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ArtE e rEsisTênCia Na ruA ArtE e rEsisTênCia Na ruA Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo Ano I - Nº 01 - Abril de 2009

Arte e Resistência ed. 01

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A Revista “Arte e Resistência na Rua” traz textos de reflexão teórica, relatos de ações de militância e leituras críticas dos espetáculos apresentados nas mostras de teatro de rua Lino Rojas, realizadas desde 2009.

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ArtE e rEsisTênCia Na ruA

ArtE e rEsisTênCia Na ruA

Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo

Ano I - Nº 01 - Abril de 2009

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A Lenda de Sepé Tiaraju - Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV):: Foto Augusto Paiva

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O teatro de rua é arte de resistência. Existe

por teimosia. Ao longo do processo histórico, por

diversos modos, a manifestação foi alvo de perse-

guição. Por isso é difícil encontrar material escrito

sobre seus fazedores e suas realizações. Este pen-

samento, entretanto, pelo menos na cidade de São

Paulo, vem se modificando. Os grupos conscienti-

zam-se cada vez mais acerca da importância de re-

gistrarem suas histórias. Afinal, tendo em vista as

circunstâncias históricas, o registro coloca-se tam-

bém como uma significativa forma de resistência.

Em um mundo espetacularizado, a arte,

como qualquer outra ação e manifestação, tende

a ser encarada como mais uma mercadoria. No en-

tanto, quando os artistas se colocam em situação,

apresentando seus espetáculos em espaço aber-

to, de forma crítica, de modo a que todos fruam

suas obras, contrapõem-se ao mundo-mercadoria.

Ao assim proceder, evidenciam e concretizam no-

vas formas de dialogismo entre si e com o público.

Novos lampejos e descortinares de troca efetivam-

-se. Afinal, como afirmou o pensador Ernst Fischer

em A necessidade da arte: “(...) a obra de arte deve

apoderar-se da platéia não através da identificação

passiva, mas através de um apelo à razão que re-

queira ação e decisão.”

É o que tem procurado fazer muitos grupos

de teatro de rua em São Paulo. Assim, por sua im-

portância histórica, faz-se necessário o registro das

ações de tantos desses utopistas que acreditam

que outro mundo é possível.

Nesta publicação teremos um apanhado his-

tórico das ações do Movimento de Teatro de Rua de

São Paulo (MTR/SP), desde a Carta Aberta, lançada

em 2006, passando pela Mostra de Teatro de Rua

Lino Rojas, com críticas de diversos espetáculos da

última edição em 2008, coordenadas pelo profes-

sor e pesquisador Alexandre Mate. Além disso, o

MTR/SP, por intermédio de seus militantes estive-

ram desde o princípio na organização da Rede Bra-

sileira de Teatro de Rua, de cujo quarto encontro

ocorreu em São Paulo foi tirado um documento que

se apresenta transcrito nessa publicação.

Estamos cumprindo nossa tarefa. Organi-

zando-nos, registrando nossos espetáculos e mo-

bilizações, fazendo história. Assim, desejamos boa

leitura a todos! x

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Contatos: [email protected]

Carta aberta do Movimento de Teatro de Rua de são Paulo - MTR/SP

O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo agrega diferentes grupos e companhias de teatro de rua, pensadores e afins que visam a construção de políticas públicas permanentes que garantam a continuidade de pesquisa, produção e circulação do teatro de rua nessa cidade.

O Movimento propõe ações que possibilitem o desenvolvimento de reflexões sobre o teatro de rua em âmbito nacional, bem como sobre sua relação com a cidade.

Os integrantes do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo defendem a valorização do espaço público aberto como local de criação, expressão e encontro, compreendendo que, assim, esse espaço torna-se ambiente propício à ampliação da cidadania de quem com ele se relaciona.

São Paulo, 29 de maio de 2006

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Breve histórico do MTR/SPO Movimento de Teatro de Rua de São

Paulo (MTR/SP) nasceu em 2002 por intermé-dio da união de sete grupos no projeto Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha. Desde en-tão os grupos interessados em debater temas pertinentes às especificidades do teatro de rua têm crescido significativamente.

De agosto a setembro de 2003, foi rea-lizado o 1º Seminário de Teatro de Rua com a participação de doze grupos. O Seminário con-solidou o Movimento e resultou na I OVERDO-SE DE TEATRO DE RUA, em que foram apresen-tados 15 espetáculos, no dia 03 de novembro de 2003, no boulevard da Av. São João e Vale do Anhangabaú. Mesmo sem qualquer patrocí-nio ou apoio do poder público ou da iniciativa privada, a ação, marcou o inicio de um proces-so mobilizatório tanto político quanto artístico.

O Movimento realizou em junho de 2004 a II OVERDOSE DE TEATRO DE RUA; em julho do mesmo ano, o 2º Seminário de Teatro de Rua com a participação de pensadores, faze-dores e políticos que atuam e pensam o espa-ço urbano. Ainda em 2004, foi realizado a 1ª temporada de Teatro de Rua de São Paulo, na Praça do Patriarca, objetivando fazer daquele local um espaço permanente para apresenta-ção de espetáculos e também de divulgação da programação do teatro de rua.

Desde a realização do 1º Seminário, o MTR/SP realiza encontros em que se tentam estabelecer as bases de uma atuação propo-sitiva em que haja a inserção da manifestação artística no espaço público aberto; a luta por políticas culturais específicas que atendam às necessidades da produção, pesquisa e circu-lação da arte popular; e formas de ampliar o acesso ao teatro do maior número de pessoas.

Em 2006, o Movimento foi a público mais uma vez e realizou a III OVERDOSE DE TEATRO DE RUA e lançou A CARTA ABERTA, de 29 de Maio. A ação exigiu do poder público o lança-mento de um edital prometido desde 2004. Ainda neste ano foi realizada, contando com verbas do poder público, a 1ª MOSTRA DE TE-

ATRO DE RUA LINO ROJAS, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. A Mostra homenageou o artista e grande mes-tre nascido no Peru, mas “brasileiro da Zona Leste” Lino Rojas, fundador do Pombas Urba-nas. Na programação do evento foi desenvolvi-do o seminário Políticas Públicas para o Teatro de Rua, uma exposição fotográfica, batizada Filhos da Rua e a Mostra propriamente dita, com a participação de vinte grupos escolhidos por edital. No encerramento da programação, os grupos realizaram um cortejo pelas ruas do bairro da Cidade Tiradentes. Ainda em 2006, o MTR/SP participou do II Fórum Artístico re-alizado pela Cooperativa Paulista de Teatro, em que se discutiu política pública, estética e a formação do artista que atua em espaços abertos e não convencionais.

Em 2007 o MTR/SP realizou sua IV OVER-DOSE DE TEATRO DE RUA com participação de grupos de outras cidades e de outros estados brasileiros. No mesmo ano realizou a 2ª MOS-TRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, novamen-te em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura.

Em 2008, no dia 27 de março - Dia do Teatro, realizou a V OVERDOSE DE TEATRO DE RUA e solicitou: ao poder público municipal ampliação de recursos para o Programa Muni-cipal de Fomento da Atividade Teatral da Cida-de de São Paulo; ao poder estadual retomada do Fundo Estadual de Arte e Cultura em âmbi-to estadual; ao poder federal a criação do Prê-mio ao Teatro. Participou com representantes e movimentos de outros estados da criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua que já está presente em vinte e um estados.

