resposta inteligente a um problema é criativa, improvisada e pessoal.

Todo mundo que tem cachorro em casa gosta de contar inúmeras histórias: como “compreende” ordens, como consegue pegar um osso colocado fora de seu alcance ou, quando é caçador, que artimanhas usa para se apoderar de uma presa. Podemos observar também que alguns cães aprendem mais rapidamente do que outros. Mesmo os que não são submetidos ao adestramento humano agem habilidosamente para conseguir adaptar-se ao ambiente e sobreviver, usando recursos inventivos que não se acham fixados pelo instinto.

Por mais flexível que seja o comportamento desses animais, trata-se, no entanto, de uma inteligência concreta, e, nesse sentido, se distingue da inteligência humana, que é abstrata. Sendo concreta, a inteligência animal é imediata e prática, isto é, depende do momento vivido aqui e agora e tem em vista a resolução imediata de uma situação problemática.

Por exemplo, quando está com fome, um macaco busca o alimento por instinto. No entanto, se o cacho de bananas não se acha acessível, terá que “resolver o problema” de forma satisfatória: se estiver muito alto, poderá alcançá-lo com uma vara ou subir em um caixote.

A diferença do homem, o animal não domina o tempo, porque seu ato se esgota no momento em que o executa. Mesmo quando repete com maior rapidez comportamentos aprendidos anteriormente, o uso do instrumento não remete para o passado nem para o futuro. No exemplo dado, a vara usada pelo macaco sempre volta a ser vara, o que significa que o animal não inventa o instrumento, não o aperfeiçoa nem o conserva para uso posterior. O gesto útil não tem seqüência no tempo e, portanto, não adquire o significado de uma experiência propriamente dita. 3. A experiência humana

Totalmente diversa é a ação do homem sobre a natureza e sobre si mesmo. Ao reproduzir técnicas usadas por outros homens e inventar outras, novas, a ação humana se toma fonte de idéias e por isso uma experiência propriamente dita.

A noção de experiência não se separa do caráter abstrato da inteligência humana, pelo qual pode ser superada a vivência do aqui e agora, passando a existir no tempo. O homem torna-se capaz de lembrar a ação feita no passado e projetar a ação futura, o que é possível pelo fato de representar o mundo por meio do pensamento, expressando-o pela linguagem simbólica.

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A linguagem humana substitui as coisas por símbolos, tais como as palavras e os gestos. Por meio de representações mentais e de expressões da linguagem, o homem torna presente, para si e para os outros, os acontecimentos passados, bem como antecipa pelo pensamento o que ainda não ocorreu.

Em uma situação de fome o procedimento humano distingue-se do animal porque faz uso do recurso da linguagem abstrata: a vara para alcançar a fruta não precisa estar presente, mas é representada, isto é, torna-se presente pela palavra. Mais ainda: se o desafio da situação nova ultrapassa os recursos deixados pela tradição, o homem é capaz de, pelo pensamento, antecipar a ação futura, ou seja, inventar um instrumento.

A partir daí concluímos que as diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, já que, enquanto o animal permanece inserido na natureza, o homem é capaz de transformá-la, tornando assim possível a cultura.

A transformação que o homem faz na natureza chama-se trabalho. O trabalho é a ação transformadora dirigida por finalidades conscientes. Nesse sentido, o castor, quando constrói um dique, ou o joão-de-barro, sua casinha, não estão de fato “trabalhando”, pois esses atos não são deliberados, intencionais, nem movidos por finalidades conscientes, mas sim determinados pelo instinto e idênticos na espécie. Para o homem, ao contrario, o contato com a natureza só é possível quando mediado pelo trabalho.

A cultura é, portanto, o que resulta do trabalho humano: a transformação realizada pelos instrumentos, as idéias que tornam possível essa transformação e os produtos dela resultantes.

Ainda mais: a ação humana transformadora não é solitária, mas social, já que os homens, ao se relacionarem para produzir sua própria existência, desenvolvem condutas sociais, a fim de atender às necessidades do grupo.

4. Cultura e socialização

O processo de socialização se inicia por meio da ação exercida pela comunidade sobre os homens. É conhecida a história das meninas-lobo encontradas na Índia, em 1920, vivendo numa matilha. Seu comportamento em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam à noite, não sabiam rir nem chorar. Só iniciaram o processo de humanização ao conviver com outras pessoas.

O mundo cultural é, dessa forma, um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relações sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenções. Até a emoção, que é uma manifestação espontânea, sujeita-se a regras que dirigem de certa forma a sua expressão. Basta observar como a nossa sociedade, ainda preocupada com uma visão estereotipada da masculinidade, vê com complacência o choro feminino e recrimina a mesma manifestação no homem.

É possível dizer então que a condição humana não resulta da realização hipotética de instintos, mas da assimilação de modelos sociais: o ser do homem se faz mediado pela cultura. Nem o ermitão consegue anular a presença do mundo cultural. A escolha de se afastar faz permanecer o tempo todo, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, situam-se também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação.

Por isso, a condição humana não apresenta características universais e eternas, pois variam as maneiras pelas quais os homens respondem socialmente aos desafios, a fim de realizar sua existência, sempre historicamente situada.

Uma tendência conservadora, no entanto, leva muitos a definirem sua própria cultura como a correta, estranhando os comportamentos de outros povos ou mesmo de segmentos diferentes em sua própria sociedade. Chegam a achar “naturais” certos atos e valores que se opõem a outros, considerados “exóticos”.

O filósofo Montaigne, no século XVI, ao analisar a perplexidade dos europeus em relação aos costumes dos povos indígenas das terras recém-descobertas, já percebia o teor tendencioso das avaliações: “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem aqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”. Mais adiante questiona o horror de muitos diante do relato de canibalismo dos selvagens, quando não causava igual espanto o costume dos

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religiosos de seu tempo de “esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé”.

Aceitar as diferenças entre as culturas é importante para evitar o etnocentrisrno, isto é, o julgamento de outros padrões (morais, estéticos, políticos, religiosos etc.) a partir de valores do seu próprio grupo. Esse comportamento geralmente leva à xenofobia (horror ao estrangeiro), que é uma forma de preconceito e caminho certo para o exercício da violência, pois a partir dela surgem determinados critérios de superioridade e inferioridade que justificam indevidamente a dominação de um grupo sobre outro.

A transformação produzida pelo homem pode ser caracterizada como um ato de liberdade, entendendo-se liberdade não como alguma coisa que é dada ao homem, mas como o resultado da sua capacidade de compreender o mundo, projetar mudanças e realizar projetos. Pelo trabalho o homem aprende a conhecer as próprias forças e limitações, desenvolve a inteligência, as habilidades, impõe-se uma disciplina, relaciona-se com os companheiros e vive os afetos de toda relação. Nesse sentido, dizemos que o homem se autoproduz, pois ele se modifica e se constrói a partir de sua ação. E nesse movimento tece sua liberdade.

O que foi dito um pouco antes a respeito da ação multiforme dos modelos sociais não contraria a relação estabelecida entre trabalho e liberdade. Isso se explica pelo fato de que, se, por um lado, há sempre a necessidade de um ponto de partida para que cada um possa se compreender – e esse solo é a herança social –, por outro, o ser do homem exige a superação daquilo que ele herda, numa constante recriação da cultura. 5. Sociedade e indivíduo

A natureza modificada pelo trabalho humano não é apenas a do mundo exterior, mas também a da individualidade humana, pois nesse processo o homem se autoproduz, isto é, faz a si mesmo homem.

O autoproduzir-se humano se completa em dois movimentos contraditórios e inseparáveis: por um lado, a sociedade exerce sobre o indivíduo um efeito plasmador, a partir do qual é construída uma determinada visão de mundo; por outro, cada um elabora e interpreta a herança recebida na sua perspectiva pessoal.

É bem verdade que o teor dessas mudanças varia conforme o tipo de sociedade: no mundo contemporâneo de intensa urbanização, as alterações são muito mais velozes do que nas tribos indígenas ou nas comunidades tradicionais. Mesmo assim, não há sociedade estática: em maior ou menor grau, todas mudam, estabelecendo uma dinâmica que resulta do embate entre tradição e ruptura, herança e renovação.

6. As três esferas da cultura

As relações que os homens estabelecem entre si para produzir a cultura se dão em diversos níveis

que não se excluem, mas se complementam e se interpenetram. Apenas por questões didáticas costumamos separar e distinguir essas relações em:

• relações de trabalho, que são materiais, produtivas e caracterizadas pelo desenvolvimento das técnicas e atividades econômicas;

• relações políticas, ou seja, as relações de poder, que possibilitam a organização social e a criação das instituições sociais;

• relações culturais ou comunicativas, que resultam da produção e difusão do saber e deveriam pertencer ao âmbito das relações intencionais, reduto da subjetividade.

Nos capítulos que se seguem abordaremos não só as relações entre essas três esferas, como também as formas pelas quais uma pode predominar sobre as outras, produzindo muitas vezes efeitos perversos. Por exemplo, nas sociedades fortemente hierarquizadas e elitizadas, a produção e a difusão da cultura tornam-se restritas, constituindo privilégio de alguns. O mundo do trabalho, por sua vez, também pode extrapolar seus limites, levando seus próprios valores para outros campos estritamente pessoais e afetivos e passando a “colonizá-los” indevidamente: quantos não vêem no casamento uma maneira rendosa de aumentar seu patrimônio?

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7. Cultura e educação

Vimos, até aqui, que a cultura é uma criação humana: ao tentar resolver seus problemas, o homem produz os meios para a satisfação de suas necessidades e, com isso, transforma o mundo natural e a si mesmo. Por meio do trabalho instaura relações sociais, cria modelos de comportamento, instituições e saberes.

O aperfeiçoamento dessas atividades, no entanto, só é possível pela transmissão dos conhecimentos adquiridos de uma geração para outra, permitindo a assimilação dos modelos de comportamento valorizados. E a educação que mantém viva a memória de um povo e dá condições para a sua sobrevivência material e espiritual.

A educação é, portanto, fundamental para a socialização do homem e sua humanização. Trata-se de um processo que dura a vida toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o homem faz a história.

Dropes

1

Se o homem não tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz não só de compreender o mundo que o cerca, mas também de agir sobre ele.

Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com Fabiano, personagem principal de Vidas secas. A pobreza de vocabulário prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetido, e a intuição de sua situação não é suficiente para ajudá-lo a reagir.

Outro exemplo é apresentado pelo escritor inglês George Orwell no seu livro 1984, em que, num mundo do futuro dominado pelo poder totalitário, uma das tentativas de esmagamento da oposição crítica consiste na simplificação do vocabulário levada a efeito pela “Novilíngua”. Nesse processo, toda a gama de sinônimos é reduzida cada vez mais: pobreza no falar, pobreza no pensar, impotência no agir.

Se a palavra, que distingue o homem dos outros seres vivos, se encontra enfraquecida na sua possibilidade de expressão, é o próprio homem que se desumaniza.

2

Você sabe o que é contracultura? É a expressão que designa os diversos movimentos que

eclodiram na década de 60, inicialmente nos EUA, espalhando-se em seguida para o resto do mundo. Esses movimentos reuniram pessoas das mais diversas ideologias, voltadas para a contestação dos valores da sociedade industrial, centrada na tecnocracia e no consumo. A contracultura tem como exemplos o movimento hippie e as “revoluções” estudantis mundiais, cuja expressão máxima foi o “Maio de 68” na França.

3

A transformação das pessoas em animais como castigo é um tema constante dos contos infantis de todas as nações. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenação. Para as crianças e os diferentes povos, a idéia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensível e familiar. Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre dá testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformação. Todo animal recorda uma desgraça infinita ocorrida em tempos primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas. (Ador-no e Horkheimer)

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Atividades Questões 1. Explique em que sentido os conceitos de cultura, trabalho e educação são inseparáveis, isto é, um

não pode ser compreendido sem o outro. 2. Faça um comentário crítico da epigrafe do capítulo, aplicando os conceitos levantados no texto. 3. Caracterize e distinga esses dois tipos de atos: uma aranha tecendo a teia e um chimpanzé subindo

em um caixote para alcançar uma banana. 4. Comente: ‘Uma aranha executa operações que se assemelham às manipulações do tecelão, e a

construção das colméias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, mais de um mestre-de-obras. Mas há algo em que o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro” (Karl Marx).

5. Explique por que o etnocentrismo leva ao preconceito e este, à violência. 6. Indivíduo e sociedade: em que medida são pólos inseparáveis, mas ao mesmo tempo distintos?

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TEXTO 02 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

As relações de trabalho

Como um professor que mal prepara as aulas, que não lê um livro por ano, que vive insatisfeito com seu trabalho e seu salário pode fazer desabrochar na criança o amor pela leitura, a paixão do saber, a ética do trabalho e o interesse pela política?

(Barbara Freitag) 1. O trabalho como práxis

Para designar a atividade própria do homem distinta da ação animal, costuma-se usar a palavra práxis, conceito que não se identifica com a noção de prática propriamente dita, mas significa união dialética da teoria e da prática. Chamamos de dialética a relação entre teoria e prática porque não existe anterioridade nem superioridade entre uma e outra, mas sim reciprocidade. Ou seja, uma não pode ser compreendida sem a outra, pois ambas se encontram numa constante relação de troca mútua.

Como práxis, qualquer ação humana é sempre carregada de teoria (explicações, justificativas, intenções, previsões etc.). Também toda teoria, como expressão intelectual de ações humanas já realizadas ou por realizar, resulta da prática. Convém ainda entender a práxis dentro de um contexto social, pois as ações se realizam entre homens.

Ora, talvez você esteja se perguntando se é assim mesmo que funciona o trabalho na sociedade civil que vivemos, pois percebe, ao contrário, que algumas profissões são predominantemente teóricas, enquanto outras se reduzem a formas rudimentares de trabalho manual.

Mais ainda, lembrando o capítulo anterior, no qual foi destacada a importância do trabalho como marca distintiva entre o homem e o animal, entre cultura e natureza, talvez cause estranheza a relação estabelecida entre trabalho e liberdade, uma vez que, com certeza, não é essa a realidade encontrada na história da humanidade nem no dia-a-dia de cada um.

Aliás, a concepção de trabalho sempre esteve ligada a uma visão negativa, que implica obrigação e constrangimento. Na Bíblia, Adão e Eva vivem felizes até que são expulsos do Paraíso e Adão é “condenado ao trabalho com o “suor do seu rosto”, cabendo a Eva também o “trabalho” do parto.

A palavra trabalho vem do vocábulo latino tripaliare, do substantivo tripaliam, aparelho de tortura formado por três paus ao qual eram atados os condenados e que também servia para manter presos os animais difíceis de ferrar. Assim, vemos na própria etimologia da palavra a associação do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta.

É apenas aparente, no entanto, a contradição entre o que foi dito anteriormente e a realidade dos fatos. O trabalho é condição de liberdade desde que o trabalhador não esteja submetido a constrangimentos externos, tais como a exploração, situação em que deixa de buscar a satisfação das suas necessidades para realizar aquelas que lhe foram impostas por outros. Quando isso ocorre, o trabalho torna-se inadequado à humanização: trata-se do trabalho alienado.

2. Trabalho e alienação

E o que é alienação?

O verbo alienar vem do latim alienare. “afastar, distanciar, separar”. Alienus significa “que pertence a outro, alheio, estranho”. Alienar, portanto, é tornar alheio, é transferir para outrem o que é seu.

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Quando em uma sociedade aparecem segmentos dominantes que exploram o trabalho humano – como nos regimes de escravidão, de servidão – ou ainda quando, para sobreviver, o indivíduo precisa vender sua força de trabalho em troca de um salário, estamos diante de situações em que o homem perde a posse daquilo que ele produz. O produto do trabalho é separado, alienado de quem o produziu.

Com a perda da posse do produto, o próprio homem não mais se pertence: não escolhe o horário, o ritmo de trabalho, nem decide sobre o salário; não projeta o que vai ser feito, sendo comandado de fora, por forças estranhas a ele. Com a alienação do produto, o próprio homem também se torna alienado, deixando de ser o centro ou a referência de si mesmo.

Veremos, a seguir, como a alienação se manifesta na sociedade industrializada e, mais recente-mente, na chamada sociedade pos-moderna, e também como tudo isso repercute no projeto de uma educação que esteja preocupada com a formação do homem para o trabalho e para a cidadania. 3. A sociedade industrial

Ao analisar a práxis humana, constatamos que ela supõe um “trabalho material”, cujo resultado é a produção dos bens materiais. Para tanto, o homem antecipa a ação por meio do pensamento, criando idéias, teorias, que seriam na verdade o resultado de um “trabalho não-material”, ou seja, o trabalho intelectual.

Desde o inicio da civilização, no entanto, sempre que na sociedade são criadas relações hierárquicas, dá-se a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual. Com isso, aqueles que se ocupam com o trabalho intelectual tendem a desprezar as atividades manuais, enquanto os trabalhadores braçais, ao assumir essa “inferioridade” imposta, deixam de ter clareza teórica suficiente a respeito de sua prática, mantendo-se presos a uma atividade tão intensa e tão dividida que a reflexão se torna quase impossível.

Como o trabalhador não realiza ele mesmo a reflexão sobre o seu fazer, acolhe sem críticas as formas de pensar vigentes na sociedade, elaboradas por sua vez pelos grupos que detêm o controle das instituições e cujas atividades são predominantemente diretivas. Essas idéias dizem respeito aos conhecimentos, valores, normas de ação, e são disseminadas pelos meios mais diversos – inclusive a escola – e aceitas pela maioria (ver próximo capítulo).

A situação torna-se mais crítica com o desenvolvimento do sistema capitalista, a partir do nascimento das fábricas, nos séculos XVII e XVIII. Os trabalhadores sofrem uma mudança radical em relação aos hábitos adquiridos nas manufaturas, nas quais a atividade era até então predominantemente doméstica.

Com o surgimento das fábricas em que os trabalhadores se agrupam em grandes galpões e se submetem a um ritmo de trabalho cada vez mais intenso acentua-se a dicotomia concepção X execução do trabalho, ou seja, o processo de separação entre aqueles que concebem, criam, inventam o que vai ser produzido e aqueles que são obrigados à simples execução do trabalho. Taylorismo: “racionalização” do trabalho?

Com o desenvolvimento do sistema fabril, dá-se a agravante introdução do sistema parcelado de produção, tornando a execução do trabalho mais mecânica e mais fragmentada. Essa divisão é intensificada no início do século XX, quando Henry Ford introduziu o sistema de linha de montagem na indústria automobilística.

Essas inovações geralmente são vistas como sinais do progresso do homem e das exigências incontornáveis da tecnologia. No entanto, é preciso considerar o caráter desumano do processo. na medida em que, ao manipular a maneira de trabalhar, atinge o homem como ser capaz de liberdade.

A expressão teórica do processo de trabalho parcelado é levada a efeito por Frederick Taylor (1856-1915) que estabelece os parâmetros do método científico de racionalização da produção, conhecido, daí em diante como taylorismo. Esse sistema, que visa aumentar a produtividade e economizar tempo, suprimindo gestos desnecessários e comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo, foi implantado com sucesso e logo extrapolou os domínios da fábrica, atingindo outros tipos de empresa, os esportes, a medicina, a escola e até a atividade da dona-de-casa.

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O taylorismo pretende ser uma forma de racionalização do trabalho porque permite melhor previsão

e controle de todas as fases de produção. Para tanto, o setor de planejamento se desenvolve, tendo em vista a necessidade de se estabelecer os diversos passos da execução do trabalho.

A necessidade de planejamento faz surgir uma intensa burocratização. Os burocratas são especialistas na administração de coisas e de homens, atividade que parece ser exercida com objetividade e racionalidade. No entanto, essa imagem de neutralidade e eficácia da organização, como se ela tivesse por base um saber desinteressado e simplesmente competente, é ilusória. Na verdade, a burocracia resulta numa técnica social de dominação.

Vejamos por quê. Não é fácil submeter o operário a um trabalho rotineiro, irreflexivo, repetitivo, reduzido a gestos estereotipados. É de se esperar que, se o sentido de uma ação não é compreendido e se o produto de um trabalho não reverte para quem o executou, seja bem difícil conseguir o empenho de urna pessoa em qualquer tarefa.

Para contornar a dificuldade, o taylorismo substituiu a coação visível, típica da violência direta do antigo feitor de escravos, por exemplo, por formas mais sutis de dominação, que tornam o operário dócil e submisso: as ordens de serviço vindas do setor de planejamento são impessoalizadas, não aparecendo mais com a face de um chefe que oprime, pois se acham diluídas na organização burocrática. Com isso, a relação entre dirigentes e dirigidos não é direta, sendo intermediada por ordens internas vindas de diversos setores.

A eficiência torna-se um dos principais critérios dos negócios, fazendo com que a competição por níveis cada vez maiores de produção seja estimulada por intermédio de distribuição de prêmios, gratificações e promoções. Isso gera a “caça” aos postos mais elevados, o que, por um lado, dificulta a solidariedade entre os empregados e, por outro, identifica-os com os interesses da empresa.

A ordem burocrática limita a espontaneidade, a iniciativa e, portanto, a liberdade dos indivíduos, submetendo-os a uma homogeneização em nome do controle e da eficiência. E como se as pessoas fossem destituídas de individualidade, imaginação, desejos e sentimentos. Como agravante, na sociedade totalmente administrada os critérios de produtividade e desempenho tornam-se predominantes e invadem territórios, tais como a vida familiar e afetiva, que passam a ser impregnados pelos valores antes restritos ao mundo do trabalho.

Essas reflexões nos colocam diante dos efeitos perversos da técnica, que, apresentada de início como libertadora, tem gerado uma ordem tecnocrática opressiva, na qual o homem não é um fim, mas sempre um meio para se atingir qualquer outra coisa que se ache fora dele.

Vale lembrar também que o taylorismo serviu de orientação para a tendência tecnicista que na década de 60, sobretudo no período da ditadura, foi predominante na educação brasileira.

Nesta foto de 1926, as operárias de uma indústria de biscoitos são submetidas ao sistema taylorista de trabalho parcelado, que tinha por objetivo economizar tempo e aumentar a produtividade.

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4. A sociedade pós-moderna: a revolução da informática

Com o advento da cibernética, ou seja, a partir da revolução da informática e da generalização do uso de computadores, a sociedade contemporânea sofreu uma mudança que alterou significativamente as relações de trabalho. Passou a haver a predominância do setor de serviços (terciário), envolvendo atividades tanto das áreas de comunicação e informação como de comércio, finanças, saúde, educação, lazer etc.

O cotidiano do homem se transforma, passando a ser marcado pela automação em todas as esferas, de tal modo que, na era da reprodução técnica, a máquina constitui o intermediário constante entre o homem e o mundo.

No campo das comunicações, a realidade se transformou em simulacro, ou seja, cada vez mais os meios tecnológicos de comunicação simulam a realidade. O mundo tornado “espetáculo” se manifesta na reconstituição de um rosto segundo as informações obtidas a partir de um crânio, na “construção” antecipada de um novo modelo de carro ou ainda na onipresença da TV nos lares, permitindo assistir à Guerra do Golfo sem sair da poltrona.

O simulacro intensifica e embeleza o real, que se torna “hiper-real” e, portanto, mais atraente. Basta ver como nas propagandas a cerveja ou o hambúrguer parecem mais saborosos ainda. Ou como os scuds norte-americanos caindo em Bagdá mais parecem inofensivos clarões iluminando a noite...

As conseqüências dessa superexposição de imagens é que tudo se transforma em show, em entretenimento, na sua apresentação sedutora. O resultado, porém, é muitas vezes a ilusão de conhecimento, a atenção flutuante, o conhecer por fragmentos, sem que haja um momento para a integração das partes e a reflexão sobre as informações recebidas. Trata-se, enfim, de um desafio para o professor, cujo trabalho teórico contraria o fluxo frenético e feito em partículas do vídeo-clip...

No mundo do trabalho, com a ampliação do setor de serviços, é desfocada a tradicional oposição entre o proprietário da fábrica e o proletário, segundo a clássica representação marxista. Cada vez mais as empresas são controladas por administradores, os tecnoburocratas. Tudo isso pode dar a ilusão de que a máquina livra o homem do duro conflito patrão-empregado, libera o seu tempo para outras atividades, mais prazerosas, criando ainda a expectativa da possibilidade de melhor distribuição das riquezas.

O que ocorre, no entanto, é o aparecimento de mecanismos de exploração menos evidentes, já que a autonomia dos executivos tem como pano de fundo controlador o grande capital das multinacionais, concentrando renda e impedindo que a distribuição da riqueza seja feita de forma homogênea.

A esse mundo da opulência, da tecnologia avançada, contrapõe-se grande parte do globo, relegada à miséria e à fome. Mesmo nas camadas que conquistam privilégios a nova organização acentua as características de individualismo, que levam à atomização e dispersão das pessoas, desenvolvendo uma cultura hedonista (de busca do prazer imediato) e narcísica (egocêntrica, com perda do sentido coletivo da ação humana).

Ao mesmo tempo (e contraditoriamente), o processo de massificação pelos meios de comunicação impede que seja feita uma abordagem menos superficial das questões humanas mais vitais, justamente aquelas que permitiriam a discussão das formas de alienação.

Como se vê, o avanço da tecnologia não exclui a possibilidade de modos de vida alienados. O que nos interessa, no entanto, é menos incutir uma visão pessimista da realidade do que reforçar o papel denunciador de toda educação, como primeiro momento para a mudança. 5. Professores como mão-de-obra alienada?

Os riscos de alienação que ameaçam os profissionais em geral no mundo contemporâneo atingem também os professores, profissionais que desenvolvem um tipo de trabalho intelectual ou trabalho não-material, muito peculiar. Enquanto, por exemplo, para os intelectuais que produzem obras de arte e livros, a obra de pensamento se encontra separada de quem a produziu, no caso do professor não existe essa separação, já que seu trabalho se desenvolve durante o ato mesmo de se produzir.

A esse respeito, diz o professor Saviani: “A aula é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo”.

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Justamente nesse contato com o aluno é que poderia ser inculcada a ideologia e a alienação, o que foi amplamente enfatizado por muitos autores que estudaram a escola como reprodutora do sistema vigente (ver Capítulo 20). Nesse sentido, mesmo quando imbuídos de boas intenções, os professores estariam repassando a seus alunos valores que precisariam na verdade ser revistos e criticados.

Assim, embora saibamos que a ação do professor pode gerar um espaço de renovação e crítica, é preciso reconhecer que esses teóricos alertaram para riscos com os quais devemos nos preocupar.

Sem estender o assunto – que será retomado no Capítulo 15 –, é bom lembrar que esses riscos persistem, sobretudo, na atuação desligada do contexto em que se vive, quando predominam práticas despoliltizadas e esvaziadas de conteúdo ético. Também favorece a alienação a rotinização do trabalho, quando se mergulha na repetição enfadonha de fórmulas e se permite o prevalecimento de registros e controles burocráticos, esquecendo-se das situações emergenciais do contexto social e cultural em que se atua.

Além disso, há o risco de se sucumbir à racionalidade tecnocrática típica do taylorismo –, em que é diminuída a autonomia do professor: a legislação é aprovada sem a participação efetiva do profissional da educação e muitas vezes o planejamento dos cursos é feito externamente, com “pacotes” de materiais curriculares que transformam o professor em simples executor de um projeto. 6. Trabalho e escola

Dentre os inúmeros desafios da escola diante da problemática do trabalho, vamos destacar apenas alguns.

A escola é ela mesma um local de trabalho e, como tal, oferece serviços profissionais à coletividade; nesse sentido, pertence ao setor terciário e sofre as influências da sociedade em que está inserida. Por exemplo, a escola transmite as idéias e valores que justificam as práticas sociais vigentes e, na medida em que não consegue, assimilar extensos segmentos de possíveis estudantes, acaba excluindo-os da apropriação da herança cultural.

Apesar de pertencer ao mundo do trabalho, a escola deve dar condições para que se discuta criticamente a realidade em que se acha mergulhada. Ou seja, para exercer sua função com dignidade, precisa manter a dialética herança-ruptura: ao transmitir o saber acumulado, deve ser capaz de romper com as formas alienantes, que não estão a favor do homem, mas contra ele.

Para tanto, cabe ao profissional do ensino denunciar a alienação e a ideologia, a invasão dos parâmetros do trabalho no mundo afetivo, identificar o que está a serviço da democracia ou em oposição a ela. Em suma, é importante a ação do educador na recuperação do universo de valores em um mundo marcado pela “racionalidade técnica”, pelo mito do progresso e pelo superdimensionamento do especialista.

Por outro lado, dentre as diversas tarefas que lhe são atribuídas, a escola deve formar o jovem para o trabalho. Como fazê-lo em uma sociedade marcada ainda pela divisão? Nossa escola não é unitária. Ao contrário, é dualista, já que para a elite é oferecida uma escola de boa qualidade intelectual, enquanto para a classe trabalhadora resta a educação elementar, geralmente de má qualidade, com rudimentos de alguma técnica profissionalizante, sem a necessária teorização.

Se consideramos que o trabalho é uma práxis, no sentido de não separar a teoria da prática, pô-los indissolúveis, é perversa a continuidade desse tipo de dicotomia. O desafio está em criar uma escola em que o trabalho ocupe um lugar de importância: que não esteja ausente nos cursos de “formação” nem se reduza ao adestramento profissional nos chamados “profissionalizantes”. Naqueles falta a prática, nestes, a teoria.

É preciso que todos os alunos, sem distinção, sejam iniciados na compreensão dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo contemporâneo e que saibam avaliar criticamente os fins a que se destina o trabalho, bem como as conseqüências dele decorrentes.

Uma das soluções possíveis para se oferecer uma escola de boa qualidade estaria na exigência da aplicação adequada dos recursos do governo, e, além disso, no esforço conjunto de educadores e do próprio povo. Ou seja, cabe também à sociedade civil buscar meios e inventar caminhos para conseguir uma escolarização em que o conteúdo dos estudos seja, acima de tudo, a prática social vigente. Só assim as pessoas teriam uma compreensão teórica cada vez mais ampla dessa prática, o

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que as ajudaria a explicá-la melhor, a justificá-la ou não e a orientar suas ações no sentido de modificá-la segundo suas necessidades.

Nessa direção têm importante papel os intelectuais a serviço da melhor organização do povo.

Dropes

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O Centro para um Futuro para Todos, uma Organização Não-Governamental suíça, calcula que o

mundo conta hoje com 157 biliardários, cerca de 2 milhões de milionários e 1,1 bilhão de habitantes cuja renda é inferior a US$ 1 por dia. (Folha de S. Paulo, 5 fev. 1995, p.1-8)

Atividades

Questões 1. Em que sentido dizemos que o trabalho é uma práxis? 2. Sob que aspectos a concepção taylorista do trabalho se choca com a noção de práxis? 3. Analise uma característica marcante da sociedade pós-moderna. 4. Qual é a importância da educação no mundo da realidade como simulacro?

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TEXTO 03 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

As relações de poder

A gente fica pensando: o que é que a escola ensina, meu Deus? Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele não é.

(Fala do lavrador mineiro “Cico”, segundo Carlos Rodrigues Brandão) 1. A política

Quando falamos em política, é comum as pessoas imaginarem um espaço externo à sua vida cotidiana e que diz respeito ao Estado e aos políticos profissionais que estariam encarregados das decisões relativas à administração da cidade.

Essa imagem da política é, no entanto, típica das sociedades autoritárias, em que as pessoas estão acostumadas a ser tuteladas e a não interferir de maneira eficaz nos rumos da coletividade. Tanto isso é verdade que muitos consideram que apenas certas pessoas estão investidas de poder (têm capacidade de agir, de produzir efeitos) e, por isso, decidem, mandam, restando à maioria apenas a obediência.

Ora, o poder não é uma coisa que se tem, mas uma relação ou um conjunto de relações por meio das quais indivíduos ou grupos interferem na atividade de outros indivíduos ou grupos. E uma relação porque ninguém tem poder, mas e dele investido por outro: trata-se de uma ação bilateral.

Nesse sentido, todos nos, como cidadãos, ou seja, pertencentes à cidade, deveríamos ter o direito (e o dever!) de participar do jogo político, tomando conhecimento dele (não permanecendo alienados), vigiando para não haver abuso do poder e buscando formas de interferir nas decisões. Em outras palavras, os cidadãos também têm poder e devem aprender a exercê-lo.

A verdadeira democracia é de fato uma policracia (de poly, muito, e cracia, poder). porque nela o poder não está centrado em um indivíduo nem em uma classe dirigente, mas distribuído em inúmeros focos de poder. Só assim é possível gerar uma sociedade pluralista e transparente, aberta às discussões, ao conflito de opiniões, e em que se aceitam pensamentos divergentes.

