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A Palavra como sopro de vida para o ser humano Maria de Lourdes Sampaio “Pela voz de outros homens, o recém-nascido deixa de ser apenas um corpo e passa a ser inserido no simbólico. A voz é essa cesura significante mais apta a levá-lo à vida do que o corte do cordão umbilical. Ela é o que nomeia, distingue e celebra o corpo da criança.” (Myriam Szejer, Palavras para nascer. A escuta psicanalítica na maternidade). Há dois meses, aproximadamente, ouvi o relato noticiado publicamente, de um fato ocorrido numa maternidade de Maceió, que muito me impressionou! Um bebê nascido prematuramente foi dado como morto pela equipe médica que testemunhou o seu nascimento e, considerando-se que a família da parturiente ainda não se encontrava no hospital, ele foi envolvido em um pano e colocado no necrotério hospitalar. Duas horas depois o pai desse bebê chega ao hospital e, informado do acontecido, manifesta o desejo de ver o seu filho, encontra alguma resistência sob a alegação de que ele está morto, mas esse pai não cedeu. Insistiu, exigiu vê-lo e para espanto dos que o acompanharam, antes que desenrolassem o bebê, este, ao ESCUTAR A VOZ DO PAI se moveu, anunciando assim, que estava VIVO. Obviamente que foi grande o assombro e o corre-corre para conduzi-lo à UTI neo-natal, cujos cuidados muito retardados e, quem sabe, por não haver ali um psicanalista que desse palavras para que aquele VIVIDO ganhasse sentido, esse bebê não resistiu e veio a falecer. Não é do descaso médico que quero tratar aqui, porque ele se evidencia e estarrece por si só. Quero tratar do RECONHECIMENTO que esse bebê pode fazer da VOZ DO SEU PAI e do efeito impactante que esse reconhecimento teve como convocação à vida. Falar em psicanálise de criança, mesmo nos nossos dias, ainda produz em muitos, estranheza e até incredulidade. Respingam forte, na nossa cultura, a noção equivocada de que uma criança muito pequena não é capaz de acompanhar com entendimento os dizeres de um adulto; a crença de que um bebê nasce e se desenvolve “naturalmente”; a resistência forte a reconhecer nos distúrbios fisiológicos a expressão de alguma coisa que não é do corpo como invólucro puramente físico, mas do corpo enquanto perfurado pelos significantes. E se assim é com as crianças, o que pensar então, da psicanálise com recém-nascidos? Precursora e clínica talentosíssima, a psicanalista Françoise Dolto, já há algumas décadas, impressionava na França aos seus pares e a outros profissionais da área de saúde que acompanhavam as suas intervenções nas consultas que fazia em abrigos de Paris, com crianças entre oito dias e três anos de idade. Ela acreditava e isto ficava patente nos seus atendimentos, que “a idade dita pré-verbal exprime, mais longe do que o arcaico de que a psicanálise tradicional fala, algo de uma palavra falada” 1 . 1 Szejer, Myriam, Palavras para nascer – A escuta psicanalítica, 1999, Editora Casa do Psicólogo.

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A Palavra como sopro de vida para o ser humano

Maria de Lourdes Sampaio

“Pela voz de outros homens, o recém-nascido deixa de

ser apenas um corpo e passa a ser inserido no

simbólico. A voz é essa cesura significante mais apta a

levá-lo à vida do que o corte do cordão umbilical. Ela é

o que nomeia, distingue e celebra o corpo da criança.”

(Myriam Szejer, Palavras para nascer. A escuta

psicanalítica na maternidade).

Há dois meses, aproximadamente, ouvi o relato noticiado publicamente, de um fato ocorrido

numa maternidade de Maceió, que muito me impressionou! Um bebê nascido prematuramente foi dado

como morto pela equipe médica que testemunhou o seu nascimento e, considerando-se que a família da

parturiente ainda não se encontrava no hospital, ele foi envolvido em um pano e colocado no necrotério

hospitalar. Duas horas depois o pai desse bebê chega ao hospital e, informado do acontecido, manifesta o

desejo de ver o seu filho, encontra alguma resistência sob a alegação de que ele está morto, mas esse pai

não cedeu. Insistiu, exigiu vê-lo e para espanto dos que o acompanharam, antes que desenrolassem o

bebê, este, ao ESCUTAR A VOZ DO PAI se moveu, anunciando assim, que estava VIVO. Obviamente

que foi grande o assombro e o corre-corre para conduzi-lo à UTI neo-natal, cujos cuidados muito

retardados e, quem sabe, por não haver ali um psicanalista que desse palavras para que aquele VIVIDO

ganhasse sentido, esse bebê não resistiu e veio a falecer.