O Movimento de Teatro de Rua conta hoje com a participação de dezenas de faze-dores e pensadores do Teatro de Rua, visando, sobretudo, a formação de uma ação cultural que alcance indistintamente o cidadão da me-trópole paulistana, de maneira a mobilizar a sociedade para novas formas e relações com o espaço público. x

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O teatro de rua ocupa as áreas abertas, como praças, ruas, parques, entre outros, para fazer desses lugares seu espaço cênico. No entanto, esses lugares são dotados de signifi-cados, inscrevem parte da história da cidade, portanto, devem ser pensados em toda a sua amplitude para que possam ser bem utilizados.

Se cada época teve o seu espaço de re-presentação, devemos nos questionar acerca de qual seria o espaço de nosso século? Amir Haddad (2005) afirma que arquitetura e espe-táculos sempre estiveram ideologicamente li-gados e que nos últimos trezentos anos essa ligação foi determinada pela classe dominante, através da cena à italiana. Não obstante, a rua não é o espaço da classe dominante, que a tem apenas como escoadouro do capital, sendo um local perigoso, que deve ser evitado.

A cidade é portadora de duas dimen-sões fundamentais: a de mercado e a de centro de decisões políticas, que não podem ser esquecidos ao criarmos a dramaturgia e o espaço cênico de qualquer espetáculo. Se pensarmos na cidade de São Paulo, consta-taremos que as possibilidades de ocupação com o teatro são muitas, isso por conta de suas próprias características. Aldaíza Sposati adverte que São Paulo é uma cidade em pe-daços, fragmentada, dividida (2001), já Heitor Frúgoli Júnior se pergunta se ainda temos uma cidade ou apenas “(...) esferas sociais separa-das, que já teriam perdido seus elos e mes-mo a capacidade de reatá-los” (1995: p. 106). Ainda que esteja em pedaços ou mesmo que não seja mais cidade, tudo que há nela está carregado de significados e recebem “(...) influ-ências econômicas (industrial e de consumo), comunicativas, associativas e culturais.” (FER-RARA, 1993: p. 154) Por tudo isso, precisamos pensar a cidade e como a ocuparemos com o nosso teatro, como criaremos o espaço cênico e como daremos novo significado ao ambiente onde ocorre o espetáculo.

O espaço cênico do teatro de rua

Radicalizar a inserção teatral na cida-de é fundamental. Já nos anos 1970, o Living Theatre realizava espetáculos dessa ordem, como a performance itinerante Seis Atos Públi-cos para transformar a Violência em Concór-dia, utilizando seis pontos da cidade, cada um representando, em termos simbólicos, o que interessava dentro da história apresentada. Como por exemplo, a adoração de um touro de ouro em frente a uma instituição financei-ra. Uma crítica mordaz ao capitalismo. Ou O Legado de Caim, um espetáculo composto de “(...) cento e cinqüenta peças separadas que tratam sobre as diferentes funções da cidade” (MIRALLES, 1979: p. 97). Assim, podemos per-ceber que a cidade em seus fragmentos, pode ser mais do que o espaço da representação, pode ser cenário para a história que se desen-rola e, mesmo, a própria dramaturgia.

O espaço cênico nos é dado pelo próprio espetáculo e é “(...) concretamente perceptível pelo público na, ou nas cenas, ou ainda [n]os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis.” (PAVIS, 1999: p. 133), sendo a primeira instância de valor do espetáculo. Por isso mesmo, devemos refletir sobre os frag-mentos da cidade que um espetáculo de rua ocupa, já que os mesmos têm reflexo direto na encenação.

André Carreira, com o seu teatro de inva-são, propõe que a cidade pode ser uma dramatur-gia pulsante, isto é, a cidade e os espaços escolhi-dos podem direcionar a história. Dessa maneira, precisamos repensar a nossa concepção de espe-táculo. Precisamos ver com novos olhos, já que o texto perde o seu papel principal, a visão textocên-trica cai por terra. Para tanto é preciso entender a cidade como um tecido com suas “dinâmicas sociais e culturais”, seus fluxos e contrafluxos e sua textura política e inseri-los no contexto do

Teatro de rua em discussão

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espetáculo. O autor propõe o uso espetacular da rua, incorporando na cena os fluxos da rua ou sub-vertendo-os, “(...) fabricando rupturas dos ritmos cotidianos” (2008: p. 69). Mas “(...) se a cidade é um texto dramático, uma encenação invasora será sempre percebida como uma releitura da ci-dade” (CARREIRA, 2008: p. 71).

Já Ana Carneiro, co-fundadora do Tá Na Rua, afirma que as pesquisas encaminharam o grupo para a concepção cênica em roda. A roda “(...) transforma os atores que nela atuam em fontes irradiadoras que se propagam infini-tamente” (2005: p. 123). Além disso, prioriza a horizontalidade na relação entre ator e espec-tador, sendo, portanto, um espaço privilegiado para a comunhão. No grupo Tá na Rua a utili-zação do apresentador-narrador faz com que não haja texto escrito, e sim “(...) uma escrita cênica, que se faz na hora, em contato direto com a realidade” (2005: p. 131).

Os dois autores referem-se aos riscos de ocupar a cidade por essas duas vias, exigin-do uma nova concepção de espetáculo, dife-rente das formas tradicionais com um texto ou uma história tendo inicio, meio e fim. Para Car-reira o espetáculo dentro de suas concepções estaria mais próximo da linguagem cinemato-gráfica; já Carneiro, entende que o jogo com os espectadores, aliado aos fatos narrados, pode ser deflagrador de uma reflexão dos fatos e da “realidade que circunscreve” os mesmos. Ao mesmo tempo, as duas formas de ocupação da rua exigem um ator bem preparado para li-dar com os riscos e as dificuldades inerentes as abordagens, um ator com uma grande ca-pacidade de adaptabilidade.

Por fim, sabemos que há inúmeras outras possibilidades de ocupação da rua para além das duas formas abordadas, para tanto, faz-se necessário pensar o espaço cênico, para que a própria cidade seja ressignificada. Pois “(...) pensar o espaço, o local dos espetáculos, e as-sociados a isto pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador é também pensar o mundo.” (HADDAD, 2005: 62) x

por Adailton Alves artista e fundador do grupo Buraco d’Oráculo.

foto: Augusto Paiva

CARDOSO, Ricardo José Brügger. Inter-relações en-tre espaço cênico e espaço urbano. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

CARNEIRO, Ana. A rua enquanto espaço privilegiado da relação público/ator: opapel do apresenta-dor-narrador (Tá na Rua – 1981)” In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (Orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E--Papers, 2005.

CARREIRA, André. “Teatro de Invasão: Redefinindo a ordem da cidade” In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Op. cit.

_____. Teatro de rua: uma paixão no asfalto. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2007.

FERRARA, Lucrécia D`Alessio. Olhar periférico: in-formação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: Edusp, 1993.

FRÚGOLI Junior, Heitor. São Paulo: espaços públi-cos e interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995.

HADDAD, Amir. Espaço. In: TELLES, Narciso e CAR-NEIRO, Ana (Orgs.). Op.cit.

MIRALLES, Alberto. Novos rumos do teatro. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

SPOSATI, Aldaíza. Cidade em pedaços. São Paulo: Brasiliense, 2001.

TEIXEIRA, Adailton Alves. A rua como palco: o tea-tro de rua em São Paulo, seu público e a imprensa escrita. Monografia: História, Universidade Cruzeiro do Sul, 2008.