Talvez você acredite que isso pode gerar uma confusão total, em que ninguém se entenderia. Ao contrário, é preciso partir da idéia de que a educação para a cidadania dá destaque ao interesse público e à convivência em grupo. Assim, o principal instrumento de disputa do cidadão passa a ser não mais a violência, mas as palavras, o discurso fundado nas artes da persuasão, buscando o consenso.

Evidentemente, chegar a esse estágio não é fácil: a democracia exige longo aprendizado e se sujeita a percalços de toda espécie. Veja-se, por exemplo, o caminho percorrido pelos brasileiros na década de 90. Malrefeitos de um longo período de ditadura, caracterizado pela censura e pela perseguição aos dissidentes (com prisões, tortura e morte), enfrentamos os escândalos do governo Collor sem passividade.

Ao contrário, a imprensa, os órgãos de defesa da cidadania, a Igreja, toda a sociedade civil se uniu na mesma indignação e acompanhou (e exigiu) que fosse feita justiça. O impeachment do presidente foi um ato decidido pelos políticos do Congresso, legítimos representantes dos cidadãos, escolhidos por votação, mas sem dúvida a atuação popular influenciou a decisão final.

Depois disso, em inúmeras situações, igualmente se fez sentir a participação da sociedade civil: nos escândalos da comissão do orçamento, na exigência de lisura e transparência quanto à origem das verbas de campanha eleitoral, na necessidade de controle da destinação do dinheiro público, e assim por diante.

O saldo político dessas interferências tem sido sem dúvida positivo, apesar das “idas e vindas” do processo. Embora nem sempre se tenha conseguido atingir os objetivos buscados, é importante saber que os cidadãos não assistem passivamente à corrupção e à dilapidação do patrimônio público, e um número cada vez maior de pessoas começa a exigir “ética na política”.

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2. Diversos sentidos de ideologia

O que percebemos com tudo isso é que a política, embora não se confunda com as atividades do homem comum (na vida familiar, no trabalho, no lazer etc.), na verdade permeia todas as atividades humanas o tempo todo. E, se não estivermos atentos e acreditarmos que podemos permanecer apolíticos, isto é, à margem das decisões, certamente nos tornaremos vítimas passivas da ação dos maus políticos.

A pretensa neutralidade justifica a política vigente. O homem despolitizado compreende mal o mundo em que vive e é manipulado por aqueles que estão no poder. Pois, se ocupam o poder à revelia dos interesses da maioria e podem nele se manter pela força, outras vezes o recurso usado é mais sutil e a submissão é conseguida pelo consentimento.

Nas sociedades divididas, os grupos privilegiados predominam sobre os demais e geralmente se mantém pelo prestígio, isto é, seus valores são aceitos, dando a aparência de que se vive em uma sociedade una e harmônica, movida por interesses comuns e não-divergentes.

No entanto, há uma diferença entre o consenso obtido após discussão e exposição das divergências, típico da democracia, e o consentimento que resulta da ignorância dessas diferenças. Neste último caso, estamos nos referindo a uma das formas perversas de exercício do poder, que é a ideologia.

Há vários significados para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias, concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. E uma teoria, uma organização sistemática dos conhecimentos destinados a orientar a prática, a ação efetiva. Nesse sentido, cada um tem uma ideologia que o ajuda a decidir, por exemplo, onde estudar, que profissão escolher e a respeito do que é certo ou errado.

Sob esse mesmo aspecto, ao analisar a ideologia a respeito das concepções políticas, as pessoas podem ser classificadas conforme suas adesões a um ou outro partido. A ideologia é uma espécie de “cimento” que une as pessoas de determinado grupo, fazendo-as defender interesses comuns e elaborar projetos de ação. E, se toda sociedade é plural, seria saudável que fosse permeada por concepções de mundo diferentes. Esse pluralismo tão enriquecedor não deveria ser cerceado em nome dos interesses de grupos divergentes.

É bom lembrar o que foi dito no início do capítulo: a essência da democracia está na tolerância, que permite a coexistência de ideologias diferentes. Quando não se aceitam os conflitos de idéias, está-se a um passo da violência.

Foi assim no período da ditadura, quando órgãos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exigiam “atestados ideológicos, a fim de verificar se não se estava diante de adeptos da ideologia marxista, considerada na época “perigosa à segurança nacional”. Conforme o resultado, as pessoas eram consideradas “subversivas

Há ainda um outro sentido para ideologia, no qual se enfatiza o aspecto pejorativo, isto é, a ideologia como conjunto de idéias e concepções sem fundamento, mera análise ou discussão oca de idéias abstratas que não correspondem a tatos reais. 3. Um conceito restrito de ideologia

O conceito de ideologia, utilizado neste capítulo foi inicialmente elaborado pelo filósofo e cientista social Karl Marx, que viveu no século XIX. Atualmente este conceito está incorporado ao pensamento político e econômico, sendo utilizado até por teóricos não-marxistas, tal a sua fecundidade na compreensão das relações de poder.

Para Marx, as idéias e normas de ação que permeiam a sociedade são decorrentes da economia, isto é, resultam da maneira pela qual os homens se relacionam para produzir sua existência. Com isso, ele contraria a concepção vigente de que “as idéias movem o mundo” e que “os grandes homens fazem a história”. Para Marx, o movimento da história se faz a partir das contradições existentes no seio da sociedade.

Invertendo o processo, Marx considera que as idéias derivam das condições históricas reais vividas pelos homens ao estabelecerem as relações de produção, isto é, ao se organizarem por meio da divisão social do trabalho. Segundo ele, toda atividade intelectual (mito, religião, moral, filosofia, literatura, ciência etc.) e todas as normas (morais, jurídicas etc.) passam a ser compreendidas como derivadas das condições materiais de produção da existência.

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Para exemplificar: a moral e o direito feudais podem ser compreendidos a partir do modo de produção feudal; por sua vez, ao instaurar o capitalismo, a burguesia passará a defender valores morais e normas jurídicas diferentes daqueles da nobreza feudal, buscando novos modelos teóricos que justifiquem sua ação.

Ora, a aceitação da transformação social seria relativamente fácil caso as novas idéias, decorrentes das mudanças econômicas, fossem lentamente assimiladas. Mas isso significa superar os antigos valores, o que acarretaria a perda dos privilégios da classe que se encontra no poder. Por isso ela luta ainda durante muito tempo para manter seus valores, como se eles fossem eternos e imutáveis. No período de reação ao novo, o segmento que deseja manter o status quo assume atitudes conservadoras ou reacionárias, em oposição ao grupo progressista.

Assim, durante séculos, a burguesia lutou contra o feudalismo até conseguir superá-lo, utilizando-se, no final do processo, do recurso da revolução (por exemplo a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e a Revolução Francesa). A partir de então, consolidada sua hegemonia, a própria burguesia universaliza seus valores, considerando as idéias defendidas por sua classe válidas para todos os segmentos sociais.

Os ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa, no entanto, não foram estendidos aos trabalhadores, que enfrentavam situações cada vez mais difíceis de sobrevivência. No século XIX, a jornada de trabalho era de 14 a 16 horas, em locais muitas vezes insalubres.

Atualmente, embora tenham ocorrido melhoras como resultado das conquistas sindicais, persiste o fenômeno da alienação (ao qual já nos referimos no Texto 2), agravado por problemas tais como o parcelamento do trabalho e a exclusão do acesso aos bens produzidos. No mundo do capital, o produto é sempre mais importante do que o homem, sendo ele desumanizado, tornado coisa, “coisificado”.

4. Função da ideologia

No entanto, nem sempre o trabalhador tem clareza da situação na qual se encontra, pois a ideologia faz com que não perceba a exploração de que é vítima. A ideologia é o conjunto de representações e idéias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o homem é levado a pensar, sentir e agir de uma determinada maneira, considerada por ele correta e “natural”.

Assim, não percebe que essas representações e normas convêm à classe que detém o poder na sociedade. Essa percepção da realidade é ilusória, na medida em que camufla a divisão existente dentro da sociedade, apresentando-a una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais.

A função da ideologia é, pois, ocultar as diferenças de classe, facilitando a continuidade da dominação de uma classe sobre outra. A ideologia assegura a coesão entre os homens e a aceitacão sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da vontade de Deus”, do “dever moral” ou simplesmente como decorrentes da “ordem natural das coisas”.

É interessante observar que não se trata de uma mentira inventada pelos indivíduos da classe

dominante para subjugar a outra classe. Também eles sofrem a influência da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominação e considerar universais os valores pertencentes à sua classe. Os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas, por exemplo,

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certamente não percebiam o caráter ideológico de sua ação ao implantar uma religião e uma moral estranhas às do povo dominado. Ao contrario, estavam convencidos do valor dessa tarefa.

5. Características da ideologia

Ouvimos com freqüência a frase “O trabalho dignifica o homem”. E bom lembrar que a afirmação não é falsa, pois, como vimos nos capítulos anteriores, o trabalho é de fato o que faz o homem se tornar homem e o distingue do animal, mas soa ideológica quando considerada fora do contexto histórico concreto em que os homens trabalham, mascarando situações de exploração.

O trabalho alienado não dignifica, mas degrada o homem, porque, além de retirar dele o fruto de sua produção, reduz suas possibilidades de crescimento. Quando a característica pervertida do trabalho não é reconhecida, esse ocultamento beneficia não o trabalhador, já prejudicado, mas aqueles que se ocupam com as atividades menos penosas.

Portanto, a frase acima, a princípio verdadeira, pode se tornar ideológica quando ocultar a situação concreta de exploração e descrever uma realidade abstrata, universal, lacunar e invertida.

Explicando melhor, a ideologia tem por características: • a abstração: na medida em que não se refere ao concreto, mas ao aparecer social. Um exemplo: a

“idéia de trabalho” aparece desvirtuada da análise histórica concreta das condições nas quais certos tipos de trabalho brutalizam o homem, em vez de enobrecê-lo (como o operário na linha de montagem);

• a universalização: pela qual as idéias e valores do grupo dominante são estendidos a todos; por exemplo, mesmo tendo interesses divergentes, o empregado adota os valores do patrão como sendo também os seus;

• a lacuna: há “vazios”, “partes silenciadas” que não podem ser ditas, sob pena de desmascarar a ideologia; por exemplo, quando dizemos que o salário paga o trabalho, permanece oculto o fato de que o valor produzido pela força de trabalho é maior do que o recebido, sendo a diferença apropriada pelo capitalista (é o que Marx denominava mais-valia);

• a inversão: ao explicar a realidade, o que é apresentado como causa é na verdade conseqüência; por exemplo, se o filho de um operário não consegue melhorar seu padrão de vida, o insucesso é considerado resultante de sua incompetência, quando na verdade esta é efeito de outras causas, tais como as condições precárias (de saúde, educação etc.) a que se acha submetido: ele joga um “jogo de cartas marcadas”, e as possibilidades de melhora não dependem dele.

Dessa forma, a ideologia “naturaliza” a realidade, escondendo o fato de que a existência humana só

é produzida pelo próprio homem e só pode ser alterada por ele: não é “natural” que haja ricos e pobres, nem que exista a separação entre trabalho intelectual e braçal, nem que alguns estejam destinados ao mando e outros, à obediência.

A divisão e a hierarquia instauradas na sociedade justificam a priorização das idéias sobre a prática (ao contrário da concepção de práxis, que estabelece uma relação dialética entre elas). Daí decorre a aceitação de que a classe que “sabe pensar” controla as decisões e manda, enquanto a outra “não sabe pensar” e, portanto, executa e obedece.

6. Ideologia e educação

É muito comum se pensar que a educação é apolítica, a escola é um espaço neutro, uma ilha isolada das divergências da sociedade e um canal objetivo de transmissão da cultura universal.

Sem dúvida é uma imagem ilusória. A escola é política e, como tal, reflete inevitavelmente os confrontos de força existentes na sociedade. Se esta se caracteriza por classes antagônicas, a escola certamente refletirá os interesses do grupo dominante. Basta rever a história da educação para perceber como a escola sempre serviu ao poder, não oferecendo oportunidades iguais de estudo a todos, indistintamente.

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Além disso, a escola transmite padrões de comportamento, bem como idéias e valores. Ora, esses modelos, divulgados como “universais e abstratos”, geralmente não são tão universais assim, pertencendo a um determinado segmento social.

Na década de 70, muitos intelectuais desenvolveram as teorias crítico-reprodutivistas, que denunciam a escola por disseminar a ideologia e reproduzir o status quo. Mesmo não concordando com a radicalidade dessas posições, é preciso reconhecer muitos acertos nas suas análises.

Num rápido esboço do papel ideológico da educação, vamos abordar o problema sob três aspectos: quanto às teorias pedagógicas, quanto ao plano legal e quanto à prática educativa. Caráter ideológico das teorias pedagógicas

Se levarmos em conta o conceito de práxis, toda teoria se acha indissoluvelmente ligada à prática. Portanto, qualquer teoria da educação deveria partir do exame rigoroso e sistemático dos problemas existentes na realidade, a fim de definir os objetivos e meios que orientarão a atividade comum intencional.

Quando uma teoria pedagógica desenvolve-se à margem dos acontecimentos econômicos, políticos e sociais do seu tempo, corre o risco de tornar-se ideológica. Utilizando conceitos abstratos, eternos e imutáveis, deslocadas da situação histórica em que se inserem, repete artifícios pelos quais os valores dominantes são impostos.

O homem é um ser em processo cujo pensar e agir estão condicionados pela maneira segundo a qual ele produz sua existência, de modo que nenhuma teoria pedagógica pode partir de conceitos dados a priori, ou seja, antes de serem examinadas as condições de sua existência concreta.

Dessa forma, não é possível trabalhar com categorias atemporais, como natureza humana, infância em si ou família em si. Segundo as teorias que partem dessas noções, a educação seria um processo de “atualização” daquilo que o homem possui “em potencial” (o que pode ser, mas ainda não é), donde se conclui que haveria uma essência humana válida em todos os tempos e lugares, cabendo à educação tomar presente, “trazer à tona” o que existe em germe em cada um.

Tal procedimento torna-se ideológico ao desprezar o fato de que a educação é um fenômeno social, não sendo possível separar teoria da educação e realidade social. A sociedade não é um aglomerado de indivíduos, cada um deles “desabrochando”, trazendo à tona o que era “em potência”. A educação promove a construção da personalidade social e, por isso, não se desvincula da situação concreta em que se insere.

Não convém, por exemplo, analisar a crise da adolescência como “natural”, resultante do eterno conflito entre gerações, pois há sociedades nas quais nem sequer existe o fenômeno da adolescência, e outras em que os conflitos são de teor muito diferente: basta comparar o adolescente do campo e o da cidade; o burguês e o proletário; ou ainda o jovem da década de 40 e o dos explosivos anos mutantes de 60! Legislação e ideologia

É impossível criar uma legislação eficaz para a educação sem ter como suporte uma teoria pedagógica cujo rigor possa superar a compreensão empírica do fenômeno. Apoiando-se nessa teoria, a solução para os problemas surge de forma intencional, coerente e não-fragmentada, ultrapassando o nível prático-utilitário do senso comum.

O professor e educador paulista Dermeval Saviani analisa, em importante trabalho, o caráter precário da Lei de Diretrizes e Bases (LDB/61), decorrente da não utilização de uma teoria que possibilitasse a construção de um verdadeiro sistema educacional brasileiro.1

Para Saviani, não podemos falar em sistema educacional brasileiro, e sim em estrutura. A estrutura é caracterizada por ausência de planos, assistematicidade da ação, inexistência de projetos claramente expostos, ou seja, é algo que aí está, que o homem deixou de fazer ou fez sem o saber.

Se não existe uma teoria explícita subjacente, a ação perde a intencionalidade, a unidade e a coerência, mas não deixa de ser orientada pelos valores vigentes, expressos pelos interesses dos grupos

1 Educação brasileira; estrutura e sistema.

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dominantes. E eis aí de novo a ação silenciosa da ideologia. Pois o Direito, como toda elaboração da consciência humana, reflete as condições estruturais da sociedade em um determinado movimento histórico, e as leis, sendo feitas pela elite, vêm em defesa dos seus valores.

Por isso, ao examinar o texto de uma lei, é preciso ler nas entrelinhas, analisar o contexto em que se insere, a fim de descobrir as relações de interesse que se acham por trás, no processo da sua gestação.

Voltemos ao exemplo da Lei de Diretrizes e Bases. A partir do primeiro projeto de lei, datado de 1948, esta lei seguiu um longo caminho. Embora fosse inicialmente um texto progressista, foi sancionado apenas em 1961, tornando-se ultrapassado para a época em que entrou em vigor, já que era outra a sociedade brasileira de então. Além disso, a lei refletiu os conflitos entre tendências opostas, sobretudo entre liberais defensores da escola pública e a ala conservadora dos católicos, que reivindicava a subvenção do Estado para a rede particular do ensino. Este mesmo conflito reaparece na discussão da Constituição de 1988, que manteve a destinação dos recursos a certos tipos de instituição.

Se é preciso examinar os interesses subjacentes à elaboração e aprovação de uma lei, também é importante avaliar sua eficácia, pois vários fatores interferem na sua aplicação. Ao ampliam a obrigatoriedade do ensino primário de quatro para oito anos, a LDB não considerou as condições de intra-estrutura existentes, o que não permitiu que este dispositivo da lei saísse do papel. Prática educativa e ideologia

Dentre os recursos utilizados na prática educativa, vamos destacar o livro didático, que, assim como os outros recursos, não pode ser considerado um veículo neutro, objetivo, mero transmissor de informações. Estudos realizados sobre os livros didáticos de 1o grau1 constatam muitas vezes sua utilização ideológica, sobretudo quando mostram à criança uma realidade estereotipada, idealizada e deformadora.

Os textos ideológicos transmitem uma visão de trabalho que iguala todos os tipos de profissão, ocultando o fato de que muitas pessoas são submetidas a atividades árduas, alienantes. Mostram uma sociedade una e harmônica, na qual cada um cumpre o seu papel como um destino a que não se pode fugir e ao qual se deve conformar. A impressão que se tem é de que a riqueza e a pobreza fazem parte da natureza das coisas, não sendo resultado da ação dos homens. Resta aos pobres a paciência e, aos ricos, a generosidade.

A família, apresentada sem conflitos, aparece com papéis bem definidos: o pai tem a função de provedor; a mãe é a “rainha do lar”; se a criança não for atenciosa e obediente, isso é mostrado como um desvio que precisa ser corrigido; a empregada, geralmente preta, é feliz por ser “quase” alguém da família. “Mundo sem preconceito, em que as raças se irmanam...” Além disso, as situações vividas, bem como o ambiente em que se desenrolam, refletem invariavelmente a realidade de um segmento mais próspero da sociedade, muito diferente do modo de viver da maioria da população escolar, pertencente às classes desfavorecidas.

A pátria merece páginas de ingênua exaltação, sendo retratada como um país ilusório, grande e rico, ou pelo menos “o país do futuro”. Fica por conta do leitor investigar o que é dito, nos livros didáticos, sobre a escola, sobre o trabalho no campo, sobre o índio, sobre a moral etc.

Também a abordagem das disciplinas do currículo adquire, muitas vezes, um caráter ideológico. O ensino de história, por exemplo, torna-se ideológico quando se restringe à seqüência cronológica dos fatos, sem a análise da ação das forças contraditórias que agem na sociedade. A aparente neutralidade e a ausência de interpretação ocultam e impedem a expressão do discurso dos vencidos ou dos dominados. Além disso, é típico desse processo apresentar a história como resultado da ação dos “grandes homens”. Dessa forma, abolição da escravatura é vista sob a ótica dos brancos e os bandeirantes são “heróis” que expandem as fronteiras brasileiras à custa das populações indígenas (aliás, no “faroeste” americano o mocinho não vence sempre os “ferozes” índios?).

A ênfase dada à geografia física, em detrimento da geografia humana, reflete a preocupação positivista, que despreza o fato de ser o homem o construtor do seu habitat. Com isso se oculta que a ação exercida sobre a natureza significa também uma ação sobre os homens, o que recoloca a questão do poder e do controle político do espaço geográfico.

1 Ver Bibliografia final: U. Eco. M. Lourdes D. Nosella. A.L.Faria.

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Tomamos apenas os exemplos da história e da geografia, mas uma análise deste tipo pode ser feita com relação a qualquer disciplina do currículo.

Embora não tenham necessariamente objetivo didático, os livros de literatura infantil, são utilizados com freqüência em sala de aula, como auxiliares no processo de aprendizagem. É muito comum encontrarmos viés ideológico nessa produção, preocupada com o enquadramento da criança nos padrões convencionais de comportamento, do que decorre o caráter moralizante do seu conteúdo. Além disso, existe o reforço dos preconceitos com relação ao negro, ao índio, à mulher e à criança, mostrados como seres passivos e necessitados de orientação e controle externos.

A organização escolar pode exercer um papel ideológico na medida em que a rígida hierarquia exige o exercício do autoritarismo e da disciplina estéril, que educam para a passividade e a obediência. A excessiva burocratização desenvolve o “ritual de domesticação”, que vai desde o controle da presença em sala de aula, às provas, até a obtenção do diploma. Se lembrarmos o que foi dito no item anterior sobre estrutura e sistema, é fácil compreender que qualquer organização só tem sentido enquanto mantiver viva a reflexão sobre os objetivos que orientam sua ação. Caso contrário, degenera em exigência puramente formal. E o formalismo da prática gera a burocracia estéril e autoritária. 7. A contra-ideologia Se considerássemos apenas o que foi dito até agora, restaria uma visão pessimista da educação e uma nítida sensação de impotência diante dessa situação. É preciso superar essa posição imobilista. Para isso, vamos explicitar o que seria um discurso não-ideológico.

Retomemos os conceitos analisados no início do capítulo: o discurso ideológico é abstrato e lacunar, faz uma análise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, a fim de manter privilégios e a dominação de uma classe sobre outra. O discurso não-ideológico deve contrapor, então, uma crítica que revele, denuncie a contradição interna, que se acha oculta. É esse o papel da teoria, que não se confunde com a ideologia, pois está encarregada de desvendar os processos reais e históricos que dão origem à dominação, enquanto a ideologia visa justamente ocultá-la.

A teoria estabelece uma relação dialética com a prática, uma relação de reciprocidade e simultaneidade, não uma relação hierárquica, como no discurso ideológico, que considera a teoria superior e anterior à prática.

Aplicando o conceito de dialética à educação, podemos ver que uma teoria educacional não determina autoritariamente e a priori o que deve ser feito, mas parte da análise dos fatos e deve para eles retornar, a fim de agir sobre eles, mantendo viva a relação entre o pensar e o agir. Por isso, toda teoria educacional autêntica vem sempre acompanhada de forma reflexiva e crítica pela filosofia, cuja função é “explicitar os seus fundamentos, esclarecer a função e a contribuição das diversas disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas”2. O papel da filosofia como crítica da ideologia é importante, pois rompe as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominação.

Nessa perspectiva, a escola não é compreendida como isolada da realidade nem como pura re-produção da realidade social. E, se a escola não é a alavanca transformadora da realidade, como pensavam os escolanovistas, tampouco é totalmente manipulada pelo poder, como pensavam os crítico-reprodutivistas. É preciso descobrir, a partir de suas limitações, as reais possibilidades de transformação qualitativa da escola, a fim de que ela possa desenvolver um discurso contra-ideológico.

8. Educar para a cidadania

Como proceder a essa mudança, tendo em vista inúmeras dificuldades e entraves? A tarefa é árdua, mas não impossível. Sem dúvida exige tempo, paciência e um esforço contínuo

levado a efeito em inúmeros setores diferentes: que se abram “ágoras” de discussão, espaços de expressão que funcionem como microrrevoluções.

A salutar exigência de ética na política deve, por coerência, se estender às relações de trabalho, à vida familiar e ao lazer, não apenas enquanto discussão, mas também na busca de formas de atuação.

2 Dermeval Saviani, Educação: do senso comum à consciência filosófica, p. 30.

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Afinal, dissemos que democracia é policracia: pois que aumentem os focos nos quais possamos exercer nossa cidadania.

Sem dúvida, precisamos exigir do Estado o cumprimento de suas obrigações, bem como vigiar sua execução. Mas isso não é suficiente. E revelador de uma tendência paternalista permanecer na dependência exclusiva da boa vontade e da ação dos governos. Até porque a alternância freqüente daqueles que são eleitos para ocupar os cargos públicos gera constantes mudanças de orientação ideológica, tornando caótica a administração pública.

As organizações de pais, de mestres, de alunos, os sindicatos, ou seja, os agrupamentos progressistas saídos da sociedade civil é que poderão exercer uma vigilância e fazer pressão para que a escola se transforme em um espaço de mudança. Mesmo que nessa situação existam contradições, pois na sociedade civil também se organizam grupos retrógrados e conservadores, que tentam manter a ordem vigente – e, portanto, a ideologia –, é estimulante o exercício do poder disseminado entre os cidadãos.

Nessa linha de atuação têm se destacado no mundo inteiro as chamadas organizações não-governamentais (ONGs), responsáveis por significativas mudanças em diversos setores, tais como o recuo na construção de usinas atômicas, a revisão do processo de construção de grandes usinas hidrelétricas, que provocam graves prejuízos ecológicos, bem como na luta pelos direitos humanos, contra o arbítrio do poder, e assim por diante. No Brasil, surgiram durante o movimento contra a ditadura militar e têm provocado a conscientização e a mobilização dos cidadãos.

Na educação há muito que fazer. Temos de lutar por êxitos parciais que, no conjunto, se tornem significativos: adequada aplicação das verbas públicas, melhor formação de professores competentes e politizados, remuneração condigna do corpo docente, escolas bem equipadas, classes pouco numerosas, desmistificação na abordagem das disciplinas, leitura crítica dos textos e do próprio mundo.

Dropes 1

Ao fazer do texto um objeto de investigação intelectual, tal análise coloca o leitor não como um consumidor passivo, mas como um produtor ativo de significados. Em vista disto, o texto não é mais investido de uma essência de autoridade, esperando para ser traduzido ou descoberto. Ao contrário, sua essência não está mais provida de um status sacerdotal, como uma sabedoria doada. Ao invés disso, o texto torna-se um conjunto de discursos, constituído por um jogo de significados contraditórios (Henry Giroux)

2

Texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo. (Roland Barthes)

Atividades Questões 1. Explique por que o poder não é algo que se tem, mas uma relação. 2. O que é ideologia e qual a sua função? 3. Em que sentido a teoria se distingue da ideologia? Como cada uma delas se relaciona com a

prática? 4. O que é necessário para que uma teoria pedagógica não seja ideológica?

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5. Explique por que o conteúdo das frases a seguir é ideológico. Faça referência a características da ideologia, a fim de fundamentar sua resposta. • A educação é um direito de todos. • Isto é legal, portanto justo e legítimo.

6. Como é possível superar o destino da escola de ser simples reprodutora do sistema?

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TEXTO 04 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

As relações culturais

Nenhuma arte é casual ou rudimentar: é expressão plena de um desejo de beleza. (Antonio Candido)

A cultura operária carece da escola não para se renegar, mas para se realizar.

(Georges Snyders)1 1. Os bens culturais

No Texto 1 aprendemos que cultura, no sentido amplo e antropológico, é tudo que o homem faz, seja uma produção material ou espiritual, seja pensamento ou ação. A cultura resulta do esforço humano para construir sua existência, e é isso que caracteriza os diversos agrupamentos humanos, permitindo distinguir por exemplo a cultura nhambiquara da cultura grega.

Podemos também considerar o conceito de cultura, em um sentido estrito, como a produção intelectual de um povo, expressa nas produções filosóficas, científicas, artísticas, literárias, religiosas, em resumo, nas suas manifestações espirituais. Nesse sentido, pessoas ou grupos se ocupam com diferentes formas de expressão cultural (o artista, o escritor, o filósofo, o cientista, e assim por diante).

No sentido estrito, destaca-se a ênfase dada à representação simbólica que o homem faz da realidade, construída por meio do conhecimento e da valoração. É justamente pela educação que os bens simbólicos podem ser transmitidos, avaliados e transformados.

É justo pensar que esses bens deveriam estar disponíveis para todos, tanto na fase de reprodução e inovação quanto na de consumo e fruição. No entanto, tal não acontece nas sociedades divididas em classes, em que é nítida a separação entre trabalhadores intelectuais e manuais. Esses últimos geralmente são excluídos do acesso aos bens culturais e, quando deles se apropriam, prevalece o consumo da cultura dominante. Já vimos que daí deriva a classificação que separa os “cultos” dos “incultos”.

Geralmente é considerado inculto aquele que não participa do saber da elite. Porém, se o homem se define na medida em que é capaz de produzir cultura, não existe homem inculto. Acontece que, nas sociedades em que predominam relações de dominação, as pessoas do povo são impedidas de elaborar criticamente a sua própria produção cultural.

Essas distorções levam a uma outra, também muito comum: a idéia de que se tem cultura, ou seja, o conhecimento é um benefício que pode ser dado, e o homem culto seria aquele que tem posse de conhecimentos, não se levando em conta o dinamismo da cultura e a sua dupla dimensão de construção e ruptura. Na verdade, a cultura tem duas perspectivas, a do ter e a do ser. Segundo Luís Milanesi, “há um processo contínuo na esfera cultural, tornando o ter e o ser uma unidade com duas faces: a segunda é a que leva à invenção do discurso e a ser sujeito da própria vida, e a primeira permite a alimentação contínua desse processo através da posse possível de todos os registros do discurso dos homens de todos os tempos”2.

2. Os diversos tipos de cultura A classificação dos tipos de cultura é difícil de ser estabelecida e com freqüência leva a distorções e mal-entendidos. Como não vivemos em uma sociedade homogênea, qualquer produção cultural está sujeita a avaliações que dependem da posição social do grupo no qual ela surge.

1 O contexto de onde foi retirada a citação se encontra no Capítulo 23, “Teorias progressistas”. pp. 214-215. 2 Luís Milanesi, A casa da invenção. p. 139.

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Por isso, quando contrapormos, por exemplo, “cultura de elite” e “cultura popular”, já estamos emitindo juízos de valor: a cultura de elite seria superior porque refinada, elaborada, ao passo que a cultura popular seria inferior por se tratar de expressão ingênua e não-intelectualizada.

Outra confusão está em se identificar cultura de elite (que na verdade é a cultura erudita) com produção da classe dominante. De maneira geral, isso se deve ao pressuposto de que a verdadeira cultura é a produzida pela elite. Quando se fala de conhecimento, despreza-se o saber popular para se valorizar apenas a ciência: ao se tratar da técnica, exalta-se a mais refinada tecnologia; ao se referir à arte contemporânea, pensa-se nas pinturas de Picasso; e, quando se volta a atenção para a arte popular, é para considerá-la de forma depreciativa, como arte menor ou produção exótica e objeto de curiosidade.

Apesar das dificuldades. propormos didaticamente a seguinte divisão: cultura erudita, cultura popular, cultura de massa e cultura popular individualizada. A cultura erudita

A cultura erudita é a produção elaborada, acadêmica, centrada no sistema educacional, sobretudo na universidade, também conhecida como cultura de elite, por ser produzida por uma minoria de intelectuais das mais diversas especialidades (escritores, artistas em geral, cientistas, tecnólogos).

Com a cultura erudita, são produzidas as obras-primas que revolucionam os diversos campos do saber e da ação, como as descobertas científicas, os novos modos de pensar, as técnicas revolucionárias, as grandes obras literárias ou artísticas em geral, enfim, produtos humanos que provocam “cortes” na maneira de pensar e agir e que, por isso, se tornam clássicos.

Esse tipo de produção cultural é erudito por exigir maior rigor na sua elaboração, sendo, por isso mesmo, uma produção elitizada, acessível a um público restrito (tanto na sua produção como na fruição). Afinal, supõe-se que a maioria não está interessada em física quântica, alta filosofia ou música clássica nem se encontra apta a compreender essa produção sem longo preparo para tal.

O que se pode criticar é um tipo de exclusão externa, que seleciona de antemão os privilegiados que terão acesso a essa produção cultural, quando na verdade a possibilidade de escolha deveria estar garantida a qualquer um, independentemente de suas posses. A cultura popular

O conceito de cultura popular é complexo, devido às razões já expostas. De maneira geral, consiste na cultura anônima produzida pelo homem do campo, das cidades do interior ou pela população suburbana das grandes cidades.

No sentido mais comum, a cultura popular é identificada ao folclore, que constitui o conjunto de lendas, contos, provérbios, práticas e concepções transmitidos oralmente pela tradição. O risco desse enfoque está em tomar o folclore como realidade pronta e acabada, quando na verdade toda cultura é dinâmica, estando em constante transformação. Aliás, a vitalidade da cultura popular permite absorver e reelaborar as inúmeras influências de outros costumes, como, por exemplo, as que resultam do contato do mundo rural com o urbano, ou do impacto da tecnologia e da cultura de massa.

