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J O H N D E W E Y
Ú L T I M O S E S C R I T O S , 1 9 2 5 - 1 9 5 3
A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A
Organização: JO ANN BOYDSTON
Editora de texto: HARRIET FURST SIMON
Introdução: ABRAHAM KAPLAN
Tradução: VERA RIBEIRO
martins Martins Fontes
A CRIATURA VIVA
Por uma das perversidades irônicas que muitas vezes
acompanham o curso dos acontecimentos, a existência das
obras de arte das quais depende a formação de uma teoria
estética se tornou um empecilho à teoria sobre elas. Para
citar uma razão, essas obras são produtos dotados de exis
tência externa e física. Na concepção comum, a obra de ar¬
te é frequentemente identificada com a construção, o livro,
o quadro ou a estátua, em sua existência distinta da expe
riência humana. Visto que a obra de arte real é aquilo que
o produto faz com e na experiência, o resultado não favo¬
rece a compreensão. Além disso, a própria perfeição de al
guns desses produtos, o prestígio que eles possuem, por
uma longa história de admiração inquestionável, cria con¬
venções que atrapalham as novas visões. Quando um pro¬
duto artístico atinge o status de clássico, de algum modo,
ele se isola das condições humanas em que foi criado e
das consequências humanas que gera na experiência real
de vida.
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Quando os objetos artísticos são separados das condi
ções de origem e funcionamento na experiência, constrói-se
em torno deles um muro que quase opacifica sua significa¬
ção geral, com a qual lida a teoria estética. A arte é remetida
a um campo separado, onde é isolada da associação com os
materiais e objetivos de todas as outras formas de esforço,
sujeição e realização humanos. Assim, impõe-se uma tare¬
fa primordial a quem toma a iniciativa de escrever sobre a
filosofia das belas-artes. Essa tarefa é restabelecer a conti¬
nuidade entre, de um lado, as formas refinadas e intensifi¬
cadas de experiência que são as obras de arte e, de outro,
os eventos, atos e sofrimentos do cotidiano universalmente
reconhecidos como constitutivos da experiência. Os picos
das montanhas não flutuam no ar sem sustentação, tam¬
pouco apenas se apoiam na terra. Eles são a terra, em uma
de suas operações manifestas. Cabe aos que se interessam
pela teoria da terra - geógrafos e geólogos - evidenciar esse
fato em suas várias implicações. O teórico que deseja lidar
filosoficamente com as belas-artes tem uma tarefa seme¬
lhante a realizar.
Se alguém se dispuser a admitir essa postura, nem que
seja apenas a título de um experimento temporário, verá que
daí decorre uma conclusão surpreendente, à primeira vis¬
ta. Para compreender o significado dos produtos artísticos,
temos de esquecê-los por algum tempo, virar-lhes as cos¬
tas e recorrer às forças e condições comuns da experiência
que não costumamos considerar estéticas. Temos de chegar
à teoria da arte por meio de um desvio. É que a teoria diz
respeito à compreensão, ao discernimento, não sem excla¬
mações de admiração e sem o estímulo da explosão afetiva
comumente chamada de apreciação. É perfeitamente pos
sível nos comprazermos com as flores, em sua forma colo
rida e sua fragrância delicada, sem nenhum conhecimento
teórico das plantas. Mas quando alguém se propõe a com
preender o florescimento das plantas tem o compromisso de
descobrir algo sobre as interações do solo, do ar, da água e
do sol que condicionam seu crescimento.
O Partenon é, por consenso, uma grande obra de arte.
Mas só tem estatura estética na medida em que se torna uma
experiência para um ser humano. E se o sujeito quiser ir além
do deleite pessoal e entrar na formação de uma teoria sobre
a grande república da arte da qual essa construção é mem¬
bro, terá de se dispor, em algum momento de suas reflexões,
a se desviar dele para os cidadãos atenienses apressados, ar¬
gumentadores e agudamente sensíveis, com seu senso cívico
identificado com uma religião cívica de cuja experiência es¬
se templo foi uma expressão, e que o construíram não como
uma obra de arte, mas sim como uma comemoração cívica.
Esse voltar-se para eles se dá na condição de seres humanos
que tinham necessidades, as quais foram uma exigência pa¬
ra a construção e foram levadas à sua realização nela; não se
trata de um exame como o que poderia ser feito por um so¬
ciólogo em busca de material relevante para seus fins. Quem
se propõe teorizar sobre a experiência estética encarnada no
Partenon precisa descobrir, em pensamento, o que aquelas
pessoas em cuja vida o templo entrou, como criadoras e co¬
mo as que se compraziam com ele, tinham em comum com
as pessoas de nossas próprias casas e ruas.
Para compreender o estético em suas formas supremas
e aprovadas, é preciso começar por ele em sua forma bruta;
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nos acontecimentos e cenas que prendem o olhar e o ouvi¬
do atentos do homem, despertando seu interesse e lhe pro¬
porcionando prazer ao olhar e ouvir: as visões que cativam
a multidão - o caminhão do corpo de bombeiros que pas¬
sa veloz; as máquinas que escavam enormes buracos na ter¬
ra; a mosca humana escalando a lateral de uma torre; os
homens encarapitados em vigas, jogando e apanhando pa¬
rafusos incandescentes. As origens da arte na experiência
humana serão aprendidas por quem vir como a graça ten¬
sa do jogador de bola contagia a multidão de espectado¬
res; por quem notar o deleite da dona de casa que cuida de
suas plantas e o interesse atento com que seu marido cuida
do pedaço de jardim em frente à casa; por quem perceber o
prazer do espectador ao remexer a lenha que arde na lareira
e ao observar as chamas dardejantes e as brasas que se des¬
fazem. Essas pessoas, se alguém lhes perguntasse a razão
de seus atos, sem dúvida forneceriam respostas sensatas. O
homem que remexe os pedaços de lenha em brasa diria que
o faz para melhorar o fogo; mas não deixa de ficar fascinado
com o drama colorido da mudança encenada diante de seus
olhos e de participar dele na imaginação. Ele não se mantém
como um espectador frio. O que Coleridge disse sobre o lei¬
tor de poesia se aplica, à sua maneira, a todos os que ficam
alegremente absortos em suas atividades mentais e corpo¬
rais: "O leitor deve ser levado adiante não meramente ou
sobretudo pelo impulso mecânico da curiosidade, não pelo
desejo irrequieto de chegar à solução final, mas pela ativida¬
de prazerosa do percurso em si".
O mecânico inteligente, empenhado em sua ativida¬
de e interessado em bem executá-la, encontrando satisfa-
ção em seu trabalho e cuidando com genuína afeição de seu
material e suas ferramentas, está artisticamente engajado. A
diferença entre esse trabalhador e o homem inepto e des¬
cuidado que atamanca seu trabalho é tão grande na ofici¬
na quanto no estúdio. Muitas vezes, o produto pode não ser
atraente para o senso estético dos que o utilizam. Mas a fa¬
lha, com frequência, está menos no trabalhador do que nas
condições do mercado a que seu produto se destina. Se as
condições e oportunidades fossem diferentes, seriam feitas
coisas tão significativas para os olhos quanto as produzidas
por artesãos anteriores.
Tão vastas e sutilmente disseminadas são as ideias que
situam a arte em um pedestal longínquo, que muita gen¬
te sentiria repulsa, em vez de prazer, se lhe dissessem que
ela desfruta de suas recreações despreocupadas, pelo menos
em parte, em função da qualidade estética destas. As artes
que têm hoje mais vitalidade para a pessoa média são coisas
que ela não considera artes: por exemplo, os filmes, o ]azz,
os quadrinhos e, com demasiada frequência, as reportagens
de jornais sobre casos amorosos, assassinatos e façanhas de
bandidos. E que, quando aquilo que conhecemos como arte
fica relegado aos museus e galerias, o impulso incontrolável
de buscar experiências prazerosas em si encontra as válvu¬
las de escape que o meio cotidiano proporciona. Muitas pes¬
soas que protestam contra a concepção museológica da arte
ainda compartilham a falácia da qual brota essa concepção.
E que a noção popular provém de uma separação entre a ar¬
te e os objetos e cenas da experiência corriqueira que muitos
teóricos e críticos se orgulham em sustentar e até desen¬
volver. As ocasiões em que objetos seletos e distintos são
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estreitamente relacionados com os produtos das ocupações
habituais são aquelas em que a apreciação dos primeiros é
mais abundante e mais aguda. Quando, por sua imensa dis¬
tância, os objetos reconhecidos pelas pessoas cultas como
obras de belas-artes parecem anêmicos para a massa popu¬
lar, a fome estética tende a buscar o vulgar e o barato.
Os fatores que glorificaram as belas-artes, elevando-as
em um pedestal distante, não surgiram no âmbito da arte, e
sua influência não se restringe às artes. Para muitas pessoas,
uma aura mesclada de reverência e irrealidade envolve o
"espiritual" e o "ideal", enquanto, em contraste, "matéria"
tornou-se um termo depreciativo, algo a ser explicado ou
pelo qual se desculpar. As forças atuantes nisso são as que
afastaram a religião, assim como as belas-artes, do alcan¬
ce do que é comum, ou da vida comunitária. Historicamen¬
te, essas forças produziram tantos deslocamentos e divisões
da vida e do pensamento modernos que a arte não pôde es
capar a sua influência. Não precisamos viajar até os confins
da Terra nem recuar milênios no tempo para encontrar po¬
vos para os quais tudo que intensifica o sentimento imedia¬
to de vida é objeto de grande admiração. A escarificação do
corpo, as plumas oscilantes, os mantos vistosos e os ador¬
nos reluzentes de ouro e prata, esmeralda e jade, formaram
o conteúdo de artes estéticas, e, ao que podemos presumir,
sem a vulgaridade do exibicionismo classista que acompa¬
nha seus análogos atuais. Utensílios domésticos, móveis de
tendas e de casas, tapetes, capachos, jarros, potes, arcos ou
lanças eram feitos com um primor tão encantado que hoje
os caçamos e lhes damos lugares de honra em nossos mu¬
seus de arte. No entanto, em sua época e lugar, essas coi-
sas eram melhorias dos processos da vida cotidiana. Em vez
de serem elevadas a um nicho distinto, elas faziam parte da
exibição de perícia, da manifestação da pertença a grupos e
clãs, do culto aos deuses, dos banquetes e do je jum, das lu¬
tas, da caça e de todas as crises rítmicas que pontuam o flu¬
xo da vida.
A dança e a pantomima, origens da arte teatral, flores¬
ceram como parte de ritos e celebrações religiosos. A arte
musical era repleta do dedilhar de cordas tensionadas, do
bater de peles esticadas, do soprar de juncos. Até nas caver¬
nas, as habitações humanas eram adornadas com imagens
coloridas, que mantinham vivas nos sentidos as experiên¬
cias com os animais muito intimamente ligados à vida dos
seres humanos. As estruturas que abrigavam seus deuses e
os meios que facilitavam o comércio com os poderes supe¬
riores eram criados com um requinte especial. Mas as ar¬
tes do drama, da música, da pintura e da arquitetura, assim
exemplificadas, não tinham nenhuma ligação peculiar com
teatros, galerias ou museus. Faziam parte da vida significati¬
va de comunidades organizadas.
A vida coletiva que se manifestava na guerra, no culto
ou no fórum não conhecia nenhuma separação entre o que
era característico desses lugares e operações e as artes que
neles introduziam cor, graça e dignidade. A pintura e a escul¬
tura tinham uma ligação orgânica com a arquitetura, já que
esta se harmonizava com a finalidade social a que serviam as
construções. A música e o canto eram partes íntimas dos ri¬
tos e cerimônias em que se consumava o significado da vi¬
da do grupo. A dramatização era uma reencenação vital das
lendas e da história da vida grupal. Nem mesmo em Atenas é
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possível desprender essas artes de sua inserção na experiên¬
cia direta e, ao mesmo tempo, preservar seu caráter significa¬
tivo. Os esportes atléticos, assim como o teatro, celebravam e
reforçavam tradições raciais e grupais, instruindo o povo, co¬
memorando glórias e fortalecendo o orgulho cívico.
Nessas condições, não é de admirar que os gregos ate¬
nienses, ao refletirem sobre a arte, tenham formado a ideia
de que ela era um ato de reprodução ou de imitação. Há
muitas objeções a essa concepção. Mas a popularidade da
teoria é um testemunho da estreita ligação entre as belas-
-artes e a vida cotidiana; essa ideia não teria ocorrido a nin¬
guém, se a arte fosse distante dos interesses da vida. Pois a
doutrina não significava que a arte fosse uma cópia literal
de objetos, mas sim que ela refletia as emoções e ideias as¬
sociadas às principais instituições da vida social. Platão sen¬
tiu essa ligação de forma tão intensa que ela o levou à ideia
da necessidade de censurar poetas, dramaturgos e músicos.
Talvez ele tenha exagerado ao dizer que a troca da forma
dórica pela lídia na música seria uma precursora certeira da
degeneração civil. Mas nenhum contemporâneo seu duvi¬
daria de que a música era parte integrante do espírito e das
instituições da comunidade. A ideia de "arte pela arte" nem
sequer seria compreendida.
Então, deve haver razões históricas para o surgimen¬
to da concepção compartimentalizada das belas-artes. Nos¬
sos atuais museus e galerias, nos quais as obras de arte são
recolhidas e armazenadas, ilustram algumas das causas que
agiram no sentido de segregar a arte, em vez de considerá-la
um fator concomitante do templo, do fórum e de outras for¬
mas de vida associativa. Seria possível escrever uma história
instrutiva da arte moderna em termos da formação dessas
instituições nitidamente modernas que são o museu e a ga¬
leria de exposições. Posso assinalar alguns fatos destacados.
Quase todos os museus europeus são, entre outras coisas,
memoriais da ascensão do nacionalismo e do imperialismo.
Toda capital tem de ter seu museu de pintura, escultura e tc ,
em parte dedicado a exibir a grandeza de seu passado ar¬
tístico, em parte dedicado a exibir a pilhagem recolhida por
seus monarcas na conquista de outras nações, a exemplo
da acumulação de espólios de Napoleão que se encontra no
Louvre. Eles atestam a ligação entre a moderna segregação
da arte e o nacionalismo e o militarismo. Não há dúvida de
que, em alguns momentos, essa ligação serviu a um propó¬
sito útil, como no caso do Japão, que, ao entrar no processo
de ocidentalização, salvou muitos de seus tesouros artísti¬
cos, nacionalizando os templos que os continham.
O crescimento do capitalismo foi uma influência po¬
derosa no desenvolvimento do museu como o lar adequa¬
do para as obras de arte, assim como na promoção da ideia
de que elas são separadas da vida comum. Os novos-r icos ,
que são um importante subproduto do sistema capitalista,
sentiram-se especialmente comprometidos a se cercar de
obras de arte que, por serem raras, eram também dispen¬
diosas. Em linhas gerais, o colecionador típico é o capitalista
típico. Para comprovar sua boa posição no campo da cultura
superior, ele acumula quadros, estátuas e jóias artísticos do
mesmo modo que suas ações e seus títulos atestam sua po¬
sição no mundo econômico.
Não apenas indivíduos, mas também comunidades e na¬
ções, evidenciam seu bom gosto cultural mediante a cons-
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trução de teatros de ópera, galerias e museus. Estes mostram
que a comunidade não está inteiramente absorta na riqueza
material, já que se dispõe a gastar seus lucros no patrocínio
das artes. Ela erige esses prédios e coleciona seu conteúdo
do mesmo modo que constrói catedrais. Essas coisas refle¬
tem e estabelecem o status cultural superior, enquanto sua
segregação da vida comum reflete o fato de que elas não fa¬
zem parte de uma cultura inata e espontânea. São uma es¬
pécie de equivalente de uma atitude santarrona, exibida não
em relação às pessoas como tais, mas aos interesses e ocu¬
pações que absorvem a maior parte do tempo e da energia
da comunidade.