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Instantâneos de Rua

A força e a beleza da imagem impressa em papel jornal, no princípio, foi o que mais me seduziu em meu primeiro contato com a fotografia de teatro. Este primeiro encontro eu tive no início da década de 1980 nas ruas de São Paulo a caminho dos ensaios e da escola de teatro. Meus amigos mostravam-se injuria-dos ao ver-me recolher jornal velho no chão apenas para apreciar uma foto de um espetá-culo. Francamente, eu não resistia, era como o cupim encandeado pela luz. Eu pegava o jornal velho, vencido, que não servia mais nem para “enrolar peixe”, olhava e delirava. E, naque-la época, as fotos dos jornais ainda eram em preto e branco – o que me deixava ainda mais fascinado. Um dia eu também fotografarei ima-gens assim, dizia pra mim mesmo.

Os anos passaram, e, eu mesmo fui foto-grafado como ator em espetáculos e continuei com minha fome de fotografar. A formação em jornalismo me deu a oportunidade de estudar e praticar o ofício desejado. Minha primeira

Ninguém jamais descobriu a feiúra por meio das fotos. Mas muitos, por meio de fotos, descobriram a beleza. Salvo nessas ocasiões em que a câmera é usada para documentar, ou para observar ritos sociais, o que move as pessoas a tirar fotos é descobrir algo belo. (O nome com que Fox Talbot patenteou a fotografia em 1841 foi calótipo: do grego kalos, belo.) Ninguém exclama: “Como isso é feio! Tenho de fotografá-lo”. Mesmo se alguém o dissesse, significaria o seguinte: ”Acho essa coisa feia... bela”.

Susan SONTAG. Sobre Fotografia

câmera, comprada de segunda mão, foi pre-senteada por meu pai e deu-me uma sensação de poder que até então nunca havia sentido, a não ser como ator na criação de personagens. O primeiro espetáculo que fotografei foi ainda na escola. Puro prazer e sonho. Cá estou, há cinco anos, na preciosa e tão sonhada tarefa de fotografar as ações do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.

Anterior ao nascimento da atual Mostra Lino Rojas, como ator, conheci Adailton Alves, Simone Brites, Marcos e Selma Pavanelli que me convidaram para fotografar, em 2004, a Overdose de Teatro de Rua. Percebi nesses jo-vens atores uma preocupação e um cuidado com a importância em registrar um momento do teatro que praticavam. Eternizar é a palavra correta. Bem, de lá até aqui, fui presenteado com imagens de puro prazer e valor histórico. Pensei: será se esses jovens já haviam lido ou visto algo sobre o trabalho de Aurélio Becherini e B. J. Duarte, dois importantes fotógrafos do

A Lenda de Sepé Tiaraju - Teatro União e Olho Vivo (TUOV)

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início do século passado que se preocuparam com a transformação da cidade de São Pau-lo e produziram uma infinidade de fotografias e filmes da metrópole em mutação? Depois descobri que não era nada disso, eles apenas temiam, e continuam temendo, a efemeridade do fazer teatral. Todo teatro é assim, e porque o de rua haveria de ser diferente? Na rua, quem não viu jamais verá. Louvável a preocupação. Olhar futurista, dos fotógrafos e dos jovens atores. É bem provável que a grande maioria só reconheça esse valor daqui há décadas, pois, é lugar comum valorizarmos o passado somente no futuro.

O teatro de palco italiano, o chamado te-atro convencional, e, em especial, o teatro de rua carecem de um olhar preocupado com a eternização, o registro. É fato de que o MTR (Movimento de Teatro de Rua de São Paulo) está fazendo história, confeccionando instan-tâneos poéticos nessa cidade árida e carente de riso, de cor, de felicidade. Há uma enfermi-dade catártica nas administrações dessa cida-de que clama por um olhar mais urgente para o artista que vive do teatro de rua.

Vejo claramente que o teatro de rua que vem acontecendo na cidade surge das perife-rias e invade as praças com a força de uma pororoca amazônica. Por que das periferias? Porque é nesse lugar que as pessoas se orga-nizam e discutem a importância das políticas públicas para uma metrópole como a nossa. A comunidade da periferia está cumprindo sua função como cidadãos que se organizam e propõem o novo; a mudança. E é urgente essa mudança. Núcleo Pavanelli (nasceu na Zona Norte), A Brava (Zona Sul), Teatro Po-pular União e Olho Vivo (Bom Retiro), Buraco d’Oráculo e Pombas Urbanas (ambas na Zona Leste) expelem em verbo e performance suas fomes e desassossegos, sempre desassistidos pelo poder público. Isto apenas para citar al-guns coletivos teatrais organizados. E garanto: não fazem feio quando expelem. É uma beleza vê-los e compartilhar suas criações. Evoé, me-ninos e meninas!

É uma juventude muito bem formada e informada e que se preocupa com o ofício e com a importância da rua, com o verdadeiro palco do artista de rua. E foi neste eterno pal-

co que aconteceu o encontro entre gerações e linguagens diferentes. Esses jovens consegui-ram dialogar e trazer para a discussão o fazer teatral de importantes representantes do tea-tro de rua brasileiro, como César Vieira e Amir Haddad. E o diálogo foi sincero, divertido e preocupado com os caminhos do teatro de rua atual. E, obviamente, estava eu lá, abrindo e fechando as cortinas da minha câmera.

Há muito que fazer ainda, isso é sabido por todos os articuladores dos coletivos cita-dos e os não citados, pois o caminho é longo e exige suor e perseverança. Mas, já temos mui-

Amir Haddad - 2ª Mostra de Teatro de Rua 2007

tas histórias contadas e registradas, em víde-os e fotografias que falam por si.

Os instantâneos realizados por mim, in-cluindo a Overdose de Teatro de Rua e as ma-nifestações organizadas pelo MTR, fomenta-ram a criação de uma exposição, a ser lançada ainda em 2009, de nome Teatro de Rua não é brincadeira. O projeto conta com a curadoria de Ricardo Peruchi e possivelmente com a co-laboração de outros três fotógrafos convidados para cobrir a última edição da mostra.

Em cinco anos de testemunho das peças e manifestações clicadas, podemos e continua-remos fazendo arte e pedindo políticas públicas mais justas e continuadas. A fome do saber não foi e nunca será suprida. Ela é o mote do artis-ta, sem ela não estaríamos contando, para as gerações futuras, o que presenciamos e o que propomos para um novo artista que virá. x

por Augusto Paiva fotos: Augusto Paiva

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ojas A Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas nasceu do desejo do Mo-

vimento de Teatro de Rua de São Paulo levar ao conhecimento públi-co os grupos que pesquisam essa linguagem. O objetivo primordial do movimento tem com escopo a criação de novas oportunidades para os criadores de teatro de rua terem apoio institucional e espaço para apre-sentação de seus espetáculos; para a realização de debates; para a pu-blicação de suas vivências estético-teóricas e exposições, ampliando a reflexão e a troca de experiências para o avanço estético e o aperfeiçoa-mento das linguagens utilizadas por cada coletivo.

A expectativa inicial, totalmente correspondida em todas as edi-ções, foi a de envolver os grupos durante todo período da Mostra refor-çando sua identidade, seus elos profissionais e a de oferecer ao público uma programação diversificada e de qualidade, de maneira a contribuir com a difusão e valorização do fazer teatral em espaços públicos aber-tos.