Esse modo estático de ver o folclore é também perigoso por gerar comportamentos inadequados à apreciação dessa cultura. Alguns a ignoram ou desprezam como vulgar, não-original, monótona, repetitiva – inferior, em relação à cultura de elite –, e outros podem apreciá-la como manifestação do pitoresco e do exótico, o que resulta na sua apropriação para o “espetáculo”: veja-se o folclore para turismo, em que as práticas são adaptadas, “maquiadas”, estandardizadas e, assim, tornadas adequadas para consumo.

A tentativa de preservar e estimular a produção da cultura popular não é tarefa fácil. Até os bem-intencionados, que reconhecem os riscos da manipulação cultural em uma sociedade dividida e sujeita à ideologia, podem resvalar em um autoritarismo inconsciente. Recaem no populismo ao tentar tutelar a produção dita popular, desenvolvendo uma postura assistencialista e protetora, típica do intelectual “iluminado” que “sabe o que é melhor” para a população, o que de certa forma infantiliza o povo, ao qual ele atribui imaturidade e passividade, como se precisasse ser dirigido.

Por isso foi controvertida a ação de alguns grupos, sobretudo na década de 60 (ver dropes 2 e 3), que visavam a conscientização dos segmentos desfavorecidos da população.

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O filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) também reconhecia que a classe trabalhadora, da maneira como é obrigada a viver, não tem condições de elaborar sua própria visão de mundo, contraposta a ideologia dominante. Isso não significa que o homem comum não tenha um sistema de opiniões, mas, ao contrário, as pessoas ocupadas com as atividades do cotidiano possuem formas de pensar e agir que se manifestam de maneira fragmentada, confusa e, às vezes, até contraditória. A esse estágio do saber chamamos senso comum.

Cabe ao intelectual organizar esse saber, conferindo-lhe rigor lógico. A originalidade do pensamento de Gramsci está em reconhecer a necessidade que tem o povo de formar seus próprios intelectuais, a fim de elaborar a consciência de classe. Para o filósofo italiano, a classe trabalhadora necessita de intelectuais orgânicos, ou seja, aqueles que, oriundos do próprio povo, sejam capazes de elaborar de forma erudita o saber difuso do homem comum.

A cultura de massa

A cultura de massa resulta dos meios de comunicação de massa, ou mass media3. São considerados meios de comunicação de massa o cinema, o rádio, a televisão, o vídeo, a imprensa, as revistas de grande circulação, que atingem rapidamente um número enorme de pessoas pertencentes a todas as classes sociais e de diferente formação cultural.

Essa cultura, distinta da erudita e da popular, começa a surgir após a Revolução Industrial, quando a ascensão da burguesia torna mais complexa a vida urbana. Aparece, então, uma produção cultural que não é propriamente folclórica, mas produzida por grupos profissionais (como empresários de circo e de teatro popular; editores de publicações periódicas etc.).

A partir do século XIX o processo é intensificado com o aparecimento do jornal, no qual o romance-folhetim, precursor das atuais telenovelas, é publicado em episódios fragmentados. No século XX, com o desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação, acentua-se o ritmo das mudanças.

A grande alteração está no produtor cultural – que não é individual nem anônimo –, mas verdadeiras equipes formadas por inúmeros especialistas, o que lembra a fragmentação de trabalho típica da nossa sociedade.

Ao contrário da cultura popular, a cultura de massa é produzida “de cima para baixo”, impõe padrões e homogeneíza o gosto por meio do poder de difusão de seus produtos. Em linhas gerais, é também uma produção estandardizada, visando ao passatempo, ao divertimento e ao consumo.

Tais afirmações mereceriam alguns reparos, já que, se generalizadas, se tornariam preconceituosas e discriminadoras. Acha-se acesa ainda a polêmica em torno da natureza e das conseqüências da cultura de massa. Em um livro conhecido, Apocalípticos e integrados, o italiano Umberto Eco discute as duas tendências dos intelectuais diante desse fenômeno: os apocalípticos denunciam a cultura de massa como forma de alienação e massificação, enquanto os integrados, ao contrário, a vêem como um fenômeno contemporâneo, considerado a partir de sua novidade, não podendo ser avaliado pelos padrões próprios de outro tipo de produção intelectual.

Afinal, a cultura de massa é uma realidade que aí está e busca as mais diversas formas de expressão criativa. Torna-se inevitável que até a nossa maneira de perceber o mundo e de pensar se altere em contato com esses novos meios. Mesmo as outras formas de cultura são influenciadas por eles, independentemente da questão da manipulação. No campo da produção tecnológica, a cultura erudita desde há muito se acha fascinada pelos meios eletrônicos, e muitas pesquisas universitárias têm revertido no aperfeiçoamento desses equipamentos. Os artistas buscam nesses meios outras fontes de inspiração e novas formas de expressão (por exemplo, a vídeo-arte e a música eletrônica).

O imaginário popular é exacerbado por essas experiências, que enriquecem o seu repertório. E, mesmo que a difusão maciça de novos valores tenha provocado a desagregação de costumes arraigados, é marcante a assimilação criativa de novas imagens, sons e múltiplos acontecimentos.

Por outro lado, não há como negar o risco evidente da “pasteurização” da cultura quando a televisão, por exemplo, apresenta o espetáculo do carnaval ou da macumba como típico “folclore para turismo”, ao qual já nos referimos anteriormente.

3 Mass media: do inglês mass, “massa”, e do latim media, “meio”. Costuma-se pronunciar “mídia”, que é a forma americanizada de ler o latim.

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A cultura de massa também procura se apropriar da cultura erudita e, quando o faz, pode resultar no

kitsch. Este é um fenômeno típico da indústria cultural, quando se volta para a satisfação de um de-terminado segmento social que possui aspirações “superiores” ao nível em que se encontra, seja econômico ou intelectual. Como exemplos, a dona-de-casa de classe média compra no grande magazine a imitação da louça chinesa inacessível às suas posses, o leitor médio lê os grandes clássicos da literatura em versão condensada e adaptada, bem como o ouvinte de música popular se delicia com a música clássica em ritmo de dança de salão.

Os filósofos frankfurtianos são críticos severos da cultura de massa porque “os meios de comunicação de massa são o oposto da obra de pensamento, que é a obra cultural – ela leva a pensar, a ver, a refletir. As imagens publicitárias, televisivas e outras, em seu acúmulo acrítico, nos impedem de imaginar. Elas tudo convertem em entretenimento: guerras, genocídios, greves, cerimônias religiosas, catástrofes naturais e das cidades, obras de arte, obras de pensamento. (...) Cultura é pensamento e reflexão. Pensar é o contrário de obedecer. A indústria cultural cria um simulacro de participação na cultura quando, por exemplo, desfigura a Sinfonia no. 40 de Mozart em chorinho. Assim adulterada, não é Mozart, tampouco ritmo popular. Tanto a sinfonia quanto o samba vêem-se privados de sua força própria de bens culturais considerados em sua autonomia”4.

Controvérsias à parte, não há como negar que o grande perigo, no entanto, está no fato de que os meios de comunicação de massa pertencem a grupos muito fechados, que detêm o monopólio de sua exploração e, com isso, adquirem o poder de manipular a opinião pública nos assuntos de seu interesse, seja no campo do consumo ou da política, ou ainda de despolitizar, quando isso for conveniente.

É justamente a possibilidade dessa manipulação que exige maior cuidado quando se diz que os meios de comunicação estariam a serviço da democratização, na medida em que, ao atingir um grande número de pessoas em pouco tempo, promovem a difusão da informação. A cultura popular individualizada

Feita a exposição dos três tipos de cultura, a erudita, a popular e a de massa, é provável que o leitor esteja se perguntando onde encaixar algumas produções culturais como, por exemplo, a música de Caetano Veloso, a de Adoniram Barbosa, as peças de teatro de Guarnieri ou o teatro de revista.

Trata-se da cultura popular individualizada, que se caracteriza por ser produzida por escritores, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que não vivem dentro da universidade (e portanto não produzem cultura erudita), nem são típicos representantes da cultura popular (que se caracteriza pelo anonimato) nem da cultura de massa (que resulta do trabalho de equipe).

4 Olgária Matos. A Escola de Frankfurt, luzes e sombras do Iluminismo, São Paulo, Moderna. 1993. p. 71-72.

(Coleção Logos)

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O criador individual sofre a influência de todas essas expressões culturais e, “nessa luta, a obra é tanto mais rica e densa e duradoura quanto mais intensamente o criador participar da dialética que está vivendo a sua própria cultura, também ela dilacerada entre instâncias ‘altas’, ‘internacionalizantes’ e instâncias populares”3.

Evidentemente, não estão libertos das influências ideológicas, podendo ser cooptados pelo sistema ou sucumbir ao apelo do consumo fácil. Daí as contratações tais como a música dita “sertaneja”, os livros “esotéricos” , e assim por diante.

Não se quer com isso desmerecer a produção intermediária, assim chamada porque não chega a constituir a vanguarda da cultura. Ao contrário, ela tem sua importância, desde que esteja a serviço da expansão da sensibilidade subjetiva e não do seu embotamento e manipulação.

A esse respeito, o pedagogo francês Georges Snyders se refere às “alegrias intermediárias” proporcionadas pelas obras secundárias que, por não serem obras-primas, nem por isso devem ser descartadas, desde que constituam passos iniciais para o desenvolvimento da sensibilidade.

3. Educar para qual cultura?

As diversas manifestações culturais são expressões diferentes de uma sociedade pluralista, e não tem sentido tecer considerações a respeito da superioridade de uma sobre outra, o que leva à depreciação, quando a avaliação é feita segundo parâmetros válidos para outro tipo de cultura.

Portanto, cuidar da educação popular não é vulgarizar, “popularizar” a cultura erudita, tornando-a superficial e aguada, nem tampouco significa dirigir de forma paternalista a produção cultural popular. Com isso seria evitada a contratação, isto é, o produto resultante de imitação, típico de uma cultura envergonhada de si mesma.

Diante da ação compacta dos meios de comunicação de massa, o educador deve estar apto a utilizar os benefícios deles decorrentes e cuidar da instrumentalização adequada para que sejam evitados os seus efeitos massificantes.

O grande desafio está na popularização da cultura, ou seja, na abertura de oportunidades iguais, para que todos tenham acesso não só ao consumo (ativo, nunca passivo) da cultura, mas também à sua produção. Para tanto, é necessário o esforço conjunto da sociedade, que não se restrinja apenas ao espaço da escola (embora este seja importante). Nesses espaços, as atividades culturais devem ser realizadas não para as pessoas, mas com elas.

Luís Milanesi4 caracteriza um verdadeiro centro cultural como o resultado da conjugação de três verbos: informar, discutir e criar.

Pela tradição da cultura como doação, o que mais se procura oferecer é a informação; por isso,

sempre se pensa primeiro na biblioteca tradicional, ou até numa discoteca ou videoteca. Quando se trata propriamente da escola, pensa-se no professor dando uma aula tradicional de transmissão de conteúdo. Nada contra esse momento. Aliás, é relevante o processo da herança cultural, e a escola não pode se descuidar da informação sob pretexto algum. O que destacamos aqui é a necessidade de unir a informação a outros processos que evitem a erudição estéril.

3 Alfredo Bosi. “Cultura brasileira”, in Dermeval Saviani e outros, Filosofia da educação brasileira, p. 174. 4 A casa da invenção, p. 141 e seguinte.

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O segundo passo é a discussão, como oportunidade de reflexão e crítica, por meio de seminários, ciclos de debates, a partir de temas indicados pelo momento, “unindo o cotidiano da cidade e de seus habitantes ao universo de informação, resultando daí os conflitos necessários e o salto qualitativo”. A discussão dá a necessária dinâmica, que leva à dúvida e, conseqüentemente, remete a novas buscas de informação. Sem a discussão, “as pessoas estarão inexoravelmente submersas nas respostas prontas, previamente dadas pelo contexto social”.

Os dois primeiros verbos (informar e discutir) só se completam com o terceiro: criar. Toda ação cultural que se preza tem de oferecer oficinas de criatividade, laboratórios de invenção, a fim de romper com a simples reprodução da cultura, apesar de todos os riscos ideológicos do processo (ver leitura complementar 2).

A ação cultural, entendida como obra cultural, toma-se um trabalho pelo qual a situação vivida adquire um novo sentido e, portanto, é transformada. Mudando o verbo freqüentemente usado para identificar os “cultos”, seria bom lembrar que o importante não é ter cultura, mas ser capaz de fazer cultura.

O que vale, afinal, é conceber a cultura como manifestação plural, um processo dinâmico, e a educação como o momento em que herança e renovação se completam, a fim de criar o espaço possível de exercício da liberdade.

Dropes

1

A cultura – palavra e conceito – é de origem romana. A palavra “cultura” origina-se de colere – cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar – e relaciona-se essencialmente com o trato do homem com a natureza, no sentido do tamanho e da preservação da natureza até que ela se torne adequada à habitação humana. Como tal, a palavra indica uma atitude de carinhoso cuidado e se coloca em aguda oposição a todo esforço de sujeitar a natureza à dominação do homem. Em decorrência, não se aplica apenas ao tamanho do solo, mas pode designar, outrossim, o “culto” aos deuses, o cuidado com aquilo que lhes pertence. Creio ter sido Cícero quem primeiro usou a palavra para questões do espírito e da alma. Ele fala de excolere animum, cultivar o espírito, e de cultura animi no mesmo sentido em que falamos ainda hoje de um espírito cultivado, só que não mais estamos cônscios do pleno conteúdo metafórico de tal emprego. (Hannah Arendt)

2

“Minha” escola quer colocar em primeiro plano as obras-primas, mas não é possível que os

alunos passem de obra-prima em obra-prima, a gente não se alimenta apenas de suculência. A escola consome em larga escala obras que chamarei de secundárias (...)

“Minha” escola deseja que elas sejam uma preparação para o que há de mais completo, sem se confundir com ele. Elas abrem caminho para (...) trazendo alegrias mais fáceis de serem atingidas, constituindo transições: uma sensibilidade mais próxima da nossa, experiências progressivas e menos intimidadoras. (...)

Não se pode tampouco instalar os alunos nas alegrias intermediárias como se não houvesse nada além disso. (...) O maior risco das alegrias intermediárias, e o mais freqüente é querer se realizar sem apelar para a obra-prima e até indo contra a obra-prima. (Georges Snyders)

Leituras complementares 1. Educação e folclore

O folclore possui algum valor educativo? As crianças aprendem alguma coisa através dos folguedos que praticam, das cantigas de acalanto, das adivinhas ou dos contos populares? Essas perguntas têm sido feitas de várias maneiras. Houve época em que se supunha ser o folclore uma “relíquia” do

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passado longínquo – algo tosco mas ingênuo, típico saber do “homem rústico”. Admitia-se que ele devia ser preservado não porque fosse essencial, porém porque de sua preservação dependeria a veneração do passado, dos costumes e das tradições do “povo”.

Em nossos dias, a resposta que se dá à mesma pergunta é diferente. Primeiro, os folcloristas evidenciaram a seu modo o valor educativo do folclore. Quem leia Amadeu Amaral, por exemplo, constata como ele percebeu com finura o que se poderia designar como as conexões psicossociais do folclore. Sem dúvida. Há diversão atrás das atividades folclóricas: mas há também uma mentalidade que se mantém, que se revigora e que orienta o comportamento ou as atitudes do homem. A criança ou o adulto, por seu intermédio, não só participam de um sistema de idéias, sentimentos e valores. Pensam e agem em função dele, quando as circunstâncias o exigem.

Essa constatação foi confirmada, posteriormente, pelos estudiosos que viram o folclore de uma perspectiva psicológica, etnológica ou sociológica. Verificou-se que a perpetuação não representa mero fenômeno de inércia cultural. Se as crianças continuam a “brincar de roda”, esse folguedo preserva para elas toda a significação e a importância psicossocial que teve para as crianças do passado. Não se trata de uma “sobrevivência”, literalmente falando; mas de continuidade sociocultural. O contexto histórico-social se alterou, é verdade; contudo, preservaram-se condições que asseguram vitalidade e influência dinâmica aos elementos folclóricos. Dai se poder evidenciar seu valor real em dois planos distintos. Primeiro, no das relações humanas. A atualização de um jogo cênico ou de um brinquedo de roda exige todo um suporte estrutural, fornecido pelas ações e atividades das crianças. Há tarefas prescritas a executar. Para realizá-las segundo os modelos consagrados, as crianças precisam organizar coletivamente o seu comportamento. Segundo, cada um dos jogos ou dos brinquedos envolve composições tradicionais e gestos convencionais. Essas composições ou esses gestos conservam algo mais do que “fórmulas mortas”: mantêm representações da vida, do homem, dos sentimentos e dos valores, pondo a criança em contato com um mundo simbólico e um clima moral que existe e se perpetua através do folclore.

Portanto, os cientistas sociais confirmam as conclusões dos folcloristas, dando-lhes nova base empírica e teórica. O folclore possui um valor educativo. Pelo jogo e pela recreação, a criança se prepara para a vida, amadurece para tornar-se um adulto em seu meio social. Nos dois planos mencionados, são variáveis as influências socializadoras do folclore, como se poderia descrevê-las positivamente. De um lado, a criança aprende a agir como ser social”: a cooperar e a competir com seus iguais, a se submeter e a valorizar as regras sociais existentes na herança cultural, a importância da liderança e da identificação com centros de interesses suprapessoais etc. De outro lado, introjeta em sua pessoa técnicas, conhecimentos e valores que se acham objetivados culturalmente. As composições folclóricas tratam de amor, de obrigações de pais e filhos, de namoro e casamento, de atividades profissionais, da lealdade, do significado do bem ou do mal etc. Quase que insensivelmente, a criança assimila esses elementos culturais, introduzindo-os em seu horizonte cultural e passando a ver as coisas muitas vezes através deles. Em outras palavras, pois, as influências socializadoras do folclore, nesses dois planos, se dão tanto formalmente quanto por meio do conteúdo dos processos sociais. (Florestan Fernandes, O folclore em questão, São Paulo, Hucitec, 1978, p. 61-62.) 2. [Os três verbos da ação cultural]

O terceiro verbo – criar – é o que dá sentido aos dois outros (informar e discutir). A criação permanente é o objetivo de um centro de cultura. Ele deve ser o gerador contínuo de novos discursos e propostas. Ao lado dos acervos e das salas de reuniões e auditórios deverão estar os laboratórios de invenção, as oficinas de criatividade, espaços essenciais. Disseminar e discutir o conhecimento em seqüência permanente, que leva as pessoas a desvelar as aparências, desmontar os engodos, fazer a sua própria cabeça, para se chegar a outra etapa de um circuito perpétuo, não esgota a ação cultural.

Além da renovação constante dos discursos registrados (livros novos, jornais do dia, filmes...), é necessário que as pessoas, articulando o seu próprio discurso, possam expressá-lo através da escrita, da fala, do gesto, das formas, dos sons e, se possível, registrá-lo. Romper com a rotina, com a reprodução permanente, é essencial para as transformações necessárias ao meio onde se vive. Apesar das diferenças de paisagem, física e social, por todo o país, em essência, circulam as mesmas idéias,

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conversa-se sobre os mesmos assuntos superpostos à expressão local. A criatividade pode ocorrer de forma espontânea, rompendo a inércia de maneira irresistível. Mas isso não é, sistematicamente, o fato procurado como motor das mudanças necessárias; é uma casualidade. A invenção é conseqüência de paciente trabalho: da organização dos estímulos, da eliminação dos obstáculos à liberdade de expressão, do confronto que não inibe, mas anima.

(Luís Milanesi, A casa da invenção, p. 149-150.)

Atividades Questões 1. Qual é a diferença entre os conceitos de cultura, conforme foram abordados nos Textos 1 e 4? 2. Dê exemplos de obras dos quatro tipos de cultura (erudita, popular, de massa e popular

individualizada) as quais você tem ou teve acesso. 3. Com freqüência, alunos (e seus professores) confundem “trabalho de pesquisa” com cópia de

verbetes de enciclopédia. Critique esse procedimento, fazendo referência aos três verbos citados por Luis Milanesi.

4. Quais são as polêmicas em torno da cultura de massa? Como você se posiciona a respeito delas?

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TEXTO 05 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

Conceito de educação

Sempre é difícil nascer. A ave tem que sofrer para sair do ovo, isso você sabe. Mas volte o olhar para trás e pergunte a si mesmo se foi de fato tão penoso o caminho. Difícil apenas? Não terá sido belo também?

(Hermann Hesse) 1. Recapitulando

Vimos nos capítulos anteriores que o homem faz cultura por meio do seu trabalho, com o qual transforma a natureza e a si mesmo. E que o aperfeiçoamento de suas atividades só é possível me-diante a educação, fator importantíssimo para a humanização e a socialização.

Nas sociedades primitivas a educação se acha difusa, integrada ao próprio funcionamento da sociedade como tal, de modo que todos educam a todos. À medida que os agrupamentos humanos se tornam mais complexos, surgem organizações especificamente encarregadas da transmissão da herança cultural, como a escola (se bem que em graus de organização variáveis, conforme as necessidades). No entanto, a educação formalizada não substitui totalmente a educação informal, que permeia o tempo todo as relações entre os homens.

A educação não é, porém, a simples transmissão da herança dos antepassados, mas o processo pelo qual também se torna possível a gestação do novo e a ruptura com o velho. Evidentemente, isso ocorre de maneira variável, conforme sejam as sociedades estáveis ou dinâmicas. As comunidades primitivas resistem à mudança, devido ao caráter divino de suas crenças; o mesmo acontecia nas antigas civilizações do Egito e do Oriente, que eram tradicionalistas. Já nas sociedades urbanas contemporâneas a mobilidade é muito maior. 2. O ato de educar

Para o professor J. Carlos Libâneo, “educar (em latim, educare) é conduzir de um estado a outro, é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação. O ato pedagógico pode, então, ser definido como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto no nível do intrapessoal como no nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tornem elementos ativos desta própria ação exercida. Presume-se, ai, a interligação no ato pedagógico de três componentes: um agente (alguém, um grupo, um meio social etc.), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, automatismos, habilidades etc.) e um educando (aluno, grupos de alunos, uma geração etc.)”1

Diz ainda o professor Libâneo que o especificamente pedagógico está na imbricação entre a mensagem e o educando, propiciada pelo agente. Como instância mediadora, a ação pedagógica torna possível a relação de reciprocidade entre indivíduo e sociedade. Conclui-se, então, que a educação não pode ser compreendida fora de um contexto histórico-social concreto, sendo a prática social o ponto de partida e o ponto de chegada da ação pedagógica.

No início do processo, o educando tem uma experiência social confusa e fragmentada, que deve ser levada a um estádio de organização. Nesse sentido, o professor Dermeval Saviani define educação como “um processo que se caracteriza por uma atividade mediadora no seio da prática social global”2.

1 Democratização da escola pública p.97. 2 Educação: do senso comum à consciência filosófica, p. 120.

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A fim de não confundir conceitos, convém estabelecer algumas nuança entre educação, ensino e doutrinação.

Educação é um conceito genérico, mais amplo, que supõe o processo de desenvolvimento integral do homem, isto é, de sua capacidade física, intelectual e moral, visando não só a formação de habilidades, mas também do caráter e da personalidade social. O ensino consiste na transmissão de conhecimentos, enquanto a doutrinação é uma pseudo-educação que não respeita a liberdade do educando, impondo-lhe conhecimentos e valores. Nesse processo, todos são submetidos a uma só maneira de pensar e agir, destruindo-se o pensamento divergente e mantendo-se a tutela e a hierarquia.

Ao contrário da doutrinação, a verdadeira educação tende a dissolver a assimetria entre educador e educando, pois, se há inicialmente uma desigualdade, esta deve desaparecer à medida que se torna eficaz a ação do agente da educação. O bom educador é, portanto, aquele que vai morrendo durante o processo...

Quanto aos dois primeiros conceitos, educação e ensino, não há como separar nitidamente esses dois pólos que se completam. Como se poderia educar alguém sem informá-lo sobre o mundo em que vive? É a partir da consciência de sua própria experiência e da experiência da humanidade que o homem tem condições de se formar como um ser moral e político. Da mesma maneira, toda informação, mesmo que fornecida sem a aparente intenção de formação, ao ser assimilada pelo educando, interfere na sua concepção de mundo. Com freqüência, a informação pretensamente neutra está, na verdade, carregada de valores. 3. Fins da educação

Pelo que vimos até agora, parece que a práxis educacional, sendo intencional, será mais coerente e eficaz se souber explicitar de antemão os fins a serem atingidos no processo.

Retomando a história, vemos que a Grécia dos tempos homéricos preparava o guerreiro; na época clássica, Atenas formava o cidadão e Esparta era uma cidade que privilegiava a formação militar. Na Idade Média, os valores terrenos eram submetidos aos divinos, considerados superiores, e assim por diante.

Seguindo esse raciocínio, sem dúvida teríamos muita dificuldade em determinar com segurança quais os fins da educação no mundo contemporâneo: que valores se encontram subjacentes ao processo? Se tal elucidação é relativamente simples quando é feita a posteriori, mostra-se problemática quando queremos definir os fins aqui e agora.

Em um primeiro momento, é inadequada a procura de fins tão gerais, válidos em todo tempo e lugar. Já vimos no Texto 3 que a procura de um ideal de homem universal, válido para todas as épocas, favorece a abordagem ideológica do problema.

Portanto, é preciso analisar os fins para uma determinada sociedade e, ainda assim, estar atento para os conflitos a ela inerentes: onde existem classes com interesses divergentes, os fins não podem ser abstratamente considerados. Da mesma forma, não há como analisar os fins da educação em um país desenvolvido, aplicando as conclusões aos países em desenvolvimento.

Há ainda outro problema. A partir de considerações feitas por Dewey, para quem o processo educativo é o seu próprio fim (o fim não é prévio, nem último, mas deve ser interior à ação), o professor argentino G.Cirigliano tece algumas considerações interessantes (ver também dropes 1): “No viver diário, vida, atividade e fim se confundem. Os pais criam os seus filhos para torná-los adultos’? Ou a sua criação é parte da vida deles e dos seus próprios filhos?” Isso significa que a educação não deve estar separada da vida nem é preparação para a vida, mas é a vida mesma.

Não sendo os fins exteriores à ação, não quer dizer que a ação se faça sem a clarificação dos fins, e sim que esses devem ser compreendidos como objetivos que se colocam a partir da valoração por meio da qual o homem se esforça para superar a situação vivida. Por isso as necessidades humanas devem ser analisadas concretamente, e as prioridades serão diferentes se nos propusermos a educar em uma favela ou em um bairro de elite.

Portanto, os fins se baseiam em valores provisórios que se alteram conforme alcançamos os objetivos imediatos propostos e também enquanto muda a realidade vivida.

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4. Educação e política

A educação não pode ser compreendida à margem da história, mas apenas no contexto em que os homens estabelecem entre si as relações de produção da sua própria existência. Dessa forma, é impossível separar a educação da questão do poder: a educação não é um processo neutro, mas se acha comprometida com a economia e a política de seu tempo.

Já analisamos essas questões no Texto 3, no qual vimos que a ideologia consiste na imposição dos valores de uma classe (portanto seus valores particulares) a outra, como se estes fossem valores universais. Assim, para o colonizador português, o “bom índio” era o índio submisso, disposto a trabalhar de acordo com o padrão europeu e a se tornar cristão, abandonando suas crenças, consideradas atrasadas.

Por isso, a educação não pode ser considerada apenas um simples veículo transmissor, mas também um instrumento de crítica dos valores herdados e dos novos valores que estão sendo propostos. A educação abre espaço para que seja possível a reflexão crítica da cultura.

À guisa de conclusão, convém lembrar a importância da formação do educador, para que a superação das contradições seja possível com maior grau de intencionalidade e compreensão dos fins da educação. Nos tempos que vivemos hoje, algumas tarefas urgentes se impõem. A principal delas é que tenhamos força suficiente para tornar nossa sociedade mais justa e menos seletiva.

Tornar a educação verdadeiramente universal, formativa, de modo que socialize a cultura herdada, dando a todos os instrumentos de crítica dessa mesma cultura, só será possível pelo desenvolvimento da capacidade de trabalho intelectual e manual integrados.

A educação deve instrumentalizar o homem como um ser capaz de agir sobre o mundo e, ao mesmo tempo, compreender a ação exercida. A escola não é a transmissora de um saber acabado e definitivo, não devendo separar teoria e prática, educação e vida.

A escola ideal não separa cultura, trabalho e educação.

Dropes

1

Que se procura quando se joga futebol? Ganhar a partida ou jogar futebol? Os que perderam desperdiçaram o seu fim? (...) Quando vamos ao cinema, qual é o fim? E, por acaso, só esperar que termine o filme? Precisamente esta idéia do fim exterior ao que se faz foi extremamente prejudicial à educação. O fim exterior e remoto deu, sempre, muita pressa em terminar. Na aula se deseja terminar a hora de aula, depois terminar o trimestre, terminar o ano, terminar o curso. A única meta é terminar e assim se desperdiça a vida. E como se vivêssemos só para morrer. O fim da vida é ela mesma, não o seu término ou terminação alheia a ela. O fim da vida é o que fazemos com ela e nela. (G. Cirigliano)

2

Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade

em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.

Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia – Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível. (Roland Barthes)

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Atividades Questões 1. O ato pedagógico desenvolve um processo de mediação. Explique isso. 2. Por que o adestramento de animais não pode ser considerado educação? Complete, explicando que

também entre os homens muitas vezes são aplicadas – inadequadamente – técnicas semelhantes. 3. Por que não é possível definir de uma vez por todas quais são os objetivos de toda educação? Análise de texto Com base no texto de Roland Barthes (dropes 2), responda às questões de 4 a 7. 4. Quais são os três níveis do aprender a que se refere Barthes? 5. Explique em que o pesquisar é superior ao ensinar o que se sabe. 6. O que o autor quer dizer a respeito da importância do desaprender? Em que sentido ele se refere ao

esquecimento como sendo a força de toda vida viva? 7. Por que ele considera importante recuperar a etimologia da palavra saber? A partir desse aspecto,

faça uma critica à escola.

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TEXTO 06 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

PRESSUPOSTOS POLÍTICOS DA EDUCAÇÃO

A criança educa-se, cultiva-se, humaniza-se, socializa-se (todas essas expressões podem ser consideradas como equivalentes), integrando-se num mundo social adulto já organizado segundo certas estruturas econômicas, sociais e políticas.

(Bernard Charlot)

Tendência liberal 1. Introdução

O caminho percorrido até aqui foi suficiente para concluirmos que a escola não é uma ilha separada do contexto histórico em que se insere. Ao contrário, ela está comprometida de forma irreversível com o ambiente social, econômico e político.

Vimos, no Texto 3, que não existe educação neutra, porque a instituição escolar se compromete no jogo de forças de poder que caracteriza a política de cada época. Ninguém se mantém apolítico, já que essa postura significa, em última análise, aceitar os valores vigentes, ou seja, assumir a posição política conservadora. Daí a importância de se ter clareza a respeito das tendências políticas de toda prática, inclusive a educativa.

Para encerrar esta Unidade, que trata das relações entre educação e filosofia, depois de ter analisado os pressupostos antropológicos, axiológicos e epistemológicos, passaremos agora a considerar os pressupostos políticos subjacentes à práxis educativa.

Em função de vivermos numa sociedade capitalista, começaremos abordando a tendência liberal para, em seguida, examinarmos a crítica feita à estrutura burguesa pelas diversas tendências socialistas.

Escola liberal não significa, como geralmente se pensa, uma escola “aberta”, “avançada”, mas refere-se à educação proposta pelo liberalismo, teoria política e econômica do capitalismo burguês. Na verdade, deveríamos falar em liberalismos, tantas foram as modificações que se fizeram necessárias ao longo desses séculos, a fim de enfrentar as dificuldades encontradas.

A burguesia surge ainda durante a Idade Média, a partir dos segmentos dos comerciantes e artesãos, constituindo um elemento de desestruturação da antiga ordem feudal ao desenvolver paulatinamente o modo de produção capitalista.

O capitalismo se caracteriza pela abolição da servidão, preferindo a mão-de-obra assalariada que, a partir do século XVII, se aglomera nas fábricas das cidades e faz deslocar o eixo da economia do campo para a cidade. Defende a economia de mercado, segundo a qual existe um equilíbrio natural decorrente da lei da oferta e da procura, o que reduziria a necessidade de intervenção do Estado. Essa teoria do Estado mínimo resulta do esforço empreendido pela burguesia para se livrar do controle exercido pelos reis absolutistas na gestão dos negócios.

Outras características da economia de mercado são a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a garantia de funcionamento da economia a partir do princípio do lucro e da livre iniciativa. A estimulação do comércio e da indústria justifica o interesse pelo desenvolvimento científico e tecnológico, tão bem representado pela Revolução Industrial do século XVIII.

A exigência de não-intervenção do Estado se estende também ao poder da Igreja, muito forte durante a Idade Média. Em contraposição, o liberalismo burguês defende a existência do Estado laico, não identificado com religião alguma, da mesma forma que valoriza o ideal de tolerância, pelo qual não deve interferir nas crenças pessoais.