Não é do descaso médico que quero tratar aqui, porque ele se evidencia e estarrece por si só.

Quero tratar do RECONHECIMENTO que esse bebê pode fazer da VOZ DO SEU PAI e do efeito

impactante que esse reconhecimento teve como convocação à vida.

Falar em psicanálise de criança, mesmo nos nossos dias, ainda produz em muitos, estranheza e até

incredulidade. Respingam forte, na nossa cultura, a noção equivocada de que uma criança muito pequena

não é capaz de acompanhar com entendimento os dizeres de um adulto; a crença de que um bebê nasce e

se desenvolve “naturalmente”; a resistência forte a reconhecer nos distúrbios fisiológicos a expressão de

alguma coisa que não é do corpo como invólucro puramente físico, mas do corpo enquanto perfurado

pelos significantes.

E se assim é com as crianças, o que pensar então, da psicanálise com recém-nascidos?

Precursora e clínica talentosíssima, a psicanalista Françoise Dolto, já há algumas décadas, impressionava

na França aos seus pares e a outros profissionais da área de saúde que acompanhavam as suas

intervenções nas consultas que fazia em abrigos de Paris, com crianças entre oito dias e três anos de

idade. Ela acreditava e isto ficava patente nos seus atendimentos, que “a idade dita pré-verbal exprime,

mais longe do que o arcaico de que a psicanálise tradicional fala, algo de uma palavra falada”1.

1 Szejer, Myriam, Palavras para nascer – A escuta psicanalítica, 1999, Editora Casa do Psicólogo.

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Hoje, vinte anos após a sua morte e agora, com o respaldo de novas descobertas científicas, a

prática clínica continua confirmando que a remissão de sintomas – às vezes graves – se torna possível,

quando as palavras que são ditas a um recém-nascido ou a uma criança conseguem dar sentido a pedaços

de sua história ainda soltos, desarticulados.

Será que há, então, uma especificidade no atendimento de recém-nascidos ou de crianças muito

pequenas?

No que concerne aos princípios que regem a intervenção do analista, não. É o reconhecimento de que

todo ser humano é um ser desejante e a existência de uma demanda por parte dos pais ou do próprio

bebê/criança, que instala o lugar de um psicanalista.

Ou seja, há um protocolo, um enquadro que é igual para a intervenção em qualquer idade e que,

ao mesmo tempo, a distingue de um atendimento médico, psiquiátrico ou psicológico. E isto não se refere

ao consultório do psicanalista, vez que há casos em que precisa se deslocar para atender em outros

lugares, mas à certeza de que o sintoma que produziu aquela demanda revela parte de uma verdade

inconsciente.

Mas como se expressa a demanda de um recém-nascido?

Embora essa demanda seja transmitida por profissionais da maternidade, que a recebem através

dos seus pais, é com o SEU CORPO, meio de expressão privilegiado nesse tempo da vida, que o bebê

fala. Quando regurgita demais, tem cólicas prolongadas, perde muito peso, dorme muito pouco, tem

constipação intestinal, come em excesso, chora constantemente etc., ele está dizendo que alguma coisa na

sua passagem da vida intrauterina para a vida aérea ou na relação com um, ou ambos os pais, não vai

bem.

Se o recém-nascido tem um desejo irredutível e sabemos que esse desejo se funda a partir do

Outro, é junto ao bebê e aos seus pais que o psicanalista irá trabalhar.

Nesse campo – o do modo de atender – é que encontramos particularidades na intervenção

psicanalítica com recém-nascidos: ela começa com o OLHAR.

“... a cada olhar uma coisa se encarna no mundo e no sujeito”2.

“... o olhar intervém para um sujeito se sustentando numa função de desejo”3.

Ao se dirigir ao quarto de uma maternidade para atender um recém-nascido, é fundamental que o

psicanalista organize essa cena de forma que possa ver e ser visto pelos pais e pelo bebê. Trata-se ali, de

ser testemunha. Testemunha dos dizeres da mãe e/ou do pai para, a partir deles, encontrar no próprio

saber inconsciente a relação entre o dito e o arcabouço teórico que fundamenta a sua prática, para então,

falar com o bebê.

E ao encontrar as VOZES desses Outros, escutá-las e entendê-las, o bebê vincula o seu corpo à

história que o precede e que o habitará, daí para a frente.

No bebê e na criança, mais claramente que nos adultos, a eficácia da palavra enquanto ato

analítico é contundente, produzindo, por vezes, deslocamentos imediatos e surpreendentes. O que se passa

aí, particularmente no caso dos recém-nascidos?