Os seminários e encontros que ocorrem durante a Mostra têm como alvos primordiais unir os fazedores de teatro, principalmente aqueles li-gados às manifestações da arte popular. Nesse processo de união, os participantes dos diversos grupos são convidados a desenvolver uma re-flexão e troca sobre seu ofício, priorizando, sobretudo, temas concernen-tes à prática do Teatro de Rua, em seus aspectos e contextos: histórico, social, técnico, estético, organização de grupos, modos de produção e políticas públicas para o teatro. A Mostra caracteriza-se em uma oportu-nidade de inserir no calendário cultural de São Paulo uma programação cultural diferenciada, que permita a fruição da arte em espaços abertos. Nessa perspectiva, a rua deixa de ser um mero corredor de passagem, para potencializar-se em um espaço de troca entre os sujeitos que a ocu-pam e as trocas decorrentes das práticas artísticas.

Ressignificar os espaços públicos e a vida através da arte é uma necessidade. Retirar, ainda que por um lapso de tempo, os cidadãos de sua correria, permitindo-lhes rir, sonhar e serem críticos e fazer com que a arte seja parte de suas vidas caracteriza-se em um dos alvos primor-diais das diversas ações ligadas ao movimento.

Foto: Augusto Paiva

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Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) – em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, apoio da Cooperativa Paulista de Tea-tro, SPTrans, CET e Funarte – a Mostra ocorreu entre os dias 20 e 25 de Setembro de 2006. A programação, além de vinte apresentações, incluiu um seminário para discussão de políti-cas públicas, com a presença de Rubens Mou-ra (Secretaria Municipal de Cultura), Hélvio Ta-moio (FUNARTE), Ney Piacentini (Cooperativa Paulista de Teatro), César Vieira (Teatro Popu-lar União e Olho Vivo - TUOV) e Ilo Krugli (Tea-tro Ventoforte), realizado na Galeria Olido. Fez parte da programação a exposição fotográfica de Augusto Paiva, com fotos das ações reali-zadas pelo MTR/SP, intitulada Filhos da Rua apresentada na Galeria Olido e Centro Cultural Arte em Construção.

Os vinte grupos selecionados através de edital foram: Galpão do Clã, Cia. dos Inven-tivos, Abacirco, Cia. Vate Katarse, Grupo Ma-nifesta de Arte Cômica, Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo, Mamulengo da Folia, Cia. do Miolo, Cia. Raso da Catarina, Circo Navegador, Los Patos, Farândola Trupe, IVO 60, Cia. do Feijão, Cia. Teatral Manicômicos, Algazarra Teatral, Cia. Circo de Trapo, Cole-tivo Teatral Commune, Buraco d’Oráculo e Tablado de Arruar. Todas as apresentações foram realizadas na Praça do Patriarca de se-gunda à sexta-feira, atingindo um público esti-mado de mais de onze mil pessoas.

O encerramento da Mostra aconteceu em Cidade Tiradentes, Zona Leste da cidade de São Paulo, com um Grande Cortejo Teatral reunindo vários artistas e a comunidade. A es-colha pela Cidade Tiradentes deveu-se ao fato de naquele local Lino Rojas (ver Box) e o Pom-bas Urbanas desenvolverem um trabalho de formação teatral em sua sede, o Centro Cultu-ral Arte em Construção.

Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo – em parceria com a Secre-taria Municipal de Cultura de São Paulo, o Mi-nistério da Cultura, a FUNARTE e apoiada pela Cooperativa Paulista de Teatro, SPTrans, CET e pelos Pontos de Cultura: Commune Coletivo Teatral, Instituto Pombas Urbanas e Instituto Tá na Rua – a Mostra ocorreu entre os dias 10 e 15 de dezembro de 2007.

A 2ª Mostra homenageou o diretor Amir Haddad, fundador do grupo carioca Tá na Rua, que a mais de duas décadas dedica-se incan-savelmente ao teatro de rua. O grupo homena-geado apresentou-se na abertura do evento e foi antecedido por um cortejo dos demais gru-pos participantes, que se deslocou do Teatro Municipal até a Praça do Patriarca.

A 2ª Mostra teve edital lançado em âm-bito estadual, contemplando vinte grupos que se apresentaram na Praça do Patriarca. Os grupos foram os seguintes: Os Itinerantes, Algazarra Teatral, Cia. do Miolo, Pombas Ur-banas, Circo Fractais, Cia. São Jorge de Va-riedades, Teatro da Pateticidade, Valdeck de Guaranhuns, Companhia Cristal, Circo e Cia., Teatro de Rocokóz, Circo Navegador, Mani-cômicos Núcleo Brava Companhia, Cia. das Graças, Teatro de Mamulengo da Folia, Cia. Cênica Farândola Trupe, Trupe Olho da Rua, Buraco d’ Oráculo, Cia. Raso da Catarina e Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Teatro. O encerramento, como aquele do ano anterior, uma vez mais aconteceu em Cidade Tiraden-tes, no Centro Cultural Arte em Construção, na sede do Pombas Urbanas, com um cortejo ainda maior pelas ruas da comunidade e com a apresentação do resultado da formação tea-tral desenvolvida no local.

1ª Edição(Municipal) – 2006

2ª Edição(Estadual) – 2007

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O diretor Lino Rojas, formado pelo IN-SAD – Instituto Superior de Arte Dramática (Lima-Peru), dá nome à Mostra em virtude de sua pesquisa e atuação nas ruas da cidade. Foi um dos pioneiros da pesqui-sa em teatro de rua em São Paulo, já em 1979 atuava com o Grupo Treta, formado por jovens da USP – Universidade de São Paulo. Lino Rojas estudou com renomados diretores e pesquisadores, como Julian Beck, Henrique Buenaventura, Atahulpa de Cioppo, entre outros. Em São Paulo minis-trou diversos cursos e desenvolveu muitos projetos importantes, dentre os quais cabe destacar o Semear Asas, desenvolvido em 1989 no bairro de São Miguel Paulista (zona leste de São Paulo), que deu origem ao Pombas Urbanas, grupo que dirigiu por quinze anos.

Em novembro de 2005, os familiares de Lino Rojas receberam do Ministério da Cultura a medalha de Ordem ao Mérito Cul-tural, um reconhecimento do governo por sua contribuição à Cultura Brasileira.

Lino Rojas

Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo – com o Co-patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio do Ministério da Cultura; da Se-cretaria de Estado da Cultura e apoio insti-tucional da Cooperativa Paulista de Teatro, Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceira do Município de São Paulo, Aprendizes da Capela, Sindicato dos Comerciários, do Shopping Light – a 3ª Mostra homenageou o diretor e dramaturgo César Vieira e o Teatro Popular União e Olho Vivo, na pessoa de Neriney Evaristo Moreira. Como de praxe, foi realizado um cortejo, cuja trajetória foi da Praça do Patriarca até o Vale do Anhangabaú, espaço onde o grupo home-nageado esperava a todos para apresenta-ção de espetáculo, abrindo o evento.