PARTE I

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As mudanças econômicas preparam o caminho para que a burguesia se torne a classe hegemônica. Isso ocorre quando, a partir das chamadas revoluções burguesas a Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688) e a Revolução Francesa (1789) –, ela assume o poder político.

Os principais teóricos do liberalismo econômico foram Adam Smith e David Ricardo, no século XVII. No período que vai do século XVII ao XIX, o liberalismo político teve como representantes Locke, Montesquieu, Kant, Humboldt, Stuart Mill e Tocqueville. 3. Um novo homem

Um novo modo de pensar surge das mudanças levadas a efeito pelo liberalismo nos campos econômico, político e social.

Esses novos princípios ficam claros na filosofia do inglês John Locke (1632-1704), que, à semelhança de outros filósofos de seu tempo, desenvolve uma teoria contratualista para explicar a origem do poder de forma racional e laica (não religiosa). O poder não mais se justificará pela intervenção divina – como no caso do direito divino dos reis, típico do absolutismo passando a ser legitimado pelo contrato social: é o próprio homem que dá o consentimento para a instauração do poder, reafirmando assim o valor do indivíduo e do cidadão.

Locke parte da análise dos “direitos naturais do indivíduo” (a vida, a liberdade e a propriedade), para cuja garantia estabelece um pacto que dá origem ao Estado. Portanto, o governo existe a fim de garantir a defesa dos direitos individuais naturais e dar segurança para que cada um desenvolva seus talentos e gerencie seus negócios.

A concepção de mundo subjacente à teoria liberal valoriza1: • o individualismo – a sociedade civil é formada pela aglutinação de indivíduos inicialmente separados

no “estado de natureza”; quando se reúnem, o fazem para garantir a consecução de seus interesses individuais. Ainda mais – o sucesso ou não de cada um depende de seu talento e resulta da competição entre os membros da sociedade;

• a liberdade vista como liberdade individual – “a liberdade de cada um vai até onde começa a liberdade do outro” é uma afirmação típica da concepção liberal individualizada. Em outras palavras, espera-se que o sucesso de cada indivíduo seja garantia para o crescimento da sociedade como um todo;

• a propriedade – no sentido amplo de que todo indivíduo é proprietário de sua vida, de seu corpo, de seu trabalho e, no sentido estrito, de seus bens e patrimônio. Encontra-se no liberalismo uma característica que Macpherson chama de “individualismo possessivo: a essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício de posse”;

• a igualdade, entendida como igualdade civil – não se admite a servidão, como na Idade Média, nem se suportam os privilégios da nobreza, que tanto irritavam os burgueses; todos seriam iguais perante a lei e a todos seria oferecida igualdade de oportunidades;

• a segurança – baseada em uma nova concepção de justiça, centrada na valorização da lei, em detrimento do arbítrio. Essa segurança era fundamental para a garantia da proteção e da conservação da pessoa, dos direitos e das propriedades.

No entanto, à medida que a ideologia burguesa se fortalece, esses princípios passam a se configurar

como valores formais e não de fato. Não se estendem à sociedade como um todo, mas determinam a divisão em classes, separando aqueles que têm a posse dos meios de produção (os capitalistas) daqueles que só possuem a força de trabalho (os proletários).

Embora aspirasse pela democracia, o liberalismo desde o início se apresenta elitista, porque a igualdade defendida é de natureza abstrata, geral e puramente formal, não excluindo a convicção de que as pessoas são diferentes nos talentos, o que justificaria o sucesso desigual entre os membros da sociedade.

Dessa forma, embora todos fossem livres e proprietários e igualmente pertencentes à sociedade civil, apenas os proprietários de fortuna teriam capacidade (conhecimento e racionalidade) para decidir 1 Consultar Luiz Antônio Cunha. Educação e desenvolvimento no Brasil, pp. 28 ss.

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os destinos da comunidade, ou seja, o liberalismo político, no seu inicio, defende o voto censitário, o que demonstra que só os ricos são considerados plenamente cidadãos.

A importância dada à propriedade gera um eixo determinante pelo qual a política é condicionada pela economia. Conseqüentemente, o Estado se coloca a serviço da classe hegemônica, protegendo-a por meio de uma legislação específica, que salvaguarda os interesses dos proprietários em uma sociedade mercantil. 4. A educação liberal

De maneira geral podemos dizer que a educação liberal reflete os ideais do homem burguês, anteriormente analisados, enfatizando o individualismo e o espírito de liberdade. A valorização do homem e da sua capacidade de autonomia e de conhecimento racional foram expressos nos ideais iluministas, reveladores de um otimismo em relação à possibilidade da razão humana de transformar o mundo.

Aqui nos interessa realçar que, em face da existência de um antagonismo de interesses no seio da sociedade liberal, também a educação se torna um bem reservado à elite. Mesmo no final do século XIX, quando o proletariado, amparado pelos movimentos socialistas, começa a exercer maior pressão e a conquistar benefícios, tais como o sufrágio universal e a expansão da rede escolar, a escolarização permanece como um privilégio de classe.

A escola não-democrática tem persistido na sociedade liberal devido a inúmeros fatores, mas convém não esquecer que uma das funções principais da escola liberal costuma ser a legitimação da ordem econômica e social.

Dessa forma, quando no século XIX o liberalismo clássico, fundado na livre concorrência, entra em crise, surge o neocapitalismo, baseado no capitalismo monopolista, que supõe a retomada do Estado intervencionista. Acentuam-se as exigências, entre outras, de benefícios sociais tais como a escola nacional leiga e gratuita, oferecida pelo Estado.

No entanto, a ampliação da rede escolar não significou a equalização de oportunidades. Porque, à medida que o desenvolvimento do comércio e da indústria exige maior escolarização, as crianças proletárias freqüentam escolas que em tudo diferem daquelas reservadas às classes dominantes. Na escola dualista, os jovens de acordo com a origem social são encaminhados para a formação global, para a estrita profissionalização técnica ou, ainda, para a simples iniciação no ler, escrever e contar.

É bem verdade que uma vertente do pensamento liberal – representada desde o século XVII por Comênio, passando por Diderot e Condorcet, no século XVIII, e culminando, no século XX, com Dewey – preocupou-se com a questão da reconstrução social, com os fins sociais da educação, na tentativa de superar a tendência individualista da educação burguesa e orientar-se numa linha de maior democratização.

Esses objetivos darão corpo aos ideais da escola nova, uma tendência modernizadora da educação liberal que se coloca em oposição a certos vícios da escola tradicional. No entanto, como veremos nos próximos capítulos, a função equalizadora da escola se mostrou ilusória, na medida em que não atingiu os fins de maior mobilidade social.

Dropes

1

Uma educação perfeita é para mim simbolizada por uma árvore plantada perto de águas

fertilizantes. Uma pequena semente que contém o germe da árvore, sua forma e suas propriedades é colocada no solo. A árvore inteira é uma cadeia ininterrupta de partes orgânicas, cujo plano existia na semente e na raiz. O homem é como a árvore. Na criança recém-nascida estão ocultas as faculdades que lhe hão de desdobrar-se durante a vida: os órgãos do seu ser gradualmente se formam, em uníssono, e constroem a humanidade à imagem de Deus. (Pestalozzi)

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2

A educação, mais do que qualquer outro instrumento de origem humana, é a grande igualadora das condições entre os homens – o eixo de equilíbrio da maquinaria social (...). Dá a cada homem a independência e os meios de resistir ao egoísmo dos outros homens. Faz mais do que desarmar os pobres de sua hostilidade para com os ricos: impede-os de ser pobres. (Horace Mann)

Leitura complementar [A luta dentro da escola]

As escolas constituem um campo de conflito porque têm o duplo papel de preparar trabalhadores e cidadãos. O preparo que a cidadania exige numa sociedade democrática, baseada em igualdade de oportunidades e em direitos humanos, é muitas vezes incompatível com o preparo que requer o desempenho em serviço num sistema empresarial de trabalho. Por um lado, as escolas devem preparar os cidadãos para conhecer seus direitos legais, bem como sua obrigação de exercer esses direitos por meio da participação política. Por outro lado, as escolas devem preparar os trabalhadores com as qualificações e as características de personalidade que lhes possibilitem atuar num regime de trabalho autoritário. Isso exige a negação daqueles mesmos direitos políticos que favorecem os bons cidadãos.

O fato de se atribuir ao sistema educacional essas duas responsabilidades cria, dentro dele, as sementes do conflito e da contradição. A luta subseqüente, entre os defensores dos dois diferentes princípios, pelos respectivos objetivos e ações, contribui para dar forma à escola que, necessariamente, atenderá de maneira imperfeita às exigências de seus dois senhores.

No correr do tempo, as tensões entre essas duas dinâmicas têm-se situado dentro do contexto do conflito social mais amplo. As escolas fazem parte de um Estado ao mesmo tempo democrático e capitalista, e essa dicotomia, por si só, dá origem a uma importante luta. Como as escolas se situam dentro do Estado, elas refletem essa luta. Contudo, isso não significa que as influências das duas forças opostas estejam sempre em equilíbrio. Ao contrário, em cada período histórico há uma tendência a que uma dessas dinâmicas tenha primazia sobre a outra. Isso pode estimular uma nova etapa da luta, em que a dinâmica em oposição adquire a primazia, num ciclo permanente e periódico.

As escolas são instituições conservadoras. Na ausência de pressões externas pela mudança, elas tendem a preservar as relações sociais existentes. Mas as pressões externas em favor da mudança sempre interferem nas escolas, até mesmo sob a forma de preferências populares. Nos períodos históricos em que os movimentos sociais são fracos e a ideologia empresarial é forte, as escolas tendem a fortalecer sua função de reproduzir trabalhadores para as relações do local de trabalho capitalista e para a divisão desigual do trabalho. Quando aparecem movimentos sociais para contestar essas relações, as escolas se deslocam em outro sentido, para igualar as oportunidades e ampliar os direitos humanos.

(...) Sem dúvida nenhuma, a mensagem mais importante deste nosso estudo é a de que as lutas democráticas são importantes para a consecução dos tipos de escola e de economia que atendam às necessidades mais amplas de nossa sociedade e cidadania: (...) é a tomada de posição pelos movimentos sociais e pelas forças democráticas que estabelece limites à opressão e aumenta os custos da batalha para o outro lado. (Martin Carnoy e Henry M. Levin, Escola e trabalho no Estado

capitalista, p. 281-282 e 301.)

Atividades Questões 1. Por que não podemos dizer que a educação é ‘neutra’ politicamente? 2. Quais são as principais características do liberalismo econômico? E do liberalismo político? 3. Sob que aspectos o individualismo pode representar bem uma característica da pedagogia liberal?

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4. Por que, embora se dizendo democrático, o liberalismo é de fato elitista? Análise de texto Baseando-se no texto complementar, responda às questões de 5 e 6. 5. Por que, para os autores, a incumbência de formar trabalhadores e cidadãos revela uma

contradição intrínseca? 6. Em que sentido podemos dizer que no sistema capitalista predomina o regime de trabalho

autoritário? Dê exemplos de características de personalidade necessárias para se atuar nesse regime.

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Tendência socialista 1. As idéias socialistas

O liberalismo se configurou desde sua origem como a teoria política e econômica da burguesia, em oposição aos privilégios da nobreza. No entanto, os benefícios conquistados pelas revoluções burguesas não foram distribuídos com igualdade na sociedade, que se manteve dividida entre proprietários e não-proprietários.

No século XIX, o proletariado se encontra relegado a uma situação de penúria e exploração. São conhecidas as exigências de que crianças, homens e mulheres trabalhem em condições precárias de higiene, numa jornada de 14 a 16 horas, recebendo ínfima remuneração.

Para fazer frente ao poder da burguesia, o proletariado precisaria tomar consciência dessa situação, buscando a expressão de sua própria ideologia. A produção teórica dos socialistas Utópicos Proudhon, Fourier, Saint-Sirnon e Owen e o socialismo científico de Marx e Engels foram importantes no sentido de conscientizar o proletariado, promovendo sua aglutinação em movimentos efetivos de contestação.

Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), quando concebem sua utopia, aspiram por uma classe operária revolucionária que seria capaz de destruir o Estado burguês e de criar uma sociedade pós-mercantil (que rejeita o capital e o mercado) a partir da supressão da propriedade privada dos meios de produção.

Criticam a ideologia burguesa por ser individualista e idealista. Em oposição às teses liberais do contrato social, não concebem o homem “em estado de natureza”, considerando que o ser do homem é construído nas relações de trabalho e, como tal, ele é antes de tudo um ser social.

Isso significa que, num primeiro momento, a subjetividade resulta das forças sociais que agem sobre o indivíduo, de modo que seus desejos, aspirações, valores e idéias são determinados por aquelas forças. Segundo o marxismo, não é possível existir um Robinson Crusoé desenvolvendo-se, solitariamente, à margem da sociedade.

Compreende-se assim a crítica feita por Marx ao idealismo burguês: não são as idéias que movem o mundo, mas as idéias (formas de pensar, valores) é que são determinadas pelas condições materiais da existência humana.

Segundo o materialismo marxista, então, as relações do homem com a natureza no esforço de produzir a própria existência e as relações dos homens entre si (proprietários e não-proprietários) explicam formas de pensar como a moral, o direito, a filosofia, a ciência, a educação, e assim por diante.

Dessa forma, a educação (e outras expressões da superestrutura), se encontra, também sob o ponto de vista do materialismo marxista, na dependência das forças econômicas vigentes na sociedade. Por isso seria ilusório pensar que podemos mudar as estruturas sociais por meio da educação. O homem novo só seria possível após a revolução social e política, ou seja, pela implantação de uma sociedade nova, na qual não houvesse divisão de classes.

Ao mesmo tempo, Marx diz que se por um lado é preciso mudar as condições sociais para se criar um novo sistema de ensino, por outro falta uma educação nova, que proporcione mudanças nas condições sociais vigentes. A educação deve, então, acompanhar o processo revolucionário, preparando por meio da conscientização aqueles que querem destruir a velha sociedade e instaurar a nova.

Dessa forma, o marxismo confere às discussões sobre a educação um caráter político e social até então inexistente.

PARTE II

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2. Socialismo e educação

Ao recusar o individualismo burguês, o socialismo rejeita também a concepção de liberdade, igualmente individualista, substituindo o espírito de competição pelos ideais de solidariedade e cooperação.

Na busca de uma igualdade efetiva, o socialismo critica a sociedade dividida em classes e preconiza a escola unitária, na qual todos tenham o mesmo tipo de escolarização e não haja a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.

Logo após a Revolução Russa de 1917, o ministro da Educação Lunatcharski, juntamente com Krupskaia (companheira de Lênin) e, mais tarde, Makarenko e Pistrak, luta pela universalização da escola elementar, gratuita e obrigatona, ao mesmo tempo que introduz profundas alterações nas concepções pedagógicas ao aplicar os princípios da escola do trabalho.

Segundo essa orientação, o trabalho é importante como expressão de um valor moral fundamental. Daí a necessidade de superação da dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, típica da escola tradicional burguesa, a fim de assegurar a todos a compreensão integral do processo produtivo.

A nova pedagogia valoriza também a ligação entre escola e vida, necessária para se formar o novo cidadão que a sociedade revolucionária precisava. Por isso dá destaque ao trabalho coletivo, fazendo com que as formas individualistas e competitivas evoluam em direção à cooperação, ao apoio mútuo e à auto-organização dos estudantes.

Pistrak enfatiza a necessidade de um trabalho real, não simbólico. Daí a importância da oficina profissional nas escolas: as crianças menores trabalham com tecido, papel e papelão, e as maiores trabalham com metais ou madeira. Pistrak observa que no manuseio das ferramentas, por exemplo, o aluno compreende melhor a mecânica, o que evidencia a não separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.

Pistrak defende que a partir do 2o grau ocorra a participação da escola no trabalho de fábrica, não na execução de tarefas mecânicas, mas como condição de “porta aberta para o mundo”. Assim, o estudo da força motriz ou da fonte de energia nos leva à questão geral da transformação da energia, às questões de geografia econômica e política do país e do mundo, “incluindo-se a luta imperialista pela divisão do mundo na base da distribuição da energia”.

Makarenko (1888-1939) escreveu o livro Poema pedagógico, no qual relata suas experiências em um instituto de reabilitação de adolescentes marginais. Para instaurar a prioridade do coletivo, Makarenko usa de uma autoridade que em várias circunstâncias resvala em autoritarismo, recorrendo inclusive a castigos físicos.

Makarenko argumenta que o choque entre as individualidades gera conflitos nos quais impera a lei do mais forte, o que pode prejudicar a instauração da comunidade de interesses. Isso justificaria o caráter provisório da violência usada, porque, nesse caso, a autoridade do professor não seria arbitrária, na medida em que visa reeducar para a vida em uma coletividade cujos valores principais são o trabalho, a disciplina e o sentimento do dever.

Antonio Gramsci (1891-1937) foi um dos mais importantes teóricos marxistas italianos. No cárcere, onde foi mantido durante onze anos pela ditadura fascista de Mussolini, escreve inúmeros livros em que, entre diversos assuntos, critica o dogmatismo do marxismo oficial.

Uma contribuição original foi o conceito de hegemonia. Etimologicamente, essa palavra significa dirigir, guiar, conduzir. Segundo Gramsci, uma classe é hegemônica não só quando exerce a dominação por meio do poder coercitivo, mas também quando o faz pelo consenso, pela persuasão. Daí a importância dos intelectuais na elaboração de um sistema convincente de idéias, por meio das quais se conquista a adesão até da classe dominada.

A escola burguesa, classista, além de preparar seus intelectuais, se infiltra nas classes populares, a fim de cooptar os melhores elementos que, uma vez assimilados, aderem aos valores burgueses. A classe dominada, por sua vez, não organizando sua própria visão de mundo, permanece desestruturada e passiva, incapaz de tornar eficazes as eventuais rebeliões.

Dessa forma, bem antes dos teóricos críticoreprodutivistas – que não vêem saída para a educação diante do impacto da ideologia dominante – Gramsci já tinha esperanças de que a sociedade civil (com suas inúmeras instituições, inclusive a escola) pudesse se tornar o lugar possível da livre circulação das ideologias.

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Para Gramsci, os elementos populares deveriam continuar organicamente ligados à sua classe, de modo a elaborar, coerente e criticamente, a experiência proletária. Só assim a classe dominada teria intelectuais orgânicos capazes de compreender as contradições que permeiam a sociedade dividida em classes.

A partir dos grupos de pressão formados na sociedade civil, como o partido da classe trabalhadora e os sindicatos, por exemplo, a consciência de classe, geradora de uma contraideologia, poderia ser desenvolvida. 3. Depois do muro de Berlim

A educação considerada prioridade máxima dos governos revolucionários e implantada com rigor, logo frutificou nos países socialistas. Os níveis de analfabetismo baixaram drasticamente, atingindo índices próximos do zero.

Algumas das demais metas apresentaram dificuldades, como, por exemplo, a implantação da politecnia: em um mundo no qual ocorrem rápidas transformações científicas e tecnológicas, é sempre problemático atrelar a escola ao funcionamento das atividades no campo, na fábrica e nos serviços.

Além disso, a ênfase dada ao coletivo, no afã de superar o individualismo e o egoísmo burguês, muitas vezes resultou na incapacidade de permitir o pensamento divergente, a dissidência, provocando a expressão de formas de intolerância e doutrinação.

Em 1985, quando Gorbatchev deu início à perestroika (reestruturação da economia), buscando quebrar a rigidez do planejamento estatal por meio da introdução de elementos de regulação de mercado, e à glasnost (abertura política), visando a renovação dos quadros, formados pela velha e autoritária elite burocrática dirigente, acelerou a implosão do mundo socialista.

Se, por um lado, as pessoas estavam asfixiadas pelo poder e muitos eram os críticos que denunciavam os excessos e exigiam a liberdade de pensamento havia muito tempo, por outro lado a rápida deterioração do chamado “socialismo real” culminou com o esfacelamento das republicas socialistas, que, retornando à economia de mercado, perderam os benefícios sociais que desfrutavam, incluindo aí a educação.

Esses acontecimentos não devem, todavia, nos enganar. Os desacertos do “socialismo real” não avalizam o capitalismo como defensor da democracia e da liberdade. O pensador italiano Bobbio ponderava bem antes da queda do muro de Berlim que, se o socialismo criou o Estado de não-liberdade, o capitalismo é, em contrapartida, o Estado da não-justiça.

Em outras palavras, o malogro do “socialismo real” não garante o sucesso do liberalismo, que continua gerando os excluídos da riqueza: os países subdesenvolvidos e a grande massa de pobres e miseráveis analfabetos.

Dropes

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As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. (Karl Marx)

2

O advento da escola unitária significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, refletir-se-á em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo. (Gramsci)

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3

Uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas, mas uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta. (Cornelius Castoriadis)

Atividades Questões 1. O que o socialismo contrapõe ao individualismo burguês? 2. Por que para o socialismo marxista a educação por si só não tem um caráter revolucionário? 3. Explique o que significa a escola unitária preconizada pelos socialistas. 4. Segundo Gramsci, como a escola poderia auxiliar no desenvolvimento de uma contra-ideologia?

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TEXTO 07 – FREITAG, Bárbara. Escola, estado e sociedade. SP: Moraes, 1986. [Política educacional: uma retrospectiva histórica] CAVALCANTE, Francisco Leonardo dos Santos Disponível em: http://www.conteudoescola.com.br/site/content/view/118/42/ acessado em 10/08/2004. [Proposições liberais e não liberais e as reformas Educacionais no Brasil]

Política educacional: uma retrospectiva histórica

Para facilitar o nosso trabalho introduziremos uma periodização que contém, seus elementos de

arbitrariedade, mas que satisfaz plenamente às nossas intenções. A essa periodização correspondem três modelos específicos da economia brasileira.1 O primeiro abrange o Período Colonial, o Império e a I República (1500-1930). Para esse período é característico o modelo agroexportador de nossa economia. Ao segundo período, que vai de 1930 a 1960 aproximadamente, corresponde o modelo de substituição das importações. O terceiro vai de 1960 aos anos 70 e foi caracterizado como o período da “Internacionalização do mercado interno”.2 O Primeiro Período

O modelo agroexportador implantado já na época da colônia, fundamentava a organização da economia na produção de produtos primários, predominantemente agrários, destinados à exportação para as metrópoles. Durante séculos essa economia se assentava em um só produto de exportação (açúcar, ouro, café, borracha), razão pela qual o modelo agroexportador era extremamente vulnerável. Dependia das oscilações do mercado dos países de economia hegemônica. Esse modelo perdurou até a crise do café, gerada pela crise econômica mundial em 1929.

Podemos dizer que nesse período uma política educacional estatal é quase que inexistente. Basta ressaltar que o primeiro Ministério de Educação é criado pelo Governo de Getúlio Vargas em 1930. Isso não quer dizer, porém, que o sistema educacional correspondente aos diferentes momentos desse período fosse totalmente inoperante. De fato, durante o Brasil-Colônia, funcionou aqui um sistema educacional montado pelos jesuítas que cumpria com uma série de funções, também importantes para a coroa portuguesa (Estado).

O quadro teórico fornecido por Gramsci possibilitaria a seguinte interpretação: a fase colonial caracterizava-se pela inexistência de instituições autônomas que compusessem a sociedade política. Essa se reduzia às representações locais do poder da metrópole. A sociedade civil era composta quase que exclusivamente pela Igreja. A infra-estrutura correspondia ao que acabamos de caracterizar como economia agroexportadora.

Que importância poderia ter a educação dentro de tal formação social? A monocultura latifundiária exigia um mínimo de qualificação e diversificação da força de trabalho. Essa se compunha quase que exclusivamente de escravos trazidos da África. Portanto, não havia nenhuma função de reprodução da força de trabalho a ser preenchida pela escola. A estrutura social também se encontrava pouco diferenciada: além dos escravos (classe trabalhadora), a compunham os senhores das “casas grandes”, ou sejam, os latifundiários e donos de engenho; os administradores portugueses

1 Veja especialmente: TAVARES, Maria da Conceição: Da Substituição de Importações ao Capitalismo

Financeiro. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. Mas também: FURTADO, Celso: Análise do Modelo Brasileiro. 3a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972,

2 CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo: Dependência y desarrolo en América Latina. 3a ed. México : Siglo Veintiuno Editores, 1971.

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representantes da Coroa na Colônia e o clero (na maioria jesuítas). A reprodução dessa estrutura de classes era garantida pela própria organização da produção. À escola, como mecanismo de re-alocação dos indivíduos na estrutura de classes, era, portanto, dispensável. Restavam-lhe ainda duas funções: a de reprodução das relações de dominação e a de reprodução da ideologia dominante. As escolas de jesuítas, especialmente os colégios e seminários em funcionamento em toda a Colônia, preenchiam perfeitamente essas funções, ajudando e assegurando dessa maneira a própria reprodução da sociedade escravocrata. Os jesuítas, além de prepararem os futuros bacharéis em belas artes, direito e medicina, tanto na Colônia como na Metrópole, fornecendo assim os quadros dirigentes da administração colonial local, formavam ainda os futuros teólogos, reproduzindo os seus próprios quadros hierárquicos, bem como os educadores, recrutados quase que exclusivamente do seu meio. Com isso a Igreja Católica não só assumia a hegemonia na sociedade civil, como penetrava, de certa forma, na própria sociedade política através dessa arma pacifica, que era a educação. Os colégios e seminários dos jesuítas foram desde o início da colonização os centros de divulgação e inculcação do cristianismo e da cultura européia, ou seja, da ideologia dos colonizadores. Declaradamente sua função consistia em subjugar pacificamente a população indígena e tomar dócil a população escrava. Assim, a Igreja, utilizando-se também da escola, auxiliou a classe dominante (latifundiários e representantes da coroa portuguesa), da qual participava, a subjugar de forma pacífica as classes subalternas às relações de produção implantadas.

Apesar da expulsão transitória dos jesuítas do Brasil no fim do Século XVIII, a Igreja preservou sua força na sociedade civil ainda nas fases do Império e da I República. É ela que, basicamente, continuava a controlar as instituições de ensino, encarregando-se ainda por muito tempo da função de reprodução da ideologia. Aliás, são poucas as mudanças sofridas pela sociedade colonial durante o Império e a I República. A economia continuava sendo agroexportadora. Da monocultura açucareira passava-se para a cafeeira. A força de trabalho escrava era substituída parcialmente pela força de trabalho dos imigrantes, que vêm ainda em maior escala quando, no fim do Império, se passava ao regime do trabalho livre. Mas a estrutura social de dominadores e dominados permanece, em sua composição básica, a mesma. Não há necessidade de qualificação da força de trabalho imigrante pela escola brasileira, pois ela já vem qualificada para o tipo de tarefas que a esperam. A dependência econômica, agora em relação à Inglaterra, permanece a mesma, apesar da independência política do Brasil. Surge, porém, a necessidade da formação de quadros técnicos e administrativos novos, razão pela qual se mantêm e se ampliam as inovações introduzidas por D. João VI por ocasião da transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808 (fundação de escolas técnicas, academias, instalação de laboratórios, etc.). Com a independência política, torna-se necessário fortalecer a sociedade política, o que justifica o surgimento de uma série de escolas militares, de nível superior, ao longo do território nacional. As instituições de ensino não-confessionais passam, assim, a assumir parcialmente a função de reprodução dos quadros dirigentes. A função de reprodução ideológica, necessária à submissão das classes subalternas às relações de dominação e às condições do trabalho explorado, continua sendo desempenhada, paralelamente, pela Igreja e suas escolas confessionais.

Concluindo, poderíamos dizer que no fim do Império e começo da República se delineiam os primeiros traços embrionários de uma política educacional estatal. Ela é fruto do próprio fortaleci-mento do Estado, sob a forma da sociedade política. Até então a política educacional era feita quase que exclusivamente no âmbito da sociedade civil, por uma instituição todo-poderosa, a Igreja.

O Segundo Período - a fase de 1930-1945

O fortalecimento das instituições da sociedade política decorria, por sua vez, da importância que

os aparelhos jurídico e repressivo do Estado adquiriam como mediadores do processo econômico. Este se limitava, para a fase em questão, praticamente à produção do café para o mercado internacional. Por isso, a atuação do Estado vai se dar praticamente entre este mercado e os interesses dos cafeicultores paulistas. Era o Estado que avalizava os investimentos no setor ferroviário, contratava os empréstimos para a expansão da produção cafeeira nos países de economia hegemônica e incentivava (financiando-a, parcialmente) a imigração da força de trabalho necessária, em decorrência da expansão das lavouras.

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Foi, finalmente, este Estado quem se encarregou da “socialização das perdas”3, durante a crise de superprodução cafeeira no início da década de 20. O Estado passou a comprar o produto excedente com auxílio de créditos adquiridos no exterior, dentro de sua política de “valorização”4.

Uma das conseqüências dessa política foi o aumento ilimitado da dívida externa, por sua vez já bastante elevada pela custosa importação de bens de consumo.

A crise mundial de 1929 encaminha as mudanças estruturais que vão caracterizar o modelo de substituição das importações, correspondente ao segundo período que nos propusemos a analisar nessa retrospectiva histórica.

Esse modelo foi decorrência imediata da crise cafeeira provocada pela crise mundial. A conseqüente baixa dos preços do café fez com que capitais de investimento se deslocassem para outros setores produtivos.

A falta de divisas impôs a restrição da importação de bens de consumo. Todos esses fatores contribuíram para o fortalecimento da produção industrial no Brasil, primeiramente concentrada na produção dos bens de consumo anteriormente importados. Essa substituição das importações, além de produzir uma diversificada da produção, relativizou o poder econômico dos cafeicultores e fortaleceu outros grupos econômicos, especialmente uma nova burguesia urbano-industrial. Essas mudanças provocaram uma reestruturação global do poder estatal, tanto na instância da sociedade política como da sociedade civil.

A classe até então hegemônica dos latifundiários cafeicultores é forçada a dividir o poder com a nova classe burguesa emergente. Em conseqüência dessa nova situação, há uma reorganização dos aparelhos repressivos do Estado. Com auxílio de certos grupos militares (tenentes) e apoiado pela classe burguesa, Vargas assume o poder em 1930, implantando, em 1937, o Estado Novo, com traços ditatoriais. Isto significa que a sociedade política invade áreas da sociedade civil, subordinando-as ao seu controle. É o que ocorrerá com as instituições de ensino. Percebe-se uma intensa atividade do Estado em ambas as instâncias da superestrutura. É criado pela primeira vez,5 em 1930, um Ministério de Educação e Saúde, ponto de partida, segundo Valnir Chagas,6 para mudanças substanciais na educação, entre outras, a estruturação de uma universidade. De fato, só então são fundadas no Brasil, as primeiras universidades, pela fusão de uma série de instituições isoladas de ensino superior.7

Estabelece a nova Constituição de 34 (Art. 150a) a necessidade da elaboração de um Plano Nacional da Educação que coordene e supervisione as atividades de ensino em todos os níveis. São regulamentadas (também pela primeira vez) as formas de financiamento da rede oficial de ensino em quotas fixas para a Federação, os Estados e Municípios (Art. 156), fixando-se ainda as competências dos respectivos níveis administrativos para os respectivos níveis de ensino (Art. 150).

Implanta-se a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário. O ensino religioso toma-se facultativo.

Parte substancial dessa legislação do ensino é absorvida pela nova Constituição de 1937. Aqui aparecerão dois novos parágrafos de extrema importância para a refuncionalização do sistema escolar em vista das mudanças macro-estruturais ocorridas na infra-estrutura e na organização do poder. É introduzido o ensino profissionalizante, previsto antes de mais nada para as classes “menos privilegiadas” (Art.129). Dispõe ainda este artigo de lei que é obrigação das indústrias e dos sindicatos criarem escolas de aprendizagem na área de sua especialização para os filhos de seus empregados e membros.

Declaram-se obrigatórias as disciplinas de educação moral e política (Art. 131). Tanto Getúlio Vargas como seu Ministro da Educação, Gustavo Capanema, reforçam em

discursos e iniciativas essas colocações politicas8 da Constituição. 3 FURTADO, Celso: A Formação Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, 1961. 4 Ibid., p.2l8 e segs. 5 Essa afirmação só é válida se negligenciarmos como tal o “Ministério de Instrução, Correios e Telégrafos”,

criado em 1890 e dissolvido depois de dois anos. 6 CHAGAS, Valnir: A Luta pela Universidade no Brasil, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Vol. 48,

jul.-set. 1967, p. 48. 7 Remontam a essa época a fundação das universidades, do Rio de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte e Porto

Alegre. 8 Cf. Ministério da Educação e Saúde (cd.): Panorama da Educação Nacional. Rio de Janeiro. 1937, p. 9 e segs.

Veja também: PEREIRA DA SILVA, J. (org.): As Melhores Páginas de Getúlio Vargas, Rio de Janeiro 1940.