2 Assoun, Laurent Paul, O Olhar e a Voz, Editora Companhia de Freud, 1999. 3 Assoun, Laurent Paul, O Olhar e a Voz, Editora Companhia de Freud, 1999.

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A experiência do nascimento, para os pais, atualiza, às vezes de forma insistente e doída, algo de

inconsciente que certamente está relacionado ao seu lugar de filhos, o que faz eclodir no pós-parto – em

determinados casos, sintomas até então velados, desconhecidos para esses pais. Quanto ao bebê,

completamente dependente deles para fazer a ligação entre o antes e o depois do seu segundo nascimento

e marcado pelo que de simbólico, lhe foi transmitido durante a gestação, está extremamente suscetível às

palavras do seu meio que lhe sejam diretamente endereçadas.

Quando falamos em segundo nascimento queremos apontar que só pode haver transmissão

simbólica porque havia vida há cerca de 9 meses, rica em sensações hoje cientificamente comprovadas e

fartamente conferida em episódios que se apresentam na clínica psicanalítica, particularmente a de recém-

nascidos.

A importância inarredável desse momento em que a voz tem força de vida para um recém-

nascido, decorre do fato de que a pulsão invocante é aquela que mais se aproxima da experiência do

inconsciente. Na medida em que essa instância do Outro demandada pelo bebê se presentifica para

atender ao seu apelo – “CHE VUOI?”, faz-se um efeito de eco e este “QUE QUERES?” retorna sobre o

sujeito de modo impactante, colocando-o diante do seu próprio querer, do seu desejo absolutamente

singular.

Concluirei este trabalho com um relato clínico de Françoise Dolto apresentado por Myriam

Szejer, que expressa, com toda beleza, o lugar fundamental da voz e do olhar no atendimento de recém-

nascidos e crianças. “Trata-se de uma criança abandonada ao nascer, Frédéric, que se recusa a aprender a

ler e a escrever. Nos desenhos que executa para a analista, pinta uma multidão de figuras que se parecem

com a letra A. Françoise Dolto se espanta e se pergunta: será a inicial do nome de alguém da família? De

uma maternante? A pesquisa parece não dar em nada até que a mãe de Frédéric revela que o nome da

criança antes da adoção era Armand. F. Dolto explica então a Frédéric que é a dor da separação precoce

que se encontra garatujada nos A de seus desenhos. Mais uma vez, não obtém nenhum efeito. É então que

ela tem a intuição de chamar a criança pelo nome como se estivesse falando com as paredes, com uma

voz impessoal, “sem olhar para ele, ou seja, sem me dirigir à pessoa presente por meio de seu corpo

diante de mim, mas com uma voz alta, de tom e intensidade diferentes, minha cabeça virando para todos

os pontos cardinais, para o teto, para debaixo da mesa, como se eu chamasse alguém localizado no

espaço, que eu não soubesse onde está: ‘Armand...! Armand...! Armand...!’”.4 De um jeito que lembrava

uma das vozes de maternantes desconhecidas que ele devia ter escutado nos corredores do abrigo

provisório antes de ser adotado. De repente a criança volta a orelha para cada canto da sala, sem olhar

para Dolto assim como ela não olha para ele, até que os olhares deles se cruzam e ela lhe diz: “ ‘Armand,

era seu nome quando você foi adotado’. Nesse momento, percebi em seu olhar uma excepcional

intensidade. Denominado, o sujeito Armand pudera re-amarrar sua imagem do corpo à de Frédéric.[...]

Foi esse reencontro na transferência comigo, sua psicanalista, de uma identidade arcaica, perdida desde os

onze meses, que lhe permitiu superar, na quinzena que se seguiu, suas dificuldades para ler e escrever.”5

Na Psicanálise então, é preciso antes de tudo, deixar falar o sintoma.

4 F. Dolto, L’image inconsciente du corps, Seuil, col. “Points”, p. 47-8. [Edição brasileira: A imagem inconsciente do corpo, Perspectiva, 1992]

5 Szejer, Myriam, Palavras para nascer – A escuta psicanalítica, 1999, Editora Casa do Psicólogo.

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Em se tratando de recém-nascidos, é essencial que o analista aguce o seu olhar para reconhecer os

sinais que o bebê apresenta ou busca, para dar sentido à sua existência, para então, confirmá-la e

expandi-la com a sua palavra vivificante.

BIBLIOGRAFIA:

1. Szejer, Myriam, Palavras para nascer – a escuta psicanalítica, 1999. Editora Casa do Psicólogo.

2. Assoun, Laurent Paul, O olhar e a voz, 1999. Editora companhia de Freud.