Os grupos do estado de São Paulo fo-ram selecionados por edital, com curadoria a cargo de Alexandre Mate e Romualdo Bac-co. Os grupos de outros estados foram con-vidados pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. A 3ª Mostra teve a participação de vinte grupos, sendo quinze deles do esta-do de São Paulo: Brava Companhia, Buraco d`Oráculo, Cia. Baitaclã, Cia. Mamulengo da Folia, Cia. Troada, Circo de Trapo, Cir-co Nosotros, Circo Ybimarã, Ivo 60, Núcleo Pavanelli, Teatro Popular União e Olho Vivo – grupos sediados na cidade de São Paulo; Circo Teatro Rosa dos Ventos (Presidente Prudente), Sítio do Jeca (Pirassununga), Te-atro Fabricantes e Matulão (Assis), Trupe Olho da Rua (Santos); e 05 grupos de ou-tros estados: Grupo de Teatro Kabana (MG), Grupo Nu Escuro (GO), Oigalê (RS) Off-Sina (RJ) e Será o Benidito (RJ). x

3ª Edição(Nacional)

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Há uns três meses dei um entrevista, ou melhor tive um papo, dividido entre qua-tro grandes tardes, com o professor Alexandre Mate dentro de sua programação para a defe-sa de tese, na qual abordou o tema da longa existência dos grupos de teatro União e Olho Vivo e Engenho.

Dessa agradável conversa surgiu uma necessidade imperiosa de saber como, onde, quando e por que nasceu esse amor, essa pai-xão e esse impulso de retorno, redescoberta e reencontro com as raízes da arte popular.

Para mim, sem dúvida, o marco inicial apareceu nas ruas de pedras cinzentas que levam a grande praça da Igreja Matriz de Jun-diaí.

Talvez a primeira lembrança seja das Sextas-Feiras Santas, com suas procissões de cânticos e ladainhas chorosas; enormes velas, com chamas recurvadas pelo vento, fi-tas e bandeiras roxas misturando-se a xales e lenços azuis desbotados, formando um revolto mar de cabeças, onde navegavam em doura-dos andores, Jesus, Maria, José e toda uma corte de santas e santos; acompanhados de anjos de asas caídas e petrificadas.

Quem sabe, mais do que esses desfiles religiosos, tenham assinalado a minha infân-cia os exercícios diários dos soldados corren-do em volta de um velho quartel de infantaria, com o cadenciar gutural de ordens unidas gri-tadas por paranóicos sargentos:

- Um, dois. Um, dois...(Feijão com arroz.)- Três, quatro. Três, quatro.(Feijão no prato...)- Um, dois!!!! Um, dois...Diminuindo, diminuindo... desmilinguin-

do, à medida que a tropa, exausta, contornava a guarita da sentinela da esquina.

E é ainda inesquecível o corso de carros alegóricos e de foliões fantasiados nas terças--feiras “gordas” de Carnaval. E passavam pier-rôs e colombinas, abraçados a sacis e mari-nheiros numa leva alucinante de confetes,

O CIRCO ANDREOTTI E OUTRAS HISTÓRIAS DE RUA

serpentinas e lançaperfumes borrifando bra-ços, coxas e seios. O Carnaval era a festa de-mocrática irmanando pobres, ricos, remedia-dos e mendigos num gingar, em zigue-zague, ao som da música.

Lourinha, lourinhaDos olhos claros de cristalDesta vez serás a rainha do meu carnaval”Rojões!!!! A chegada dos jogadores do

“Paulista”, o time da cidade, recebendo ho-menagens da população na sacada do Hotel Central, depois da única vitória – por três a um – sobre o Paulistano, clube aristocrata da Capital. Vitória importante porque conquistada no elegante campo do adversário. Rojões!!!!

Como esquecer as prostitutas de ves-tido de chita azul salpicado de bolinhas bran-cas, dependuradas nas janelas das modestas casinhas da rua do Fulgor. Algumas ensaiando timidamente um trotoir, aventurando-se a sair, ousadas, mostrando brancas pernas na aveni-da principal.

E mais que tudo: o circo!!!A chegada triunfante do circo com seus

palhaços, bailarinas, domadores, velhos leões, não menos velhos ursos, equilibristas, trape-zistas, mágicos e uma linda amazona negra montada no cavalo de selim de ouro...

Enfim o picadeiro coberto de serragem e as lonas com suas bandeiras coloridas ondu-lando nos mastros.

- Olha a pipoca. Amendoim. Algodão doce...

E a bandinha atacando furiosa, antigos dobrões cantados em estribilho pelo público.

A alegria, a emoção, o prazer num safa-não de vida. Tudo isso antes, muito antes, bem antes de um italiano chamado Fellini ter alça-do o circo como “a arte das artes”.

Nada pode tocar tão fundo a jovens e a velhos, a negros e a brancos, a ladrões e a prostitutas, a saltimbancos, a explorados e a exploradores, a padres e a ateus, a soldados e a santos... Nada mais triste do que a despedi-da de uma companhia circense de uma cidade

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onde ela viveu uma curta temporada. O lúgu-bre recolher das lonas, caindo em cataratas de pano, num melancólico bater final de asas. Fechando o cortejo o ladrar dos cães, correndo ao lado das carretas, num derradeiro adeus da trupe alegre, doida, insensata e... Feliz.

E agora uma pequena história, uma ane-dota, sempre contada pela mestra Luiza Barre-to Leite que define, no entender dela, o que é o artista da rua, o artista do povo.

Uma vez chegou a uma pequena vila, um circo. Não era um circo majestoso, mas também não era muito mambembe, um circo médio. Tinha um nome: Gran Circo Família An-dreotti. Quem o dirigia era Giorgio Andreotti, o chefe do clã. Duro e justiceiro.

Diziam todos e estampava o programa, de papel rosado, das atrações do circo, que a família Andreotti era muito unida. Muito unida era a família Andreotti. Isso era o que corria a boca pequena. Essa era a lenda.

1César Vieira é o nome usado em teatro pelo advo-gado defensor de presos políticos durante a sangrenta ditadura militar brasileira (iniciada em 1964), Idibal Pivetta, fundador e diretor do Teatro Popular União e Olho Vivo.

Mas a verdade era bem outra. Não exis-tia nem nunca tinha existido uma família An-dreotti. Ela fora inventada para reafirmar a tradição das famílias de circo e para facilitar a publicidade.

Na realidade o domador não era casa-do com a bailarina, o mágico não gostava do palhaço e o anão detestava o equilibrista que, por sua vez, se vangloriava de ter um caso com a mulher barbuda...

Todavia, esses atores e atrizes da praça – para manter o mito do circo – fizeram todos acreditarem que era realmente uma família.

E um dia, até eles mesmos acreditaram, piamente, que eram verdadeiramente uma fa-mília. E isso só aconteceu por que eles acima de tudo eram, de fato, autênticos e suados ar-tistas da rua! x

por César Vieira 1

foto: Augusto Paiva

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Rede brasileirade teatro de rua

Do contato entre os movimentos esta-duais surgiu a necessidade de uma articula-ção nacional do teatro de rua. Depois de mui-tas conversas por telefone; e-mails, encontros esporádicos entre alguns artistas militantes, resolveu-se realizar encontros dentro das pro-gramações regionais dos Movimentos.

Dois encontros foram realizados em 2007. Como o “Brasil nasceu na Bahia”, o pri-meiro encontro dessa articulação ocorreu em Salvador e o segundo em Recife. Os encontros mostravam já um diferencial e uma vontade de descentralização da região Sudeste.