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De fato, já um ano após a promulgação da lei, são implantadas, por ordem do governo central, escolas técnicas profissionalizantes (liceus) em Manaus, São Luis, Vitória, Pelotas, Goiânia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, destinadas a criar, nas palavras do próprio Ministro Capanema, na moderna juventude brasileira, um “exército de trabalho”, para o “bem da nação”.9

Temos, pois, no inicio do período que caracterizava o modelo econômico da substituição de importações, uma tomada de consciência por parte da sociedade da importância estratégica do sistema educacional para assegurar e consolidar as mudanças estruturais ocorridas tanto na infra como na superestrutura. Por essa razão a jurisdição estatal passa a regulamentar a organização e o funcionamento do sistema educacional, submetendo-o, assim, ao seu controle direto. A Igreja passa a ter influência cada vez menor sobre ele. Isso se comprova por um lado pela transformação do ensino confessional em facultativo e por outro pela redução da participação das escolas confessionais no ensino primário. Assim, em 1933, as escolas primárias contavam com 21.726 estabelecimentos de ensino oficiais (reunindo os estatais e municipais) e 6.044 particulares (incluindo, portanto, os confessionais). Em 1945 essas cifras se haviam alterado respectivamente para 33.423 e 5.908. Quanto à matricula geral, ela assume as seguintes proporções: em 1933 se registraram 1.739.613 matriculas na rede oficial face a 368.006 na rede particular. Em 1945 esses dados se haviam alterado para 2.740.755 na rede oficial e 498.085 na particular.10 A partir da década de 60 essa tendência também se faz sentir no ensino médio, se bem que não de maneira tão radical.11 Esses dados ilustram bastante bem como o Estado a partir da sociedade política toma conta progressiva do sistema educacional, transformando-o gradualmente de instituição outrora privada da Igreja em um perfeito “aparelho ideológico do Estado”.

A política educacional do Estado Novo não se limita à simples legislação e sua implantação. Essa política visa, acima de tudo, transformar o sistema educacional em um instrumento mais eficaz de manipulação das classes subalternas. Outrora totalmente excluídas do acesso ao sistema educacional, agora se lhes abre generosamente uma chance. São criadas as escolas técnicas profissionalizantes (“para as classes menos favorecidas”). A verdadeira razão dessa abertura se encontra, porém, nas mutações ocorridas na infra-estrutura econômica, com a diversificação da produção. Especialmente o trabalho nos vários ramos da indústria exige maior qualificação e diversificação da força de trabalho, e portanto um maior treinamento do que o trabalho na produção açucareira ou do café. O Estado, procurando ir ao encontro dos interesses e das necessidades das empresas privadas, se propõe a assumir o treinamento da força de trabalho de que elas necessitam. Essa medida política é tomada no interesse do desenvolvimento das forças produtivas (veja-se o pronunciamento do então Ministro Capanema de querer “criar um exército de trabalho para o bem da nação”), mas beneficiando diretamente os diferentes setores privados da indústria.

A nova força de trabalho precisa ser recrutada dentro da nova configuração da sociedade de classes. Evidentemente não será fornecida pela classe dominante, na qual continuam figurando, mesmo com seu poder reduzido, a velha aristocracia rural, a burguesia financeira e a nova burguesia industrial em ascensão. Preocupada em formar seus quadros dirigentes em escolas de elite (na maioria ainda particulares) esta classe não revela interesse pelo ensino técnico. A força de trabalho adicional também não poderá ser buscada nos setores médios e baixos da burguesia e da pequena burguesia ascendente, preocupada em ocupar as vagas do ensino propedêutico, a fim de alcançar um título acadêmico (uma das formas de ascensão). Pelo grande déficit educacional nas áreas rurais, também não será o campesinato que fornecerá os elementos que, qualificados pela escola, promoverão o desenvolvimento industrial. Resta a reduzida classe operária, formada parcialmente pelos trabalhadores urbanos e rurais imigrados ao Brasil nas décadas anteriores, bem como populações nacionais migradas para os centros urbanos, semi e desqualificadas, ou seja, “o exército industrial de reserva”. Assim, as escolas técnicas vão ser “a escola para os filhos dos outros”, ou melhor, a única via de ascensão permitida ao operário. Que essa via é falsa e se revela um beco sem saída, está implícito na especificidade dessa escola. Sendo de nível médio, ela não habilita seus egressos a cursarem escolas de nível superior. Criou-se a dualidade do sistema educacional que, além de produzir e reproduzir a

9 Ministério de Educação e Saúde MEC/SEEC (cd.): Panorama da Educação Nacional, op. cit., p.30 e segs. 10 Cf. Sinopse Retrospectiva do Ensino no Brasil. Principais Aspectos Estatísticos, Rio de Janeiro, sem data e

página. Se estamos tomando particular como confessional isto só é licito porque o confessional pelo menos é uma parte do particular. Assim que reduções neste, também afetam aquele.

11 Veja MEC/IBGE (cd.): Brasil – Séries Retrospectivas, 1970, Rio de Janeiro, pp. 249 e 254.

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força de trabalho para o processo produtivo, garante a consolidação e reprodução de uma sociedade de classes, mais nitidamente configurada que no período anterior.

O sistema educacional do Estado Novo reproduz em sua dualidade a dicotomia da estrutura de classes capitalista em consolidação. Tal dicotomia é camuflada atrás de uma ideologia paternalista. As chances educacionais oferecidas pela escolas técnicas (para “os menos favorecidos”) parecem ter caráter de prêmio.

De fato, elas criam as condições para assegurar maior produtividade do setor industrial. Em outras palavras, criam a possibilidade de extrair parcela maior de mais-valia dos trabalhadores mais bem treinados. As condições para essa exploração são criadas e financiadas pelo Estado.12 A fase de 1945-1964

A economia de substituição de importações iniciada em 1930 e fortalecida pela conjuntura internacional decorrente da II Guerra Mundial produziu o “deslocamento do centro de decisões de fora para dentro”.13 Em outras palavras, se antes o desenvolvimento da economia agroexportadora dependia do mercado mundial e, portanto, de decisões que escapavam aos produtores internos, essas decisões passaram a ser tomadas internamente, quando o setor produtivo passou a satisfazer as necessidades do mercado interno, produzindo bens de consumo que antes eram importados.

Vimos que foi a crise econômica internacional que desencadeou todos esses processos de mudança. Mas este processo foi reforçado e assegurado pela II Guerra Mundial. As economias dos países beligerantes passaram a produzir material bélico e a limitar a produção de bens de consumo para a exportação. Dessa forma a indústria nacional teve chances de desenvolver-se sem a competição de produtos estrangeiros. Sem esse momento puramente conjuntural, a substituição das importações não teria tido grandes êxitos. Prova disso, é que, finda a Guerra, essa situação mudou fundamentalmente. Os laços de dependência que durante o período de 30 a 45 foram se afrouxando, agora se restabelecem.14

A fase que vai de 45 até o início dos anos 60 corresponde à aceleração e diversificação do processo de substituição de importações. Ao nível político, sua expressão mais perfeita é o Estado populista-desenvolvimentista, que representa uma aliança mais ou menos instável entre um empresariado nacional, desejoso de aprofundar o processo de industrialização capitalista, sob o amparo de barreiras protecionistas, e setores populares cujas aspirações de participação econômica (maior acesso a bens de consumo) e política (maior acesso aos mecanismos de decisão) são manipuladas tacitamente pelos primeiros, a fim de granjear seu apoio contra as antigas oligarquias. Surge, nessa fase, um novo protagonista do processo de substituição de importações: o capital estrangeiro, pelo menos na fase de euforia desenvolvimentista, não é percebido como um inimigo do projeto nacional-desenvolvimentista, já que sua penetração não parecia ter nenhum sentido desnacionalizante, ou de expropriação de áreas já ocupadas pelo capital nacional, mas simplesmente o de abertura de novas frentes de investimento substitutivo. Com o fim do período fácil de substituição de importações, em que todos os interesses pareciam conciliáveis, vão aflorando os conflitos que até então só existiam de forma latente.15 O pacto populista começa a fragmentar-se: as pressões distributivistas das massas se tornam cada vez mais dificilmente harmonizáveis com a manutenção da lucratividade das empresas e com as necessidades de acumulação, uma vez esgotada a euforia desenvolvimentista. As classes médias, profissionais liberais, forças armadas, pauperizadas pela inflação, sentem-se excluídas dos processos decisórios do Estado populista, que não mais representa os seus interesses, e que parece encaminhar-se para rumos de crescente radicalização. O capital estrangeiro sente no modelo político

12 Se em 1933 havia somente 133 estabelecimentos de ensino técnico industrial, no fim do Estado Novo (1945)

são registrados 1.368 estabelecimentos. A matricula para esse ramo de ensino perfazia 14.693 alunos em 1933 e 65.485 em 1945. Os dados foram retirados de uma tabela apresentada por Lourenço Filho em: Alguns Elementos para o Estudo dos Problemas do Ensino Secundário, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Vol. XIV, no. 40, set.-out. 1950, p. 80.

13 FURTADO, Celso: A Formação Econômica do Brasil, op. cit., p. 218 e, do mesmo autor: A Dialética do Desemvolvimento, Rio de Janeiro, 1961, p. 118.

14 CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, E.: Democracia y Desarrolo..., op. cit., p. 144. 15 Ibid., p. l45 e segs.

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vigente (democracia liberal mais ou menos clássica, que permite uma crescente participação das massas) uma barreira ao seu projeto de expansão e de gradual absorção do mercado interno, com o mínimo de freios institucionais ou de interferências reivindicatórias alheias à racionalidade das decisões econômicas. Começa a delinear-se, no fim do período, uma nova polarização: de um lado os setores populares, representados, até certo ponto, pelo Estado, e por alguns intelectuais de classe média; e de outro, um amálgama heterogêneo que compreendia grandes parcelas da classe média, da chamada burguesia nacional, do capital estrangeiro monopolista e das antigas oligarquias.

Podemos muito esquematicamente dizer que esse último período se caracterizou pela coexistência contraditória, e às vezes abertamente conflitiva, de uma tendência populista e de uma tendência antipopulista.

A política educacional que caracteriza esse período reflete muito bem a ambivalência dos grupos no poder. Essa política se reduz praticamente à luta em torno da Lei Diretrizes e Bases dá Educação Nacional e à Campanha da Escola Pública.16

A Constituição de 46 havia fixado num dos seus parágrafos (Art. 5 XV, d) a necessidade da elaboração de novas leis e diretrizes para o ensino no Brasil que substituíssem aquelas consideradas ultrapassadas do Governo Vargas.

De fato, com a reorganização da economia brasileira no contexto internacional, as funções dadas à escola pelo Estado Novo não poderiam permanecer intactas.

Mais uma vez o Estado será o mediador dos novos interesses surgidos com a reorganização da economia nacional e internacional depois da Guerra. Como ao nível da sociedade política a configuração do poder ainda não se havia delineado claramente, observando-se também aqui, como na economia, uma fase de transição, a própria legislação educacional brasileira vai passar por uma série de indefinições (sem produzir tão cedo uma nova lei) que refletem essa transitoriedade.

O texto definitivo de LDB só será sancionado em 1961, remontando a 1948 o primeiro projeto-de-lei, encaminhado à Câmara pelo então Ministro da Educação, Clemente Manani. Esse projeto, ex-pressão das preocupações populistas do novo governo, procura corresponder a certas ambições das classes subalternas. A burguesia nacional, ainda a “fração hegemônica” do ‘bloco no poder”17 abre, nesse projeto-de-lei, algumas concessões às classes camponesa e operária. Primeiro, propondo a extensão da rede escolar gratuita (primário e secundário), Segundo, criando a equivalência dos cursos de nível médio (inclusive o técnico), que, além de equiparados em termos formais, apresentam, nesse projeto, maior flexibilidade: permitem a transferência do aluno de um ramo de ensino para outro, mediante prova de adaptação.18

Esse projeto, bastante progressista para a época, é engavetado, sendo retomado somente em 1957. Um novo projeto-de-lei conhecido pelo nome de “substitutivo Lacerda”19 é encaminhado à Câmara. As inovações desse projeto em relação ao anterior e à legislação educacional vigente consistem em reduzir ao máximo o controle da sociedade política sobre a escola, restituindo-a como instituição privada, à sociedade civil. Essa preocupação se traduz nos seguintes tópicos propostos: recorrendo ao direito e dever dos pais de educarem, seus filhos, o projeto propõe que a educação seja predominantemente ministrada em instituições particulares e somente de forma complementar pelo Estado (sociedade política). Assim, os pais teriam a possibilidade de optar livremente pelo tipo de ensino que seus filhos receberiam.

Essa colocação evidentemente esconde um interesse de classe. A fração da burguesia que fala através da nova proposta de lei não é mais a nacional que procura cooptar a classe operária. Aqui fala a fração que justamente quer excluí-la de um possível mecanismo de ascensão (mesmo que 16 MACIEL DE BARROS, Rogue Spencer (org.): Diretrizes e Base. da Educação Nacional, São Paulo, 1960. A

coletânea reúne todas as contribuições de importância feitas em debates na época contendo um anexo com toda a legislação, inclusive os projetos-de-lei.

17 POULANTZAS, Nicos: Pouvoir Politique et lasses Sociales, Vols. I e II, Petite Collection Maspero, Paris, 1971.

18 Veja Projeto-de-lei sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional – elaborado em 1948 por uma comissão de especialistas por iniciativa do então Ministro da Educação, Dr. Clemente MARIANI, no anexo de MACIEL DE BARROS, R. S. (org.): Diretrizes.e Baiases..., op. cit., pp. 479-503.

19 Veja Substitutivo ao Projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – apresentado à Câmara dos Deputados pelo Deputado Carlos Lacerda a 15 de janeiro de 1959, no anexo de MACIEL DE BARROS, R. S. (org.): Diretriz.. e Bases...., op. cit., pp. 505-22.

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simplesmente individual). O ensino particular – como se sabe – é ensino pago. Que liberdade teriam os pais de um camponês, operário ou habitante de favela para escolher uma escola particular para seus filhos? Essa proposta, que aliás omitia o parágrafo da gratuidade do ensino no Brasil, era obviamente excludente. Nem por isso o projeto abdicava da subvenção do Estado, propondo que este financiasse a rede particular, a fim de assegurar a educação adequada de seus futuros cidadãos. Essa tarefa não lhe daria, porém, em contraposição, o direito de fiscalizar a rede particular. Alegando a liberdade de ensino, o projeto propunha que esta ficasse ao encargo dos professores e dos diretores das escolas particulares. Foram justamente estes aspectos do projeto que levantaram uma onda de protestos entre intelectuais, pedagogos e liberais em todo o Brasil. Em seu “Manifesto dos Educadores” eles se opõem ao projeto, alertando o público e o governo sobre as implicações dessa proposta.20 Através desse manifesto, dão ainda início a uma campanha a favor da escola pública com a intenção de impedir a aceitação desse projeto como lei pela Câmara, Senado e Presidência da República.21

Dos muitos debates travados, resultou finalmente a Lei 4.024 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela é o compromisso entre as duas tendências expressas pelos dois projetos-de-lei (Mariani e Lacerda). Assim ela estabelece que tanto o setor público quanto o particular têm o direito de ministrar o ensino no Brasil em todos os níveis (Art. 2). A gratuidade do ensino fixada na Constituição de 46 fica omissa na nova lei. Em casos claramente definidos, o Estado se propõe a subvencionar as escolas particulares (Art. 95, § 1, c). Se dessa forma os setores privados viram assegurados os seus direitos triunfando parcialmente a proposta Lacerda, a lei também absorve elementos da proposta Mariani, como a equiparação dos cursos de nível médio e a flexibilidade de intercâmbio entre eles (Art. 51). A LDB reflete assim as contradições e os conflitos que caracterizam as próprias frações de classe da burguesia brasileira. Apesar de ainda conter certos elementos populistas, essa lei não deixa de ter um caráter elitista. Ela, ao mesmo tempo que dissolve formalmente a dualidade anterior do ensino (cursos propedêuticos para as classes dominantes e profissionalizantes para as classes dominadas) pela equivalência e flexibilidade dos cursos de nível médio, cria nesse mesmo nível uma barreira quase que intransponível, assegurando ao setor privado a continuidade do controle do mesmo. Assim, a criança pobre, incapaz de pagar as taxas de escolarização cobradas pela rede, não pode seguir estudando.

Essa lei, que procura estabelecer um compromisso entre os interesses de uma burguesia nacional e os interesses das frações de classe mais tradicionais, ligadas ao capital internacional, em verdade já está ultrapassada, quando entra em vigor. Em dezembro de (1961) já se delineiam claramente as novas tendências da internacionalização do mercado interno. Com isso se anunciam possíveis mudanças na organização do poder ao nível da sociedade política o que certamente iria levar a reformulações da política educacional, visando a sociedade civil. Fato é que essa lei tardia passou a materializar-se na década seguinte nas instituições de ensino. O sistema formal de ensino passou a ser estruturado e reformulado segundo suas prescrições; os currículos redefinidos; professores, alunos e profissionais moldados segundo suas diretrizes.

A tão discutida lei se “materializava”, se “corporificava” portanto, no dia-a-dia das salas de aula, em estruturas de personalidade e em sistemas de pensamento. A lei, sancionada na instância da sociedade política, passava a funcionar na sociedade civil. Como – assim se torna quase que óbvio perguntar – a realidade educacional brasileira resolveu na prática os conflitos e contradições dessa lei? Que funções manifestas ou latentes a nova estrutura de ensino preenchia para o sistema global em fase de transição?

Uma resposta a essas perguntas só pode ser encontrada numa análise empírica da realidade educacional.22

20 Cf. O Manifesto dos Educadores, publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paul., de 1.6.1959. 21 Veja FERNANDES, Florestas,: Os Objetivos da Campanha em Defesa da Escola Pública, em: FERNANDES,

Florestan: Educação e Sociedade me no Brasil. São Paulo, 1965, p. 356 e segs. 22 Aqui temos que considerar o time lag entre promulgação e efetivação de uma lei. Se a lei é expressão dos

interesses de uma classe ou coalizão de classes, esses interesses, materializados nos objetivos e fins de ensino só podem ser analisados na realidade e avaliados de acordo com o seu maior ou menor desvio das intenções originais, vários anos depois. Por isso, dados empíricos do período 60-70 refletem a materialização de interesses articulados no fim da década anterior. Assim, os dados educacionais aqui apresentados que, apesar de já pertencerem parcialmente ao terceiro período que nos propusemos analisar, refletem a conseqüência prática dos interesses absorvidos na LDB do período anterior. Constataremos essa mesma defasagem quando

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A Política Educacional de 1964 a 1975

Como vimos, o período da substituição fácil de importações esgotou suas possibilidades nos primeiros anos da década de 60. A demanda por bens de consumo duráveis e não-duráveis, antes atendida pelas importações, podia agora, em sua maioria, ser atendida pela produção doméstica. Para que o processo de acumulação pudesse prosseguir, no ritmo de expansão desejado, era necessário assegurar um crescimento dinâmico da demanda. Não se tratava mais de ocupar um espaço econômico pré-existente, mas de criar um novo espaço econômico. Este resultado poderia ser obtido – sem que se alterasse o modo de produção capitalista – de duas formas. A primeira seria a realização de reformas estruturais (por exemplo, reforma agrária) que permitissem a inclusão das massas populares num padrão de consumo democratizado. Era a política mais ou menos explícita do Estado populista, que se frustrou quando a burguesia nacional sentiu que em sua aliança com as classes populares poderia perder o controle do processo reformista. Este, nas mãos de setores populares, poderia desembocar em transformações estruturais incompatíveis com a própria sobrevivência do sistema capitalista. O outro caminho seria a criação de uma demanda adicional, através de uma reorganização da estrutura do consumo interno e do aproveitamento das possibilidades do mercado externo. Este caminho implicava, por um lado, uma aristocratização dos padrões de consumo interno e, por outro lado, exportações maciças, principalmente de produtos manufaturados e semimanufaturados. Foi assim que se gerou, internamente, um perfil de consumo baseado na extrema concentração de renda e na criação de uma faixa de consumidores de alto poder aquisitivo e com capacidade praticamente ilimitada de absorver os bens de consumo, principalmente duráveis, produzidos pela indústria nacional e pelas empresas multinacionais aqui instaladas; ao mesmo tempo, externamente, o país praticamente decuplicou o valor de suas exportações. Os investimentos destinados a substituir importações cederam lugar aos investimentos destinados a produzir bens de consumo sofisticados para o mercado interno e bens destinados à exportação.

Os dois processos – a aristocratização do consumo e a expansão das exportações – são interdependentes, e a mediação é assegurada pelo capital estrangeiro, agora representado pelas grandes empresas transnacionais. O esforço exportador só podia ser realizado, com êxito, pelas grandes empresas, que tinham subsidiárias no Brasil e utilizavam toda a sua rede internacional de comercialização para garantir a colocação dos produtos brasileiros. Por outro lado, essas empresas, instaladas no Brasil, adotam um tipo de tecnologia excludente (altamente poupadora de mão-de-obra), que resulta numa crescente concentração de renda e na formação de um mercado consumidor altamente elitista. “Estas características criam um consumidor exigente que requer padrões de qualidade dos produtos (isto é, tecnologia avançada) independentemente das considerações sociais sobre a possibilidade de uso de alternativas tecnológicas que empreguem mais mão-de-obra. Criam-se estímulos de consumo que obedecem aos padrões do mercado internacional, reforçando-se a tendência prevalente para que a industrialização adote cada vez mais a forma de um processo internacionalizado.”23 Assim, o capital estrangeiro cria e serve o seu consumidor. Por sua vez, como dissemos, os dois processos do afunilamento do perfil da demanda e da expansão exportadora se condicionam dialeticamente. Para atender a esse perfil de consumo, é necessário um substancial dispêndio de divisas, inclusive para o pagamento de royalties pelo uso da tecnologia importada, o que provoca um crescente endividamento externo, sendo, portanto, necessário, para fazer frente a esses gastos (inerentes ao modelo, e não acidentais), o crescimento exponencial da receita de exportações, a qual, por sua vez, ajuda a financiar um padrão de consumo cada vez menos igualitário.

Essa nova situação tomou-se sociologicamente possível pela fratura do bloco populista e pelo novo alinhamento segundo o qual a burguesia nacional preferiu divorciar-se dos seus perigosos aliados da véspera e aliar-se, como sócio menor, ao capital monopolista internacional.

A nova constelação surgida com o colapso do Estado populista permite que o processo da “internacionalização do mercado” interno, gerado no período anterior, agora se desdobre em toda sua plenitude. Fundamental para este novo período é a reorganização da produção industrial a partir das

analisarmos a legislação da década de 65 a 75. Muitos parágrafos de lei não poderio ser avaliados em sua efetividade, pelo fato de ainda não terem se consumado e materializado na vida cotidiana.

23 CARDOSO, F. H.: Industrialização, Dependência e Poder na América Latina, em: CARDOSO, F. H.: O Modelo Político Brasileiro, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972, p. 43.

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novas técnicas de produção ao mesmo tempo que se assegura internamente a produção dos setores dinâmicos da economia moderna: a indústria química, eletrônica e automobilística. Dá-se uma nova “fase de industrialização com hegemonia dos consórcios internacionais”.24 O aumento da produtividade agora é assegurado pela introdução de moderna tecnologia e know-how desenvolvido nas metrópoles e pelo excedente estrutural de força de trabalho que permite manter os salários extremamente baixos. Essas condições possibilitam uma redefinição dos antigos laços de dependência. A transferência de filiais de consórcios estrangeiros (as multinacionais) para o Brasil só faz sentido, se houver um mercado interno suficientemente elástico para absorver os bens sofisticados produzidos. Portanto, há necessidade de garantir o crescimento do poder de compra dos consumidores. Essa necessidade aparentemente se choca com a outra, mais fundamental, o congelamento dos salários do trabalhador que torna atraente para as multinacionais a produção no país, assegurando uma taxa de lucro maior que em suas metrópoles, onde os salários oscilam constantemente em vista de reivindicações operárias organizadas.

Para solucionar o impasse torna-se necessária “uma reorganização administrativa, tecnológica e financeira que, por sua vez, implica uma reordenação das formas de controle social e político”.25 Surge a necessidade de uma política salarial e de distribuição de renda que ao mesmo tempo congele os salários da massa trabalhadora e crie, como já dissemos, uma classe intermediária de alta renda apta a consumir os produtos produzidos. Pois, somente pelo consumo interno das mercadorias produzidas, se realiza a mais-valia, fechando o círculo que garante a reprodução do capital. Neste caso, toma-se, porém, necessário controlar os movimentos operários e de massa que procurem obter uma participação maior do produto, mediante reivindicações salariais periódicas.

A nova situação econômica exige, portanto, a reorganização da sociedade política e da sociedade civil, a fim de que o Estado se torne novamente mediador dos interesses da reprodução ampliada das empresas privadas nacionais e multinacionais. O Estado, que no fim do período anterior se havia tomado mais ou menos o porta-voz dos interesses daquelas frações da classe média e das classes subalternas que eram adeptas da alternativa da democratização do consumo com a preservação da autonomia nacional, é forçado a ceder à nova tendência da “internacionalização do mercado interno”. Ë neste momento que “as forças armadas, como corporação tecnoburocrática, ocupam o Estado para servir a interesses que crêem ser os da nação. Os setores políticos tradicionais (ou seja, as massas populares e os intelectuais progressistas da burguesia nacional) – expressão, no seio do Estado, da dominação de classe do período populista-desenvolvimentista – são aniquilados e se busca transformar a influência militar permanente como condição necessária para o desenvolvimento e a segurança nacional...”26

A essa reestruturação e redefinição dos aparelhos do Estado corresponde uma reorganização da própria estrutura de classes. Não que esta fosse transformada em seus traços fundamentais. Pois é para manter sua configuração básica que a pseudo-aliança de burguesia nacional e povo (classe operária e camponesa) é dissolvida. A burguesia nacional em sua maioria vai se incorporar, em uma posição subordinada, à burguesia internacional, a fim de defender seus interesses de classe, que consistem em assegurar parcela cada vez maior da mais-valia. Juntamente com ela são cooptados alguns setores da classe média que se tornam essenciais para a implantação e manutenção do novo modelo: os intelectuais e os tecnocratas. São estes grupos e frações de classe que passarão a usufruir das vantagens do modelo. A burguesia nacional,_que vai compartilhar com as multinacionais dos lucros assegurados com o congelamento dos salários dos trabalhadores27 e a introdução da moderna tecnologia, e os setores médios, cooptados para o modelo como assalariados altamente remunerados, vão constituir grande parcela dos consumidores dos bens produzidos. As classes subalternas, excluídas de qualquer participação tanto política como econômica28 precisam ser privadas de seus mecanismos democráticos (votos, greves, movimentos reivindicatórios) o que torna necessário uma reorganização e

24 FURTADO, Celso: Análise do Modelo Brasileiro, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, 3a ed., p. 68. 25 CARDOSO, F. H. e FALETTO, E.: Dependencia..., op. cit., pp. 149-50. 26 Ibid., p. 156. 27 CUNHA, L. A. R.: Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1975, p.

86, Tabs. 2-6. 28 Ibid., p. 76 e segs., Tabs. 2-3, 2-4, 2-5.

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mobilização da sociedade civil. Os aparelhos repressivos do Estado assumem o controle dos mecanismos e aparelhos ideológicos (sindicatos, meios de comunicação de massa e escolas).

Esboçado em seus traços gerais o contexto macroestrutural em que se insere a política educacional do período de 65 a 75, podemos agora analisar as medidas e iniciativas então tomadas, não só em sua funcionalidade e ação retroativa sobre as estruturas, mas também em sua continuidade histórica, tendo-se em mente a análise dos períodos anteriores vistos no capítulo precedente. A política educacional que analisaremos a seguir será o elo mediador entre os impasses educacionais gerados no passado e as intenções e objetivos a serem realizados com o auxilio da educação no futuro.

A política educacional, ela mesma expressão da “reordenação das formas de controle social e político”,29 usará o sistema educacional reestruturado para assegurar este controle. A educação estará novamente a serviço dos interesses econômicos que fizeram necessária a sua reformulação. Essa afirmação encontra seu fundamento nos pronunciamentos oficiais, nos planos e leis educacionais e na própria atuação do novo governo militar.

As primeiras diretrizes formuladas por este governo, norteadoras da futura política educacional, já foram fixadas no inicio do Governo Castello Branco. Estão contidas nas declarações feitas pelo Presidente aos Secretários de Educação de todos os Estados, em meados de 64: o objetivo do seu governo seria restabelecer a ordem e a tranqüilidade entre estudante operários e militares.30 Excluindo o grupo dos militares podemos dizer que com a nova legislação, promulgada pelo governo militar, visa-se de fato criar um instrumento de controle e de disciplina sobre estudantes e operários.

Entre 1963 e 1964, acontecem o I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular e o Seminário da Cultura Popular respectivamentes. O período político que se avizinha a 1964, o chamado "Golpe Militar" de 31 de março, atravessaria sobremaneira a atuação desses movimentos.

Segundo Saviani, no que se refere à educação, o governo militar "não intencionou criar uma nova LDB, mas apenas ajustar a que estava em vigor – Lei nº 4.024/61. Dentro desse enfoque, foram elaboradas as reformas do ensino superior – Lei nº 5.540/68 – e a dos ensinos primário e médio – Lei nº 5.692/71. Nesse período, inaugura-se a fase tecnicista da educação no Brasil; baseada na necessidade de "modelar o comportamento humano" através de técnicas específicas, essa teoria abordava os conteúdos através do ordenamento lógico e psicológico das informações.

As mudanças efetuadas pela reforma do ensino superior (Lei nº 5.540/68) procuraram atender às exigências, tanto dos professores e estudantes, quanto as dos empresários ligados ao regime militar, que viam a educação superior como um comércio; sob forte influência dos acordos MEC/USAID31, o Brasil adotava o "economicismo educativo" calcado nos pressupostos da chamada "Teoria do Capital Humano".

Contrapondo-se à concepção tecnicista implantada pelo regime militar, vamos encontrar a concepção crítico-reprodutivista que, segundo o professor Luiz A. R. da Cunha

(...) Contribuiu no sentido de desfazer as ilusões do liberalismo que fundamenta as concepções "humanista tradicional" – vertente leiga – e "humanista moderna", assim como as ilusões do "economicismo"da Teoria do Capital Humano.32

Todavia, não se deve esquecer que grassava o discurso do "Brasil-Potência" e para tanto, fazia-

se mister que o país resolvesse ou pelo menos demonstrasse seu interesse em resolver o problema do analfabetismo, a fim de entrar para o "clube dos grandes".

Se por um lado a LDBEN (Lei nº 4.024/61) foi considerada de base conservadora-reacionária, no que diz respeito à posição política nela contida, por outro, as reformas do ensino levadas a cabo no período de exceção – Lei nº 5.540/68 e 5.692/71 – demonstraram o predomínio "economicista", estabelecido por intermédio da relação direta entre a produção e a educação.

Nesse ínterim compreendido entre 1968 e 1971, tivemos a promulgação da Constituição de 1967 com a devida emenda de 1969. Nela, vamos encontrar "tudo quanto se relaciona com o problema

29 CARDOSO. F. H. e FALETTO, E.: Dependencia..., op. cit., p. 149. 30 Veja: Castello Branco Reafirma as Diretrizes de seu Governo aos Secretários de Educação, O Estado de S.

Paulo, 10.6.1964. 31 Ministério da Educação e Cultura / United States Agency International Development 32 Luiz A. R.Cunha – Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, 1975.

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educacional e com o ensino". Embora sob os auspícios do regime militar, essa Constituição declarava que a "educação era um direito de todos e dever do Estado".

Período pós abertura política

A tendência tecnicista marcou a educação durante o período militar, por conta disso, iniciaram-

se fortes críticas por parte dos educadores que se faziam representar por diversas entidades, como: ANDE, ANPED, CEDES, etc. Os resultados das pressões exercidas por essas entidades foram as chamadas Conferências Brasileiras de Educação (CBE), ocorridas entre 1980 e 1991. Toda essa movimentação dá-se concomitantemente ao processo de abertura democrática que vinha sendo conquistado pela sociedade brasileira.

Assim é que, durante o mandato do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo33 – 1979/1985 – deu-se o processo de abertura política, tendo como fatores fundamentais o retorno do pluripartidarismo e a Lei de Anistia. A principal resistência política encontrada durante o governo João Figueiredo era feita pelo sindicalismo brasileiro, sobretudo na região do ABC paulista, na qual ganhou destaque a liderança de Luís Inácio Lula da Silva34, sindicalista e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT).