A indústria e o comércio modernos têm um alcance in¬
ternacional. O conteúdo das galerias e dos museus atesta o
aumento do cosmopolitismo econômico. A mobilidade do
comércio e das populações, em função do sistema econômi¬
co, enfraqueceu ou destruiu o vínculo entre as obras de arte
e o genius loci do qual, em época anterior, elas foram a ex
pressão natural. À medida que as obras de arte foram per¬
dendo seu status autóctone, adquiriram um novo status - o
de serem espécimes das belas-artes, e nada mais. Além dis¬
so, tal como outros artigos, hoje se produzem obras de arte
para serem vendidas no mercado. O patrocínio econômico
oferecido por indivíduos ricos e poderosos, em muitas oca¬
siões, desempenhou um papel no incentivo à produção ar¬
tística. É provável que muitas tribos de selvagens tenham
tido seus mecenas. Mas agora, até esse tanto de ligação so¬
cial estreita se perde na impessoalidade de um mercado
mundial. Objetos que no passado foram válidos e signifi¬
cativos, por seu lugar na vida de uma comunidade, funcio-
nam hoje isolados das condições de sua origem. Em vista
disso, são também desvinculados da experiência comum e
servem de insígnias de bom gosto e atestados de uma cul¬
tura especial.
Em decorrência das mudanças nas condições indus¬
triais, o artista foi posto de lado em relação às correntes
principais do interesse ativo. A indústria mecanizou-se, e
um artista não pode trabalhar mecanicamente para a produ¬
ção em massa. Fica menos integrado do que antes no fluxo
normal dos serviços sociais. Resulta daí um "individualis¬
mo" estético peculiar. Os artistas acham que lhes compete
empenharem-se em seu trabalho como um meio isolado de
"expressão pessoal". Para não atenderem à tendência das
forças econômicas, é comum sentirem-se obrigados a exa¬
gerar sua separação, a ponto de chegarem à excentricidade.
Por conseguinte, os produtos artísticos assumem em grau
ainda maior a aparência de algo independente e esotérico.
Juntando a ação de todas essas forças, as condições
que criam o abismo que costuma existir entre o produtor
e o consumidor, na sociedade moderna, agem no sentido
de também criar um abismo entre a experiência comum e a
experiência estética. Finalmente, como comprovação desse
abismo, aceitamos como se fossem normais as filosofias da
arte que a situam em uma região não habitada por nenhu¬
ma outra criatura, e que enfatizam de forma despropositada
o caráter meramente contemplativo do estético. A confusão
de valores entra em cena para acentuar a separação. Ques¬
tões adventícias, como o prazer de colecionar, de expor, de
possuir e exibir, simulam valores estéticos. A crítica é afeta-
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da. Há muitos aplausos para as maravilhas da apreciação e
as glórias da beleza transcendente da arte, às quais as pes¬
soas se entregam sem levar muito em conta sua capacidade
de percepção estética no concreto.
Meu objetivo, porém, não é me dedicar a uma interpre¬
tação econômica da história das artes, muito menos afirmar
que, de forma invariável ou direta, as condições econômi¬
cas são relevantes para a percepção e o prazer, ou mesmo
para a interpretação de obras de arte individuais. Meu pro¬
pósito é indicar que as teorias que isolam a arte e sua apre¬
ciação, colocando-as em um campo próprio, desvinculado
das outras modalidades do experimentar, não são ineren¬
tes ao assunto, mas surgem em virtude de condições ex¬
ternas que podem ser explicitadas. Inseridas que estão nas
instituições e nos hábitos da vida, essas condições atuam
de maneira eficaz, porque trabalham de forma inconscien¬
te. Com isso, o teórico presume que elas estão inseridas na
natureza das coisas. No entanto, a influência dessas con¬
dições não se restringe à teoria. Como já indiquei, ela afe¬
ta profundamente a prática da vida, afastando percepções
estéticas que são ingredientes necessários da felicidade ou
reduzindo-as ao nível de excitações compensatórias transi¬
tórias e agradáveis.
Até para os leitores que são avessos ao que foi dito aqui,
as implicações das afirmações já feitas podem ser úteis para
definir a natureza do problema: o de recuperar a continuida¬
de da experiência estética com os processos normais do vi¬
ver. A compreensão da arte e de seu papel na civilização não
é favorecida por partirmos de louvores a ela nem por nos
ocuparmos exclusivamente, desde o começo, das grandes
obras de arte reconhecidas como tais. Chega-se à compreen¬
são buscada pela teoria através de um desvio, retornando à
experiência do curso comum ou rotineiro das coisas, a fim
de descobrir a qualidade estética que essa experiência pos¬
sui. A teoria só pode começar a partir das obras de arte reco¬
nhecidas quando o estético já está compartimentalizado ou
somente quando as obras de arte são postas em um nicho à
parte, em vez de serem comemorações, reconhecidas como
tal, das coisas da experiência comum. Até uma experiência
tosca, se for genuína, está mais apta a dar uma pista da na¬
tureza intrínseca da experiência estética do que um objeto já
separado de qualquer outra modalidade da experiência. Se¬
guindo essa pista, podemos descobrir como a obra de arte
se desenvolve e acentua o que é caracteristicamente valio¬
so nas coisas do prazer do dia a dia. Nesse caso, percebe-se
que o produto artístico brota destas últimas, quando o pleno
sentido da experiência corriqueira se expressa, do mesmo
modo que surgem corantes do alcatrão de hulha, quando ele
recebe um tratamento especial.
Já existem muitas teorias sobre a arte. Se há alguma
justificativa para propor mais uma filosofia do estético, ela
tem de ser encontrada em uma nova abordagem. Combina¬
ções e permutações entre teorias existentes podem ser facil¬
mente propostas pelos que têm essa inclinação. Para mim,
porém, o problema das teorias existentes é que elas partem
de uma compartimentalização pronta ou de uma concepção
da arte que a "espiritualiza", retirando-a da ligação com os
objetos da experiência concreta. A alternativa a essa espiri¬
tualização, entretanto, não é a materialização degradante e
prosaica das obras de arte, mas uma concepção que reve-
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le de que maneira essas obras idealizam qualidades encon¬
tradas na experiência comum. Se as obras de arte fossem
colocadas em um contexto diretamente humano na estima
popular, teriam um atrativo muito maior do que podem ter
quando as teorias compartimentalizadas da arte ganham
aceitação geral.
Uma concepção das belas-artes que parta da ligação
delas com as qualidades descobertas na experiência comum
poderá indicar os fatores e forças que favorecem a evolução
normal das atividades humanas comuns para questões de
valor artístico. Poderá também assinalar as condições que
bloqueiam seu crescimento normal. Os que escrevem sobre
a teoria estética, muitas vezes, levantam a questão de a filo¬
sofia estética poder ou não ajudar no cultivo da apreciação
estética. Essa indagação é um ramo da teoria geral da críti¬
ca, a qual, ao que me parece, não consegue cumprir plena¬
mente sua tarefa, quando não indica o que procurar e o que
encontrar nos objetos estéticos concretos. De qualquer mo¬
do, porém, é lícito dizer que uma filosofia da arte se torna
estéril, a menos que nos conscientize da função da arte em
relação a outras modalidades da experiência, a menos que
indique por que essa função é tão insatisfatoriamente cum¬
prida e a menos que sugira em que condições essa tarefa se¬
ria executada com êxito.
A comparação entre a emergência de obras de arte a
partir de experiências comuns e o refinamento de matérias¬
-primas em produtos valiosos talvez pareça indigna para al¬
guns, se não uma verdadeira tentativa de reduzir essas obras
à condição de artigos manufaturados para fins comerciais.
A questão, porém, é que não há louvor extasiado de obras
acabadas que possa, por si só, ajudar na compreensão ou na
geração de tais obras. As flores podem ser apreciadas sem
que se conheçam as interações entre o solo, o ar, a umidade
e as sementes das quais elas resultam. Mas não podem ser
compreendidas sem que justamente essas interações sejam
levadas em conta - e a teoria é uma questão de compreen¬
são. A teoria interessa-se por descobrir a natureza da pro¬
dução das obras de arte e do seu deleite para a percepção.
Como é que a feitura corriqueira de coisas evolui para a for¬
ma do fazer que é genuinamente artística? De que modo
nosso prazer cotidiano com cenas e situações evolui para
a satisfação peculiar que acompanha a experiência enfati¬
camente estética? São essas as perguntas que a teoria deve
responder. Não há como encontrar as respostas, se não nos
dispusermos a descobrir os germes e as raízes nas questões
da experiência que atualmente não consideramos estéticas.
Depois de descobrir essas sementes ativas, podemos acom¬
panhar o curso de sua evolução até as mais elevadas formas
de arte acabada e requintada.
E comumente sabido que não podemos, a não ser por
acidente, dirigir o crescimento e o florescimento das plan¬
tas, por mais encantadoras e apreciadas que sejam, sem
compreender suas condições causais. Deveria ser igualmen¬
te corriqueiro saber que a compreensão estética - distinta
do puro prazer pessoal - parte do solo, do ar e da luz dos
quais brotam coisas esteticamente admiráveis. E essas con¬
dições são as condições e os fatores que tornam completa
uma experiência comum. Quanto mais reconhecermos es¬
se fato, mais nos descobriremos diante de um problema, e
não de uma solução final. Se a qualidade artística e estética
7 4 J O H N D E W E Y ARTE COMO EXPERIÊNCIA
mente sob sua pele; seus órgãos subcutâneos são meios de
ligação com o que está além de sua estrutura corporal, e ao
qual, para viver, ela precisa adaptar-se, através da acomo¬
dação e da defesa, mas também da conquista. A todo mo¬
mento, a criatura viva é exposta aos perigos do meio que a
circunda, e a cada momento precisa recorrer a alguma coi¬
sa nesse meio para satisfazer suas necessidades. A carreira
e o destino de um ser vivo estão ligados a seus intercâm¬
bios com o meio, não externamente, mas sim de uma ma¬
neira mais íntima.
O rosnado de um cão que se abaixa sobre sua comi¬
da, seu uivo nos momentos de perda e solidão, o abanar da
cauda à volta de seu amigo humano, tudo isso são expres¬
sões da implicação do viver em um meio natural, que inclui
o homem e o animal que ele domesticou. Toda necessida¬
de, digamos, a falta de alimento ou ar puro, é uma carên¬
cia que denota, no mínimo, a ausência temporária de uma
adaptação adequada ao meio circundante. Mas é também
um pedido, uma busca no ambiente para suprir essa carên¬
cia e restabelecer a adaptação, construindo ao menos um
equilíbrio temporário. A própria vida consiste em fases nas
quais o organismo perde o compasso da marcha das coi¬
sas circundantes e depois retoma a cadência com elas - se¬
ja por esforço, seja por um acaso fortuito. E, em uma vida
em crescimento, a recuperação nunca é mero retorno a um
estado anterior, pois é enriquecida pela situação de dispa¬
ridade e resistência que atravessou com sucesso. Quando
o abismo entre o organismo e o meio é grande demais, a
criatura morre. Quando sua atividade não é favorecida pe¬
la alienação temporária, ela simplesmente subsiste. A vida
está implícita em toda experiência normal, de que maneira
explicaremos como e por que, de modo muito geral, ela não
consegue explicitar-se? Por que, para uma multidão de pes¬
soas, a arte parece ser um produto importado de um país es¬
trangeiro para experiência e o estético parece ser sinônimo
de algo artificial?
Não podemos responder a essas perguntas, assim co¬
mo não podemos acompanhar o desenvolvimento da arte a
partir da experiência cotidiana, a menos que tenhamos uma
ideia clara e coerente do que pretendemos dizer com "ex¬
periência normal". Felizmente, o caminho para chegar a es¬
se conhecimento está livre e bem sinalizado. A natureza da
experiência é determinada pelas condições essenciais da vi¬
da. Embora o ser humano seja diferente das aves e das feras,
compartilha funções vitais básicas com elas e tem de fazer os
mesmos ajustes basais, se quiser levar adiante o processo de
viver. Tendo as mesmas necessidades vitais, o homem de¬
riva os meios pelos quais respira, movimenta-se, vê e ouve,
e o próprio cérebro com que coordena seus sentidos e seus
movimentos, de seus antepassados animais. Os órgãos com
que ele se mantém vivo não são apenas dele, mas provêm
das lutas e conquistas de uma longa linhagem de ancestrais
no mundo animal.
Por sorte, uma teoria do lugar da estética na experiên¬
cia não tem de se perder em detalhes minuciosos, ao iniciar
pela experiência em sua forma elementar. Bastam os contor¬
nos gerais. A primeira grande consideração é que a vida se
dá em um meio ambiente; não apenas nele, mas por causa
dele, pela interação com ele. Nenhuma criatura vive mera-
76 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 77
cresce quando o descompasso temporário é uma transição
para um equilíbrio mais amplo das energias do organismo
com as das condições em que ele vive.
Esses lugares-comuns biológicos são algo mais do que
isso; chegam às raízes da estética na experiência. O mundo
é cheio de coisas que são indiferentes ou até hostis à vida;
os próprios processos pelos quais a vida se mantém tendem
a desajustá-la de seu meio. No entanto, quando a vida con¬
tinua e, ao continuar, se expande, há uma superação dos
fatores de oposição e conflito; há uma transformação de¬
les em aspectos diferenciados de uma vida mais energiza-
da e significativa. A maravilha da adaptação orgânica, vital,
através da expansão (e não da contração e da acomodação
passiva), realmente acontece. Aí se encontram, em germe, o
equilíbrio e a harmonia atingidos através do ritmo. O equi¬
líbrio não surge de maneira mecânica e inerte, mas a partir
e por causa da tensão.
Existe na natureza, mesmo abaixo do nível da vida, algo
além de mero fluxo e mudança. A forma é atingida toda vez
que se atinge um equilíbrio estável, embora móvel. As mu¬
danças se entrelaçam e se sustentam. Sempre que essa coe¬
rência existe, há persistência. A ordem não é imposta de fora
para dentro, mas feita das relações de interações harmonio¬
sas que as energias têm entre si. Por ser ativa (e não algo es¬
tático, por ser alheio ao que se passa), a própria ordem se
desenvolve. E passa a incluir em seu movimento equilibra¬
do uma variedade maior de mudanças.
Só se pode admirar a ordem em um mundo constan¬
temente ameaçado pela desordem - em um mundo em que
as criaturas vivas só podem continuar a viver "tirando pro-
veito da ordem que existe em torno delas, incorporando-a a
elas mesmas. Em um mundo como o nosso, toda criatura vi
va que atinge a sensibilidade acolhe a ordem de bom grado,
com uma resposta de sentimento harmonioso, toda vez que
encontra uma ordem congruente à sua volta.
Isso porque só ao compartilhar as relações ordeiras de
seu meio é que o organismo garante a estabilidade essencial
à vida. E, quando essa participação vem depois de uma fase
de perturbação e conflito, ela traz em si os germes de uma
consumação semelhante ao estético.
O ritmo da perda da integração ao meio e da recupera¬
ção da união não apenas persiste no homem, como se tor¬
na consciente com ele; suas condições são o material a partir
do qual ele cria propósitos. A emoção é o sinal conscien
te de uma ruptura real ou iminente. A discórdia é o ensejo
que induz à reflexão. O desejo de restabelecimento da união
converte a simples emoção em um interesse pelos objetos,
como condições de realização da harmonia. Com a realiza¬
ção, o material da reflexão é incorporado pelos objetos como
o significado deles. Uma vez que o artista se importa de mo¬
do peculiar com a fase da experiência em que a união é al¬
cançada, ele não evita os momentos de resistência e tensão.
Ao contrário, cultiva-os, não por eles mesmos, mas por suas
potencialidades, introduzindo na consciência viva uma ex¬
periência unificada e total. Em contraste com a pessoa cujo
objetivo é estético, o cientista se interessa por problemas,
por situações em que a tensão entre o conteúdo da observa
ção e o do pensamento é acentuada. É claro que ele se im
porta com a resolução desses problemas. Mas não para por
aí; segue adiante rumo a outro problema, usando a solução
78 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 79
alcançada apenas como um degrau a partir do qual instau¬
rar novas indagações.
A diferença entre o estético e o intelectual, portanto, é
um dos lugares em que a ênfase recai sobre o ritmo cons¬
tante que marca a interação da criatura viva com seu meio.