No terceiro encontro, também em Sal-vador, tirou-se o documento de fundação da Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR, que pode ser conferido aqui. Só no 4º Encontro, em 2008, os articuladores da RBTR vieram para São Paulo, reunindo-se nos dias 14, 15 e 16 de novembro, na Galeria Olido. Essa foi mais uma realização do MTR/SP com o apoio da SMC e do MINC. O encontro contou com par-ticipação de articuladores de dezoito estados. x

Foto: Augusto Paiva

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Carta

da RB

TROs articuladores dos estados da Bahia, Pernambuco, Maranhão, Ceará,

Rio Grande do Norte, Rondônia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, reunidos nos dias 24 e 25 de março de 2008, em Salvador, instituíram a Rede Brasileira de Teatro de Rua.

A Rede é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hie-rarquia, democrático e inclusivo. Todos os artistas e grupos pertencentes a ela podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais, suas ações e pensamentos.

O intercâmbio da RBTR ocorrerá através de fórum virtual, entretanto, toda e qualquer deliberação será feita apenas em reuniões presenciais, sen-do que seus membros farão, ao menos, dois encontros por ano. Os coletivos devem organizar-se para enviarem articuladores para os encontros presen-ciais.

O papel de cada integrante é o de ampliar a Rede, através da criação de movimentos regionais de teatro de rua e artes afins, bem como da manuten-ção dos já existentes, através de reunião constante.

A MISSÃO da Rede Brasileira de Teatro de Rua é lutar por políticas pú-blicas de cultura com investimento direto do Estado em todas as instâncias: municípios, estados e União; divulgação do teatro popular de rua e de seus fazedores e agregar o maior número de articuladores por todo país.

Os articuladores dos estados supracitados deliberaram no dia 25 de março de 2008 que:

•Somos contra a retirada do “Grupo de Teatro Popular Filhos da Rua”, que ocupa uma sala no espaço do “Passeio Público” em Salvador, para de-senvolver seu trabalho de pesquisa, ensaios e formação de novos atores-cida-dãos; exigimos do poder público, além da permanência do grupo, a manuten-ção daquele espaço, para seja desenvolvido e melhorado o trabalho cultura e de cidadania que neste momento está parado;

•Somos radicalmente contra a proposta de criação da “Lei do Teatro” da APTR – (Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro) apresen-tado na Comissão de Educação e Cultura do SENADO;

•Exigimos representação do teatro de rua no Conselho Nacional de Po-lítica Cultural (CNPC);

•Exigimos a aprovação e regulamentação imediata da PEC 150/2003, que vincula para a Cultura, o mínimo de 2% no orçamento da união, 1,5% no orçamento dos Estados e Distrito Federal, 1% no orçamento dos municípios.

Salvador, 25 de março de 2008

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Carta do 4º encontro da rede brasileira de teatro de rua

A Rede Brasileira de Teatro de Rua criada em março de 2007, em Salvador-BA, é um es-paço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os artistas-trabalhadores e grupos pertencen-tes a ela podem e devem ser seus articulado-res para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais, suas ações e pensamentos.

O intercâmbio da Rede Brasileira de Tea-tro de Rua ocorre de forma virtual, entretanto, toda e qualquer deliberação é feita nos encon-tros presenciais, sendo que seus membros farão, ao menos, dois encontros anuais. Os coletivos devem se organizar para enviarem articuladores para os encontros presenciais.

O papel de cada integrante é ampliar a Rede através da criação de movimentos regio-nais de teatro de rua, bem como da manuten-ção dos já existentes.

A missão da Rede Brasileira de Teatro de Rua é lutar por políticas públicas de cultura com investimento direto do Estado em todas as instâncias: Municípios, Estados e União. E para garantir o acesso aos bens culturais a to-dos os cidadãos brasileiros a Rede Brasileira de Teatro de Rua tem por objetivo promover também a produção, difusão, formação, regis-

tro, circulação e manutenção de grupos de te-atro de rua e de seus fazedores, construindo assim um país mais justo.

Os articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua dos estados AC, AM, CE, BA, ES, GO, MA, MG, PA, PE, PR, RJ, RR, RN, RO, RS, SC e SP reunidos nos dias 14, 15 e 16 de novem-bro de 2008, em São Paulo, no 4º Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, vêm através deste documento, afirmar ações e propostas, exigindo assim:

•A representação do teatro de rua, no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC);

•A representação do teatro de rua, no Colegiado Setorial;

•A aprovação e regulamentação imedia-ta da PEC 150/03, que vincula para a cultura, o mínimo de 2% no orçamento da União, 1,5% no orçamento dos estados e Distrito Federal e 1% no orçamento dos municípios;

•O direito de indicação de representan-tes de teatro de rua nas comissões dos editais públicos;

•A extinção da Lei Rouanet e de qual-quer mecanismo de financiamento que utilize a renúncia fiscal, por compreendermos que a utilização da verba pública deve se dar através

Fotos: Augusto Paiva

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do financiamento direto do estado, por meio de programas e editais em forma de prêmios elaborados pelos segmentos organizados da sociedade;

•A criação de um programa específico que contemple: produção, circulação, forma-ção, registro, documentação, manutenção e pesquisa para o teatro de rua;

•A criação imediata de um edital para a circulação de espetáculos de teatro de rua, constituindo-se assim um circuito nacional de teatro de rua;

•Que os espaços públicos (ruas, praças e parques, entre outros), sejam considerados equipamentos culturais e assim contemplados na elaboração de editais de políticas públicas e no Plano Nacional de Cultura;

•A extinção de toda e qualquer cobrança de taxas, bem como a desburocratização para as apresentações de teatro de rua garantindo assim o direito de ir e vir e a livre expressão artística conforme nos garante a Constituição Federal Brasileira no artigo 5º;

•A criação de um programa nacional de ocupação de imóveis públicos ociosos, para sediar o trabalho e a pesquisa dos grupos de teatro.

O teatro de rua é um símbolo de resistên-cia artística, comunicador e gerador de senti-do, além de ser propositor de novas razões no uso dos espaços públicos abertos. Assim, con-clamamos a todos os artistas-trabalhadores e a população brasileira para a mobilização na-cional da Rede Brasileira de Teatro de Rua, no dia 27 de março de 2009, no intuito de cons-truir políticas públicas para esta arte.

São Paulo, 16 de novembro de 2008.Rede Brasileira de Teatro de Rua

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O final de semana dos dias 14, 15 e 16 de novembro de 2008, em São Paulo, foi muito rico em vários aspectos. Desde o dia 08 daque-la semana estava acontecendo a 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, realizada pelo Movi-mento de Teatro de Rua de São Paulo. Quanta experiência bacana eu pude presenciar. Os ca-ras conseguiram reunir através da internet, do grupo de discussão, uns 100 artistas de teatro de rua. O circo também tava presente.

Como em toda Mostra ou Festival, sem-pre tem alguma atividade extra. E a reunião da Rede Brasileira de Teatro de Rua – RBTR acon-teceu nos três últimos dias da Mostra. Os gru-pos que participavam da Mostra se juntaram a nós e ficou muita gente discutindo política cultural e teatro de rua.

Fiquei muito impressionado com o po-der de articulação da Rede de que faço par-te hoje. A RBTR surgiu em março deste ano e, já conseguiu reunir em uma mesma reunião 18 estados da federação para discutirem te-atro de rua. Que fique claro, ninguém estava representando nenhum estado. Eles criaram uma dinâmica de funcionamento bem legal. A RBTR não tem hierarquia. É uma rede que fun-ciona de baixo para cima, de dentro para fora, todo mundo diverge, mas conseguem priorizar o teatro de rua.