A crise econômica se avolumava no país discutia-se a dívida externa e as exorbitantes taxas inflacionárias. O período de sucessão do presidente Figueiredo é marcado pela apresentação ao Congresso Nacional, da emenda "Dante de Oliveira"35, cujo teor previa a realização de eleições diretas para presidente; tal emenda, engendrou uma campanha a nível nacional, dando origem ao movimento "Diretas Já". No entanto, a emenda "Dante de Oliveira" foi refutada na Câmara.

Uma vez derrotada a citada emenda, o extinto Colégio Eleitoral cumpre aquilo que seria seu último ato, ou seja, elege o presidente Tancredo Neves - candidato pela Aliança Democrática - que vem a falecer antes de assumir efetivamente o cargo; em conseqüência, assume a Presidência da República, seu vice, José de Ribamar Sarney, responsável pela transição do antigo regime à consolidação da "democracia", através da Constituição de 1988.

Esse recorte do panorama político brasileiro é importante para que se possa entender a correlação de forças presente no momento em que a comunidade educacional organizava-se para influir no texto da Carta Magna que estava sendo gestada no Congresso Nacional Constituinte em fevereiro de 1987. Fruto da IV Conferência Brasileira de Educação, realizada na cidade de Goiânia, no ano de 1986, surge a chamada "Carta de Goiânia", cuja finalidade era subsidiar a confecção do capítulo constitucional que trataria da educação.

Essa proposta marcaria um longo debate em torno do novo projeto de LDB que culminaria com a aprovação da Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – vigente até os dias atuais. Apesar de não se constituir objeto de aprofundamento da presente reflexão, discorreremos sobre o seu arcabouço, a fim de caracterizarmos em que medida o Estado brasileiro vem se tornando mínimo no que se refere às garantias sociais, dentre elas, o direito inalienável à educação pública de qualidade.

Ao referir-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9393/96), o professor Demerval Saviani, assim se expressa

(...) Para se compreender o real significado da legislação não basta ater-se à letra da lei; é preciso captar o seu espírito. Não é suficiente analisar o texto; é preciso analisar o contexto. Não basta ler nas linhas; é preciso ler nas entrelinhas.

É, portanto, com esse olhar crítico que devemos encarar o texto e o contexto da LDB que, teve o

seu início tão logo a Constituição de 1988 fora promulgada. Ao contrário do que ocorreu durante a discussão da Lei nº 4.024/61, em que apenas liberais e

conservadores debateram a questão educacional; o projeto de Lei nº 9394/96, teve ampla representatividade da sociedade acadêmica do país, traduzida pelos fóruns estaduais e municipais que se constituíram como desdobramentos do Fórum em Defesa da Escola Pública. Uma vez conseguida a

33 Último presidente do Regime Militar 34 Atual Presidente do Brasil. 35 Deputado Federal pelo Estado do Mato Grosso.

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aprovação na Câmara dos Deputados (1993), o projeto seguiu para o Senado Federal; entretanto, ao dar entrada naquela casa - desta feita já em forma de Substitutivo – o Substitutivo Cid Sabóia que expressava as propostas oriundas dos diversos fóruns realizados, sofreria uma disputa acirrada com o projeto do Senador Darcy Ribeiro, que por sua vez, expressava a articulação da base governista tanto no Senado, quanto na Câmara dos Deputados.

Após Fernando Henrique Cardoso assumir a Presidência do país, a matéria passou a ser apreciada, sendo o seu relator na Comissão de Constituição e Justiça, o próprio Senador Darcy Ribeiro que, através de manobras regimentais, conseguiu que o projeto de sua autoria substituísse aquele apresentado na Câmara dos Deputados; passando as propostas originárias dos Fóruns Educacionais a meras emendas textuais; ainda assim, conseguidas por intermédio de lobistas.

Sem ensejar entrar no mérito da análise contextual da Lei nº 9394/96; podemos observar a fragmentação da organização educacional no país. Tida como "descentralizada" pelo MEC, ela preconiza que, caberá a cada instância governamental (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) a organização dos seus respectivos sistemas de ensino, em regime de colaboração. Quanto ao MEC, cabe-lhe o papel de formulador de políticas e planos educacionais, assessorado pelo Conselho Nacional de Educação que passa a ter funções "Normativas e de Supervisão".

Fica claro, portanto, que a LDB vigente estruturou-se sob uma concepção democrático-representativa, cuja essência limita a participação da sociedade ao momento do voto, dado àqueles que irão representá-la. Ao proceder à análise pormenorizada do texto da LDB, o professor Saviani elenca dois objetivos implícitos no referido documento; aos quais passa denominar de "objetivos proclamados" e "objetivos reais"

"(...) A função de mascarar os objetivos reais através dos objetivos proclamados é exatamente a marca distintiva da ideologia liberal, dada a sua condição de ideologia típica do modo de produção capitalista o qual produziu, pela via do "fetichismo da mercadoria" a opacidade nas relações sociais."

Nesse sentido, o eminente educador alude a três contradições – ainda que existam muito mais – marcantes na Lei nº 9394/96; em primeiro lugar a contradição entre homem e sociedade, em segundo, entre o homem e o trabalho e por último, a contradição entre o homem e a cultura.

Conclusão Na impossibilidade de esgotar o assunto, mas apenas cumprindo o percurso temporal ao qual nos

propusemos no início dessa reflexão (1889 a 1989), extrapolando-o no que foi necessário somente para compreendermos todo o contexto; podemos inferir sobre alguns aspectos que deram sustentação ao sistema de ensino vigente no país.

O primeiro apontamento, diz respeito à mínima participação real da sociedade no desenrolar do processo, ficando a decisão sobre os destinos da educação, a cargo de uma minoritária elite política; o segundo refere-se à tensão provocada pela correlação de forças imiscuída nos embates que, ao demandarem um longo período de discussão, acabaram por aprovar uma lei senil e por isso mesmo, descontextualizada no que tange aos anseios da comunidade acadêmica; e por último, mais do que a sensação, mas a efetiva constatação "minimalista" inclusa no corpo do documento atual que regulamenta o ensino brasileiro que, em síntese, serve para ratificar a igual política de "Estado Mínimo" que tem norteado a proposta governamental nos últimos anos.

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TEXTO 08: BRASIL. Conselho Nacional de Educação – Câmara de educação básica. Parecer no. CEB 15/98. 01/06/98. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf. Acesso em: 12/02/2005.

Diretrizes para uma Pedagogia da Qualidade

Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara. C. Sagan. Relatório da Reunião Educação para o Século XXI.Todo aluno de nível médio deveria ser capaz de responder a seguinte questão: Qual é a relação entre as ciências e as humanidades e quão importante é essa relação para o bem estar dos seres humanos? Todo intelectual e líder político também deveria ser capaz de responder a essa questão. Metade da legislação com a qual o Congresso Americano tem de lidar contém componentes científicos e tecnológicos importantes. Muitos dos problemas que afligem a humanidade diariamente – conflitos étnicos, corrida armamentista, superpopulação, aborto, meio ambiente, pobreza, para citar alguns dos que mais persistentemente nos perseguem – não podem ser resolvidos sem integrar conhecimentos das ciências naturais com conhecimentos das ciências sociais e humanas. Somente a flexibilidade que atravessa as fronteiras especializadas pode fornecer uma visão do mundo tal como ele realmente é, e não como é visto pela lente das ideologias, dos dogmas religiosos ou tal como é comandado pelas respostas míopes a necessidades imediatas.

E. O. Wilson, Consilience: The Unity of Knowledge.

Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional.

H. Arendt. Entre o Passado e o Futuro.

De acordo com os princípios estéticos, políticos e éticos da LDB, sistematizados anteriormente, as escolas de ensino médio observarão, na gestão, na organização curricular e na prática pedagógica e didática, as diretrizes expostas a seguir.

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1. Identidade, diversidade, autonomia

O Brasil possui diferentes modalidades ou formas de organização institucional e curricular de ensino médio. Como em outros países, essas diferenças são modos de resolver a tensão de finalidades desse nível de ensino. Respondem mais à sua dualidade histórica do que à heterogeneidade de alunados, e associam-se a um padrão excludente: cursar o ensino médio ainda é um privilégio de poucos, e, dentre estes, poucos têm acesso à qualidade.

Em virtude dessa situação, as escolas públicas que conseguiram forjar identidades próprias de instituições dedicadas à formação do jovem ou do jovem adulto, e que por isso mesmo se tornaram alternativas de prestígio, atendem a um número muito pequeno de alunos. Em alguns casos, essas escolas de prestígio terminaram mesmo por perder parte de sua identidade de instituições formativas, pois se viram, como as particulares de excelência, reféns do exame vestibular por causa do alunado selecionado que a elas tem acesso.

Aos demais restou a alternativa de estudar em classes esparsas de ensino médio, instaladas em períodos ociosos, em geral noturnos, de escolas públicas de ensino fundamental. Ou ainda em escolas privadas de má qualidade, muitas delas também noturnas, cujos custos cobrados a alunos trabalhadores não são muito maiores dos que os das escolas públicas também desqualificadas.

Essa situação gerou uma padronização desqualificada que se quer substituir por uma diversificação com qualidade. Escolas de identidade débil só podem ser iguais, pois levam apenas a marca das normas centrais e uniformes. Identidade supõe uma inserção no meio social que leva à definição de vocações próprias, que se diversificam ao incorporar as necessidades locais e as características dos alunos e a participação dos professores e das famílias no desenho institucional considerado adequado para cada escola.

É necessário que as escolas tenham identidade como instituições de educação de jovens e que essa identidade seja diversificada em função das características do meio social e da clientela. Diversidade, no entanto, não se confunde com fragmentação, muito ao contrário. Inspirada nos ideais da justiça, a diversidade reconhece que para alcançar a igualdade, não bastam oportunidades iguais. É necessário também tratamento diferenciado. Dessa forma, a diversidade da escola média é necessária para contemplar as desigualdades nos pontos de partida de seu alunado, que requerem diferenças de tratamento como forma mais eficaz de garantir a todos um patamar comum nos pontos de chegada.

Será indispensável, portanto, que existam mecanismos de avaliação dos resultados para aferir se os pontos de chegada estão sendo comuns. E para que tais mecanismos funcionem como sinalizadores eficazes, deverão ter como referência as competências de caráter geral que se quer constituir em todos os alunos e um corpo básico de conteúdos, cujo ensino e aprendizagem, se bem sucedidos, propiciam a constituição de tais competências. O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e, mais recentemente, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), operados pelo MEC; os sistemas de avaliação já existentes em alguns estados e que tendem a ser criados nas demais unidades da federação; e os sistemas de estatísticas e indicadores educacionais constituem importantes mecanismos para promover a eficiência e a igualdade.

A análise dos resultados das avaliações e dos indicadores de desempenho deverá permitir às escolas, com o apoio das demais instâncias dos sistemas de ensino, avaliar seus processos, verificar suas debilidades e qualidades, e planejar a melhoria do processo educativo. Da mesma forma, deverá permitir aos organismos responsáveis pela política educacional desenvolver mecanismos de compensação que superem gradativamente as desigualdades educacionais.

Os sistemas e os estabelecimentos de ensino médio deverão criar e desenvolver, com a participação da equipe docente e da comunidade, alternativas institucionais com identidade própria, baseadas na missão de educação do jovem, usando ampla e destemidamente as várias possibilidades de

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organização pedagógica, espacial e temporal, e de articulações e parcerias com instituições públicas ou privadas, abertas pela LDB, para formular políticas de ensino focalizadas nessa faixa etária, que contemplem a formação básica e a preparação geral para o trabalho, inclusive, se necessário e oportuno, integrando as séries finais do ensino fundamental com o ensino médio, em virtude da proximidade de faixa etária do alunado e das características comuns de especialização disciplinar que esses segmentos do sistema de ensino guardam entre si.

Os sistemas deverão fomentar no conjunto dos estabelecimentos de ensino médio, e cada um deles, sempre que possível, na sua organização curricular, uma ampla diversificação dos tipos de estudos disponíveis, estimulando alternativas que a partir de uma base comum, ofereçam opções de acordo com as características de seus alunos e as demandas do meio social: dos estudos mais abstratos e conceituais aos programas que alternam formação escolar e experiência profissional; dos currículos mais humanísticos aos mais científicos ou artísticos, sem negligenciar em todos os casos os mecanismos de mobilidade para corrigir erros de decisão cometidos pelos alunos ou determinados por desigualdade na oferta de alternativas.

A diversificação deverá ser acompanhada de sistemas de avaliação que permitam o acompanhamento permanente dos resultados, tomando como referência as competências básicas a serem alcançadas por todos os alunos, de acordo com a LDB, as presentes diretrizes e as propostas pedagógicas das escolas.

A eficácia dessas diretrizes supõe a existência de autonomia das instâncias regionais dos sistemas de ensino público e sobretudo dos estabelecimentos. A autonomia das escolas é, mais que uma diretriz, um mandamento da LDB. As diretrizes, neste caso, buscam indicar alguns atributos para evitar dois riscos: o primeiro seria burocratizá-la, transformando-a em mais um mecanismo de controle prévio, tão ao gosto das burocracias centrais da educação; o segundo seria transformar a autonomia em outra forma de criar privilégios que produzem exclusão.

Em relação ao risco de burocratização é preciso destacar que a LDB vincula autonomia e proposta pedagógica. Na verdade, a proposta pedagógica é a forma pela qual a autonomia se exerce. E a proposta pedagógica não é uma "norma", nem um documento ou formulário a ser preenchido. Não obedece a prazos formais nem deve seguir especificações padronizadas. Sua eficácia depende de conseguir pôr em prática um processo permanente de mobilização de "corações e mentes" para alcançar objetivos compartilhados.

As instâncias centrais dos sistemas de ensino precisam entender que existe um espaço de decisão privativo da escola e do professor em sala de aula que resiste aos controles formais. A legitimidade e eficácia de qualquer intervenção externa nesse espaço privativo depende de convencer a todos do seu valor para a ação pedagógica. Vale dizer que a proposta pedagógica não existe sem um forte protagonismo do professor e sem que este dela se aproprie.

Seria desastroso, nesse sentido, transformar em obrigação a incumbência que a LDB atribui à escola de decidir sobre sua proposta pedagógica, porque isto ativaria os sempre presentes anticorpos da resistência ou da ritualização. Contrariamente, a proposta pedagógica para cuja decisão a escola exerce sua autonomia, deve expressar um acordo no qual as instâncias centrais serão parceiras facilitadoras do árduo exercício de explicitar, debater e formar consenso sobre objetivos, visando potencializar recursos. A autonomia escolar, portanto […]não implica na omissão do Estado. Mudam-se os papéis. Os órgãos centrais passam a exercer funções de formulação das diretrizes da política educacional e assessoramento à implementação dessas políticas.

Já se disse que, salvo exceções das grandes escolas de elite, acadêmicas ou técnicas, o ensino público médio no Brasil não tem identidade institucional própria. Expandiu-se às custas de espaços físicos e recursos financeiros e pedagógicos do ensino fundamental, qual passageiro clandestino de um navio de carências. Contraditoriamente essa distorção pode agora ser uma vantagem.

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O futuro está aberto para o aparecimento de muitas formas de organização do ensino médio, sob o princípio da flexibilidade e da autonomia consagrados pela LDB. Teremos de usar essa vantagem para estimular identidades escolares mais libertas da padronização burocrática, que formulem e implementem propostas pedagógicas próprias, inclusive de articulação do ensino médio com a educação profissional.

O segundo risco potencial é o de que a autonomia venha a reforçar privilégios e exclusões. Sobre este deve-se observar que a autonomia subordina-se aos princípios e diretrizes indicados na lei e apresentados nesta deliberação em seus desdobramentos pedagógicos, com destaque para o acolhimento da diversidade de alunos e professores, para os ideais da política da igualdade e para a solidariedade como elemento constitutivo das identidades. Como alerta Azanha: […] a autonomia escolar, desligada dos pressupostos éticos da tarefa educativa poderá até favorecer a emergência e o reforço de sentimentos e atitudes contrários à convivência democrática.

A competência dos sistemas para definir e implementar políticas de educação média legitima-se na observação de prioridades e formas de financiamento que contemplem o interesse da maioria. No âmbito escolar a autonomia deve refletir o compromisso da proposta pedagógica com a aprendizagem dos alunos pelo uso equânime do tempo, do espaço físico, das instalações e equipamentos, dos recursos financeiros, didáticos e humanos.

Na sala de aula, a autonomia tem como pressuposto, além da capacidade didática do professor, seu compromisso e, por que não dizer, cumplicidade com os alunos, que fazem do trabalho cotidiano de ensinar um permanente voto de confiança na capacidade de todos para aprender. O professor como profissional construirá sua identidade com ética e autonomia se, inspirado na estética da sensibilidade, buscar a qualidade e o aprimoramento da aprendizagem dos alunos, e, inspirado na política da igualdade, desenvolver um esforço continuado para garantir a todos oportunidades iguais de aprendizagem e tratamento adequado às suas características pessoais.

Por essa razão, a autonomia depende de qualificação permanente dos que trabalham na escola, em especial dos professores. Sem a garantia de condições para que os professores aprendam a aprender e continuem aprendendo, a proposta pedagógica corre o risco de tornar-se mais um ritual. E como toda prática ritualizada terminará servindo de artifício para dissimular a falta de conhecimento e capacitação no fazer didático.

A melhor forma de verificar esses compromissos é instituir mecanismos de prestação de contas que facilitem a "responsabilização" dos envolvidos. Alguém já disse que precisamos traduzir para o português o termo "accountability" com o pleno significado que tem: processo pelo qual uma pessoa, organismo ou instituição presta contas e assume a responsabilidade por seus resultados para seus constituintes, financiadores, usuários ou clientes.

Mesmo não dispondo de correspondência lingüística precisa, é disto que trata esta diretriz: "responsabilização", avaliação de processos e de resultados, participação dos interessados, divulgação de informações, que imprimam transparência às ações dos gestores, diretores, professores, para que a sociedade em geral e os alunos e suas famílias em particular participem e acompanhem as decisões sobre objetivos, prioridades e uso dos recursos.

Mais uma vez, portanto, destaca-se a importância dos sistemas de avaliação de resultados e de indicadores educacionais que já estão sendo operados, ou os que venham a se instituir. Para a identidade e a diversidade, a informação é indispensável na garantia da igualdade de resultados. Para a autonomia, ela é condição de transparência da gestão educacional e clareza da responsabilidade pelos resultados.

Mas os sistemas de avaliação e indicadores educacionais só cumprirão satisfatoriamente essas duas funções complementares, se todas as informações por eles produzidas – resultados de provas de

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rendimento, estatísticas e outras – forem públicas, no sentido de serem apropriadas pelos interessados, dos membros da comunidade escolar à opinião pública em geral.

O exercício pleno da autonomia se manifesta na formulação de uma proposta pedagógica própria, direito de toda instituição escolar. Essa vinculação deve ser permanentemente reforçada, buscando evitar que as instâncias centrais do sistema educacional burocratizem e ritualizem aquilo que no espírito da lei deve ser, antes de mais nada, expressão de liberdade e iniciativa, e que por essa razão não pode prescindir do protagonismo de todos os elementos da escola, em especial dos professores.

A proposta pedagógica deve refletir o melhor equacionamento possível entre recursos humanos, financeiros, técnicos, didáticos e físicos, para garantir tempos, espaços, situações de interação, formas de organização da aprendizagem e de inserção da escola no seu ambiente social, que promovam a aquisição dos conhecimentos, competências e valores previstos na lei, apresentados nestas diretrizes, e constantes da sua proposta pedagógica.

A proposta pedagógica antes de tudo deve ser simples: O projeto pedagógico da escola é apenas uma oportunidade para que algumas coisas aconteçam e dentre elas o seguinte: tomada de consciência dos principais problemas da escola, das possibilidades de solução e definição das responsabilidades coletivas e pessoais para eliminar ou atenuar as falhas detectadas. Nada mais, porém isso é muito e muito difícil.

A proposta pedagógica deve ser acompanhada por procedimentos de avaliação de processos e produtos, divulgação dos resultados e mecanismos de prestação de contas.

2. Um currículo voltado para as competências básicas

Do ponto de vista legal não há mais duas funções difíceis de conciliar para o ensino médio, nos termos em que estabelecia a Lei nº 5.692/71: preparar para a continuidade de estudos e habilitar para o exercício de uma profissão. A duplicidade de demanda continuará existindo porque a idade de conclusão do ensino fundamental coincide com a definição de um projeto de vida, fortemente determinado pelas condições econômicas da família e, em menor grau, pelas características pessoais. Entre os que podem custear uma carreira educacional mais longa esse projeto abrigará um percurso que posterga o desafio da sobrevivência material para depois do curso superior. Entre aqueles que precisam arcar com sua subsistência precocemente ele demandará a inserção no mercado de trabalho logo após a conclusão do ensino obrigatório, durante o ensino médio ou imediatamente depois deste último.

Vale lembrar, no entanto, que, mesmo nesses casos, o percurso educacional pode não excluir, necessariamente, a continuidade dos estudos. Ao contrário, para muitos, o trabalho se situa no projeto de vida como uma estratégia para tornar sustentável financeiramente um percurso educacional mais ambicioso. E em qualquer de suas variantes, o futuro do jovem e da jovem deste final de século será sempre um projeto em aberto, podendo incluir períodos de aprendizagem – de nível superior ou não – intercalados com experiências de trabalho produtivo de diferente natureza, além das escolhas relacionadas à sua vida pessoal: constituir família, participar da comunidade, eleger princípios de consumo, de cultura e lazer, de orientação política, entre outros. A condução autônoma desse projeto de vida reclama uma escola média de sólida formação geral.

Mas o significado de educação geral no nível médio, segundo o espírito da LDB, nada tem a ver com o ensino enciclopedista e academicista dos currículos de ensino médio tradicionais, reféns do exame vestibular. Vale a pena examinar o já citado artigo 35 da lei, na ótica pedagógica.

Enquanto aprofundamento dos conhecimentos já adquiridos, o perfil pedagógico do ensino médio tem como ponto de partida o que a LDB estabelece em seu artigo 32 como objetivo do ensino fundamental. Deverá, assim, continuar o processo de desenvolvimento da capacidade de aprender, com destaque

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para o aperfeiçoamento do uso das linguagens como meios de constituição dos conhecimentos, da compreensão e da formação de atitudes e valores.

O trabalho e a cidadania são previstos como os principais contextos nos quais a capacidade de continuar aprendendo deve se aplicar, a fim de que o educando possa adaptar-se às condições em mudança na sociedade, especificamente no mundo das ocupações. A LDB, nesse sentido, é clara: em lugar de estabelecer disciplinas ou conteúdos específicos, destaca competências de caráter geral, dentre as quais a capacidade de aprender é decisiva. O aprimoramento do educando como pessoa humana destaca a ética, a autonomia intelectual e o pensamento crítico. Em outras palavras, convoca a constituição de uma identidade autônoma.

Ao propor a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos do processo produtivo, a LDB insere a experiência cotidiana e o trabalho no currículo do ensino médio como um todo e não apenas na sua base comum, como elementos que facilitarão a tarefa educativa de explicitar a relação entre teoria e prática. Sobre este último aspecto, dada sua importância para as presentes diretrizes, vale a pena deter-se.

Os processos produtivos dizem respeito a todos os bens, serviços e conhecimentos com os quais o aluno se relaciona no seu dia-a-dia, bem como àqueles processos com os quais se relacionará mais sistematicamente na sua formação profissional. Para fazer a ponte entre teoria e prática, de modo a entender como a prática (processo produtivo) está ancorada na teoria (fundamentos científico-tecnológicos), é preciso que a escola seja uma experiência permanente de estabelecer relações entre o aprendido e o observado, seja espontaneamente, no cotidiano em geral, seja sistematicamente no contexto específico de um trabalho e suas tarefas laborais.

Castro, ao analisar o ensino médio de formação geral, observa: Não se trata nem de profissionalizar nem de deitar água para fazer mais rala a teoria. Trata-se, isso sim, de ensinar melhor a teoria – qualquer que seja – de forma bem ancorada na prática. As pontes entre a teoria e a prática têm que ser construídas cuidadosamente e de forma explícita. Para Castro essas pontes implicam em fazer a relação, por exemplo, entre o que se aprendeu na aula de matemática na segunda-feira com a lição sobre atrito na aula de física da terça e com a sua observação de um automóvel cantando pneus na tarde da quarta. E conclui afirmando que […] para a maioria dos alunos, infelizmente, ou a escola o ajuda a fazer estas pontes ou elas permanecerão sem ser feitas, perdendo-se assim a essência do que é uma boa educação.

Para dar conta desse mandato, a organização curricular do ensino médio deve ser orientada por alguns pressupostos indicados a seguir.

� Visão orgânica do conhecimento, afinada com as mutações surpreendentes que o acesso à informação está causando no modo de abordar, analisar, explicar e prever a realidade, tão bem ilustradas no hipertexto que cada vez mais entremeia o texto dos discursos, das falas e das construções conceituais.

� Disposição para perseguir essa visão organizando e tratando os conteúdos do ensino e as situações de aprendizagem, de modo a destacar as múltiplas interações entre as disciplinas do currículo.

� Abertura e sensibilidade para identificar as relações que existem entre os conteúdos do ensino e das situações de aprendizagem e os muitos contextos de vida social e pessoal, de modo a estabelecer uma relação ativa entre o aluno e o objeto do conhecimento e a desenvolver a capacidade de relacionar o aprendido com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações práticas.

� Reconhecimento das linguagens como formas de constituição dos conhecimentos e das identidades, portanto como o elemento-chave para constituir os significados, conceitos, relações, condutas e valores que a escola deseja transmitir.

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� Reconhecimento e aceitação de que o conhecimento é uma construção coletiva, forjada socio-interativamente na sala de aula, no trabalho, na família e em todas as demais formas de convivência.

� Reconhecimento de que a aprendizagem mobiliza afetos, emoções e relações com seus pares, além das cognições e habilidades intelectuais.

Com essa leitura, a formação básica a ser buscada no ensino médio se realizará mais pela constituição de competências, habilidades e disposições de condutas do que pela quantidade de informação. Aprender a aprender e a pensar, a relacionar o conhecimento com dados da experiência cotidiana, a dar significado ao aprendido e a captar o significado do mundo, a fazer a ponte entre teoria e prática, a fundamentar a crítica, a argumentar com base em fatos, a lidar com o sentimento que a aprendizagem desperta.

Uma organização curricular que responda a esses desafios requer:

� desbastar o currículo enciclopédico, congestionado de informações, priorizando conhecimentos e competências de tipo geral, que são pré-requisito tanto para a inserção profissional mais precoce quanto para a continuidade de estudos, entre as quais se destaca a capacidade de continuar aprendendo;

� (re)significar os conteúdos curriculares como meios para constituição de competências e valores, e não como objetivos do ensino em si mesmos;

� trabalhar as linguagens não apenas como formas de expressão e comunicação mas como constituidoras de significados, conhecimentos e valores;

� adotar estratégias de ensino diversificadas, que mobilizem menos a memória e mais o raciocínio e outras competências cognitivas superiores, bem como potencializem a interação entre aluno-professor e aluno-aluno para a permanente negociação dos significados dos conteúdos curriculares, de forma a propiciar formas coletivas de construção do conhecimento;

� estimular todos os procedimentos e atividades que permitam ao aluno reconstruir ou "reinventar" o conhecimento didaticamente transposto para a sala de aula, entre eles a experimentação, a execução de projetos, o protagonismo em situações sociais;

� organizar os conteúdos de ensino em estudos ou áreas interdisciplinares e projetos que melhor abriguem a visão orgânica do conhecimento e o diálogo permanente entre as diferentes áreas do saber;

� tratar os conteúdos de ensino de modo contextualizado, aproveitando sempre as relações entre conteúdos e contexto para dar significado ao aprendido, estimular o protagonismo do aluno e estimulá-lo a ter autonomia intelectual;

� lidar com os sentimentos associados às situações de aprendizagem para facilitar a relação do aluno com o conhecimento.

A doutrina de currículo que sustenta a proposta de organização e tratamento dos conteúdos com essas características envolve os conceitos de interdisciplinaridade e contextualização que requerem exame mais detido.

3. Interdisciplinaridade

A interdisciplinaridade deve ir além da mera justaposição de disciplinas e, ao mesmo tempo, evitar a diluição delas em generalidades. De fato, será principalmente na possibilidade de relacionar as disciplinas em atividades ou projetos de estudo, pesquisa e ação, que a interdisciplinaridade poderá ser uma prática pedagógica e didática adequada aos objetivos do ensino médio.

O conceito de interdisciplinaridade fica mais claro quando se considera o fato trivial de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de confirmação, de complementação, de negação, de ampliação, de iluminação de aspectos não distinguidos.

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Tendo presente esse fato, é fácil constatar que algumas disciplinas se identificam e aproximam, outras se diferenciam e distanciam, em vários aspectos: pelos métodos e procedimentos que envolvem, pelo objeto que pretendem conhecer, ou ainda pelo tipo de habilidades que mobilizam naquele que a investiga, conhece, ensina ou aprende.

A interdisciplinaridade também está envolvida quando os sujeitos que conhecem, ensinam e aprendem, sentem necessidade de procedimentos que, numa única visão disciplinar, podem parecer heterodoxos, mas fazem sentido quando chamados a dar conta de temas complexos. Se alguns procedimentos artísticos podem parecer profecias na perspectiva científica, também é verdade que a foto do cogumelo resultante da explosão nuclear também explica, de um modo diferente da física, o significado da bomba atômica.

Nesta multiplicidade de interações e negações recíprocas, a relação entre as disciplinas tradicionais pode ir da simples comunicação de idéias até a integração mútua de conceitos diretores, da epistemologia, da terminologia, da metodologia e dos procedimentos de coleta e análise de dados. Ou pode efetuar-se, mais singelamente, pela constatação de como são diversas as várias formas de conhecer. Pois até mesmo essa "interdisciplinaridade singela" é importante para que os alunos aprendam a olhar o mesmo objeto sob perspectivas diferentes.

É importante enfatizar que a interdisciplinaridade supõe um eixo integrador, que pode ser o objeto de conhecimento, um projeto de investigação, um plano de intervenção. Nesse sentido ela deve partir da necessidade sentida pelas escolas, professores e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever, algo que desafia uma disciplina isolada e atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários. Explicação, compreensão, intervenção são processos que requerem um conhecimento que vai além da descrição da realidade e mobiliza competências cognitivas para deduzir, tirar inferências ou fazer previsões a partir do fato observado.

A partir do problema gerador do projeto, que pode ser um experimento, um plano de ação para intervir na realidade ou uma atividade, são identificados os conceitos de cada disciplina que podem contribuir para descrevê-lo, explicá-lo e prever soluções. Dessa forma o projeto é interdisciplinar na sua concepção, execução e avaliação, e os conceitos utilizados podem ser formalizados, sistematizados e registrados no âmbito das disciplinas que contribuem para o seu desenvolvimento. O exemplo do projeto é interessante para mostrar que a interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão das múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade e trabalha todas as linguagens necessárias para a constituição de conhecimentos, comunicação e negociação de significados e registro sistemático de resultados.

Essa integração entre as disciplinas para buscar compreender, prever e transformar a realidade aproxima-se daquilo que Piaget chama de estruturas subjacentes. O autor destaca um aspecto importante nesse caso: a compreensão dessas estruturas subjacentes não dispensa o conhecimento especializado, ao contrário. Somente o domínio de uma dada área permite superar o conhecimento meramente descritivo para captar suas conexões com outras áreas do saber na busca de explicações.

Segundo Piaget, a excessiva "disciplinarização" […] se explica, com efeito, pelos preconceitos positivistas. Em uma perspectiva onde apenas contam os observáveis, que cumpre simplesmente descrever e analisar para então daí extrair as leis funcionais, é inevitável que as diferentes disciplinas pareçam separadas por fronteiras mais ou menos definidas ou mesmo fixas, já que estas se relacionam com a diversidade das categorias de observáveis que, por sua vez, estão relacionadas com nossos instrumentos subjetivos e objetivos de registro (percepções e aparelhos) [...] Por outro lado, logo que, ao violar as regras positivistas, [...] se procura explicar os fenômenos e suas leis, ao invés de apenas descrevê-los, forçosamente se estará ultrapassando as fronteiras do observável, já que toda causalidade decorre da necessidade inferencial, isto é, de deduções e estruturas operatórias irredutíveis à simples constatação [...] Nesse caso, a realidade fundamental não é mais o fenômeno observável, e sim a estrutura subjacente, reconstituída por dedução e que fornece uma explicação

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para os dados observados. Mas, por isso mesmo, tendem a desaparecer as fronteiras entre as disciplinas, pois as estruturas ou são comuns (tal como entre a Física e a Química [...]) ou solidárias umas com as outras (como sem dúvida haverá de ser o caso entre a Biologia e a Físico-Química).