A matéria suprema das duas ênfases na experiência é a mes¬
ma, como o é também sua forma geral. A estranha ideia de
que o artista não pensa e de que o investigador científico não
faz outra coisa resulta da conversão de uma divergência de
ritmo e ênfase em uma diferença de qualidade. O pensador
tem seu momento estético quando suas ideias deixam de ser
meras ideias e se transformam nos significados coletivos dos
objetos. O artista tem seus problemas e pensa enquanto tra¬
balha. Mas seu pensamento se incorpora de maneira mais
imediata ao objeto. Em função do caráter comparativamente
remoto de seu fim, o trabalhador científico opera com sím¬
bolos, palavras e signos matemáticos. O artista desenvolve
seu raciocínio nos meios muito qualitativos em que traba¬
lha, e os termos ficam tão próximos do objeto que ele pro¬
duz que se fundem diretamente com este.
O animal vivo não tem de projetar emoções nos obje¬
tos vivenciados. A natureza é generosa e maléfica, meiga e
rabugenta, irritante e consoladora, muito antes de ser mate¬
maticamente qualificada ou mesmo de ser um aglomerado
de qualidades "secundárias", como as cores e suas formas.
Até palavras como "comprido" e "curto" ou "sólido" e "oco"
ainda transmitem a todos, exceto aos intelectualmente es¬
pecializados, uma conotação moral e afetiva. O dicionário
informa a quem o consultar que o uso primitivo de palavras
como "doce" e "amargo" não foi a denotação de qualidades
sensoriais como tais, mas a discriminação das coisas como
favoráveis ou hostis. Como poderia ser diferente? A expe¬
riência direta vem da natureza e da interação entre os seres
humanos. Nessa interação, a energia humana é acumulada,
liberada, represada, frustrada e vitoriosa. Há pulsações rít¬
micas de desejo e realização, pulsos do fazer e do ser impe¬
dido de fazer.
Todas as interações que afetam a estabilidade e a or¬
dem no fluxo turbilhonante da mudança são ritmos. Exis¬
tem o influxo e o refluxo, a sístole e a diástole: a mudança
ordeira. Esta se move dentro de limites. Ultrapassar os li¬
mites estabelecidos equivale à destruição e à morte, a partir
das quais, entretanto, se constroem novos ritmos. A inter¬
cepção proporcional das mudanças estabelece uma ordem
de padrão espacial, e não apenas temporal: como as ondas
do mar, as ondulações da areia onde as ondas fluíram e re¬
fluíram ou as nuvens lanosas e as de fundo escuro. O con¬
traste entre a falta e a plenitude, a luta e a realização ou
o ajuste depois da irregularidade consumada constituem o
drama em que ação, sentimento e significado são uma coisa
só. Daí resultam o equilíbrio e o contrabalanceamento. Estes
não são estáticos nem mecânicos. Expressam uma força que
é intensa, por ser medida pela superação da resistência. Os
objetos circundantes beneficiam ou prejudicam.
Há dois tipos de mundos possíveis em que a experiência
estética não ocorreria. Em um mundo de mero fluxo, a mu¬
dança não seria cumulativa, não se moveria em direção a um
desfecho. A estabilidade e o repouso não existiriam. Mas é
igualmente verdadeiro que um mundo acabado, concluído,
não teria traços de suspense e crise e não ofereceria oportu-
80 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 81
nidades de resolução. Quando tudo já está completo, não há
realização. Só contemplamos com prazer o Nirvana e uma
bem-aventurança celestial uniforme porque eles se projetam
no pano de fundo de nosso mundo atual, feito de tensão e
conflito. Pelo fato de o mundo real, este em que vivemos, ser
uma combinação de movimento e culminação, de rupturas e
reencontros, a experiência do ser vivo é passível de uma qua¬
lidade estética. O ser vivo perde e restabelece repetidamente
o equilíbrio com o meio circundante. O momento de passa¬
gem da perturbação para a harmonia é o de vida mais intensa.
Em um mundo acabado, o sono e a vigília não poderiam ser
distinguidos. Em um mundo totalmente perturbado, não se¬
ria possível lutar contra as circunstâncias. Em um mundo feito
segundo os padrões do nosso, momentos de realização pon¬
tuam a experiência com intervalos ritmicamente desfrutados.
A harmonia interna só é alcançada quando se chega
de algum modo a um entendimento com o meio. Quan¬
do ele ocorre em outras bases que não as "objetivas", é ilu¬
sório - nos casos extremos, a ponto de chegar à insanidade.
Felizmente, para a variedade da experiência, chega-se a en¬
tendimentos de muitas maneiras - maneiras decididas, em
última análise, pelo interesse seletivo. Os prazeres podem
advir mediante o contato fortuito e a estimulação; tais pra¬
zeres não devem ser desprezados em um mundo repleto de
dor. Mas a felicidade e o gozo são um tipo de coisa diferente.
Surgem por meio de uma realização que alcança as profun¬
dezas de nosso ser - uma realização que é uma adaptação
de todo o nosso ser às condições de vida. No processo de vi¬
ver, a consecução de um período de equilíbrio é, ao mesmo
tempo, o início de uma nova relação com o meio, uma rela-
ção que traz em si o poder de novas adaptações, a serem fei¬
tas através da luta. O tempo da consumação é também o de
um recomeço. Qualquer tentativa de perpetuar além do pra¬
zo o gozo concomitante ao tempo de realização e harmonia
constitui um afastamento do mundo. Por isso, assinala a di¬
minuição e a perda da vitalidade. Contudo, através das fa¬
ses de perturbação e conflito, persiste a lembrança arraigada
de uma harmonia subjacente, cuja sensação frequenta a vida
como a sensação de se estar alicerçado em uma rocha.
A maioria dos mortais tem consciência de que é comum
ocorrer uma cisão entre sua vida atual e seu passado e futuro.
Nesse caso, o passado pesa sobre eles como um fardo; inva¬
de o presente com uma sensação de pesar, de oportunidades
não aproveitadas e de consequências que gostaríamos de des¬
fazer. Assenta-se sobre o presente como uma opressão, em
vez de ser um reservatório de recursos com os quais avançar
confiantemente. Mas a criatura viva adota seu passado; pode
lidar amigavelmente até com suas tolices, usando-as como
advertências que ampliam a cautela atual. Em vez de tentar
viver do que quer que tenha sido obtido no passado, ela usa
os sucessos anteriores para instrumentar o presente. Toda
experiência viva deve sua riqueza ao que Santayana denomi
nou, oportunamente, de "reverberações murmuradas" 1 .
1 . " E s s a s f lores c o n h e c i d a s , e s s a s n o t a s b e m l e m b r a d a s dos p á s s a r o s , e s s e céu c o m seu b r i l h o i n t e r m i t e n t e , e s s e s c a m p o s a r a d o s c r e l v a d o s , c a d a q u a l c o m u m a e s p é c i e d e p e r s o n a l i d a d e que lhe é c o n f e r i d a p e l a s e b e c a p r i c h o s a , c o i s a s c o mo e s s a s s ã o a l í n g u a m a t e r n a de n o s s a i m a g i n a ç ã o , a l í n g u a c a r r e g a d a de to¬ das a s a s s o c i a ç õ e s sut i s e i n e x t r i c á v e i s d e i x a d a s p e l a s h o r a s f u g a z e s d a i n f â n c i a . N o s s o p r a z e r a o sol , n a g r a m a al ta d e h o j e , t a l v e z n ã o p a s s a s s e d e u m a t ê n u e per¬ c e p ç ã o de a l m a s c a n s a d a s , n ã o f o s s e m o sol e a g r a m a de a n o s d i s t a n t e s , q u e ain¬ d a v i v e m e m n ó s e t r a n s f o r m a m n o s s a p e r c e p ç ã o e m a m o r / ' ( G e o r g e E l io t , e m O moinho sobre o rio).
82 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 83
Para o ser plenamente vivo, o futuro não é ominoso,
e sim uma promessa; cerca o presente como uma auréola.
Consiste em possibilidades sentidas como a posse do que
existe aqui e agora. Na vida que é verdadeiramente vida, tu¬
do se superpõe e se funde. Não raro, porém, existimos em
meio a apreensões sobre o que o futuro poderá trazer e fi¬
camos divididos dentro de nós. Mesmo quando não esta¬
mos exageradamente ansiosos, não desfrutamos o presente,
porque o subordinamos àquilo que está ausente. Dada a
frequência desse abandono do presente ao passado e ao fu¬
turo, os períodos felizes de uma experiência agora comple¬
ta, por absorver em si lembranças do passado e expectativas
do futuro, passam a constituir um ideal estético. Somente
quando o passado deixa de perturbar e as expectativas do
futuro não são aflitivas é que o ser se une inteiramente com
seu meio e, com isso, fica plenamente vivo. A arte celebra
com intensidade peculiar os momentos em que o passado
reforça o presente e em que o futuro é uma intensificação do
que existe agora.
Para apreender as fontes da experiência estética, por¬
tanto, é necessário recorrer à vida animal abaixo da escala
humana. As atividades da raposa, do cão e do sabiá podem
ao menos figurar como lembretes e símbolos da unicidade
da experiência que tanto fracionamos, quando o trabalho é
um esforço árduo e o pensamento nos distancia do mundo.
O animal vivo acha-se plenamente presente, inteiramente
participante em todos os seus atos: nos olhares cautelosos,
no farejar sensível, no espetar abrupto das orelhas. Todos os
sentidos se encontram igualmente no qui vive. Ao observá¬
-lo, vemos o movimento fundir-se com o sentido e o sentido
com o movimento, constituindo aquela graça animal com
que o ser humano tem tanta dificuldade de rivalizar. O que
a criatura viva preserva do passado e espera do futuro fun¬
ciona como orientações no presente. O cão nunca é pedan¬
te nem acadêmico, pois essas coisas surgem apenas quando
o passado é cindido do presente na consciência e instituí¬
do como modelo a ser copiado, ou como reservatório on¬
de buscar material. O passado absorvido pelo presente faz
avançar, empurra para adiante.
Há muito de embrutecido na vida do selvagem. Entre¬
tanto, no que ele tem de mais vivo, é sumamente observa¬
dor do mundo que o cerca e sumamente tenso de energia.
Ao observar o que se mexe à sua volta, ele também se mexe.
Sua observação é ato em preparação e antevisão do futuro.
Com todo o seu ser, ele é tão ativo ao olhar e escutar quanto
ao espreitar a presa, ou ao se afastar furtivamente de um ini¬
migo. Seus sentidos são sentinelas do pensamento imedia¬
to e postos avançados da ação, e não, como tantas vezes são
conosco, meras vias pelas quais o material é recolhido, para
ser armazenado para uma possibilidade adiada e remota.
É a simples ignorância, portanto, que leva a supor que
a ligação da arte e da percepção estética com a experiência
significa uma diminuição de sua importância e dignidade.
A experiência, na medida em que é experiência, consiste na
acentuação da vitalidade. Em vez de significar um encerrar -
-se em sentimentos e sensações privados, significa uma tro¬
ca ativa e alerta com o mundo; em seu auge, significa uma
interpenetração completa entre o eu e o mundo dos objetos
e acontecimentos. Em vez de significar a rendição aos ca¬
prichos e à desordem, proporciona nossa única demonstra-
84 J O H N D E W E Y
ção de uma estabilidade que não equivale à estagnação, mas
é rítmica e evolutiva. Por ser a realização de um organismo
em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas, a expe¬
riência é a arte em estado germinal. Mesmo em suas formas
rudimentares, contém a promessa da percepção prazerosa
que é a experiência estética.
A CRIATURA VIVA E AS "COISAS ETÉREAS"
Por que a tentativa de ligar as coisas superiores e ideais
da experiência às raízes vitais básicas é vista, com tanta fre¬
quência, como uma traição a sua natureza e uma negação de
seu valor? Por que existe repulsa quando as realizações su¬
periores da arte refinada são postas em contato com a vida
comum, a vida que compartilhamos com todos os seres vi¬
vos? Por que se pensa na vida como uma questão de ape¬
tites inferiores ou, na melhor das hipóteses, uma coisa de
sensações grosseiras, pronta a despencar do que tem de me¬
lhor para o nível da lascívia e da crueldade bruta? Uma res¬
posta completa a essas perguntas envolveria a redação de
uma história da moral que expusesse as condições que acar¬
retaram o desprezo pelo corpo, o medo das sensações e a
oposição da carne ao espírito.
1. "O S o l , a L u a , a T e r r a e s e u c o n t e ú d o são um m a t e r i a l p a r a f o r m a r c o i s a s m a i o r e s , i s to é , c o i s a s e t é r e a s - c o i s a s m a i o r e s d o q u e a s fe i tas p e l o p r ó p r i o C r i a d o r . " ( J o h n K e a t s )
86 J O H N D r w l ' . Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 87
Um aspecto dessa história é tão relevante para nosso
problema que deve receber ao menos uma menção passa¬
geira. A vida institucional da humanidade é marcada pela
desorganização. Muitas vezes, essa desordem é disfarçada
pelo fato de assumir a forma de uma divisão estática entre
classes, e essa separação estática é aceita como a própria es¬
sência da ordem, desde que seja tão fixa e tão aceita que não
gere conflitos abertos. A vida é compartimentalizada, e os
compartimentos institucionalizados são classificados como
superiores e inferiores; seus valores, como profanos e espiri¬
tuais, materiais e ideais. Os interesses são relacionados uns
com os outros de maneira externa e mecânica, através de
um sistema de verificações e balanços. Visto que a religião,
a moral, a política e os negócios têm seus próprios compar¬
timentos, dentro dos quais convém que cada um permane¬
ça, também a arte deve ter seu âmbito peculiar e privado. A
compartimentalização das ocupações e interesses acarreta a
separação entre a forma de atividade comumente chamada
de "prática" e a compreensão entre a imaginação e o fazer
executivo, entre o propósito significativo e o trabalho, entre
a emoção, de um lado, e o pensamento e a ação, de outro.
Cada um destes tem também seu lugar próprio, no qual de¬
ve permanecer. Assim, aqueles que escrevem a anatomia da
experiência supõem que essas divisões são inerentes à pró¬
pria constituição da natureza humana.
A uma grande parte de nossa experiência - tal como
efetivamente vivida nas atuais condições institucionais eco¬
nômicas e jurídicas - é muito verdadeiro que essas sepa¬
rações se aplicam. Só ocasionalmente, na vida de muitas
pessoas, os sentidos são carregados do sentimento que pro-
vém da compreensão profunda dos significados intrínse
cos. Vivenciamos as sensações como estímulos mecânicos
ou estimulações irritadas, sem termos ideia da realidade que
há nelas e por trás delas: em grande parte de nossa expe
riência, nossos diferentes sentidos não se unem para contar
uma história comum e ampliada. Vemos sem sentir; ouvi
mos, mas apenas como um relato em segunda mão - segun
da mão por ele não ser reforçado pela visão. Tocamos, mas o
contato permanece tangencial, porque não se funde com as
qualidades dos sentidos que mergulham abaixo da superfí
cie. Usamos os sentidos para despertar a paixão, mas não
para servir ao interesse do discernimento, não porque es¬
se interesse não esteja potencialmente presente no exercício
do sensorial, mas porque cedemos a condições de vida que
forçam os sentidos a se manterem como excitações superfi¬
ciais. O prestígio vai para aqueles que usam a mente sem a
participação do corpo e que agem vicariamente através do
controle dos corpos e do trabalho de terceiros.
Nessas condições, o sentido e a carne ficam mal-afa¬
mados. O moralista, entretanto, tem uma ideia mais ver¬
dadeira das conexões íntimas dos sentidos com o resto de
nosso ser do que o psicólogo e o filósofo profissionais, em¬
bora seu entendimento dessas conexões siga uma direção
que inverte as realidades potenciais de nossa vida em rela¬
ção ao meio ambiente. Nos últimos tempos, os psicólogos e
filósofos têm estado tão obcecados com o problema do co¬
nhecimento que tratam as "sensações" como meros com¬
ponentes dele. O moralista sabe que o sensorial está ligado
às emoções, impulsos e apetites. Por isso, denuncia o gozo
do olhar como parte da rendição do espírito à carne. Identi-
88 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 89
fica o sensório com o sensual e o sensual com o lascivo. Sua
teoria moral é tendenciosa, mas ao menos ele tem consciên¬
cia de que o olho não é um telescópio imperfeito, projetado
para a recepção intelectual do material, a fim de promover o
conhecimento de objetos distantes.