Na sexta, dia 14, foi a abertura, na qual todos os articuladores dos estados, isso mes-mo, o termo usado é este: articulador. Qual-quer pessoa de qualquer estado pode ser um articulador da rede, é só ir à reunião e entrar na rede virtual de discussão. Não existem re-presentantes. Durante as apresentações pude perceber que a realidade dos outros estados não é muito diferente da realidade do estado de Roraima. A dimensão é que é outra. Quanta vivência interessante. Até mesmo as dúvidas são muito parecidas.

UMA IMPRESSÃO DO ENCON

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TRO DA RBTR EM SÃO PAULONo final da manhã do sábado recebemos

uma ilustre visita. O Amir Haddad, do Grupo Tá Na Rua - RJ. O Amir simplesmente foi ovaciona-do. Todo mundo de pé, aplaudindo o mestre do teatro de rua, no Brasil. Ele entrou e sentou-se. Depois de um momento de silêncio ele come-çou a falar. Disse que quando estava no eleva-dor pensava que se ele entrasse ali dentro e não fosse aplaudido seria uma merda. Afinal de contas, ele sabia que era uma figura impor-tante. Dedicou a vida ao teatro de rua e o ve-lho estava ruim. O coração dele está com uma bandeira de trégua. A pressão alta e mesmo assim ele disse isso tudo. Os artistas se emo-cionaram com a sua fala e foi um momento bem legal. Como um ritual.

O Amir falou muita coisa, com um discur-so extremamente político. Muito forte mesmo. Fez um alerta de que o mundo está ruindo. Que desde o 11 de Setembro que o mundo co-meçou a despencar e com isso, o teatro de rua tem um papel contemporâneo nessa socieda-de em processo de implosão devido ao siste-ma capitalista.

O teatro de rua está mais vivo do que nunca; acredito que essa rede, apesar de nova, já se mostra muito mais articulada do que as outras redes, até mesmo do teatro. Um discurso libertador.

Na parte da tarde continuou o mesmo esquema de apresentações. No domingo, dis-cutimos propostas para serem entregues na parte da tarde para o representante do MINC. A presença do representante do MINC foi fun-damental para que a articulação evoluísse. A urgência por mudança fez com que os artistas encontrassem rápidas decisões. E todas bem discutidas, articuladas dentro do grupão. Esse representante veio à reunião no intuito de dis-cutir o Plano Nacional de Cultura, mas acabou por levar um monte de reivindicações pertinen-tes aos anseios da rede. As questões ditas de governo foram resolvidas com tranqüilidade e sabedoria. A Rede Brasileira de Teatro de Rua sabe bem o que deseja. Então, não foi difícil.

Conseguimos terminar o dia com uma carta direcionada ao MINC, que foi feita ali, na hora. Uma comissão muito competente com-posta por artistas de vários estados se reuni-ram e integrou as idéias que foram discutidas e sugeridas na reunião maior. Foi show de bola.

Além da política cultural discutimos tam-bém o fazer. E foi muito importante. Uma troca valiosa de experiências com teatro de rua em diversos estados do Brasil.

Um encontro organizado e com uma equipe responsável e pilhada para que tudo corresse bem. Não faltou nada. Até festa teve. É, porque confraternização era a todo momen-to. A cada almoço; café da manhã; durante a cerveja do boteco, estávamos sempre discu-tindo teatro de rua, nos articulando bastante e nos conhecendo.

Precisamos nos apressar que a Rede Brasileira de Teatro de Rua veio pra ficar e fa-zer a diferença. Foi muito bom saber que existe muita gente fazendo teatro de rua no país. Que os próximos encontros sejam melhores ainda. E que tenha sempre esse espírito inclusivo que eu senti nesse encontro.

Saudades.

por Marcelo Perez - Cia. do Lavrado Boa Vista / RR

foto: Selma Pavanelli

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Coordenado por Alexandre Mate – pesquisador e professor do Instituto de Artes da UNESP

Leituras críticas dos espetáculos apresentados na3ª MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, de 08 a 16 de novembro de 2008, na cidade de São Paulo.

Foto: Augusto Paiva

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I. Apresentação

(...) Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar (...) o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a cidade. A identidade fornecida por esse lugar é tanto mais simbólica (...) existe somente um pulular de passantes, uma rede de estadas tomadas de empréstimo por uma circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um universo de locações frequentadas por um não-lugar ou por lugares sonhados.

Michel de CERTEAU. A invenção do cotidiano.

As análises aqui apresentadas correspon-dem a um trabalho de exercício crítico e, também, de uma ação documental dos espetáculos selecio-nados e convidados a participar da 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. Os leitores críticos, em sua maioria estudantes de teatro de Universidades públicas, sobretudo do Instituto de Artes da UNESP, aceitaram participar do desafio que tal atividade demandaria. Nesse particular, é preciso destacar: de modo militante e voluntário. Todos os partici-pantes, mesmo repletos de afazeres pessoais – e novembro é um mês de reflexões e de trabalhos es-colares precisam ser produzidos – predispuseram--se à tarefa, sem qualquer titubeio.

Empenhados e conscientes da importância e necessidade na produção dessa tarefa, o coletivo formado por onze pessoas, ao buscar brechas em suas agendas pessoais, conseguiu cobrir dezesse-te dos dezenove espetáculos da 3ª Mostra, com vinte e duas análises desenvolvidas. Originalmen-te, a idéia previa que, se pudesse apresentar pelo menos duas análises de cada espetáculo, mas o ideal esbarrou no real e na vida corrida cotidiana de todos. De qualquer forma, para quem puder ler as análises aqui apresentadas, perceberá que são vários os estilos a partir dos quais os espetáculos foram analisados.

De análises mais densas e calcadas em pro-cedimentos clássicos, passando por análises mais calcadas no espetáculo e fenomenológicas, algu-mas delas são breves crônicas, pequenas pérolas atentas às obras, misturando a cidade, os artistas, os moradores de rua e o teatro. Comum em todas as análises: o respeito ao conjunto de artistas e de espetáculos que se apresentaram nas ruas da cidade.

Como participei da seleção dos espetáculos da 3ª Mostra, com o grande parceiro Romualdo Bacco, tão logo o resultado foi apresentado, es-crevemos uma carta aos interessados (grupos ins-critos) apresentando os critérios adotados para a seleção. Na carta definimos principalmente que: “A

despeito de critérios como qualidade, mérito artís-tico e cultural serem, em si mesmos, abstratos fez--se a opção, tendo em vista os diferentes ‘brasis’ encontrados nas regiões que compõem a capital paulista, por selecionar espetáculos que atendes-sem a essa realidade.” Nessa mesma carta, infor-mamos, ainda, que o repertório da 3ª Mostra pas-saria pelos diferentes tratamentos estéticos: teatro com expedientes do agitprop (sigla para agitação e propaganda). Circo – número de variedades e reprises; recuperação de tradições e trabalho com aparelhos raramente vistos em exibições atuais; e montagem com traços característicos do melo-drama. Universo caipira paulista. Kyogen. Cordel. Mamulengo. Commedia dell’arte. Folguedos popu-lares, como o boi. Clown.

Por intermédio desse amplo e diverso espec-tro estético, acreditávamos que o teatro popular, apresentado na rua, tanto no concernente à troca de experiência como no de acessibilidade (geográ-fica, temática, interpretativa e visual) estaria repre-sentado e cumprindo seu papel, na ressignificação do lugar e do transeunte em sua cidade. Assim, de certa forma, o “sucesso” da 3ª Mostra, sobretudo no que diz respeito à alegria que se percebeu nas platéias, nos bairros ou no Vale do Anhangabaú, afiançam e legitimam esta convicção.