A interdisciplinaridade pode ser também compreendida se considerarmos a relação entre o pensamento e a linguagem, descoberta pelos estudos socio-interacionistas do desenvolvimento e da aprendizagem. Esses estudos revelam que, seja nas situações de aprendizagem espontânea, seja naquelas estruturadas ou escolares, há uma relação sempre presente entre os conceitos e as palavras (ou linguagens) que os expressam, de tal forma que […] uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece na sombra. Todas as linguagens trabalhadas pela escola, portanto, são por natureza "interdisciplinares" com as demais áreas do currículo: é pela linguagem – verbal, visual, sonora, matemática, corporal ou outra – que os conteúdos curriculares se constituem em conhecimentos, isto é, significados que, ao serem formalizados por alguma linguagem, tornam-se conscientes de si mesmos e deliberados.

Sem a pretensão de esgotar o amplo campo de possibilidades que a interação entre linguagem e pensamento abre para a pedagogia da interdisciplinaridade, alguns exemplos poderiam ser lembrados: a linguagem verbal como um dos processos de constituição de conhecimento das ciências humanas e o exercício destas últimas como forma de aperfeiçoar o emprego da linguagem verbal formal; a matemática como um dos recursos constitutivos dos conceitos das ciências naturais e a explicação das leis naturais como exercício que desenvolve o pensamento matemático; a informática como recurso que pode contribuir para reorganizar e estabelecer novas relações entre conceitos científicos e estes como elementos explicativos dos princípios da informática; as artes como constitutivas do pensamento simbólico, metafórico e criativo, indispensáveis no exercício de análise, síntese e solução de problemas, competências que se busca desenvolver em todas as disciplinas.

Outra observação feita pelos estudos de Vigotsky refere-se à existência de uma interdependência entre e a aprendizagem dos conteúdos curriculares e o desenvolvimento cognitivo. Embora já não se aceitem as idéias herbatianas da disciplina formal, que supunha um associação linear entre cada disciplina escolar e um tipo específico de capacidade mental, também não é razoável supor que o desenvolvimento cognitivo se dá de forma independente da aprendizagem em geral e, em particular, da aprendizagem sistemática organizada pela escola.

Investigações sobre a aprendizagem de conceitos científicos em crianças e adolescentes indicam que a aprendizagem funciona como antecipação do desenvolvimento de capacidades intelectuais. Isso ocorre porque os pré-requisitos psicológicos para o aprendizado de diferentes matérias escolares são, em grande parte, os mesmos; o aprendizado de uma matéria influencia o desenvolvimento de funções superiores para além dos limites dessa matéria específica; as principais funções psíquicas envolvidas no estudo de várias matérias são interdependentes – suas bases comuns são a consciência e o domínio deliberado, as contribuições principais dos anos escolares. A partir dessas descobertas, conclui-se que todas as matérias escolares básicas atuam como uma disciplina formal, cada uma facilitando o aprendizado das outras […]

Essa "solidariedade didática" foi encontrada por Chervel no estudo que realizou da história dos "ensinos" ou das disciplinas escolares, no sistema de ensino francês. Um dado interessante encontrado por esse autor foi o significado diferente que as disciplinas vão adquirindo no decorrer de dois séculos, mesmo mantendo o mesmo nome nas grades curriculares. Nesse período, várias foram criadas, outras desapareceram, embora os conteúdos de seu ensino e as capacidades intelectuais que visavam constituir tenham continuado a ser desenvolvidos por meio de outros conteúdos com nomes idênticos ou por meio de conteúdos idênticos sob nomes diferentes.

Foi assim que durante quase um século a disciplina "sistema de pesos e medidas" fez parte do currículo da escola primária e secundária francesa, até que se consolidasse o sistema métrico decimal imposto à França no início do século XIX. Uma vez cumprido seu papel, desapareceu como disciplina

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escolar e os conteúdos e habilidades envolvidos na aprendizagem do sistema de medidas foram incorporados ao ensino da matemática de onde não mais se separaram. Da mesma forma a disciplina "redação" apareceu, desapareceu, incorporada a outras, e reapareceu por diversas vezes no currículo. Essa transitoriedade das disciplinas escolares mostra como é epistemologicamente frágil a sua demarcação rígida nos planos curriculares e argumenta em favor de uma postura mais flexível e integradora.

4. Contextualização

As múltiplas formas de interação que se podem prever entre as disciplinas tal como tradicionalmente arroladas nas "grades curriculares", fazem com que toda proposição de áreas ou agrupamento das mesmas seja resultado de um corte que carrega certo grau de arbitrariedade. Não há paradigma curricular capaz de abarcar a todas. Nesse sentido seria desastroso entender uma proposta de organização por áreas como fechada ou definitiva. Mais ainda seria submeter uma área interdisciplinar ao mesmo amordaçamento estanque a que hoje estão sujeitas as disciplinas tradicionais isoladamente, quando o importante é ampliar as possibilidades de interação não apenas entre as disciplinas nucleadas em uma área como entre as próprias áreas de nucleação. A contextualização pode ser um recurso para conseguir esse objetivo.

Contextualizar o conteúdo que se quer aprendido significa, em primeiro lugar, assumir que todo conhecimento envolve uma relação entre sujeito e objeto. Na escola fundamental ou média o conhecimento é quase sempre reproduzido das situações originais nas quais acontece sua produção. Por esta razão quase sempre o conhecimento escolar se vale de uma transposição didática, na qual a linguagem joga papel decisivo.

O tratamento contextualizado do conhecimento é o recurso que a escola tem para retirar o aluno da condição de espectador passivo. Se bem trabalhado permite que, ao longo da transposição didática, o conteúdo do ensino provoque aprendizagens significativas que mobilizem o aluno e estabeleçam entre ele e o objeto do conhecimento uma relação de reciprocidade. A contextualização evoca por isso áreas, âmbitos ou dimensões presentes na vida pessoal, social e cultural, e mobiliza competências cognitivas já adquiridas. As dimensões de vida ou contextos valorizados explicitamente pela LDB são o trabalho e a cidadania. As competências estão indicadas quando a lei prevê um ensino que facilite a ponte entre a teoria e a prática. É isto também que propõe Piaget, quando analisa o papel da atividade na aprendizagem: compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção, e será preciso curvar-se ante tais necessidades se o que se pretende, para o futuro, é moldar indivíduos capazes de produzir ou de criar, e não apenas de repetir.

Alguns exemplos podem ilustrar essa noção. Um deles refere-se ao uso da língua portuguesa no contexto das diferentes práticas humanas. O melhor domínio da língua e seus códigos se alcança quando se entende como ela é utilizada no contexto da produção do conhecimento científico, da convivência, do trabalho ou das práticas sociais: nas relações familiares ou entre companheiros, na política ou no jornalismo, no contrato de aluguel ou na poesia, na física ou na filosofia. O mesmo pode acontecer com a matemática. Uma das formas significativas para dominar a matemática é entendê-la aplicada na análise de índices econômicos e estatísticos, nas projeções políticas ou na estimativa da taxa de juros, associada a todos os significados pessoais, políticos e sociais que números dessa natureza carregam.

Outro exemplo refere-se ao conhecimento científico. Conhecer o corpo humano não é apenas saber como funcionam os muitos aparelhos do organismo, mas também entender como funciona o próprio corpo e que conseqüências isso tem em decisões pessoais da maior importância tais como fazer dieta, usar drogas, consumir gorduras ou exercer a sexualidade. A adolescente que aprendeu tudo sobre aparelho reprodutivo mas não entende o que se passa com seu corpo a cada ciclo mensal não aprendeu de modo significativo. O mesmo acontece com o jovem que se equilibra na prancha de surfe em movimento, mas não relaciona isso com as leis da física aprendidas na escola.

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Pesquisa recente com jovens de ensino médio revelou que estes não vêem nenhuma relação da química com suas vidas nem com a sociedade, como se o iogurte, os produtos de higiene pessoal e limpeza, os agrotóxicos ou as fibras sintéticas de suas roupas fossem questões de outra esfera de conhecimento, divorciadas da química que estudam na escola. No caso desses jovens, a química aprendida na escola foi transposta do contexto de sua produção original, sem que pontes tivessem sido feitas para contextos que são próximos e significativos. É provável que, por motivo semelhante, muitas pessoas que estudaram física na escola não consigam entender como funciona o telefone celular. Ou se desconcertem quando têm de estabelecer a relação entre o tamanho de um ambiente e a potência em "btus" do aparelho de ar-condicionado que estão por adquirir.

O trabalho é o contexto mais importante da experiência curricular no ensino médio, de acordo com as diretrizes traçadas pela LDB em seus artigos 35 e 36. O significado desse destaque deve ser devidamente considerado: na medida em que o ensino médio é parte integrante da educação básica e que o trabalho é princípio organizador do currículo, muda inteiramente a noção tradicional de educação geral acadêmica ou, melhor dito, academicista. O trabalho já não é mais limitado ao ensino profissionalizante. Muito ao contrário, a lei reconhece que, nas sociedades contemporâneas, todos, independentemente de sua origem ou destino socioprofissional, devem ser educados na perspectiva do trabalho enquanto uma das principais atividades humanas, enquanto campo de preparação para escolhas profissionais futuras, enquanto espaço de exercício de cidadania, enquanto processo de produção de bens, serviços e conhecimentos com as tarefas laborais que lhes são próprias.

A riqueza do contexto do trabalho para dar significado às aprendizagens da escola média é incomensurável. Desde logo na experiência da própria aprendizagem como um trabalho de constituição de conhecimentos, dando à vida escolar um significado de maior protagonismo e responsabilidade. Da mesma forma o trabalho é um contexto importante das ciências humanas e sociais, visando compreendê-lo enquanto produção de riqueza e forma de interação do ser humano com a natureza e o mundo social. Mas a contextualização no mundo do trabalho permite focalizar muito mais todos os demais conteúdos do ensino médio.

A produção de serviços de saúde pode ser o contexto para tratar os conteúdos de biologia, significando que os conteúdos dessas disciplinas poderão ser tratados de modo a serem, posteriormente, significativos e úteis a alunos que se destinem a essas ocupações. A produção de bens nas áreas de mecânica e eletricidade contextualiza conteúdos de física com aproveitamento na formação profissional de técnicos dessas áreas. Do mesmo modo as competências desenvolvidas nas áreas de linguagens podem ser contextualizadas na produção de serviços pessoais ou comunicação e, mais especificamente, no exercício de atividades tais como tradução, turismo ou produção de vídeos, serviços de escritório. Ou ainda os estudos sobre a sociedade e o indivíduo podem ser contextualizados nas questões que dizem respeito à organização, à gestão, ao trabalho de equipe, à liderança, no contexto de produção de serviços tais como relações públicas, administração, publicidade.

Conhecimentos e competências constituídos de forma assim contextualizada compõem a educação básica, são necessários para a continuidade de estudos acadêmicos e aproveitáveis em programas de preparação profissional seqüenciais ou concomitantes com o ensino médio, sejam eles cursos formais, seja a capacitação em serviço. Na verdade, constituem o que a LDB refere como preparação básica para o trabalho, tema que será retomado mais adiante.

O contexto do trabalho é também imprescindível para a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos a que se refere o artigo 35 da LDB. Por sua própria natureza de conhecimento aplicado, as tecnologias, sejam elas das linguagens e comunicação, da informação, do planejamento e gestão, ou as mais tradicionais, nascidas no âmbito das ciências da natureza, só podem ser entendidas de forma significativa se contextualizadas no trabalho. A esse respeito é significativo o fato de que as estratégias de aprendizagem contextualizada ou "situada", como é designada na literatura de língua inglesa, tenham nascido nos programas de preparação profissional, dos quais se transferiram depois para as salas de aula tradicionais. Suas características, tal como descritas pela

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literatura e resumidas por Stein, indicam que a contextualização do conteúdo de ensino é o que efetivamente ocorre no ensino profissional de boa qualidade: Na aprendizagem situada os alunos aprendem o conteúdo por meio de atividades em lugar de adquirirem informação em unidades específicas organizadas pelos instrutores. O conteúdo é inerente ao processo de fazer uma tarefa e não se apresenta separado do barulho, da confusão e das interações humanas que prevalecem nos ambientes reais de trabalho.

Outro contexto relevante indicado pela LDB é o do exercício da cidadania. Desde logo é preciso que a proposta pedagógica assuma o fato trivial de que a cidadania não é dever nem privilégio de uma área específica do currículo nem deve ficar restrita a um projeto determinado. Exercício de cidadania é testemunho que se inicia na convivência cotidiana e deve contaminar toda a organização curricular. As práticas sociais e políticas e as práticas culturais e de comunicação são parte integrante do exercício cidadão, mas a vida pessoal, o cotidiano e a convivência e as questões ligadas ao meio ambiente, corpo e saúde também. Trabalhar os conteúdos das ciências naturais no contexto da cidadania pode significar um projeto de tratamento da água ou do lixo da escola ou a participação numa campanha de vacinação, ou a compreensão de por que as construções despencam quando os materiais utilizados não têm a resistência devida. E de quais são os aspectos técnicos, políticos e éticos envolvidos no trabalho da construção civil.

Objetivo semelhante pode ser alcançado se a eleição do grêmio estudantil for uma oportunidade para conhecer melhor os sistemas políticos, ou para entender como a matemática traduz a tendência de voto por meio de um gráfico de barras, ou para discutir questões éticas relacionadas à prática eleitoral. Da mesma forma as competências da área de linguagens podem ser trabalhadas no contexto da comunicação na sala de aula, da análise da novela da televisão, dos diferentes usos da língua dependendo das situações de trabalho, da comunicação coloquial.

O contexto que é mais próximo do aluno e mais facilmente explorável para dar significado aos conteúdos da aprendizagem é o da vida pessoal, cotidiano e convivência. O aluno vive num mundo de fatos regidos pelas leis naturais e está imerso num universo de relações sociais. Está exposto a informações cada vez mais acessíveis e rodeado por bens cada vez mais diversificados, produzidos com materiais sempre novos. Está exposto também a vários tipos de comunicação pessoal e de massa.

O cotidiano e as relações estabelecidas com o ambiente físico e social devem permitir dar significado a qualquer conteúdo curricular, fazendo a ponte entre o que se aprende na escola e o que se faz, vive e observa no dia-a-dia. Aprender sobre a sociedade, o indivíduo e a cultura e não compreender ou reconhecer as relações existentes entre adultos e jovens na própria família é perder a oportunidade de descobrir que as ciências também contribuem para a convivência e a troca afetiva. O respeito ao outro e ao público, essencial à cidadania, também se inicia nas relações de convivência cotidiana, na família, na escola, no grupo de amigos.

Na vida pessoal há um contexto importante o suficiente para merecer consideração específica, que é o do meio ambiente, corpo e saúde. Condutas ambientalistas responsáveis subentendem um protagonismo forte no presente, no meio ambiente imediato da escola, da vizinhança, do lugar onde se vive. Para desenvolvê-las é importante que os conhecimentos das ciências, da matemática e das linguagens sejam relevantes na compreensão das questões ambientais mais próximas e estimulem a ação para resolvê-las.

As visões, fantasias e decisões sobre o próprio corpo e saúde, base para um desenvolvimento autônomo, poderão ser mais bem orientadas se as aprendizagens da escola estiverem significativamente relacionadas com as preocupações comuns na vida de todo jovem: aparência, sexualidade e reprodução, consumo de drogas, hábitos de alimentação, limite e capacidade física, repouso, atividade, lazer.

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Examinados os exemplos dados, é possível generalizar a contextualização como recurso para tornar a aprendizagem significativa ao associá-la com experiências da vida cotidiana ou com os conhecimentos adquiridos espontaneamente. É preciso, no entanto, cuidar para que essa generalização não induza à banalização, com o risco de perder o essencial da aprendizagem escolar que é seu caráter sistemático, consciente e deliberado. Em outras palavras: contextualizar os conteúdos escolares não é liberá-los do plano abstrato da transposição didática para aprisioná-los no espontaneísmo e na cotidianeidade. Para que fique claro o papel da contextualização, é necessário considerar, como no caso da interdisciplinaridade, seu fundamento epistemológico e psicológico.

O jovem não inicia a aprendizagem escolar partindo do zero, mas com uma bagagem formada por conceitos já adquiridos espontaneamente, em geral mais carregados de afetos e valores por resultarem de experiências pessoais. Ao longo do desenvolvimento aprende-se a abstrair e generalizar conhecimentos aprendidos espontaneamente, mas é bem mais difícil formalizá-los ou explicá-los em palavras porque, diferentemente da experiência escolar, não são conscientes nem deliberados.

É possível assim afirmar, reiterando premissas das teorias interacionistas do desenvolvimento e da aprendizagem, que o desenvolvimento intelectual baseado na aprendizagem espontânea é ascendente, isto é, inicia-se de modo inconsciente e até caótico, de acordo com uma experiência que não é controlada, e encaminha-se para níveis mais abstratos, formais e conscientes. Ao iniciar uma determinada experiência de aprendizagem escolar, portanto, um aluno pode até saber os conceitos nela envolvidos, mas não sabe que os tem porque nesse caso vale a afirmação de que a análise da realidade com a ajuda de conceitos precede a análise dos próprios conceitos.

Na escola, os conteúdos curriculares já são apresentados ao aluno na sua forma mais abstrata, formulados em graus crescentes de generalidade. A sua relação com esse conhecimento é, portanto, mais longínqua, mais fortemente mediada pela linguagem externa, menos pessoal. Nessas circunstâncias, ainda que aprendido e satisfatoriamente formulado em nível de abstração aceitável, o conhecimento tem muita dificuldade para aplicar-se a novas situações concretas que devem ser entendidas nos mesmos termos abstratos pelos quais o conceito é formulado.

Da mesma forma como foi longo o processo pelo qual os conceitos espontâneos ganharam níveis de generalidade até serem entendidos e formulados de modo abstrato, é longo e árduo o processo inverso, de transição do abstrato para o concreto e particular. Isso sugere que o processo de aquisição do conhecimento sistemático escolar tem uma direção oposta à do conhecimento espontâneo: descendente, de níveis formais e abstratos para aplicações particulares.

Ambos os processos de desenvolvimento, do conhecimento espontâneo ao conhecimento abstrato e deliberado e deste último para a compreensão e aplicação a situações particulares concretas, não são independentes. Já porque a realidade à qual se referem é a mesma – o mundo físico, o mundo social, as relações pessoais – já porque em ambos os casos a linguagem joga papel decisivo como elemento constituidor. Na prática, o conhecimento espontâneo auxilia a dar significado ao conhecimento escolar. Este último, por sua vez, reorganiza o conhecimento espontâneo e estimula o processo de sua abstração.

Quando se recomenda a contextualização como princípio de organização curricular, o que se pretende é facilitar a aplicação da experiência escolar para a compreensão da experiência pessoal em níveis mais sistemáticos e abstratos e o aproveitamento da experiência pessoal para facilitar o processo de concreção dos conhecimentos abstratos que a escola trabalha. Isso significa que a ponte entre teoria e prática, recomendada pela LDB e comentada por Castro, deve ser de mão dupla. Em ambas as direções estão em jogo competências cognitivas básicas: raciocínio abstrato, capacidade de compreensão de situações novas, que é a base da solução de problemas, para mencionar apenas duas.

Não se entendam, portanto, a contextualização como banalização do conteúdo das disciplinas, numa perspectiva espontaneísta. Mas como recurso pedagógico para tornar a constituição de conhecimentos

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um processo permanente de formação de capacidades intelectuais superiores. Capacidades que permitam transitar inteligentemente do mundo da experiência imediata e espontânea para o plano das abstrações e deste para a reorganização da experiência imediata, de forma a aprender que situações particulares e concretas podem ter uma estrutura geral.

De outra coisa não trata Piaget quando, a propósito do ensino da matemática, observa que muitas operações lógico-matemáticas já estão presentes na criança antes da idade escolar sob formas elementares ou triviais mas não menos significativas. Mas acrescenta, em seguida: Uma coisa é aprender na ação e assim aplicar praticamente certas operações, outra é tomar consciência das mesmas para delas extrair um conhecimento reflexivo e teórico, de tal forma que nem os alunos nem os professores cheguem a suspeitar de que o conteúdo do ensino ministrado se pudesse apoiar em qualquer tipo de estruturas naturais.

Para concluir estas considerações sobre a contextualização, é interessante citar a síntese apresentada por Stein sobre as características da aprendizagem contextualizada: em relação ao conteúdo, busca desenvolver o pensamento de ordem superior em lugar da aquisição de fatos independentes da vida real; preocupa-se mais com a aplicação do que com a memorização; sobre o processo assume que a aprendizagem é sócio-interativa, envolve necessariamente os valores, as relações de poder, a negociação permanente do próprio significado do conteúdo entre os alunos envolvidos; em relação ao contexto, propõe não apenas trazer a vida real para a sala de aula, mas criar as condições para que os alunos (re)experienciem os eventos da vida real a partir de múltiplas perspectivas.

A reorganização da experiência cotidiana e espontânea tem assim um resultado importante para a educação, pois é principalmente nela que intervêm os afetos e valores. É com base nela, embora não exclusivamente, que se constróem as visões do outro e do mundo, pois uma parte relevante da experiência espontânea é feita de interação com os outros, de influencia dos meios de comunicação, de convivência social, pelos quais os significados são negociados, para usar o termo de Stein.

Na medida em que a contextualização facilita o significado da experiência de aprendizagem escolar e a (re)significação da aprendizagem baseada na experiência espontânea, ela pode – e deve – questionar os dados desta última: os problemas ambientais, os preconceitos e estereótipos, os conteúdos da mídia, a violência nas relações pessoais, os conceitos de verdadeiro e falso na política, e assim por diante. Dessa forma, voltando a alguns exemplos dados, se a aprendizagem do sistema reprodutivo não leva a questionar os mitos da feminilidade e da masculinidade, além de não ser significativa essa aprendizagem em nada colaborou para reorganizar o aprendido espontaneamente. Se a aprendizagem das ciências não facilitar o esforço para distinguir entre o fato e a interpretação ou para identificar as falhas da observação cotidiana, se não facilitar a reprodução de situações nas quais o emprego da ciência depende da participação e interação entre as pessoas e destas com um conjunto de equipamentos e materiais, pode-se dizer que não criou competências para abstrair de forma inteligente o mundo da experiência imediata.

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TEXTO 09: BRASIL. Conselho Nacional de Educação – Câmara de educação básica. Parecer no. CEB 15/98. 01/06/98. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/PCB1598.pdf. Acesso em: 12/02/2005.

Fundamentos Estéticos, Políticos E Éticos Do Novo Ensino Brasileiro

Houve tempo em que os deuses existiam, mas não as espécies mortais. Quando chegou o momento assinalado pelo destino para sua criação, os deuses formaram-nas nas entranhas da terra, com uma mistura de terra, de fogo e dos elementos associados ao fogo e à terra. Quando chegou a ocasião de as trazer à luz, encarregaram Prometeu e Epimeteu de as prover de qualidades apropriadas. Mas Epimeteu pediu a Prometeu que lhe deixasse fazer sozinho a partilha. “Quando acabar, disse ele, tu virás examiná-la”. Satisfeito o pedido, procedeu à partilha, atribuindo a uns a força sem a velocidade, aos outros a velocidade sem a força; deu armas a estes, recusou-as àqueles, mas concedeu-lhes outros meios de conservação; aos que tinham pequena corpulência deu asas para fugirem ou refúgio subterrâneo; aos que tinham a vantagem da corpulência esta bastava para os conservar; e aplicou este processo de compensação a todos os animais. Estas medidas de precaução eram destinadas a evitar o desaparecimento das raças. Então, quando lhes havia fornecido os meios de escapar à mútua destruição, quis ajudá-los a suportar as estações de Zeus; para isso, lembrou-se de os revestir de pêlos espessos e peles fortes, suficientes para os abrigar do frio, capazes também de os proteger do calor e destinados, finalmente a servir, durante o sono, de coberturas naturais, próprias de cada um deles; deu-lhes, além disso, como calçado, sapatos de corno ou peles calosas e desprovidas de sangue; em seguida deu-lhes alimentos variados, segundo as espécies: a uns, ervas do chão, a outros frutos das árvores, a outros raízes; a alguns deu outros animais a comer, mas limitou sua fecundidade e multiplicou a das vítimas, para assegurar a preservação da raça. Todavia, Epimeteu, pouco reflectido, tinha esgotado as qualidades a distribuir, mas faltava –lhe ainda prover a espécie humana e não sabia como resolver o caso. Então Prometeu veio examinar a partilha; viu os animais bem providos de tudo, mas o homem nu, descalço, sem cobertura nem armas, e aproximava -se o dia fixado em que ele devia sair do seio da terra para a luz. Então Prometeu, não sabendo que inventar para dar ao homem um meio de conservação, roubou a Hefaisto e a Ateneia o conhecimento das artes com o fogo, pois sem o fogo o conhecimento das artes é impossível e inútil, e presenteou com isto o homem. O homem ficou assim com ciência para conservar a vida, mas faltava-lhe a ciência política; esta, possuía-a Zeus, e Prometeu já não tinha tempo de entrar na acrópole que Zeus habita e onde velam, aliás, temíveis guardas. Introduziu-se, pois, furtivamente na oficina comum em que Ateneia e Hefaisto cultivavam o seu amor às artes, furtou ao Deus a sua arte de manejar o fogo e à Deusa a arte que lhe é própria, e ofereceu tudo ao homem, tornando-o apto a procurar recursos para viver. Diz-se que Prometeu foi depois punido pelo roubo que tinha cometido, por culpa de Epimeteu. Quando o homem entrou na posse do seu quinhão divino, a princípio, por causa da sua afinidade com os deuses, acreditou na existência deles, privilégio só a ele atribuído, entre todos os animais, e começou a erguer-lhes altares e estátuas; seguidamente, graças à ciência que possuía, conseguiu articular a voz e formar os nomes das coisas, inventar as casas, o vestuário, o calçado, os leitos e tirar alimentos da terra. Com estes recursos, os homens, na sua origem, viviam isolados e as cidades não existiam; por isso morriam sob os ataques dos animais selvagens, mais fortes do que eles; bastavam as artes mecânicas, para os fazer viver; mas tinham insuficientes recursos

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na guerra contra os animais, porque não possuíam ainda a ciência política de que a arte militar faz parte. Por conseqüência procuraram reunir-se e pôr-se em segurança, fundando cidades; mas, quando se reuniam, faziam mal uns aos outros, porque lhes faltava a ciência política, de modo que se separavam novamente e morriam. Então Zeus, receando que a nossa raça se extinguisse, encarregou Hermes de levar aos homens o respeito e a justiça para servirem de normas às cidades e unir os homens pelos laços da amizade. Então Hermes perguntou a Zeus de que maneira devia dar aos homens a justiça e o respeito. “Devo distribuí-los, como se distribuíram as artes? Ora as artes foram divididas de maneira que um único homem, especializado na arte médica, basta para um grande número de profanos e o mesmo quanto aos outros artistas. Devo repartir assim a justiça e o respeito pelos homens, ou fazer que pertençam a todos?” – “Que pertençam a todos, respondeu Zeus; que todos tenham a sua parte, porque as cidades não poderiam existir se estas virtudes fossem, como as artes, quinhão exclusivo de alguns; estabelece, além disso, em meu nome, esta lei: que todo homem incapaz de respeito e de justiça seja exterminado como o flagelo da sociedade”. Eis como e porquê, Sócrates, os atenienses e outros povos, quando se trata de arquitectura ou de qualquer arte profissional, entendem que só um pequeno número pode dar conselhos, e se qualquer outra pessoa, fora deste pequeno número, se atreve a emitir opinião, eles não o toleram, como acabo de dizer, e têm razão, ao que me parece. Mas, quando se delibera sobre política, em que tudo assenta na justiça e no respeito, têm razão de admitir toda a gente, porque é necessário que todos tenham parte na virtude cívica. Doutra forma, não pode existir a cidade.

Platão. Protágoras

A prática administrativa e pedagógica dos sistemas de ensino e de suas escolas, as formas de convivência no ambiente escolar, os mecanismos de formulação e implementação de políticas, os critérios de alocação de recursos, a organização do currículo e das situações de aprendizagem, os procedimentos de avaliação, deverão ser coerentes com os valores estéticos, políticos e éticos que inspiram a Constituição e a LDB, organizados sob três consignas: sensibilidade, igualdade e identidade. 1. A estética da sensibilidade Como expressão do tempo contemporâneo, a estética da sensibilidade vem substituir a da repetição e padronização, hegemônica na era das revoluções industriais. Ela estimula a criatividad e, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a afetividade, para facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente. Diferentemente da estética estruturada, própria de um tempo em que os fatores físicos e mecânicos são determinantes do modo de produzir e conviver, a estética da sensibilidade valoriza a leveza, a delicadeza e a sutileza1. Estas, por estimularem a compreensão não apenas do explicitado mas também, e principalmente, do insinuado, são mais contemporâneas de uma era em que a informação caminha pelo vácuo, de um tempo no qual o conhecimento concentrado no microcircuito do computador vai se impondo sobre o valor das matérias primas e da força física presentes nas estruturas mecânicas.

1 Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio.

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A estética da sensibilidade realiza um esforço permanente para devolver ao âmbito do trabalho e da produção, a criação e a beleza daí banidos pela moralidade industrial tailorista. Por esta razão procura não limitar o lúdico a espaços e tempos exclusivos, mas integrar diversão, alegria e senso de humor a dimensões de vida muitas vezes consideradas afetivamente austeras como a escola, o trabalho, os deveres, a rotina cotidiana. Mas a estética da sensibilidade quer também educar pessoas que saibam transformar o uso do tempo livre num exercício produtivo porque criador. E que aprendam a fazer do prazer, do entretenimento, da sexualidade, um exercício de liberdade responsável. Como expressão de identidade nacional a estética da sensibilidade facilitará o econhecimento e valorização da diversidade cultural brasileira e das formas de perceber e expressar a realidade próprias dos gêneros, das etnias, e das muitas regiões e grupos sociais do país. Assim entendida a estética da sensibilidade é um substrato indispensável para uma pedagogia que se quer brasileira, portadora da riqueza de cores, sons e sabores deste país, aberta à diversidade dos nossos alunos e professores, mas que não abdica da responsabilidade de constituir cidadania para um mundo que se globaliza e de dar significado universal aos conteúdos da aprendizagem. Nos produtos da atividade humana, sejam eles bens, serviços ou conhecimentos, a estética da sensibilidade valoriza a qualidade. Nas práticas e processos, a busca de aprimoramento permanente. Ambos, qualidade e aprimoramento, associam-se ao prazer de fazer bem feito e à insatisfação com o razoável quando é possível realizar o bom e com este, quando o ótimo é factível. Para essa concepção estética, o ensino de má qualidade é, em sua feiura, uma agressão à sensibilidade e por isso será também anti democrático e anti ético. A estética da sensibilidade não é um princípio inspirador apenas do ensino de conteúdos ou atividades expressivas, mas uma atitude diante de todas as formas de expressão que deve estar presente no desenvolvimento do currículo e na gestão escolar. Ela não se dissocia das dimensões éticas e políticas da educação porque quer promover a crítica à vulgarização da pessoa; às formas estereotipadas e reducionistas de expressar a realidade; às manifestações que banalizam os afetos e brutalizam as relações pessoais. Numa escola inspirada na estética da sensibilidade o espaço e o temposão planejados para acolher, expressar a diversidade dos alunos e oportunizar trocas de significados. Nessa escola, a descontinuidade, a dispersão caótica, a padronização, o ruído, cederão lugar à continuidade, à diversidade expressiva, ao ordenamento e à permanente estimulação pelas palavras, imagens, sons, gestos e expressões de pessoas que buscam incansavelmente superar a fragmentação dos significados e o isolamento que ela provoca. Finalmente a estética da sensibilidade não exclui outras estéticas, próprias de outros tempos e lugares. Como forma mais avançada de expressão ela as sub-assume explica, entende, critica, contextualiza porque não convive com a exclusão, a intolerância e a intransigência. 2. A política da igualdade A política da igualdade incorpora a igualdade formal, conquista do período de constituição dos grandes estados nacionais. Seu ponto de partida é o reconhecimento dos direitos humanos e o exercício dos direitos e deveres da cidadania, como fundamento da preparação do educando para a vida civil. Mas a igualdade formal não basta a uma sociedade na qual a emissão e recepção da informação em tempo real está ampliando de modo antes inimaginável o acesso às pessoas e aos lugares, permitindo comparar e avaliar qualidade de vida, hábitos, formas de convivência, oportunidades de trabalho e de lazer.