O "sentido" abarca urna vasta gama de conteúdos: o
sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimen¬
tal, junto com o sensual. Inclui quase tudo, desde o choque
físico e emocional cru até o sentido em si - ou seja, o signi¬
ficado das coisas presentes na experiencia imediata. Cada
termo se refere a uma fase e aspecto reais da vida de urna
criatura orgânica, tal como a vida ocorre através dos órgãos
sensoriais. Mas o sentido, como um significado tão direta¬
mente encarnado na experiencia a ponto de ser seu próprio
significado esclarecido, é a única significação que expressa a
função dos órgãos sensoriais quando levados à plena reali¬
zação. Os sentidos são os órgãos pelos quais a criatura vi¬
va participa diretamente das ocorrências do mundo a seu
redor. Nessa participação, o assombro e o esplendor deste
mundo se tornam reais para ela nas qualidades que ela vi¬
vencia. Esse material não pode ser contrastado com a ação,
porque o aparelho motor e a própria "vontade" são os meios
pelos quais essa participação é levada a cabo e dirigida. Não
pode ser contrastado com o "intelecto", porque a mente é
o meio pelo qual a participação se torna fecunda através do
juízo [senso], pelo qual os significados e valores são extraí¬
dos, preservados e colocados a serviço de outras questões,
na relação da criatura viva com o meio que a cerca.
A experiência é o resultado, o sinal e a recompensa da
interação entre organismo e meio que, quando plenamen-
te realizada, é uma transformação da interação em partici¬
pação e comunicação. Visto que os órgãos sensoriais, com o
aparelho motor que lhes está ligado, são os meios dessa par¬
ticipação, toda e qualquer invalidação deles, seja de ordem
prática ou teórica, é, ao mesmo tempo, efeito e causa de um
estreitamento e um embotamento da experiência de vida.
As oposições entre mente e corpo, alma e matéria, espíri¬
to e carne originam-se todas, fundamentalmente, no medo
do que a vida pode trazer. São marcas de contração e retrai¬
mento. Portanto, o reconhecimento pleno da continuidade
entre os órgãos, necessidades e impulsos básicos da criatura
humana e seus antepassados animais não implica uma re¬
dução necessária do homem ao nível dos bichos. Ao con¬
trário, possibilita o traçado de um projeto fundamental da
experiência humana sobre o qual se erga a superestrutura
da experiência maravilhosa e distintiva do homem. O que
há de distintivo no homem lhe permite descer abaixo do ní¬
vel dos animais. Também lhe possibilita elevar a alturas no¬
vas e sem precedentes a união do sentido e do impulso, do
cérebro, olho e ouvido, que é exemplificada na vida animal,
saturando-a com os significados conscientes derivados da
comunicação e da expressão deliberada.
O h o m e m prima pela complexidade e pela minúcia das
diferenciações. Esse simples fato constitui a exigência de
muitas relações mais abrangentes e exatas entre os compo¬
nentes de seu ser. Por mais importantes que sejam as distin¬
ções e relações assim possibilitadas, a história não termina
aí. Há mais oportunidades de resistência e tensão, mais de¬
mandas de experimentação e invenção e, por conseguinte,
maior ineditismo na ação, maior leque e profundidade do
90 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 91
discernimento e maior pungência dos sentimentos. À medi¬
da que um organismo aumenta sua complexidade, os ritmos
de luta e consumação em sua relação com o meio tornam¬
-se variados e prolongados e passam a incluir em si uma va¬
riedade infindável de sub-ritmos. Os projetos de vida são
ampliados e enriquecidos. A realização é mais maciça e tem
nuanças mais sutis.
Com isso, o espaço torna-se algo mais do que um va¬
zio pelo qual perambular, pontilhado, aqui e ali, de coisas
perigosas e coisas que satisfazem os apetites. Torna-se um
cenário abrangente e fechado no qual se ordena a multipli¬
cidade de atos e experiências em que o homem se engaja.
O tempo deixa de ser o fluxo infindável e uniforme ou a su¬
cessão de pontos instantâneos que alguns filósofos afirma¬
ram que é. Ele é também o meio organizado e organizador
do influxo e refluxo rítmicos de impulsos expectantes, movi¬
mentos de avanço e recuo e de resistência e suspense, com
realização e consumação. E uma ordenação do crescimen¬
to e do amadurecimento - como disse James, aprendemos
a patinar no verão, depois de haver começado no inverno.
O tempo, como organização da mudança, é crescimento, e
o crescimento significa que uma série variada de mudanças
entra nos intervalos de pausa e repouso, de conclusões que
se tornam os pontos iniciais de novos processos de desen¬
volvimento. Tal como o solo, a mente é fertilizada quando
está improdutiva, até seguir-se um novo surto de floração.
Quando um relâmpago ilumina uma paisagem escu¬
ra, há um reconhecimento momentâneo dos objetos. Mas
o reconhecimento em si não é um mero ponto no tempo.
E a culminação focal de longos e lentos processos de ma-
turação. É a manifestação da continuidade de uma expe¬
riência temporal ordenada, em um súbito instante ímpar de
clímax. Isolado, ele é tão sem sentido quanto seria a tra¬
gédia de Hamlet, caso se restringisse a um único verso ou
palavra, sem qualquer contexto. Mas a frase "o resto é si¬
lêncio" é infinitamente pregnante como conclusão de um
drama encenado pelo desenvolvimento no tempo; o mes¬
mo pode ocorrer com a percepção momentânea de uma ce¬
na natural. A forma, tal como presente nas artes, é a arte de
deixar claro o que está envolvido na organização do espaço
e do tempo, prefigurada em todo curso de uma experiência
vital em desenvolvimento.
Os momentos e lugares, a despeito da limitação físi¬
ca e da localização restrita, são carregados de acúmulos de
energia colhida durante muito tempo. O retorno a uma ce¬
na da infância, deixada anos antes, inunda o local com uma
liberação de lembranças e esperanças refreadas. Encontrar
em um país estrangeiro um conhecido informal de casa po¬
de despertar uma satisfação tão aguda que chega a emo¬
cionar. O mero reconhecimento só ocorre quando estamos
ocupados com outra coisa que não o objeto ou a pessoa re¬
conhecidos. Assinala uma interrupção ou uma intenção de
usar o que é reconhecido como um meio para algo diferen¬
te. Ver, perceber, é mais do que reconhecer. Não identifica
algo presente em termos de um passado desvinculado de¬
le mesmo. O passado se transpõe para o presente, expan¬
dindo e aprofundando o conteúdo deste último. Aí se ilustra
a tradução da pura continuidade do tempo externo para a
ordem e organização vitais da experiência. A identificação
acena e segue adiante. Ou então define um momento pas-
92 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 93
sageiro isolado, marca na experiencia um ponto morto que é
meramente preenchido. O grau em que o processo de viver
um dia ou uma hora quaisquer reduz-se a rotular situações,
eventos e objetos como "tais e quais" em mera sucessão as¬
sinala a cessação da vida como uma experiência conscien¬
te. As continuidades percebidas em uma forma individual e
distinta são a essência desta última.
A arte, portanto, prefigura-se nos próprios processos
do viver. O pássaro constrói seu ninho, e o castor, seu di¬
que, quando as pressões orgânicas internas cooperam com
o material externo para que as primeiras se realizem e o se¬
gundo seja transformado em uma culminação satisfatória.
Podemos hesitar em aplicar a isso a palavra "arte" , já que
duvidamos da presença de uma intenção diretiva. Mas toda
deliberação, toda intenção consciente brota de coisas antes
organicamente executadas pela interação de energias natu¬
rais. Se assim não fosse, a arte se alicerçaria em areia move¬
diça, ou melhor, no ar instável. A contribuição distintiva do
homem é a consciência das relações encontradas na nature¬
za. Através da consciência, ele converte as relações de cau¬
sa e efeito encontradas na natureza em relações de meios e
consequência. Melhor dizendo, a consciência em si é a ori¬
gem dessa transformação. O que era mero choque torna-se
um convite; a resistência transforma-se em algo a ser usa¬
do para mudar os arranjos existentes da matéria; as facilida¬
des desenvoltas tornam-se agentes da execução de ideias.
Nessas operações, um estímulo orgânico torna-se portador
de significados, e as respostas motoras se transformam em
instrumentos de expressão e comunicação; deixam de ser
meros meios de locomoção e reação direta. Enquanto is-
so, o substrato orgânico persiste como a base estimuladora
e profunda. Fora das relações de causa e efeito da nature¬
za, a concepção e a invenção não poderiam existir. Separa¬
da da relação dos processos de conflito e realização rítmicos
da vida animal, a experiência seria desprovida de projeto e
padrão. Separadas dos órgãos herdados dos antepassados
animais, a ideia e a finalidade seriam desprovidas de um
mecanismo de realização. As artes primitivas da natureza e
da vida animal são a tal ponto o material e, em linhas gerais,
a tal ponto o modelo das realizações intencionais do h o m e m
que as pessoas de mentalidade teológica imputaram uma
intenção consciente à estrutura da natureza - posto que o
homem, que tem muitas atividades em comum com o ma¬
caco, tende a pensar nelas como uma imitação de seu pró¬
prio desempenho.
A existência da arte é a prova concreta do que aca¬
bou de ser afirmado em termos abstratos. E a prova de que
o h o m e m usa os materiais e as energias da natureza com
a intenção de ampliar sua própria vida, e de que o faz de
acordo com a estrutura de seu organismo - cérebro, órgãos
sensoriais e sistema muscular. A arte é a prova viva e con¬
creta de que o homem é capaz de restabelecer, consciente¬
mente e, portanto, no plano do significado, a união entre
sentido, necessidade, impulso e ação que é característica
do ser vivo. A intervenção da consciência acrescenta a re¬
gulação, a capacidade de seleção e a reordenação. Por isso,
diversifica as artes de maneiras infindáveis. Mas sua inter¬
venção também leva, com o tempo, à ideia da arte como
ideia consciente - a maior realização intelectual na histó¬
ria da humanidade.
94 JOHN DEWEY
A variedade e a perfeição das artes na Grécia levaram os pensadores a moldar uma concepção generalizada da arte e a projetar o ideal de uma arte de organizar as atividades humanas como tais - a arte da política e da moral, tal como concebida por Sócrates e Platão. As ideias de concepção, projeto, ordem, padrão e finalidade ou propósito emergiram distinguindo-se dos materiais empregados em sua realização e relacionando-as com eles. A concepção do homem como o ser que usa a arte tornou-se, ao mesmo tempo, a base da distinção entre o homem e o resto da natureza, bem como do vínculo que o liga à natureza. Quando a concepção da arte como traço distintivo do homem foi explicitada, houve a certeza de que, a não ser por uma completa recaída da humanidade abaixo até da selvageria, a possibilidade da invenção de novas artes permaneceria, ao lado do uso das artes antigas, como o ideal norteador da humanidade. Embora o reconhecimento desse fato ainda seja relutante, dadas as tradições estabelecidas antes que o poder da arte fosse adequadamente reconhecido, a própria ciência não passa de uma arte central que auxilia na geração e utilização de outras artes2.
E costumeiro e, segundo alguns pontos de vista, necessário estabelecer uma distinção entre belas-artes e arte útil ou tecnológica. Mas o ponto de vista a partir do qual essa distinção é necessária é extrínseco à obra de arte propriamente
2. Desenvolvi este ponto em. Experience and Nature [Experiência e natureza], no Capítulo 9, "Experiência, natureza e arte". No que concerne à colocação atual, a conclusão encontra-se na afirmação de que "a arte, forma de atividade carregada de significados passíveis de uma posse imediatamente desfrutada, é a culminação completa da natureza, e a ciência, no sentido apropriado, é a serva que conduz os eventos naturais a esse final feliz" (p. 358) [Later Works, vol. 1, p. 269] .
96 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 97
dita. A distinção habitual baseia-se simplesmente na acei¬
tação de certas condições sociais existentes. Suponho que
os fetiches do escultor negro africano tenham sido consi¬
derados excepcionalmente úteis para seu grupo tribal, mais
até do que as lanças e a roupa. Agora, porém, constituem
obras de arte e servem, no século xx, para inspirar uma re¬
novação em artes que se tornaram convencionais. No en¬
tanto, só são obras de arte porque o artista anônimo viveu
e teve experiências muito plenas durante o processo de
produção. Um pescador pode comer seu pescado sem por
isso perder a satisfação estética que vivenciou ao lançar o
anzol e pescar. E esse grau de completude do viver, na ex¬
periência de fazer e perceber, que estabelece a diferença
entre o que é belo ou estético na arte e o que não é. Se a
coisa produzida é ou não utilizada, como potes, tapetes,
roupas ou armas, é, intrinsecamente falando, irrelevante. O
fato de muitos ou talvez de a maioria dos artigos e utensí¬
lios hoje criados para uso não serem genuinamente estéti¬
cos é verdadeiro, infelizmente. Mas é verdadeiro por razões
alheias à relação entre o "belo" e o "út i l " como tais. Onde
quer que as condições sejam tais que impeçam o ato de
produção de ser uma experiência em que a totalidade da
criatura esteja viva e na qual ela possua sua vida através do
prazer, faltará ao produto algo da ordem do estético. Por
mais que ele seja útil para fins especiais e limitados, não
será útil no grau supremo - o de contribuir, direta e liberal¬
mente, para a ampliação e enriquecimento da vida. A his¬
tória da separação e da oposição nítida e final entre o útil e
o belo é a história do desenvolvimento industrial, median¬
te o qual grande parte da produção se tornou uma forma
de vida adiada e grande parte do consumo tornou-se um
prazer superposto aos frutos do trabalho alheio.
Em geral, há uma reação hostil à concepção da arte
que a liga às atividades da criatura viva em seu ambiente.
A hostilidade à associação das belas-artes com os proces¬
sos normais do viver é um comentário patético ou até trá¬
gico sobre a vida, tal como comumente vivida. E somente
pelo fato de a vida ser usualmente muito mirrada, abortada,
embotada ou carregada que se alimenta a ideia de haver um
antagonismo intrínseco entre o processo da vida normal e a
criação e apreciação de obras da arte estética. Afinal, ainda
que o "espiritual" e o "material" sejam separados e opostos
entre si, deve haver condições em que o ideal seja passível
de incorporação e realização - e isso, fundamentalmente, é
tudo o que significa "matéria" . A própria maneira como essa
oposição se tornou corrente atesta, portanto, a ação genera¬
lizada de forças que convertem aquilo que poderia constituir
meios de executar ideias liberais em fardos opressivos, e que
levam os ideais a serem aspirações frouxas, em um clima in¬
seguro e sem alicerces.
Embora a arte em si seja a melhor prova da existência de
uma união realizada, e portanto realizável, entre o material e
o ideal, há argumentos gerais que apoiam a tese em exame.
Toda vez que a continuidade é possível, o ônus da prova recai
sobre os que afirmam a oposição e o dualismo. A natureza é
a mãe e o habitat do ser humano, ainda que, vez por outra,
seja madrasta e um lar pouco acolhedor. O fato de a civiliza¬
ção perdurar e de a cultura prosseguir - e às vezes avançar
- é prova de que as esperanças e objetivos humanos encon-
98 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 99
tram base e respaldo na natureza. Assim como o crescimen¬
to evolutivo do indivíduo, desde o embrião até a maturidade,
resulta da interação do organismo com o meio circundante,
a cultura é produto não de esforços empreendidos pelos ho¬
mens no vazio, ou apenas com eles mesmos, mas da intera¬
ção prolongada e cumulativa com o meio. A profundidade
das reações provocadas pelas obras de arte mostra a conti¬
nuidade que há entre elas e as operações dessa experiência
duradoura. As obras e as reações que elas provocam são con¬
tínuas aos próprios processos do viver, conforme estes são
levados a uma inesperada realização satisfatória.
Quanto à absorção do estético na natureza, cito um caso
reproduzido, em certa medida, em milhares de pessoas, mas
notável por ter sido expresso por um artista do mais alto quilate,
W. H. Hudson. "Quando estou longe da visão da grama cres¬
cente e viva, e das vozes dos pássaros e todos os sons rurais, sin¬
to que não estou propriamente vivo." Mais adiante, ele afirma:
. . .quando ouço pessoas dizerem que não acham o mun
do e a vida tão agradáveis e interessantes a ponto de se
apaixonarem por eles, ou que encaram serenamente o
seu fim, tendo a pensar que nunca estiveram propria¬
mente vivas, nem viram com uma visão clara o mundo
de que pensam tão mal , ou coisa alguma dentro dele -
nem mesmo um talo de capim.
A faceta mística da aguda entrega estética, que a torna tão
parecida, como experiência, com o que os religiosos cha¬
mam de comunhão extasiada, é relembrada por Hudson a
partir de sua vida de menino. Ele fala do efeito nele exercido
pela visão das acácias:
A folhagem solta e plumosa, nas noites enluaradas, ti¬
nha um aspecto encanecido peculiar que fazia essa ár¬
vore parecer mais intensamente viva do que outras, mais
consciente de mim e da minha presença. [...] [Era algo]
semelhante à sensação que uma pessoa teria de ser visi¬
tada por um ser sobrenatural, se estivesse perfeitamen¬
te convencida de que ele estava ali em sua presença,
apesar de calado e invisível, olhando-a atentamente e
adivinhando cada um de seus pensamentos .
Emerson é constantemente visto como um pensador auste¬
ro. No entanto, foi o Emerson adulto que disse, bem dentro
do espírito da passagem citada de Hudson: "Ao atravessar
um simples parque, com suas poças de neve, ao cair da noite
o sob o céu nublado, sem ter no pensamento nenhuma ocor¬
rência de uma sorte especial, desfrutei de uma euforia perfei¬
ta. Fiquei feliz a ponto de chegar à beira do temor".
Não vejo maneira de explicar a multiplicidade de ex¬
periências desse tipo (encontrando-se algo da mesma qua¬
lidade em toda reação estética espontânea, não coagida), a
não ser com base na entrada em atividade de ressonâncias
de disposições adquiridas nas relações primitivas do ser vi¬
vo a seu meio, e que são irrecuperáveis na consciência clara
ou intelectual. Experiências como as mencionadas levam-
nos a uma outra consideração que atesta a continuidade
natural. Não há limite para a capacidade de a experiência
sensorial imediata absorver em si significados e valores que,
em si e por si - isto é, em termos abstratos -, seriam de¬
signados como "ideais" e "espirituais". A corrente animista
da experiência religiosa, encarnada na lembrança dos tem¬
pos da infância por Hudson, é um exemplo em um dado ní-
100 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 101
vel de experiência. E o poético, seja qual for o seu veículo, é
sempre um parente próximo do animista. E, se nos voltar¬
mos a uma arte que, sob muitos aspectos, se encontra no
polo oposto - a arquitetura -, veremos que as ideias, talvez
inicialmente moldadas em um pensamento altamente téc¬
nico, como o da matemática, são passíveis de incorporação
direta sob a forma sensorial. A superfície sensível das coisas
nunca é meramente uma superfície. Podemos discriminar a
pedra do papel fino e delicado apenas pela superfície, visto
que as resistências do tato e a solidez decorrente das tensões
de todo o sistema muscular foram completamente incorpo¬
radas à visão. Esse processo não para com a encarnação de
outras qualidades sensoriais que dão profundidade de senti¬
do à superfície. Nada que o h o m e m já tenha alcançado pelo
mais alto voo do pensamento, ou em que tenha penetrado
por um minucioso discernimento, é intrinsecamente tal que
não possa se tornar o coração e o cerne dos sentidos.
Uma mesma palavra, "símbolo", é usada para designar
expressões de pensamento abstrato, como na matemática, e
coisas como uma bandeira ou um crucifixo, que incorporam
um profundo valor social e o significado da fé histórica e do
credo teológico. O incenso, os vitrais, o badalar de sinos in¬
visíveis e os mantos bordados acompanham a abordagem do
que é considerado divino. A ligação entre a origem de mui¬
tas artes e os rituais primitivos torna-se mais evidente a ca¬
da incursão dos antropólogos no passado. Só os que estão
tão distantes das experiências primitivas, que perderam de
vista seu sentido, são capazes de concluir que os ritos e ce¬
rimônias eram meros dispositivos técnicos para assegurar a
chuva, os filhos varões, a lavoura ou o sucesso na batalha. E
claro que eles tinham essa intenção mágica, mas foram per-
sistentemente encenados, podemos ter certeza, apesar de
todos os fracassos na prática, por serem intensificações ime
diatas da experiência de viver. Os mitos foram algo diferente
de tentativas intelectualistas do homem primitivo no campo
da ciência. O desconforto diante de qualquer fato desconhe
cido certamente desempenhou seu papel. Mas o prazer com a
narrativa, com o aumento e a exposição de uma boa história,
desempenhou então seu papel dominante, tal como faz hoje
no crescimento das mitologias populares. Não só o elemen
to sensorial direto - e a emoção é uma modalidade do sentir -
tende a absorver todo o conteúdo ideativo, como também, à
parte uma disciplina especial, imposta por um aparato físico,
subjuga e digere tudo o que é meramente intelectual.
A introdução do sobrenatural na fé e a facílima rever¬
são humana ao sobrenatural são muito mais uma questão
de psicologia que gera obras de arte do que de um esforço
de explicação científica e filosófica. Elas intensificam a vibra¬
ção emocional e pontuam o interesse pertinente a qualquer
ruptura na rotina conhecida. Se a influência do sobrenatural
no pensamento humano fosse exclusivamente - ou até pre¬
dominantemente - uma questão intelectual, seria de certo
modo insignificante. As teologias e cosmogonias captaram
a imaginação por terem sido acompanhadas por procissões
solenes, incenso, mantos bordados, música, o brilho de lu¬
zes coloridas e histórias que despertavam reverência e in¬
duziam a uma admiração hipnótica. Em outras palavras,
chegaram ao homem através de um apelo direto aos senti¬
dos e à imaginação sensorial. A maioria das religiões identi¬
ficou seus sacramentos com os píncaros da arte, e as crenças
mais abalizadas revestiram-se de uma roupagem de pompa
102 J O H N D H W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 103
e espetáculos grandiosos, que proporcionavam um prazer
imediato aos olhos e ouvidos e evocavam emoções maciças
de suspense, assombro e reverência. Os voos dos físicos e
astrônomos de hoje respondem mais à necessidade estética
de satisfação da imaginação do que a qualquer exigência ri¬
gorosa de provas não afetivas da interpretação racional.
Henry Adams deixou claro que a teologia da Idade Mé¬
dia foi uma construção com a mesma intenção da que eri¬
giu as catedrais. Em geral, essa Idade Média, popularmente
considerada como a expressão do auge da fé cristã no mun¬
do ocidental, é uma demonstração do poder dos sentidos de
absorver as ideias mais altamente espiritualizadas. A músi¬
ca, a pintura, a escultura, a arquitetura, o teatro e o roman¬
ce eram servos da religião, tanto quanto o eram a ciência e
a erudição. As artes mal chegavam a ter existência fora da
Igreja, e os ritos e cerimônias eclesiásticos eram artes en¬
cenadas em condições que lhes davam o máximo possível
de apelo emocional e imaginativo. Não sei o que daria ao
espectador e ouvinte da manifestação das artes uma entre¬
ga mais pungente do que a convicção de que elas estavam
impregnadas dos meios necessários da glória e da bem¬
- aven tu rança eternas.
As seguintes palavras de Pater merecem ser citadas
nesse contexto:
O cristianismo cia Idade Média avançou, em parte, por
sua beleza estética, algo muito profundamente sentido
pelos hinis tas la t inos , que, para cada sentimento moral
ou espiritual, tinham uma centena de imagens sensoriais. U m a paixão cujas válvulas de escape estão vedadas ge¬
ra uma tensão nervosa na qual o mundo sensível chega
ao indivíduo com um brilho e um relevo reforçados -
toda vermelhidão se transforma em sangue; toda água,
em lágrimas. Daí a sensualidade desvairada e convulsa
de toda a poesia da Idade Média, na qual as coisas da
natureza começaram a desempenhar um estranho pa¬
pel delirante. Das coisas da natureza, a mente medieval
t inha um senso profundo; mas o senso que tinha de¬
las não era objetivo, não era uma fuga real para o mun¬
do sem nós.
Em seu ensaio autobiográfico intitulado A criança na ca¬
sa, Pater generalizou o que está implícito nessa passagem,
dizendo:
Em anos posteriores, ele chegou a filosofias que muito
o ocuparam na avaliação das proporções dos elementos
sensoriais e ideais no conhecimento humano, dos pa¬
péis relativos que exercem nele; e, em seu esquema inte¬
lectual, foi levado a atribuir pouquíssimo ao pensamento
abstrato, e muito a seu veículo ou ocasião sensível.
E ste último
tornou-se o concomitante necessário de qualquer per¬
cepção das coisas, real o bastante para ter peso ou con¬
sequência em sua casa do pensamento . [... ] Tornou-se
cada vez mais incapaz de se importar com a alma ou
pensar nela senão como estando em um corpo real, ou
com qualquer mundo senão aquele em que se encon¬
tram a água e as árvores, e onde h o m e n s e mulheres têm
tal ou qual aparência, e apertam mãos de verdade.
104 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 105
A elevação do ideal acima e além do sentido imediato fun¬
cionou não apenas para torná-lo pálido e exangue, mas agiu
também, como um conspirador com a mente sensual, no
sentido de empobrecer e degradar tudo o que é da expe¬
riencia direta.
No título deste capítulo, tomei a liberdade de buscar
em Keats a palavra "etéreos" , para designar os significa¬
dos e valores que muitos filósofos e alguns críticos supõem
serem inacessíveis aos sentidos, por seu caráter espiritual,
eterno e universal - exemplificando, com isso, o dualismo
comum entre natureza e espírito. Permitam-me citar no¬
vamente suas palavras. O artista pode considerar "o Sol, a
Lua, as estrelas, a Terra e seu conteúdo [como] um mate¬
rial para formar coisas maiores, isto é, coisas etéreas - coisas
maiores do que as feitas pelo próprio Criador". Ao fazer este
uso de Keats, tive ainda em mente o fato de que ele identifi¬
cou a atitude do artista com a do ser vivo, e não apenas o fez
no teor implícito de sua poesia, como também, em sua re¬
flexão, expressou explicitamente essa ideia em palavras. Co¬
mo escreveu em uma carta a seu irmão:
A maior parte dos h o m e n s segue seu caminho com a
m e s m a instintividade e o m e s m o olho indesviável de
seus propósitos que há no gavião. O gavião quer um
parceiro, assim como o h o m e m - olhe para os dois, eles
tratam de buscá-lo e obtê- lo da mesma maneira. Am¬
bos querem um ninho , e ambos tratam de consegui- lo
do mesmo modo; obtêm seu alimento da m e s m a for¬
ma. O nobre animal h u m a n o fuma seu cachimbo pa¬
ra se divertir - o gavião se balança nas nuvens : essa é
a única diferença entre suas formas de lazer. E isso que
cria a diversão da vida para a mente especulativa. Pas¬
seio pelos campos e vislumbro um arminho ou um rato
silvestre apressando-se - em direção a quê? A criatura
tem um propósito, e seus olhos reluzem com ele. Cami¬
nho por entre os prédios de uma cidade e vejo um ho¬
m e m apressando-se - em direção a quê? A criatura tem
um propósito, e seus olhos reluzem com ele...
M e s m o nisso, porém, sigo o mesmo curso instintivo
do mais completo animal h u m a n o em que possa pen¬
sar, [embora] , por mais jovem que eu seja, eu escreva ao
acaso, es forçando-me por captar partículas de luz em
meio a uma grande escuridão, sem conhecer o signifi¬
cado de qualquer afirmativa, de opinião alguma. Nis¬
so, porém, não estaria eu livre de pecado? Não haverá
seres superiores que se divirtam com qualquer atitude
graciosa, embora instintiva, em que minha mente pos¬
sa incorrer, enquanto me entretenho com a vigilância
alerta de um arminho ou com a ansiedade de um cer¬
vo? A n d a que u m a briga de rua seja odiosa, a energia
exibida nela é esplêndida; o mais comum dos h o m e n s
é gracioso em sua briga. Vistos por um ser sobrenatu¬
ral, talvez nossos raciocínios assumam o mesmo tom -
embora errôneos, podem ser esplêndidos. É exatamente
nisso que consiste a poesia.
Pode haver raciocínios, mas, quando eles assumem uma
forma instintiva, como a das formas e movimentos dos ani¬
mais, eles são poesia, são esplêndidos; têm graça.
Em outra carta, Keats referiu-se a Shakespeare como
um homem de enorme "culpa negativa", alguém que era
"capaz de se quedar nas incertezas, mistérios e dúvidas, sem
nenhuma busca irritadiça dos fatos e da razão". Nesse as-
106 J O H N D E W E Y A R T E C O M O E X P E R I Ê N C I A 107
pecto, contrastou Shakespeare com seu próprio contem
porâneo Coleridge, que deixava se perder uma percepção
poética quando ela era cercada de obscuridade, porque não
podia justificá-la intelectualmente; não podia, na linguagem
de Keats, satisfazer-se com um "sem/conhecimento". Creio
que a mesma ideia se expressa quando ele diz, em uma carta
a Bailey, que "nunca [fui] capaz, até hoje, de perceber como
se pode conhecer verdadeiramente alguma coisa pelo racio¬
cínio consecutivo. [...] Será possível que nem mesmo o maior
dos filósofos jamais tenha chegado a seu objetivo sem pôr
de lado numerosas objeções?" . Com efeito, Keats pergunta
se aquele que raciocina também não tem de confiar em suas
"intuições", naquilo que lhe advém das experiências senso¬
riais e emocionais imediatas, mesmo contrariando as obje-
ções que a reflexão lhe apresenta. Isso porque ele diz, em
seguida, que "a simples mente imaginativa talvez tenha suas
recompensas nas repetições de seu funcionamento silencio¬
so, que lhe chegam continuamente ao espírito com uma bela
subitaneidade" - comentário que contém mais da psicologia
do pensamento produtivo do que muitos tratados.
Apesar do caráter elíptico das afirmações de Keats, dois
pontos emergem. Um deles é sua convicção de que os "ra¬
ciocínios" têm uma origem parecida com os movimentos de
uma criatura selvagem em direção a seu objetivo, de que eles
podem se tornar espontâneos, "instintivos", e de que, ao se
tornarem instintivos, são sensoriais e imediatos, poéticos.
O outro lado dessa convicção é sua crença em que nenhum
"raciocínio", como raciocínio, isto é, excluindo a imaginação
e os sentidos, pode alcançar a verdade. Até "o maior dos fi¬
lósofos" exerce uma preferência animalesca para guiar seu
pensamento a suas conclusões. Seleciona e põe de lado, con¬
forme seus sentimentos imaginativos se movem. A "razão",
em seu auge, não pode alcançar a apreensão completa e a
certeza autônoma. Tem de recair na imaginação - na encar¬
nação das ideias em um senso emocionalmente carregado.
Muito se tem discutido o que Keats pretendeu dizer em
seus célebres versos: "Beleza é verdade, verdade, beleza -
eis tudo/ Que sabes na Terra, e tudo que precisas saber,"
e o que quis dizer com a afirmação cognata em prosa: "O
que a imaginação capta como beleza deve ser a verdade".