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Para essa sociedade a política da igualdade vai se expressar também na busca da equidade no acesso à educação, ao emprego, à saúde, ao meio ambiente saudável, e outros benefícios sociais e no combate a toda as formas de preconceito e discriminação por motivo de raça, sexo, religião, cultura, condição econômica, aparência ou condição física. A política da igualdade se traduz pela compreensão e respeito a Estado de Direito e a seus princípios constitutivos abrigados na Constituição: o sistema federativo e o regime republicano e democrático. Mas contextualiza a igualdade na sociedade da informação, como valor que é “público” por ser de interesse de todos, não exclusivamente do Estado, muito menos do governo. Nessa perspectiva a política da igualdade deverá fortalecer uma forma contemporânea de lidar com o público e o privado. E aqui ela associa-se à ética ao valorizar atitudes e condutas responsáveis em relação aos bens e serviços tradicionalmente entendidos como “públicos” no sentido estatal, e afirmativas na demanda de transparência e democratização no tratamento dos assuntos públicos. E o faz por reconhecer que uma das descobertas importantes deste final de século é a de que …motivação, criatividade, iniciativa, capacidade de aprendizagem, todas essas coisas ocorrem no nível dos indivíduos e das comunidades de dimensões humanas, nas quais eles vivem o seu dia a dia …um tipo de sociedade extremamente complexa, onde os custos da comunicação e da informação se aproximam cada vez mais a zero, e onde as distinções antigas entre o local, o nacional e o internacional, o pequeno e o grande, o centralizado e o descentralizado, tendem o tempo todo a se confundir, desaparecer e reaparecer sob novas formas2. Essa visão implica num esforço para superar a antiga contradição entre a realidade da grande estrutura de poder e o ideal da comunidade perdida, que ocorrerá pela incorporação do protagonismo ao ideal de respeito ao bem comum. Respeito ao bem comum com protagonismo constitui assim uma das finalidades mais importantes da política da igualdade e se expressa por condutas de participação e solidariedade, respeito e senso de responsabilidade, pelo outro e pelo público. Em uma de suas direções esse movimento leva o ideal de igualdade para o âmbito das relações pessoais na família e no trabalho, no qual questões como a igualdade entre homens e mulheres, os direitos da criança, a eliminação da violência, passam a ser decisivas para a convivência integradora. Mas há também uma direção contrária, provocando o envolvimento crescente de pessoas e instituições não governamentais nas decisões antes reservadas ao “poder público”: empresas, sindicatos, associações de bairro, comunidades religiosas,cidadãos e cidadãs comuns, começam a incorporar as políticas públicas, as decisões econômicas, as questões ambientais, como itens prioritários em sua agenda. Um dos fundamentos da política da igualdade é a estética da sensibilidade. É desta que lança mão quando denuncia os estereótipos que alimentam as discriminações e quando, reconhecendo a diversidade, afirma que oportunidades iguais são necessárias mas não suficientes para oportunizar tratamento diferenciado visando promover igualdade entre desiguais. A política da igualdade, inspiradora do ensino de todos os conteúdos curriculares é, ela mesma, um conteúdo de ensino, sempre que nas ciências, nas artes, nas linguagens, estiverem presentes os temas dos direitos da pessoa humana, do respeito, da responsabilidade e da solidariedade, e sempre que os significados dos conteúdos curriculares se contextualizarem nas relações pessoais e práticas sociais convocatórias da igualdade. Na gestão e nas normas e padrões que regulam a convivência escolar a política da igualdade incide com grande poder educativo pois é sobretudo nesse âmbito que as trocas entre educador e educando, entre escola e meio social, entre grupos de idade, favorecem a formação de hábitos democráticos e responsáveis de vida civil. Destaca-se aqui a responsabilidade da liderança dos adultos da qual

2 Schwartzman.

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depende, em grande parte, a coesão da escola em torno de objetivos compartilhados3 , condição básica para a prática da política da igualdade. Mas, acima de tudo, a política da igualdade deve ser praticada na garantia de igualdade de oportunidades e de diversidade de tratamentos dos alunos e dos professores para aprender e aprender a ensinar os conteúdos curriculares. Para isso os sistemas e escolas deverão observar um direito pelo qual o próprio Estado se faz responsável, no caso da educação pública: garantia de padrões mínimos de qualidade de ensino tais como definidos pela LDB no Inciso IX de seu Artigo 4. A garantia desses padrões passa por um compromisso permanente em usar o tempo e o espaço pedagógicos, as instalações e equipamentos, os materiais didáticos e os recursos humanos, no interesse dos alunos. E em cada decisão administrativa ou pedagógica, o compromisso de priorizar o interesse da maioria dos alunos. 3. A ética da identidade A ética da identidade substitui a moralidade dos valores abstratos da era industrialista e busca a finalidade ambiciosa de reconciliar no coração humano aquilo que o dividiu desde os primórdios da idade moderna: o mundo da moral e o mundo da matéria, o privado e o público, enfim a contradição expressa pela divisão entre a “igreja” e o “estado”. Essa ética se constitui a partir da estética e da política e não por negação delas. Seu ideal é o humanismo de um tempo de transição. Expressão de seres divididos mas que se negam a assim permanecer, a ética da identidade ainda não se apresenta de forma acabada. O drama desse novo humanismo, permanentemente ameaçado pela violência e pela segmentação social, é análogo ao da crisálida. Ignorando que será uma borboleta pode ser devorada pelo pássaro antes de descobrir-se transformada. O mundo vive um momento em que muitos apostam no pássaro. O educador não tem escolha: aposta na borboleta ou não é educador. Como princípio educativo a ética só é eficaz quando desiste de formar pessoas “honestas”, “caridosas” ou “leais” e reconhece que a educação é um processo de construção de identidades. Educar sob inspiração da ética não é transmitir valores morais mas criar as condições para que as identidades se constituam pelo desenvolvimento da sensibilidade e pelo reconhecimento do direito à igualdade a fim de que orientem suas condutas por valores que respondam às exigências do seu tempo. Uma das formas pelas quais a identidade se constitui é a convivência nesta, pela mediação de todas as linguagens que os seres humanos usam para compartilhar significados. Destes, os mais importantes são os que carregam informações e valores sobre as próprias pessoas. Vale dizer que a ética da identidade se expressa por um permanente reconhecimento da identidade própria e do outro. É assim simples. Ao mesmo tempo é muito importante, porque no reconhecimento reside talvez a grande responsabilidade da escola como lugar de conviver e, na escola, do adulto educador, para a formação da identidade das futuras gerações. Âmbito privilegiado do aprender a ser como a estética é o âmbito do aprender a fazer e a política do aprender a conhecer e conviver4, a ética da identidade tem como fim mais importante a autonomia. Esta, condição indispensável para os juízos de valor e as escolhas inevitáveis à realização de um projeto próprio de vida, requer uma avaliação permanente e a mais realista possível das capacidades próprias e dos recursos que o meio oferece. Por esta razão a ética da identidade é tão importante na educação escolar. É aqui, embora não exclusivamente, que a criança e o jovem vivem de forma sistemática os desafios de suas capacidades. Situações de aprendizagem programadas para produzir o fracasso, como acontece tantas vezes nas escolas brasileiras são, neste sentido, profundamente antiéticas. Abalam a auto-estima de seres que

3 Mello, Guiomar – Escolas Eficazes 4 UNESCO, 199_ . Relatório da Reunião Educação para o Século XXI.

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estão constituindo suas identidades, contribuindo para que estas incorporem o fracasso, às vezes irremediavelmente. Auto-imagens prejudicadas quase sempre reprimem a sensibilidade e desacreditam da igualdade. Situações antiéticas também ocorrem no ambiente escolar quando a responsabilidade, o esforço e a qualidade, não são praticados e recompensados. Contextos nos quais o sucesso resulta da astúcia e não da qualidade do trabalho realizado, que recompensam o “levar vantagem em tudo” em lugar do “esforçar-se”, não favorecem nos alunos identidades constituídas com sensibilidade estética e igualdade política. Autonomia e reconhecimento da identidade do outro se associam para construir identidades mais aptas a incorporar a responsabilidade e a solidariedade. Neste sentido a ética da identidade supõe uma racionalidade diferente daquela que preside a dos valores abstratos, porque visa formar pessoas solidárias e responsáveis por serem autônomas. Essa racionalidade supõe que num mundo em que a tecnologia revoluciona todos os âmbitos de vida e, ao disseminar informação amplia as possibilidades de escolha mas também a incerteza, a identidade autônoma, se constitui a partir da ética, da estética e da política, mas mas precisa estar ancorada em conhecimentos e competências intelectuais que deêm acesso a significados verdadeiros sobre o mundo físico e social. Esses conhecimentos e competências é que dão sustentação à análise, à prospecção e à solução de problemas, à capacidade de tomar decisões, à adaptabilidade a situações novas, à arte de dar sentido a um mundo em mutação. Não é por acaso que essas mesmas competências estão entre as mais valorizadas pelas novas formas de produção pós industrial que se instalam nas economias contemporâneas. Essa é a esperança e a promessa que o novo humanismo traz para a educação, em especial a média: a possibilidade de integrar a formação para o trabalho num projeto mais ambicioso de desenvolvimento da pessoa humana. Uma chance real, talvez pela primeira vez na história, de ganhar a aposta na borboleta. Os conhecimentos e competências cognitivas e sociais que se quer desenvolver nos jovens alunos do ensino médio remetem assim à educação como constituição de identidades comprometidas com a busca da verdade. Mas para fazê-lo com autonomia precisam desenvolver a capacidade de aprender, tantas vezes reiterada na LDB. Essa é a única maneira de alcançar os significados verdadeiros com autonomia. Com razão portanto o inciso III do Artigo 35 da lei inclui,… no aprimoramento do educando como pessoa humana,… a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico. No texto de Platão, Sócrates e Protágoras procuram responder à pergunta – “é possível ensinar a virtude”? Protágoras argumenta narrando a partilha que Prometeu e Epimeteu fizeram dos talentos divinos entre as criaturas mortais. E prova que se não for possível ensinar a virtude, a “cidade” não é viável pois apenas com o domínio das “artes” os humanos não sobreviveriam porque exterminariam uns aos outros. Na continuidade do diálogo fica claro que Sócrates também acha que a virtude pode ser ensinada. Mas, por meio de suas perguntas, leva Protágoras a reconhecer que ela não é outra coisa senão a sabedoria que busca permanentemente a verdade, e exatamente nisso reside a possibilidade de seu ensino. A pedagogia, como as demais “artes”, situa-se no domínio da estética e se exerce deliberadamente no espaço da escola. A sensibilidade da prática pedagógica para a qualidade do ensino e da aprendizagem dos alunos será a contribuição específica e decisiva da educação escolar para a igualdade, a justiça, a solidariedade, a responsabilidade. Dela poderá depender a capacidade dos jovens cidadãos do próximo milênio para aprender significados verdadeiros do mundo físico e social, registrá-los, comunicá-los e aplicá-los no trabalho, no exercício da cidadania, no projeto de vida pessoal.

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TEXTO 10: SAVIANI, Dermeval. Disponível em: http://www.sociologos.org.br/textos/sociol/parecer1.htm Acesso em: 02/02/2005

COMENTÁRIOS SOBRE O PARECER DIRETRIZES NACIONAIS PARA A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO MÉDIO, DE GUIOMAR NAMO DE MELLO.

1. Sobre a LDB

O texto atribui uma coerência e uma força à LDB que não parecem fundadas, quando afirma que ela “aponta o caminho político para o novo ensino médio brasileiro... superando no plano legal a histórica dualidade dessa etapa de educação” e ainda quando a considera “sintonizada com as demandas educacionais mais contemporâneas e com as iniciativas mais recentes que os sistemas de ensino do mundo todo vêm articulando para respondê-las”, prosseguindo com a afirmação de que “a LDB busca conciliar humanismo e tecnologia, conhecimento dos princípios científicos que presidem a produção moderna e exercício da cidadania plena, formação ética e autonomia intelectual”. Em verdade a LDB é um produto híbrido. A busca de superação do dualismo estava coerentemente formulada no projeto original. O texto final da LDB quebrou aquela coerência embora tenha justaposto duas noções de lá extraídas, a saber: “compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos”; e “domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna”. 1. Sobre os fundamentos estéticos, políticos e éticos do novo ensino médio brasileiro:

a) estética da sensibilidade Aqui se argumenta que “a estética da sensibilidade vem substituir a da repetição e padronização,

hegemônica na era das revoluções industriais”. Mas... a sensibilidade não constitui a própria essência da estética, a sua definição? Com efeito, αισθησιζ significa exatamente “sensação, órgão dos sentidos” e αισθητικοζ significa “que possui a faculdade de sentir; perceptível; relativo à sensação”. Assim, a palavra “estética” tanto etimológica como semanticamente denota sensibilidade. Portanto, toda e qualquer estética e, por isso, também a da modernidade, isto é, da era das revoluções industriais é estética da sensibilidade. O que se caracteriza pela repetição e padronização é a técnica e não a estética.

b) política da igualdade O texto trata o conceito de igualdade de forma intercambiável com o de eqüidade. Entretanto,

eqüidade, registram os dicionários, é a “disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um” (sentido 1), portanto, implica o reconhecimento e legitimação das desigualdades, conduzindo ao tratamento igual dos desiguais. Isso fica mais claro ao se considerar o sentido 2: “conjunto de princípios imutáveis de justiça que induzem o juiz a um critério de moderação e de igualdade, ainda que em detrimento do direito objetivo” (AURÉLIO, s/d.: p.544). Ora, o direito objetivo não é outra coisa senão o “conjunto de normas de caráter obrigatório impostas pelo Estado, e que compreende o direito escrito e o consuetudinário” (IBIDEM: p.479). Por fim o significado de eqüidade resulta cristalino ao se levar em conta o sentido 3: “sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal” (IBIDEM: P.544). Em contrapartida, igualdade, também segundo os dicionários, significa qualidade ou estado de igual; paridade; uniformidade, identidade. E,

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em termos éticos: “relação entre os indivíduos em virtude da qual todos eles são portadores dos mesmos direitos fundamentais que provêm da humanidade e definem a dignidade da pessoa humana” (IBIDEM: p. 740). Portanto, os dois conceitos são incompatíveis. Sabe-se, por outro lado, que uma das características destes tempos pós-modernos foi a substituição, na ética como na política e também na educação, da igualdade pela eqüidade.

c) ética da identidade Aqui se afirma que “como princípio educativo a ética só é eficaz quando desiste de formar

pessoas ‘honestas’, ‘caridosas’ ou ‘leais’ e reconhece que a educação é um processo de construção de identidades”(p.22). Mas, na página seguinte parece que não se resiste à “pregação moral” : “situações antiéticas também ocorrem no ambiente escolar quando a responsabilidade, o esforço e a qualidade, não são praticados e recompensados. Contextos nos quais o sucesso resulta da astúcia e não da qualidade do trabalho realizado, que recompensam o ‘levar vantagem em tudo’ em lugar do ‘esforçar-se’, não favorecem nos alunos identidades constituídas com sensibilidade estética e igualdade política”. Qual das duas posições deve prevalecer? Do ponto de vista do valor da educação como correlato do valor da pessoa humana parece que deveria prevalecer a última posição. No entanto, cabe reconhecer que a primeira posição é mais consentânea com a visão pós-moderna que hoje tende a predominar.

A esses três tópicos restringem-se os fundamentos do novo ensino médio brasileiro. Pergunta-se: Mas não haveria outros pontos importantes a considerar? Por exemplo: um valor fundamental que deve ser levado em conta no processo educativo não é a verdade? Já que as especificações (estética da sensibilidade; política da igualdade; ética da identidade) estão marcadas pela redundância, por que não apareceu também um tópico como “a lógica da verdade” ou “epistemologia da verdade”? Como assinala Hobsbawum, “nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre pessoas que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que denominamos de ‘fatos’ apenas existem como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos dos mesmos. O passado que estudamos é só um constructo de nossas mentes. Esse constructo é, em princípio, tão válido quanto outro, quer possa ser apoiado pela lógica e por evidências, quer não. (...). Na verdade, poucos relativistas estão à altura plena de suas convicções, pelo menos quando se trata de responder, por exemplo, se o Holocausto de Hitler aconteceu ou não. Porém, seja como for, o relativismo não fará na história nada além do que faz nos tribunais. Se o acusado em um processo por assassinato é ou não culpado, depende da avaliação da velha evidência positivista, desde que se disponha de tal evidência. Qualquer leitor inocente que se encontrar no banco dos réus fará bem em recorrer a ela. São os advogados dos culpados que recorrem a linhas pós-modernas de defesa” (E. Hobsbawum, Sobre História. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 8-9). Para quem esteja seriamente empenhado na tarefa de educar, parece, pois, que a verdade continua sendo um valor fundamental que deve ser tomado como referência na elaboração e realização dos currículos escolares.

2. Sobre a concepção de currículo

Afirma-se que “a proposta pedagógica antes de tudo deve ser simples” (p.29). Embora caiba

reconhecer o esforço da autora em dar consistência ao seu parecer, ocorre-me perguntar se a concepção de currículo e, em conseqüência, a formulação das diretrizes curriculares não deveriam se pautar também pela simplicidade, evitando-se um certo rebuscamento que parece marcar o texto..

Ora, pode-se dizer que assim como os objetivos respondem à pergunta “para quê fazer algo?”, os meios respondem à pergunta “com que fazer?”; e, entre os meios, se o método se refere ao “como fazer”, o currículo responde à pergunta “o que fazer?”. Portanto, considerada a educação sob um aspecto determinado, no caso o ensino médio, o currículo se refere ao conjunto das atividades e sua distribuição no espaço e tempo escolares, atividades essas organizadas e realizadas tendo em vista os objetivos que se busca atingir. Por isso é possível dizer que o currículo pleno de uma escola é essa própria escola funcionando. Assim, integram também a organização do currículo a distribuição das horas que professores e alunos dedicam ao processo educativo no interior da escola. A questão central para o êxito curricular parece residir, pois, em medidas que transformem a escola num espaço

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adequado e, por que não dizer, atraente, com professores identificados com sua escola, fortemente motivados se relacionando com alunos constantemente estimulados.

Ora, o texto enfatiza o caráter central da proposta pedagógica da escola formulada no exercício de sua autonomia. E, nesse quadro, destaca que o currículo não terá eficácia “se o professor não se apropriar dessa proposta como seu protagonista mais importante” (p.49). Isso, obviamente, implica a fixação dos professores na escola, preferivelmente em tempo integral. No entanto, como isso será possível se as próprias autoridades educacionais definem, à revelia das escolas e de seus professores, para todo o sistema, a carga horária de cada disciplina e tornam precária a atividade do professor com contratos em regime de hora-aula que, inclusive, se encerram a cada final de ano?

3. Conclusão

Pensando nessas coisas, fico me perguntando pela razão da incrível “capacidade” que temos de

desperdiçar oportunidades. Nunca um governo teve condições tão favoráveis como o atual de promover, como se costuma dizer, o resgate da educação em nosso país (reconhecimento generalizado do valor da educação, com base na atual revolução tecnológica; legitimidade política e institucional; competência técnica de seus quadros; estabilidade econômica; opinião pública favorável). No entanto, contrariamente a essas expectativas vê-se a situação agravar-se dia-a-dia, destruindo esperanças, afastando das escolas os melhores quadros com o sacrifício irrecuperável de novas gerações de brasileiros. A sensibilidade não apenas estética mas também ética e política se expressa, assim, na convicção de que as diretrizes curriculares só poderão ter eficácia se articuladas com uma política educacional empenhada decididamente em garantir as condições básicas para que a relação pedagógica possa resultar significativa. Então se viabilizará o curso da ação educativa, isto é, o currículo em ato. E a escola recobrará vida na pulsação das vidas que nela habitam.

(Comentários apresentados pelo autor, representando a UNICAMP, na audiência pública convocada

pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, organizada em conjunto com o Conselho Estadual de Educação de São Paulo e realizada no dia 18 de maio de 1998 no Auditório “Fernando de Azevedo” na sede da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo).

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TEXTO 11: Penna, Maura. Disponível em: http://www.artenaescola.org.br/pesquise_artigos_texto.php?id_m=12 Acesso em 02/02/2005.

PCN nas escolas: e agora? Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental (PCN) foram elaborados “com a intenção de ampliar e aprofundar um debate educacional que (...) dê origem a uma transformação positiva no sistema educacional brasileiro”, segundo declara o Ministro da Educação e do Desporto, no texto “Ao Professor”, que abre todos os volumes dos PCN para as 5a a 8a séries. Os PCN já estão nas escolas, influenciando a prática pedagógica e também gerando inquietações, inclusive em nossa área. Os PCN – e especificamente a proposta para Arte – envolvem complexas questões, que o Grupo Integrado de Pesquisa em Ensino das Artes, da Universidade Federal da Paraíba, tem se dedicado a investigar, desde 1997, quando tivemos acesso ao texto final da proposta de Arte para as 1a a 4a séries. Uma análise preliminar de alguns aspectos dos PCN resultou no Caderno de Textos Os Parâmetros Curriculares Nacionais e as concepções de arte (CCHLA/UFPB, 1997), já esgotado. Atualmente, encontra-se no prelo a coletânea É este o ensino de arte que queremos? (Editora da UFPB), que reúne artigos que analisam a fundo os dois documentos dos PCN para Arte, inclusive as propostas para cada linguagem artística. Os frutos de todo esse processo de trabalho têm sido apresentados e discutidos em diversas ocasiões, inclusive no XIII Encontro Nacional Arte na Escola (João Pessoa, abril 2001). Assim, retomamos aqui alguns pontos das análises, desenvolvidas no Grupo, quanto à viabilidade da proposta para Arte dos PCN, privilegiando o documento para as 5a a 8a séries (PCN-Arte), por ser este o nível de ensino em que o professor licenciado costuma atuar. Em todos os ciclos da educação fundamental, os Parâmetros Curriculares dão à área de Arte uma grande abrangência, propondo quatro modalidades artísticas: (1) Artes Visuais - com maior amplitude que Artes Plásticas, englobando artes gráficas, vídeo, cinema, fotografia e as novas tecnologias, como arte em computador; (2) Música; (3) Teatro; (4) Dança, que é demarcada como uma modalidade específica. Nos PCN-Arte, as propostas para essas diversas linguagens artísticas estão submetidas à orientação geral, apresentada na primeira parte do documento, que estabelece três diretrizes básicas para a ação pedagógica. São diretrizes que retomam, embora não explicitamente, os eixos da chamada "Metodologia Triangular" - ou melhor, "Proposta Triangular" -, defendida por Ana-Mae Barbosa na área de artes plásticas e já bastante conhecida de todos que participam do Projeto Arte na Escola. Segundo os próprios Parâmetros, o "conjunto de conteúdos está articulado dentro do processo de ensino e aprendizagem e explicitado por intermédio de ações em três eixos norteadores: produzir, apreciar e contextualizar" (PCN-Arte, p. 49). Vale ressaltar que, em nosso país, a Proposta Triangular representa a tendência de resgate dos conteúdos específicos da área, na medida em que apresenta, como base para a ação pedagógica, três ações mental e sensorialmente básicas que dizem respeito ao modo como se processa o conhecimento em arte². Com os eixos norteadores adotados, os PCN-Arte colocam-se em sintonia com as buscas desenvolvidas no campo do ensino de arte, refletindo o próprio percurso da área. Neste sentido, podem ajudar a consolidar uma nova postura pedagógica e a concepção da arte como uma área de conhecimento específico. No entanto, há certamente um grande descompasso entre a realidade das escolas e essa renovação pretendida pelas instâncias regulamentadoras e pelos trabalhos acadêmicos, até porque os Parâmetros são bastante recentes: os PCN para as 5a a 8a séries completaram 2 anos de

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seu lançamento oficial no Palácio do Planalto em outubro de 2000 – e não chegaram de imediato a todas as escolas do país. Ao se pensar a prática pedagógica na escola, a primeira grande questão é: como realizar, na sala de aula, a proposta dos PCN para Arte, com suas quatro modalidades artísticas? O fato é que os PCN-Arte, que apresentam uma proposta tão abrangente, não chegam a apresentar de modo claro a forma de encaminhar concretamente o trabalho com as diversas linguagens artísticas. As disposições neste sentido são poucas e dispersas pelo texto, de modo que a questão de quais linguagens artísticas, quando e como serão abordadas na escola permanece, em grande medida, em aberto. Os PCN-Arte optam pela organização dos conteúdos por modalidade artística - e não por ciclo, como nos documentos das demais áreas -, delegando às escolas a indicação das linguagens artísticas e "da sua seqüência no andamento curricular" (PCN-Arte, p. 54). Neste sentido, sugerem que, "a critério das escolas e respectivos professores, (...) os projetos curriculares se preocupem em variar as formas artísticas propostas ao longo da escolaridade, quando serão trabalhadas Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro." (PCN-Arte, p. 62-63 - grifos nossos). À primeira vista, a flexibilidade presente na proposta de Arte procura considerar as diferenciadas condições das escolas, levando em conta também a disponibilidade de recursos humanos. Diante das condições do sistema de ensino em nosso país, seria irrealista pretender vincular a abordagem de cada linguagem artística a séries determinadas, num programa curricular fechado. Mas esta flexibilidade pode, em certa medida, comprometer a função básica dos Parâmetros Curriculares, que é garantir um padrão de qualidade no ensino, em nível nacional, inclusive em termos dos conteúdos estudados. Pois, na área de Arte, muito é deixado a cargo de cada escola ou mesmo do professor, inclusive com respeito à abordagem dos conteúdos. Neste sentido, os PCN-Arte declaram que: "Os conteúdos podem ser trabalhados em qualquer ordem, conforme decisão do professor, em conformidade com o desenho curricular de sua equipe" (PCN-Arte, p. 49 - grifos nossos). Esta flexibilidade tem, então, várias implicações, como nos casos de transferência, que podem vir a trazer prejuízos para a formação do aluno. Já que cada escola pode selecionar tanto as modalidades artísticas quanto os próprios conteúdos, um aluno que tenha que se transferir pode tornar a repetir os mesmos conteúdos na mesma modalidade artística, ou então pode ter dificuldades em acompanhar um trabalho mais aprofundado em uma linguagem que não tenha sido contemplada em sua antiga escola. Nos casos de mudanças de escola, que afetam com freqüência os alunos das camadas populares, os efeitos práticos dessa flexibilidade podem até mesmo invalidar as recomendações do próprio documento acerca da continuidade do processo educativo (cf. PCN-Arte, p. 62). A nosso ver, a proposta dos PCN na área de Arte é ambiciosa e complicada de ser viabilizada na realidade escolar brasileira. Para a sua aplicação efetiva, seria necessário poder contar com recursos humanos com qualificação - o que implica desde a valorização da prática profissional até ações de formação continuada e acompanhamento pedagógico constante -, além de recursos materiais que atendessem às necessidades da prática pedagógica em cada linguagem artística. Uma questão crucial, portanto, é o professor que irá colocar em prática os PCN-Arte: qual deverá ser a sua qualificação? A característica geral da proposta, que se direciona para o resgate dos conhecimentos específicos da arte, a complexidade dos conteúdos nas diversas modalidades artísticas, tudo isso parece indicar a necessidade de professores especializados em cada linguagem. Mas, na verdade, não há definições claras sobre a formação do professor de Arte, nem nos PCN, nem na atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Por conseguinte, como muitas vezes a contratação de professores está submetida à lógica de custos e benefícios, acreditamos que dificilmente as escolas contarão - a curto ou médio prazo - com professores especializados em cada uma das quatro modalidades artísticas dos PCN-Arte. Diante deste quadro, vislumbramos três perspectivas, não muito promissoras:

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1) Poderá ser exigida do professor uma polivalência ainda mais ampla - e mais inconsistente - que aquela promovida pela Educação Artística e já tão criticada. Inclusive as provas dos concursos para ingresso em redes públicas de ensino poderão ser elaboradas neste formato, abordando as diversas linguagens artísticas, como já acontece em muitos locais nos concursos para Educação Artística.

2) As propostas dos Parâmetros serão realizadas apenas na medida dos recursos humanos

disponíveis. Assim, se o professor de Arte de uma dada escola for formado em Música, por exemplo, será esta a linguagem artística contemplada no currículo. Uma outra variante desta situação, que já começa a ter lugar em estabelecimentos particulares, é a escola escolher a(s) modalidade(s) artística(s) que considera mais conveniente(s) para os seus interesses, contratando um professor com formação adequada. Neste caso, podem pesar argumentos acerca da conveniência de evitar reclamações dos pais na hora de comprar material para as aulas de Artes Visuais, ou então sobre como determinado campo da arte pode contribuir para o marketing da escola - ao produzir apresentações teatrais, por exemplo.

3) Ou ainda - e pior - as propostas dos PCN poderão servir como base para planejamentos e

relatórios que ficarão apenas no papel, sem mudanças efetivas na prática educativa em sala de aula.

Enfim, acreditamos que, em termos de Brasil, serão poucas as escolas - de elite, certamente - que se empenharão em oferecer as quatro linguagens artísticas de modo consistente, contratando para tal diversos professores com formação específica. Tais perspectivas colocam em discussão a possibilidade de os PCN-Arte trazerem mudanças efetivas para a prática pedagógica na área. A pretensão de um único professor realizando as propostas dos PCN-Arte em todas as linguagens artísticas contradiz a amplitude e profundidade das propostas específicas, atualizando a polivalência e conduzindo, inevitavelmente, a um esvaziamento de conteúdos. Se os PCN-Arte forem implementados desta forma, ou se ficarem apenas no papel - em belos planejamentos e relatórios -, estarão sendo reduzidos a meros atos de discurso, mascarando, na verdade, a ausência de renovação das ações pedagógicas em arte. Receamos que isto possa vir a acontecer, até porque os próprios PCN prevêem um processo progressivo para sua aplicação, como base para a atuação do professor em sala de aula - o que nem sempre está ocorrendo. Segundo os documentos introdutórios para os diversos ciclos, os Parâmetros deveriam ser utilizados progressivamente para subsidiar: 1o) as próprias ações do MEC para o ensino fundamental – o que já está sendo feito; 2o) as revisões ou adaptações curriculares desenvolvidas pelas secretarias de educação, no âmbito dos estados e municípios; 3o) a elaboração do projeto educativo (proposta pedagógica) de cada escola, construído num processo dinâmico de discussão, envolvendo toda a equipe. E só então, no quarto e último nível de concretização, caberia ao professor a realização da proposta curricular na sala de aula. Este processo seria capaz, portanto, de respaldar a ação do professor na realização das propostas dos PCN-Arte. Temos observado, contudo, que muitas vezes os PCN-Arte simplesmente "caem na cabeça" do professor, de quem a direção da escola cobra a aplicação das propostas, a despeito da falta de apoio e de condições. Diante deste quadro, é fundamental que as escolas assumam a responsabilidade de elaborar o seu “projeto educativo” (nos termos dos PCN) ou “proposta pedagógica” (conforme a LDB). Seguindo princípios de flexibilidade e autonomia, a LDB delega aos estabelecimentos de ensino a incumbência de “elaborar e executar sua proposta pedagógica” (Lei 9394/96, Art. 12), o que é reafirmado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (Resolução no 2/98 – CNE), que têm – estas sim – caráter obrigatório. Pois vale lembrar que, embora o MEC esteja colocando os PCN como referência para a avaliação das escolas e alocação de recursos, do ponto de vista formal eles não têm obrigatoriedade. Segundo o Parecer 03/97 do Conselho Nacional de Educação (CNE), “os PCN resultam de uma ação legítima, de competência privativa do MEC e se

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constituem em uma proposição pedagógica, sem caráter obrigatório, que visa à melhoria da qualidade do ensino fundamental e o desenvolvimento profissional do professor. É nesta perspectiva que devem ser apresentados às Secretarias Estaduais, Municipais e às Escolas” (grifos nossos). Cada escola pode e deve, portanto, elaborar sua própria proposta pedagógica. Se construída de forma participativa e compromissada – não se revestindo apenas de um caráter burocrático –, deve decidir como utilizar os recursos humanos e materiais disponíveis de modo a atender às necessidades específicas de seu alunado. A proposta pedagógica é, pois, o espaço ideal para definir o melhor modo de encaminhar o trabalho de arte na escola, fazendo uso da autonomia prevista na LDB e nas Diretrizes Curriculares, e atendendo à flexibilidade da proposta dos PCN-Arte. Neste quadro, sendo analisados e discutidos com cuidado, os PCN-Arte podem ser utilizados para respaldar uma atuação mais aprofundada em determinada linguagem artística, ou ainda como base para reivindicar as condições necessárias para uma prática pedagógica de qualidade. Para concluir, é preciso deixar claro que, apesar de todos os questionamentos em torno dos PCN-Arte, reconhecemos a importância destes documentos, que podem ajudar a fortalecer a presença da arte na escola. Sem dúvida, os PCN-Arte sinalizam um redirecionamento do ensino de arte, respondendo às buscas da própria área. É preciso lembrar, no entanto, que as normas contam sobretudo pelos seus efeitos, de modo que os PCN dependem de sua concretização - ou seja, de sua realização na prática escolar. Nesta medida, tanto a renovação da prática pedagógica em arte quanto a “transformação positiva no sistema educacional brasileiro”, a que se refere o Ministro da Educação, passam necessariamente pela prática concreta – com todos os seus conflitos – , pois é nela que tais mudanças terão que ser construídas e conquistadas.