Grande parte dessa discussão é conduzida ignorando a tra¬
dição particular em que Keats escreveu, e que dava sentido
ao termo "verdade". Nessa tradição, "verdade" não signi¬
fica a correção das afirmações intelectuais sobre as coisas
nem significa verdade tal como sua acepção é hoje influen¬
ciada pela ciência. Denota a sabedoria pela qual os homens
vivem, em especial "o saber do bem e do mal". E, na men
te de Keats, estava particularmente ligada à questão de jus¬
tificar o bem e confiar nele, apesar da abundância do mal e
da destruição. A "filosofia" era a tentativa de responder ra¬
cionalmente a essa questão. A crença de Keats em que nem
mesmo os filósofos podiam lidar com tal questão sem de¬
pender de intuições imaginativas recebeu uma afirmação
independente e positiva em sua identificação da "beleza"
com a "verdade" - a verdade particular que soluciona, pa¬
ra o homem, o desconcertante problema da destruição e da
morte - que tinha um peso muito constante em Keats, justa¬
mente no campo em que a vida luta para afirmar a suprema¬
cia. O homem vive em um mundo de suposições, mistério e
incertezas. O "raciocínio" está fadado a ser falho para ele -
108 JOHN DEWEY
uma doutrina, é claro, que foi ensinada durante muito tempo pelos que sustentavam a necessidade de uma revelação divina. Keats não aceitava esse complemento e substituto da razão. O discernimento da imaginação devia ser suficiente: "Eis tudo que sabes na Terra, e tudo que precisas saber". As palavras cruciais são "na Terra" - ou seja, em meio a um cenário em que a "busca irritadiça dos fatos e da razão" confunde e distorce, em vez de nos levar ao esclarecimento. Era em momentos da mais intensa percepção estética que Keats encontrava seu consolo supremo e suas mais profundas convicções. Tal é o fato registrado no final da Ode. Em última análise, existem apenas duas filosofias. Uma delas aceita a vida e a experiência com toda a sua incerteza, mistério, dúvida e semiconhecimento, e volta essa experiência para ela mesma, a fim de aprofundar e intensificar suas próprias qualidades - para a imaginação e a arte. É essa a filosofia de Shakespeare e Keats.
TER UMA EXPERIÊNCIA
A experiência ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção consciente. Muitas vezes, porém, a experiência vivida é incipiente. As coisas são experimentadas, mas não de modo a se comporem em uma experiência singular. Há distração e dispersão; o que observamos e o que pensamos, o que desejamos e o que obtemos, discordam entre si. Pomos as mãos no arado e viramos para trás; começamos e paramos não porque a experiência tenha atingido o fim em nome do qual foi iniciada, mas por causa de interrupções externas ou da letargia interna.
Em contraste com essa experiência, temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. Então, e só então, ela é integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de ou-
110 JOHN DEWEY
tras experiências. Conclui-se uma obra de modo satisfatório; um problema recebe sua solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação, seja a de fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez, conduzir uma conversa, escrever um livro ou participar de uma campanha política, conclui-se de tal modo que seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação. Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualiza dor e sua autossuficiência. Trata-se de uma experiência.
Os filósofos, inclusive os empíricos, falaram, em sua maioria, da experiência em geral. A linguagem vernácula, entretanto, refere-se a experiências, cada uma das quais é singular e tem começo e fim. Porque a vida não é uma marcha ou um fluxo uniforme e ininterrupto. E feita de histórias, cada qual com seu enredo, seu início e movimento para seu fim, cada qual com seu movimento rítmico particular, cada qual com sua qualidade não repetida, que a perpassa por inteiro. Uma escada, por mais mecânica que seja, procede por degraus individuais, e não por uma progressão indiferenciada, e um plano inclinado distingue-se de outras coisas, no mínimo, por uma descontinuidade abrupta.
A experiência, nesse sentido vital, define-se pelas situações e episódios a que nos referimos espontaneamente como "experiências reais" - aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: "isso é que foi experiência." Pode ter sido algo de tremenda importância - uma briga com alguém que um dia foi íntimo, uma catástrofe enfim evitada por um triz. Ou pode ter sido algo que, em termos comparativos, foi insignificante - e que, talvez por sua própria insignificância, ilustra ainda melhor o que é ser uma experiência. Como aquela
ARTE COMO EXPERIÊNCIA 111
refeição em um restaurante parisiense da qual se diz "aquilo é que foi uma experiência". Ela se destaca como um memorial duradouro do que a comida pode ser. Há também aquela tempestade por que se passou na travessia do Atlântico - uma tormenta que, em sua fúria, tal como vivenciada, pareceu resumir em si tudo o que uma tempestade pode ser, completa em si mesma, destacando-se por ter-se distinguido do que veio antes e depois.
Nessas experiências, cada parte sucessiva flui livremente, sem interrupção e sem vazios não preenchidos, para o que vem a seguir. Ao mesmo tempo, não há sacrifício da identidade singular das partes. Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes homogêneas de um lago. Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva a outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas.
Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. Resumem aquilo por que se passou e impedem sua dissipação e sua evaporação displicente. A aceleração contínua é esbaforida e impede que as partes adquiram distinção. Em uma obra de arte, os diferentes atos, episódios ou ocorrências se desmancham e se fundem na unidade, mas não desaparecem nem perdem seu caráter próprio ao fazê-lo - tal como, em uma conversa amistosa, há um intercâmbio e uma mescla contí-
112 JOHN DEWEY
nuos, mas cada interlocutor não apenas preserva seu caráter pessoal, como também o manifesta com mais clareza do que é seu costume.
A experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome - aquela refeição, aquela tempestade, aquele rompimento da amizade. A existência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem. Essa unidade não é afetiva, prática nem intelectual, pois esses termos nomeiam distinções que a reflexão pode fazer dentro dela. No discurso sobre uma experiência, devemos servir-nos desses adjetivos de interpretação. Ao repassar mentalmente uma experiência, depois que ela ocorre, podemos constatar que uma propriedade e não outra foi suficientemente dominante, de modo que caracteriza a experiência como um todo. Há investigações e especulações intrigantes que o cientista e o filósofo recordam como "experiências" no sentido enfático. Em sua significação final, elas são intelectuais. Mas, em sua ocorrência efetiva, também foram emocionais; tiveram um propósito e foram volitivas. No entanto, a experiência não foi a soma desses traços diferentes, os quais se perderam nela como traços distintivos. Nenhum pensador pode exercer sua ocupação, a menos que seja atraído e recompensado por experiências integrais, totais, que valham a pena intrinsecamente. Sem elas, ele nunca saberia o que é realmente pensar e ficaria completamente incapacitado de distinguir o pensamento real do artigo espúrio. O pensar se dá em fluxos de ideias, mas as ideias só formam um fluxo por serem muito mais do que a psicologia analítica chama de ideias. São fases, afetiva e praticamente distintas,
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de uma qualidade subjacente em evolução; são variações móveis, não separadas e independentes, como as chamadas ideias e impressões de Locke e Hume, e sim matizes sutis de uma tonalidade penetrante e em desenvolvimento.
A propósito de uma experiência de pensamento, dizemos tirar uma conclusão ou chegar a ela. Muitas vezes, a formulação teórica desse processo é feita em termos que escondem por completo a semelhança da "conclusão" com a fase que consuma cada experiência integral em evolução. Aparentemente, essas formulações são instigadas a partir de proposições separadas, que são premissas, e da proposição que constitui a conclusão, tal como aparecem na página impressa. Fica-se com a impressão de que primeiro existem duas entidades prontas e independentes, que são manipuladas a fim de dar origem a uma terceira. Na verdade, em uma experiência de pensamento, as premissas só emergem quando uma conclusão se torna manifesta. A experiência, como a de ver uma tempestade atingir seu auge e diminuir gradativamente, é de um movimento contínuo dos temas. Assim como no oceano durante a borrasca, há uma série de ondas, sugestões que se estendem e se quebram com estrondo, ou que são levadas adiante por uma onda cooperativa. Quando se chega a uma conclusão, ela é a de um movimento de antecipação e acumulação, um movimento que finalmente se conclui. A "conclusão" não é uma coisa distinta e independente; é a consumação de um movimento.
Portanto, uma experiência de pensar tem sua própria qualidade estética. Difere das experiências que são reconhecidas como estéticas, mas o faz somente em seu material. O material das belas-artes consiste em qualidades; o da expe-
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rienda que tem uma conclusão intelectual consiste em sinais ou símbolos sem qualidade intrínseca própria, mas que representam coisas que, em outra experiência, podem ser qualitativamente vivenciadas. A diferença é enorme. É uma das razões por que a arte estritamente intelectual nunca será popular como a música. Não obstante, a experiência em si tem um caráter emocional satisfatório, porque possui integração interna e um desfecho atingido por meio de um movimento ordeiro e organizado. Essa estrutura artística pode ser sentida de imediato. Nessa medida, é estética. Ainda mais importante é o fato de que não só essa qualidade é um motivo significativo para se empreender uma investigação intelectual e mantê-la verdadeira, como também nenhuma atividade intelectual é um evento integral (uma experiência), a menos que seja complementada por essa qualidade. Sem ela, o pensamento é inconclusivo. Em suma, a experiência estética não pode ser nitidamente distinguida da intelectual, uma vez que esta última precisa exibir uma chancela estética para ser completa.
A mesma afirmação se aplica a um curso de ação que seja dominantemente prático, isto é, que consista em um franco fazer. E possível ser eficiente na ação e não ter uma experiência consciente. Uma atividade pode ser automática demais para permitir uma sensação daquilo a que se refere e de para onde vai. Ela chega ao fim, mas não a um desfecho ou consumação na consciência. Os obstáculos são superados pela habilidade sagaz, mas não alimentam a experiência. Há também aquelas que relutam na ação, inseguras e inconclusivas como os matizes da literatura clássica. Entre os polos da inexistência de propósito e da eficiência
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mecânica, situam-se os cursos de ação em que os atos sucessivos são perpassados por um sentimento de significado crescente, que é conservado e se acumula em direção a um fim vivido como a consumação de um processo. Os políticos e generais de sucesso, que se transformam em estadistas como César e Napoleão, têm em si algo do showman. Por si só, isso não é arte, mas é um sinal, creio eu, de que o interesse não recai exclusivamente, ou talvez não principalmente, no resultado considerado em si (como no caso da mera eficiência), mas sim no resultado como desfecho de um processo. Há interesse em concluir uma experiência. E possível que essa experiência seja prejudicial ao mundo, e que sua consumação seja indesejável. Mas ela tem um caráter estético.
A identificação grega da boa conduta com a conduta dotada de proporção, graça e harmonia, a kalon-agathon, é um exemplo mais óbvio da qualidade estética que distingue a ação moral. Um grande defeito daquilo que passa por moral é seu caráter inestético. Em vez de exemplificar uma ação resoluta e entusiástica, isso assume a forma de concessões parciais e ressentidas às exigências do dever. Mas as ilustrações talvez só façam obscurecer o fato de que qualquer atividade prática, desde que seja integrada e se mova por seu próprio impulso para a consumação, tem uma qualidade estética.
Talvez possamos ter uma ilustração geral, se imaginarmos que uma pedra que rola morro abaixo tem uma experiência. Com certeza, trata-se de uma atividade suficientemente "prática". A pedra parte de algum lugar e se move, com a consistência permitida pelas circunstâncias, para um lugar e um estado em que ficará em repouso - em
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direção a um fim. Acrescentemos a esses dados externos, à guisa de imaginação, a ideia de que á pedra anseia pelo resultado final; de que se interessa pelas coisas que encontra no caminho, pelas condições que aceleram e retardam seu avanço, com respeito à influência delas no final; de que age e se sente em relação a elas conforme a função de obstáculo ou auxílio que lhes atribui; e de que a chegada final ao repouso se relaciona com tudo o que veio antes, como a culminação de um movimento contínuo. Nesse caso, a pedra teria uma experiência, e uma experiência com qualidade estética.
Se passarmos desse caso imaginário para nossa própria experiência, veremos que grande parte dele é mais próxima do que acontece com a pedra real do que qualquer coisa que cumpra as condições que a fantasia acabou de ditar. Isso porque, em muito de nossa experiência, não nos interessamos pela ligação de um incidente com o que veio antes e o que vem depois. Não há um interesse que controle a rejeição ou a seleção atenta do que será organizado na experiência em evolução. As coisas acontecem, mas não são definitivamente incluídas nem decisivamente excluídas; vagamos com a correnteza. Cedemos de acordo com a pressão externa ou fugimos e contemporizamos. Há começos e cessações, mas não inícios e conclusões autênticos. Uma coisa substitui outra, mas não a absorve nem a leva adiante. Há experiência, porém ela é tão frouxa e discursiva que não é uma experiência singular. E desnecessário dizer que tais experiências são inestéticas.
Portanto, o inestético situa-se entre dois limites. Em um polo, está a sucessão solta, que não começa em nenhum
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lugar particular e que termina - no sentido de cessar - em um lugar inespecífico. No polo oposto, estão a suspensão e a constrição, que avançam desde as partes que têm apenas uma ligação mecânica entre si. Existe um número tão grande desses dois tipos de experiência que, inconscientemente, elas passam a ser tidas como a norma de toda experiência. Assim, quando aparece o estético, ele contrasta tão nitidamente com a imagem formada sobre a experiência que é impossível combinar suas qualidades especiais com as características da imagem, e o estético recebe um lugar e um status externos. A descrição feita aqui da experiência que é dominantemente intelectual e prática pretende mostrar que tal contraste não está envolvido no ter-se uma experiência; que, ao contrário, nenhuma experiência de nenhum tipo constitui uma unidade, a menos que tenha qualidade estética.
Os inimigos do estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual. Abstinência rigorosa, submissão coagida e estreiteza, por um lado, desperdício, incoerência e complacência displicente, por outro, são desvios em direções opostas da unidade de uma experiência. Algumas considerações desse tipo talvez tenham sido o que induziu Aristóteles a invocar a "média proporcional" como designação adequada daquilo que é característico na virtude e no estético. Ele estava formalmente correto. No entanto, "média" e "proporção" não são autoexplicativas, não devem ser tomadas em um sentido matemático a priori, mas são propriedades pertinentes a uma experiência que tem um movimento evolutivo rumo a sua consumação.
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Enfatizei que toda experiencia integral se desloca para um desfecho, um fim, uma vez que só para depois que as energias nela atuantes fazem seu trabalho adequado. Esse fechamento de um circuito de energia é o oposto da paralisação, da estase. O amadurecimento e a fixação são opostos polares. A própria luta e o conflito podem ser desfrutados, apesar de serem dolorosos, quando vivenciados como um meio para desenvolver uma experiência; fazem parte dela por levarem-na adiante, e não apenas por estarem presentes. Há, como veremos dentro em pouco, um componente de sujeição, de sofrimento no sentido lato, em toda experiência. Caso contrário, não haveria uma incorporação do que veio antes. E que "incorporar", em qualquer experiência vital, é mais do que pôr algo no alto da consciência, acima do que era sabido antes. Envolve uma reconstrução que pode ser dolorosa. Se a fase necessária do submeter-se a alguma coisa é prazerosa ou dolorosa em si mesma, depende de condições específicas. É indiferente para a qualidade estética total, a não ser pelo fato de haver poucas experiências estéticas que são totalmente jubilosas. Decerto elas não devem ser caracterizadas como divertidas e, ao incidirem sobre nós, envolvem um sofrimento que ainda assim é coerente com a percepção completa desfrutada - ou, a rigor, é parte dela.
Falei da qualidade estética que arredonda uma experiência, em sua completude e unidade, como emocional. Talvez essa referência cause dificuldades. Tendemos a pensar nos sentimentos como coisas tão simples e compactas quanto as palavras com que os denominamos. Alegria, tristeza, esperança, medo, raiva ou curiosidade são tratados como se, por si só, cada um fosse uma espécie de entidade que entra em
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cena já pronta, uma entidade capaz de durar muito ou pouco lempo, mas cuja duração, crescimento e carreira é irrelevan-le para sua natureza. Na verdade, quando significativas, as emoções são qualidades de uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções de um bebê perturbado. Todas as emoções são qualificações de um drama e se modificam com o desenrolar do drama. Diz-se, às vezes, que as pessoas se apaixonam à primeira vista.
Mas aquilo por que caem de amores não é uma coisa daquele instante. Onde ficaria o amor, se fosse comprimido em um momento em que não houvesse espaço para a estima e a solicitude? A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. E concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço cm que se desenvolver e (empo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas nela não existem coisas separadas, chamadas emoções.
Do mesmo modo, as emoções ligam-se a acontecimentos e objetos em seu movimento. Não são privadas, a não ser em casos patológicos. E até uma emoção "anobjetal" exige algo além dela mesma a que se prender e, por isso, gera prontamente uma ilusão, na falta de algo real. A emoção faz parte do eu, certamente. Mas faz parte do eu interessado no movimento dos acontecimentos em direção a um desfecho desejado ou indesejado. Pulamos de imediato ao nos assustarmos, assim como enrubescemos no instante em que sentimos vergonha. Mas o susto e o recato envergonhado não são, nesses casos, estados afetivos. Em si, não passam de reflexos automáticos. Para se tornarem emocionais, pre-
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cisam fazer parte de uma situação inclusiva e duradoura que envolva o interesse pelos objetos e por seus desfechos. O pulo de susto transforma-se em um medo emocional quando se constata ou se supõe existir um objeto ameaçador, o qual é preciso enfrentar ou do qual convém fugir. O rubor converte-se em uma emoção de vergonha quando, em pensamento, a pessoa liga um ato que praticou a uma reação desfavorável de alguém mais a ela.
Coisas físicas, vindas dos confins da Terra, são fisicamente transportadas e fisicamente levadas a agir e reagir umas sobre as outras, na construção de um novo objeto. O milagre da mente é que algo parecido ocorre em uma experiência sem transporte nem montagem físicos. A emoção é a força motriz e consolidante. Seleciona o que é congruente e pinta com suas cores o que é escolhido, com isso conferindo uma unidade qualitativa a materiais externamente díspares e dessemelhantes. Com isso, proporciona unidade nas e entre as partes variadas de uma experiência. Quando a unidade é do tipo já descrito, a experiência tem um caráter estético, mesmo que não seja, predominantemente, uma experiência estética.
Dois homens se encontram; um deles é candidato a um emprego, enquanto o outro detém a possibilidade de decidir a questão. A entrevista pode ser mecânica, composta por perguntas padronizadas, cujas respostas decidem superficialmente o assunto. Não há uma experiência em que os dois homens se conheçam, nada que não seja uma repetição, por meio da aceitação ou recusa, de algo que já aconteceu dezenas de vezes. A situação é tratada como se fosse um exercício de anotação em um registro contábil. Mas é possível que
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ocorra uma interação em que se desenvolva uma nova experiência. Onde devemos buscar uma descrição de tal experiência? Não em registros contábeis nem em um tratado de economia, sociologia ou psicologia organizacional, mas no teatro ou na ficção. Sua natureza e importância só podem expressar-se pela arte, porque há uma unidade da experiência que só pode ser expressa como uma experiência. A experiência é de um material carregado de suspense e avança para sua consumação por uma série interligada de inciden-les variáveis. As emoções primárias, por parte do candidato, podem ser a esperança ou a desesperança no início, e a euforia ou o desapontamento no final. Essas emoções qualificam a experiência como uma unidade. Mas, à medida que a entrevista prossegue, desenvolvem-se emoções secundá-rias, como variações do afeto primário subjacente. É possível até que cada atitude e gesto, cada frase, quase cada palavra, produzam mais do que uma oscilação na intensidade da emoção fundamental; em outras palavras, produzam uma mudança de matiz e coloração em sua qualidade, O empregador discerne, por meio de suas próprias reações afetivas, o caráter do candidato. Projeta-o imaginariamente no trabalho a ser feito e avalia sua aptidão pela maneira como os elementos da cena se reúnem e entram em choque, ou se encaixam. A presença e o comportamento do candida-to harmonizam-se com suas atitudes e desejos, ou entram em conflito e se chocam. Fatores como esses, de qualidade intrinsecamente estética, são as forças que levam os componentes variados da entrevista a um desfecho decisivo. En-tram na resolução de qualquer situação, seja qual for sua natureza dominante, em que haja incerteza e suspense.
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Por conseguinte, existem padrões comuns a várias experiências, por mais diferentes que elas sejam entre si nos detalhes de seu conteúdo. Há condições a serem satisfeitas, sem as quais a experiência não pode vir a ser. Os contornos do padrão comum são ditados pelo fato de que toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive. Um homem faz algo: digamos, levanta uma pedra. Em consequência disso, fica sujeito a algo, sofre algo: o peso, o esforço, a textura da superfície da coisa levantada. As propriedades assim viven-ciadas determinam a ação adicional. A pedra pode ser pesada ou angulosa demais, ou insuficientemente sólida; ou então, as propriedades vivenciadas mostram que ela se presta para o uso a que se destina. O processo segue até emergir uma adaptação mútua entre o eu e o objeto, e essa experiência específica chega ao fim. O que se aplica a esse exemplo simples é aplicável, em termos da forma, a todas as experiências. A criatura atuante pode ser um pensador em seu gabinete de estudos e o meio com que ele interage pode consistir em ideias em vez de uma pedra. Mas a interação dos dois constitui a experiência total vivenciada, e o encerramento que a conclui é a instituição de uma harmonia sentida.
Uma experiência tem padrão e estrutura porque não apenas é uma alternância do fazer e do ficar sujeito a algo, mas também porque consiste nas duas coisas relacionadas. Pôr a mão no fogo não é, necessariamente, ter uma experiência. A ação e sua consequência devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere significado; apreendê-lo é o objetivo de toda compreensão. O âmbito e o conteúdo das relações medem o conteúdo significati-
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vo de uma experiência. A experiência de uma criança pode ser intensa, mas, por falta de uma base de experiências anteriores, as relações entre o estar sujeita a algo e o fazer são mal-apreendidas, e a experiência não tem grande profundidade nem largueza. Ninguém jamais atinge uma maturidade tal que perceba todas as conexões envolvidas. Certa vez, um autor (o sr. Hinton) escreveu um romance intitulado The Unleaner [O desaprendedor]. Ele retratava toda a duração infinita da vida após a morte como um reviver dos inciden-tes ocorridos em uma vida curta na Terra, em urna deseo-berta contínua das relações envolvidas entre eles.
A experiência é limitada por todas as causas que interferem na percepção das relações entre o estar sujeito e o fazer. Pode haver interferência pelo excesso do fazer ou pelo excesso da receptividade daquilo a que se é submetido. O desequilibrio em qualquer desses lados embota a percepção das relações e torna a experiência parcial e distorcida, com um significado escasso ou falso. O gosto pelo fazer, a ânsia de ação, deixa muitas pessoas, sobretudo no meio humano apressado e impaciente em que vivemos, com experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais. Nenhuma experiência isolada tem a oportunidade de se concluir, porque o indivíduo entra em outra coisa com muita precipitação. O que é chamado de experiência fica tão disperso e misturado que mal chega a merecer esse nome. A resistência é tratada como uma obstrução a ser vencida, e não como um convite à reflexão. O indivíduo passa a bus-car, mais ainda inconscientemente do que por uma escolha deliberada, situações em que possa fazer o máximo de coi-sas no prazo mais curto possível.
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As experiências também têm seu amadurecimento abreviado pelo excesso de receptividade. Nesse caso, o que se valoriza é o mero passar por isto ou aquilo, independentemente da percepção de qualquer significado. O acúmulo de tantas impressões quanto for possível é tido como "vida", muito embora nenhuma delas seja mais do que um adejo e um gole bebido depressa. Talvez passem mais fantasias e impressões pela consciência do sentimentalista ou do sonhador do que pela do homem movido pela ânsia de ação. Mas sua experiência é igualmente distorcida, porque nada cria raízes na mente quando não há equilíbrio entre o agir e o receber. É necessária uma ação decisiva para que se estabeleça contato com as realidades da vida, e para que as impressões possam relacionar-se com os fatos de tal maneira que seu valor seja testado e organizado.
Como a percepção da relação entre o que é feito e o que é suportado constitui o trabalho da inteligência, e como o artista é controlado, em seu processo de trabalho, por sua apreensão da conexão entre o que ele já fez e o que fará a seguir, a ideia de que o artista não pensa de maneira tão atenta e penetrante quanto o investigador científico é absurda. O pintor tem de vivenciar conscientemente o efeito de cada pincelada que dá ou não saberá o que está fazendo nem para onde vai seu trabalho. Além disso, tem de discernir uma relação particular entre o agir e o suportar em relação ao todo que deseja produzir. Apreender tais relações é pensar, uma das modalidades mais exigentes do pensamento. A diferença entre os quadros de diferentes pintores se deve tanto a diferenças de capacidade de levar adiante esse pensar quanto a diferenças de sensibilidade à simples cor e a
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diferenças na destreza da execução. No que concerne à qualidade básica dos quadros, a diferença, com efeito, depende mais da qualidade da inteligência empregada na percepção das relações do que de qualquer outra coisa - embora, é claro, não se possa separar a inteligência da sensibilidade di-reta, além de ela estar ligada, ainda que de maneira mais externa, à habilidade.
Toda ideia que desconhece o papel necessário da in-teligência na produção de obras de arte se baseia na iden-tificação do pensamento com o uso de um tipo de material específico de signos verbais e palavras. Pensar efetivamen-te, em termos das relações entre qualidades, é uma exigência tão severa ao pensamento quanto pensar em termos de símbolos verbais e matemáticos. Aliás, uma vez que é fácil manipular as palavras mecanicamente, a produção de uma autêntica obra de arte provavelmente exige mais inteligência do que a maior parte do chamado pensamento que se dá entre os que se orgulham de ser "intelectuais".
Procurei mostrar, nesses capítulos, que o estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, se-ja pelo luxo ocioso ou pela idealização transcendental, mas que é o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente com-pleta. Essa é a realidade que considero a única base segura sobre a qual se pode erigir a teoria estética. Resta sugerir algumas implicações da realidade subjacente.
Na língua inglesa não há uma palavra que inclua de forma inequívoca o que é expresso pelas palavras "artístico" e "estético". Visto que "artístico" se refere primordial-
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mente ao ato de produção, e "estético", ao de percepção e prazer, a inexistencia de um termo que designe o conjunto dos dois processos é lamentável. Às vezes, o efeito disso é separá-los um do outro, é ver a arte como algo que se superpõe ao material estético ou, por outro lado, leva à suposição de que, como a arte é um processo de criação, a percepção dela e o prazer que dela se extrai nada têm em comum com o ato criativo. Seja como for, há um certo incômodo verbal no fato de ora sermos compelidos a usar o termo "estético" para abranger o campo inteiro, ora a limitá-lo ao aspecto perceptual receptivo de toda a operação. Refiro--me a esses fatos óbvios como preliminar de uma tentativa de mostrar que a concepção da experiência consciente como a percepção de uma relação entre o fazer e o estar sujeito a algo permite compreender a ligação que a arte como produção, por um lado, e a percepção e apreciação como prazer, por outro, mantêm entre si.
A arte denota um processo de fazer ou criar. Isso tanto se aplica às belas-artes quanto às artes tecnológicas. A arte envolve moldar a argila, entalhar o mármore, fundir o bronze, aplicar pigmentos, construir edifícios, cantar canções, tocar instrumentos, desempenhar papéis no palco, fazer movimentos rítmicos na dança. Toda arte faz algo com algum material físico, o corpo ou alguma coisa externa a ele, com ou sem o uso de instrumentos intervenientes, e com vistas à produção de algo visível, audível ou tangível. Tão acentuada é a fase ativa ou do "agir" na arte que os dicionários costumam defini-la em termos da ação habilidosa, da habilidade na execução. O Oxford Dictionary a ilustra com uma citação de John Stuart Mill: "A arte é o esforço de per-
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feição na execução", enquanto Matthew Arnold a chama de "habilidade pura e impecável".
A palavra "estético" refere-se, como já assinalamos, à experiência como apreciação, percepção e deleite. Mais denota o ponto de vista do consumidor do que o do produtor. É o gusto, o gosto; e, tal como na culinária, a clara ação habi-Iidosa fica do lado do cozinheiro que prepara os alimentos, enquanto o gosto fica do lado do consumidor, assim como,
na jardinagem, há uma distinção entre o jardineiro que plañta e cuida e o morador que desfruta do produto acabado.
Essas próprias ilustrações, porém, assim como a relação existente ao se ter uma experiência entre o agir e o ficar sujeito a algo, indicam que a. distinção entre o estético e o artístico não pode ser levada a ponto de se tornar uma separação. A perfeição na execução não pode ser medida ou definida em termos da execução; implica aqueles que percebem e desfrutam do produto executado. O cozinheiro prepara a comida para o consumidor, e a medida do valor do que é preparado se encontra no consumo. A mera perfeição na execução, julgada isoladamente em seus próprios termos, provavelmente poderia ser mais bem alcançada por uma máquina do que pela arte humana. Por si só, ela é técnica, no máximo, e existem grandes artistas que não figuram nas fileiras superiores dos técnicos (a exemplo de Cézanne), do mesmo modo que há grandes pianistas que mio são grandes no plano estético, e que Sargent não é um grande pintor.
Para que a habilidade seja artística, no sentido final, ela precisa ser "amorosa"; precisa importar-se profundamente com o tema sobre o qual a habilidade é exercida. Vem-nos
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à mente um escultor cujos bustos sejam maravilhosamente exatos. Talvez seja difícil dizer, na presença da fotografia de um deles e de uma fotografia do original, qual é a da pessoa em si. No plano do virtuosismo, eles são admiráveis. Entretanto, resta saber se o criador dos bustos teve uma experiência pessoal, a. qual se interessou por fazer com que fosse compartilhada pelos que observam seus produtos. Para ser verdadeiramente artística, uma obra também tem de ser estética - ou seja, moldada para uma percepção receptiva prazerosa. E claro que a observação constante é necessária para o criador, enquanto ele produz. Mas, se sua percepção não for também de natureza estética, será um reconhecimento monótono e frio do que foi produzido, usado como estímulo para o passo seguinte, em um processo essencialmente mecânico.
Em suma, a arte, em sua forma, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia de saída e a de entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência. Graças à eliminação de tudo o que não contribui para a organização recíproca dos fatores da ação e da recepção uns nos outros, e em vista da escolha apenas dos aspectos e traços que contribuem para sua interpenetração recíproca, o produto é uma obra de arte estética. O homem desbasta, entalha, canta, dança, gesticula, molda, desenha e pinta. O fazer ou o criar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que suas qualidades, tal como percebidas, controlam a questão da produção. O ato de produzir, quando norteado pela intenção de criar algo que seja desfrutado na experiência imediata da percepção, tem qualidades que faltam à atividade espontânea ou não controlada. O artista, ao trabalhar, incorpora em si a atitude do espectador.
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Suponhamos, à guisa de ilustração, que um objeto finamente elaborado, cuja textura e proporção sejam sumamente agradáveis à percepção, seja tido como obra de um povo primitivo. Depois, descobrem-se provas que revelam tratar--se de um produto natural acidental. Como coisa externa, ele continua a ser exatamente o que era antes. Mas deixa prontamente de ser uma obra de arte e se transforma em uma "curiosidade" natural. Passa a ter lugar em um museu de história natural, e não em um museu de arte. E o extraordinário é que a diferença assim produzida não é apenas de classificação intelectual. Cria-se uma diferença na percepção apreciativa, e de maneira direta. Portanto, a experiência estética - em seu sentido estrito - é vista como inerentemente ligada à experiência de criar.
Quando estética, a satisfação sensorial dos olhos e ouvidos o é porque não existe sozinha, mas ligada â atividade de que é consequência. Até os prazeres do paladar têm para o gastrônomo uma qualidade diferente da que apresen tam para alguém que meramente "goste" dos alimentos ao comê-los. Essa diferença não é apenas de intensidade. O gastrônomo tem consciência de muito mais do que o sabor da comida. Nesse sabor, tal como diretamente experimentado, entram qualidades que dependem da referência a sua fonte e a sua forma de preparação, ligada a critérios de excelência. Assim como a produção deve absorver em si as qualidades do produto, tal como percebidas, e ser regulada por elas, a visão, a audição e o paladar tornam-se estéticos, por outro lado, quando a relação com uma forma distinta de atividade classifica o que é percebido.
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Há um componente de paixão em toda percepção estética. No entanto, quando somos tomados pela paixão, como na raiva, no medo ou no ciúme extremos, a experiência é decididamente inestética. Não se sente uma relação com as qualidades da atividade que gerou a paixão. Por conseguinte, faltam ao material da experiência elementos de equilíbrio e proporção. É que estes só podem estar presentes quando, como na conduta que tem graça ou dignidade, o ato é controlado por um senso refinado das relações que ele sustenta - sua adequação à ocasião e à situação.
O processo da arte em produção relaciona-se organicamente com o estético na percepção - tal como Deus, na criação, inspecionou sua obra e a considerou boa. Até ficar perceptualmente satisfeito com o que faz, o artista continua a moldar e remoldar. O fazer chega ao fim quando seu resultado é vivenciado como bom - e essa experiência não vem por um mero julgamento intelectual e externo, mas na percepção direta. O artista, comparado a seus semelhantes, é alguém não apenas especialmente dotado de poderes de execução, mas também de uma sensibilidade inusitada às qualidades das coisas. Essa sensibilidade também orienta seus atos e criações.
Ao manipularmos, tocamos e sentimos; ao olharmos, vemos; ao escutarmos, ouvimos. A mão se move com a agulha usada para gravar ou com o pincel. O olho acompanha e relata a consequência daquilo que é feito. Graças a essa ligação íntima, o fazer posterior é cumulativo, e não uma questão de capricho nem de rotina. Em uma enfática experiência artístico-estética, a relação é tão estreita que controla ao mesmo tempo o fazer e a percepção. Essa intimidade vi-
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tal da ligação não pode ser alcançada quando apenas a mão e os olhos estão implicados. Quando ambos não agem como órgãos do ser total, existe apenas uma sequência mecânica de senso e movimento, como em um andar automático. A mão e o olho, quando a experiência é estética, são apenas instrumentos pelos quais opera toda a criatura viva, impul-sionada e atuante durante todo o tempo. Portanto, a expressão é emocional e guiada por um propósito.
Graças à relação entre o que é feito e o que é sofrido, há na percepção um sentido imediato das coisas como compatíveis ou incompatíveis, reforçadoras ou interferentes. As consequências do ato de fazer, tal como transmitidas nos sentidos, mostram se aquilo que é feito transmite a ideia que está sendo executada ou assinala um desvio e uma ruptura. Na medida em que o desenvolvimento de uma experiência é controlado, em referência a essas relações imediatamente sentidas de ordem e realização, essa experiência passa a ter uma natureza predominantemente estética. O impulso para a ação torna-se um impulso para o tipo de ação que resul-te em um objeto satisfatório na percepção direta. O moleiro molda o barro para fazer um pote útil para guardar cereais, mas o faz de um modo tão regulado pela série de percepções que resumem os atos sequenciais do fazer que o pote é marcado por uma graça e encanto duradouros. A situação geral é a mesma ao se pintar um quadro ou esculpir um busto. Além disso, há em cada etapa uma antecipação do que virá. Essa antecipação é o elo que liga o fazer seguinte a seu efeito para os sentidos. O que é feito e o que é vivenciado, portan-to, são instrumentais um para o outro, de maneira recíproca, cumulativa e contínua.
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O fazer pode ser enérgico, e o sofrer pode ser agudo e intenso. Contudo, a menos que se relacionem entre si para formar um todo na percepção, a coisa feita não é plenamente estética. O fazer, por exemplo, pode ser uma exibição de virtuosismo técnico, e o vivenciar, uma onda de sentimentos ou um devaneio. Quando o artista não aperfeiçoa uma nova visão em seu processo de fazer, ele age mecanicamente e repete algum velho modelo, fixado como uma planta baixa em sua mente. Uma dose incrível de observação e do tipo de inteligência exercido na percepção de relações qualitativas caracteriza o trabalho criativo na arte. As relações devem ser notadas não apenas com respeito umas às outras, duas a duas, mas ligadas ao todo em construção; são exercidas tanto na imaginação quanto na observação. Surgem irrelevâncias que são distrações tentadoras; sugerem-se digressões disfarçadas de enriquecimento. Há momentos em que a apreensão da ideia dominante se enfraquece e o artista é inconscientemente levado a preenchê-la, até seu pensamento voltar a se fortalecer. O verdadeiro trabalho do artista é construir uma experiência que seja coerente na percepção ao mesmo tempo que se mova com mudanças constantes em seu desenvolvimento.
Quando um escritor põe no papel ideias já claramente concebidas e coerentemente ordenadas, é porque o verdadeiro trabalho foi feito previamente. Ou então, ele talvez confie em que a maior perceptibilidade induzida pela atividade e sua transmissão sensível orientem sua conclusão do trabalho. O mero ato de transcrição é esteticamente irrelevante, a não ser na medida em que entra integralmente na formação de uma experiência que se move para a comple-
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tude. Até a composição concebida mentalmente, e portanto fisicamente privada, é pública em seu conteúdo significante, visto que é concebida com referência à execução em um produto que é perceptível e que pertence, portanto, ao mundo comum. Caso contrário, seria uma aberração ou um sonho passageiro. A ânsia de expressar através da pintura as qualidades percebidas de uma paisagem é contígua à demanda de lápis ou pincel. Sem uma encarnação externa, a experiência permanece incompleta; em termos fisiológicos e funcionais, os órgãos dos sentidos são órgãos motores e se ligam por meio da distribuição de energias no corpo humano, e não apenas anatomicamente, a outros órgãos motores. Não é por uma coincidência linguística que "edificação", "cons-trução" e "obra" designam tanto um processo quanto seu produto final. Sem o significado do verbo, o do substantivo permanece vazio.
O escritor, o compositor musical, o escultor ou o pin-tor podem retraçar, durante o processo de produção, aquilo que fizeram anteriormente. Quando isso não é satisfatório, na fase perceptual ou em andamento da%experiência, eles podem, até certo ponto, começar de novo. Esse retraçar não é fácil de realizar no caso da arquitetura - o que talvez se-ja uma das razões de haver tantas construções feias. Os arquitetos são obrigados a levar suas ideias à conclusão antes que ocorra a tradução delas em um objeto completo da percepção. A impossibilidade de construir simultaneamente a ideia e sua encarnação objetiva impõe uma desvantagem. No entanto, eles também são forçados a elaborar suas ideias em termos do meio de encarnação e do objeto da percep-ção final, a não ser que trabalhem de maneira mecânica e
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rotineira. É provável que a qualidade estética das catedrais medievais se deva, em certa medida, ao fato de sua construção não ter sido tão controlada quanto são as de hoje por projetos e especificações feitos de antemão. Os projetos iam crescendo junto com as construções. Entretanto, mesmo um produto próprio de Minerva, sendo artístico, pressupõe um período anterior de gestação, no qual os atos e percepções projetados na imaginação interagem e se modificam mutuamente. Toda obra de arte segue o plano e o padrão de uma experiência completa, fazendo que ela seja sentida de maneira mais intensa e concentrada.
Não é muito fácil, no caso de quem percebe e aprecia, compreender a união íntima do fazer com o sofrer, tal como se dá no criador. Somos levados a crer que o primeiro simplesmente absorve o que existe sob forma acabada, sem se dar conta de que essa absorção envolve atividades comparáveis às do criador. Mas receptividade não é passividade. Também ela é um processo composto por uma série de atos reativos que se acumulam em direção à realização objetiva. Caso contrário, não haveria percepção, mas reconhecimento. A diferença entre os dois é imensa. O reconhecimento é a percepção refreada antes de ter a possibilidade de se desenvolver livremente. No reconhecimento, existe o começo de um ato de percepção. Mas esse começo não é autorizado a servir ao desenvolvimento de uma percepção plena da coisa reconhecida. É detido no ponto em que serve a uma outra finalidade, como ao reconhecermos um homem na rua para cumprimentá-lo ou evitá-lo, e não para ver o que há nele.
No reconhecimento, tal como no estereótipo, recaímos em um esquema previamente formado. Um detalhe ou ar-
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ranjo de detalhes serve de pista para a simples identificação. No reconhecimento, basta aplicar esse simples contorno ao objeto presente, como um estêncil. Às vezes, no contato com um ser humano, temos a atenção chamada para traços, talvez apenas de características físicas, dos quais antes não tínhamos conhecimento. Percebemos nunca ter conhecido aquela pessoa, não tê-la visto em um sentido pregnante. Começamos então a estudá-la e "absorvê-la". A percepção substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva. Esse ato de ver envolve a cooperação de elementos motores, embora eles permaneçam implícitos, em vez de se explicitarem, e envolve a cooperação de todas as ideias acumuladas que possam servir para completar a nova imagem em formação. O reconhecimento é fácil demais para despertar uma consciência vívida. Não há resistência suficiente entre o novo e o velho para assegurar a consciência da experiência vivida. Até o cão que late e abana o rabo alegremente ao ver seu dono voltar é mais plenamente vivo em sua acolhida do amigo do que o ser humano que se contenta com o mero reconhecimento.
O simples reconhecimento satisfaz-se quando se afixa uma etiqueta ou um rótulo apropriado, tendo "apropriado" o sentido daquele que serve a um propósito externo ao ato de reconhecer - do mesmo modo que um vendedor identifica mercadorias por uma amostra. Ele não envolve nenhuma agitação do organismo, nenhuma comoção interna. Mas o ato de percepção procede por ondas que se estendem em série por todo o organismo. Assim, não existe na percepção um ver ou um ouvir acrescido da emoção. O objeto ou cena percebido é inteiramente perpassado pela emoção. Quando
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uma emoção despertada não permeia o material percebido ou pensado, ela é preliminar ou patológica.
A fase estética ou vivencial da experiência é receptiva. Envolve uma rendição. Mas a entrega adequada do eu só é possível através de uma atividade controlada, que bem pode ser intensa. Em grande parte de nossa interação com o que nos cerca, nós nos retraímos, ora por medo - nem que seja de gastar indevidamente nossa reserva de energia - ora por preocupação com outras questões - como no caso do reconhecimento. A percepção é um ato de saída da energia para receber, e não de retenção da energia. Para nos impregnarmos de uma matéria, primeiro temos de mergulhar nela. Quando somos apenas passivos diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em um tom receptivo para absorver.
Todos sabem que é preciso um aprendizado para enxergar através de um microscópio ou um telescópio, ou para ver uma paisagem tal como o geólogo a vê. A ideia de que a percepção estética é assunto de momentos ocasionais é uma das razões para o atraso das artes entre nós. O olho e o aparelho visual podem estar intactos, e o objeto pode estar fisicamente presente - a Catedral de Notre Dame ou o retrato de Hendrickje Stoffels pintado por Rembrandt. Em um sentido simples, os objetos podem ser "vistos". Podem ser olhados, possivelmente reconhecidos, e ter os nomes corretos ligados a eles. Mas, por falta de uma interação contínua entre o organismo total e os objetos, estes não são percebidos, decerto não esteticamente. Um grupo de visitantes, conduzido por um guia em uma galeria de pintura, tendo a
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atenção chamada para tal ou qual ponto alto, aqui e ali, não percebe; só por acaso é que há sequer interesse em ver um quadro por seu tema vividamente realizado.
Para perceber, o espectador ou observador tem de criar sua experiência. E a criação deve incluir relações comparáveis às vivenciadas pelo produtor original. Elas não são idênticas, em um sentido literal. Mas tanto naquele que percebe quanto no artista deve haver uma ordenação dos elementos do conjunto que, em sua forma, embora não nos detalhes, seja idêntica ao processo de organização conscien-temente vivenciado pelo criador da obra. Sem um ato de recriação, o objeto não é percebido como uma obra de arte. O artista escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse. Aquele que olha eleve passar por essas operações, de acordo com seu ponto de vista e seu interesse. Em ambos, ocorre um ato de abs-tração, isto é, de extração daquilo que é significativo. Em ambos, existe compreensão, na acepção literal desse termo - isto é, uma reunião de detalhes e particularidades fisicamente dispersos em um todo vivenciado. Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho por parte do artista. Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua "apreciação" é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína.
As considerações já apresentadas implicam a semelhança e a dessemelhança, graças a ênfases específicas, en-
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tre uma experiência, no sentido pregnante, e a experiência estética. A primeira tem uma qualidade estética; se assim não fosse, seu material não se configuraria em uma experiência coerente singular. Não é possível separar entre si, em uma experiência vital, o prático, o intelectual e o afetivo, e jogar as propriedades de uns contra as características dos outros. A fase afetiva liga as partes em um todo único; "intelectual" simplesmente nomeia o fato de que a experiência tem sentido; e "prático" indica que o organismo interage com os eventos e objetos que o cercam. A mais complexa investigação filosófica ou científica e a mais ambiciosa iniciativa industrial ou política têm, quando seus diversos ingredientes constituem uma experiência integral, qualidade estética. É que, nesse momento, suas partes variadas se interligam, em vez de meramente sucederem umas às outras. E as partes, por sua ligação vivenciada, movem-se para uma consumação e um desfecho, e não para uma mera cessação no tempo. Além disso, tal consumação não espera na consciência até que toda a empreitada se conclua. É antecipada durante todo o processo e reiteradamente saboreada com especial intensidade.
Todavia, as experiências em questão são predominantemente intelectuais ou práticas, e não distintivamente estéticas, em função do interesse e do propósito que as iniciam e as controlam. Em uma experiência intelectual, a conclusão tem valor por si só. Pode ser extraída como uma fórmula ou uma "verdade", e pode ser usada em sua totalidade independente como um fator e um guia em outras investigações. O fim, o término, é importante não por si, mas como integração das partes. Não tem outra existência. Uma peça
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teatral ou um romance não são a frase final, mesmo que os personagens sejam descartados como vivendo felizes para sempre. Em uma experiência nitidamente estética, algumas características atenuadas em outras experiências se revelam dominantes; as subordinadas tornam-se controladoras - a saber, as características em virtude das quais a experiência é uma experiência integrada e completa por si só.
Em toda experiência integral existe forma, porque exis-te organização dinâmica. Chamo a organização de dinâmica por ela levar tempo para ser completada, por ser um crescimento. Há início, desenvolvimento, consumação. O material é ingerido e digerido pela interação com aquela organização vital dos resultados da experiência anterior que constitui a mente do trabalhador. A incubação prossegue até que aquilo que é concebido seja partejado e tornado perceptível como parte do mundo comum. Uma experiência estética só pode compactar-se em um momento no sentido de um clímax de processos anteriores de longa duração se chegar em um movimento excepcional que abarque em si todas as ou-tras coisas e o faça a ponto de todo o resto ser esquecido. O que distingue uma experiência como estética é a conversão da resistência e das tensões, de excitações que em si são ten-tações para a digressão, em um movimento em direção a um desfecho inclusivo e gratificante.
Vivenciar a experiência, como respirar, é um ritmo de absorções e expulsões. Sua sucessão é pontuada e transformada em um ritmo pela existência de intervalos, períodos em que uma fase é cessada e uma outra é inicial e prepara-tória. William James fez uma comparação oportuna entre o curso de uma experiência consciente e os voos e pousos al-
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ternados de um pássaro. Os voos e pousos ligam-se intimamente uns aos outros; não são um punhado de alçamentos não relacionados, seguidos por alguns saltinhos igualmente não relacionados. Cada lugar de repouso, na experiência, é um vivenciar em que são absorvidas e incorporadas as consequências de atos anteriores, e, a menos que esses atos sejam de extremo capricho ou pura rotina, cada um traz em si um significado que foi extraído e conservado. Tal como no avanço de um exército, todos os ganhos do que já foi efetuado são periodicamente consolidados, sempre com vistas ao que será feito a seguir. Se nos movemos depressa demais, afastamo-nos da base de suprimentos - da acumulação de significados -, e a experiência torna-se agitada, superficial e confusa. Se demoramos demais, depois de haver extraído um valor líquido, a experiência morre de inanição.
A forma do todo, portanto, está presente em todos os membros. Realizar e consumar são funções contínuas, e não meros fins localizados em apenas um lugar. O gravador, o pintor ou o escritor encontram-se no processo de completar algo a cada etapa de seu trabalho. A cada momento, têm de preservar e resumir o que se deu antes como um todo e com referência a um todo que virá. Caso contrário, não há coerência nem segurança em seus atos sucessivos. A sucessão de feituras no ritmo da experiência confere variedade e movimento; protege o trabalho da monotonia e das repetições inúteis. As vivências experimentadas são os elementos correspondentes no ritmo e proporcionam unidade; protegem o trabalho da falta de propósito de uma mera sucessão de excitações. Um objeto é peculiar e predominantemente estético, gerando o prazer característico da percepção es-
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tética, quando os fatores determinantes de qualquer coisa que se possa chamar de experiência singular se elevam muito acima do limiar da percepção e se tornam manifestos por eles mesmos.