A vitoriosa disputa simbólica, contra toda sorte de preconceitos e obstáculos, travada pelos artistas populares e fazedores do teatro nas ruas durante nove dias, intervindo diretamente nos es-paços urbanos no centro e na periferia se fez. Ao discutir seus procedimentos de trabalho (modos de produção) e os resultados conseguidos, os artistas e grupos participantes da 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas ocuparam os espaços públicos e ganharam mais uma batalha, a demonstração do quão sofisticados são os espetáculos populares. Junto a isso tudo, outra vitória é a documentação, na forma de análises críticas da totalidade dos es-petáculos que participaram dessa 3ª Mostra.

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Foto: Augusto Paiva

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II. Grupos participantes

Depois de um cortejo artístico por algumas ruas do centro da cidade, o evento foi aberto com a apresentação do surpreendente Lenda de Sepé Tiaraju de César Vieira, apresentado pelo TUOV – Teatro Popular União e Olho Vivo. No dia seguinte, 09/11, domingo, foram apresentados:

Anuário imaginário – um calendário popular. Cia. Baitaclã (SP), no bairro da Lapa. Zona Oeste.

Saltimbembe, mambembancos. Grupo Rosa dos Ventos (Presidente Prudente, SP), no bairro Vila Mara. Zona Leste.

Histórias da maçã. Teatro Fabrincantes & Matulão (Assis SP), no Jardim Maravilha. Zona Leste.

À sombra das nuvens. Cia. Troada (SP). Zona Sul. De segunda a sexta-feira seguinte, sempre no Vale do Anhangabaú, foram apresentados:

Arrumadinho. Trupe Olho da Rua (Santos, SP).

Famiglia Milan e o Gran Circo Guaraná com Rolha. Circo Nosotros (SP).

ComiCidade. Buraco d’Oráculo (SP).

Top! Top! Top! Ivo 60 (SP).

O salto. Será o Benidito (RJ).

Viva Malasartes! Histórias de um povo de algum lugar. Núcleo Pavanelli (SP).

Tu decides 2. Circo Teatro Ybimarã (SP)

Esperando na Rodô – Sítio do Jeca. (Pirassununga, SP).

A brava. Brava Companhia (SP).

A folia no Terreiro do Seu Mané Pacaru. Cia. Mamulengo da Folia (SP).

Dupla de dois. Circo de Trapo (SP).

Êh! Boi. Grupo Teatro Kabana (MG).

O cabra que matou as cabras. Cia. de Teatro Nu Escuro (GO).

Café Pequeno da Silva e Psiu. Grupo Off-Sina (RJ).

Deus e o Diabo na terra da miséria. Grupo Oigalê (RS).

III. Análises críticas

A ordem das análises aqui apresentadas corresponde à programação organizada pela co-missão de seleção: Alexandre Mate e Romualdo Bacco e pela equipe de produção: Alessandro Azevedo, Noemia Scaravelli e Rafael Schiesari, coordenada por Selma Pavanelli.

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Sentado na lotação, vindo da Barra Fun-da rumo à Lapa, penso: “Um espetáculo de rua domingo de manhã: será que vai ter público?” Logo me tranqüilizo ao ponderar que o Grupo Bolinho - anfitrião da Cia. Baitaclã na Praça Miguel Dell´Erba – provavelmente sabe do po-tencial de praticar num lugar e transformá-lo, mesmo que por algumas dezenas de minutos, num espaço prenhe de significados propícios à troca.

Desembarco próximo ao Terminal e à Es-tação da Lapa, que são “abraçados” por pe-quena área verde, ainda que degradada. Miro a trupe, conhecida minha da deliciosa festa de cultura popular Baitaclã – Danças e Ritmos Brasileiros, liderada pelo ator e diretor Heral-do Firmino e companheiros no galpão-sede do grupo na Zona Sul, próximo ao metrô São Ju-das.

Saio junto ao cortejo inicial, farejando a praça, vendo os casais, os trabalhadores, os passantes, os moradores e todo o movimento que faz daquele local um ponto nevrálgico da zona Oeste da cidade de São Paulo, um ponto de encontro para a cultura popular.

Um dos espectadores, o menino Bruno (criança que vive abandonada pelas ruas), que teve negado vários direitos constitucionais bá-sicos, está - como contaram os organizadores do evento - todo animado pra assistir à peça, aguardando na semi-arena.

Após o cortejo, surpreendi-me com a metamorfose dos tambores e vozes da festa do Clã na dramaturgia popular apresentada pelo espetáculo Anuário Imaginário. Toda en-tremeada de cantos, a peça não deixa a “bola cair”, narra, em sonoro cordel, a história dos dias do ano, mas dos dias aproveitados: os dias de festa!

No início apresenta-se Arlecchino, um arquétipo de palhaço que vem da commedia dell´arte, este faz-se presente no bumba-meu--boi e tem seu impulso imediato no carnaval histórico. O carnaval é a primeira festividade mostrada pelo grupo, e nele aparece Colombi-na. Logo depois outro folguedo é apresentado: o reisado.

Outro espectador, menino Vinício - vin-do com sua mãe Tânia, do Jardim Maracanã, para lá da Freguesia do Ó - dá gargalhadas, enquanto sua mãe canta animada; as canções que lembram sua infância em Barueri.

Ao Divino Espírito Santo pede-se licen-ça para entoar preces; trazendo um sagrado tom respeitoso ao espetáculo, quebrando, de forma precisa, o clima cômico da trajetória cê-nica, até então. O canto sacro em voz feminina é anunciado como aquele que acorda até o ci-dadão mais desanimado.

O menino Bruno, no entanto, negando suas próprias expectativas com relação ao espetáculo, dormiu. Como um autêntico não-

III. 1. Anuário imaginário - Um teatro para Brunos e Vinícios

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-cidadão, indiferente ao chamamento das atri-zes, caiu exausto dos dias e noites vividos na rua.

Talvez o coro, se permitido for pelo ritual do Divino, deva ser reforçado pelos represen-tantes do gênero masculino. Talvez a estrutura social, deva mudar radicalmente e não permi-tir que Brunos durmam em platéias fora de casa. Falta de educação abandonar crianças à sua própria sorte...

Mas, e voltando à obra, já que o calen-dário é imaginário como as horas; chega-se no espetáculo a junho, mês repleto de santos que alimentam as esperanças do povo. A pro-messa a Santo Antônio é compartilhada com a platéia. O teatro é jogado no coletivo, os atores se bandeiam para platéia: provocam, diver-tem, perguntam. A música é cantada por tan-tos da platéia, coroando a canção. O homem vira mulher e a mulher vira homem, e assim se mostra, sendo virada de gênero pela história, revivendo assim o épico na singela cena.

O boi, que não pode ser esquecido, passeia por todos os festejos, já que em junho normalmente é brincado, mas também no car-naval e no final do ano pelo Brasil afora tem passado. O danado Baitaclã cativa a todos, o ruído e movimentação do teatro atrai mais de cem pessoas. Não falta público para o teatro em São Paulo! Mas, haja garganta para se fa-zer ser ouvido por tanta gente! Haja cuidado

com as cordas vocais, muito chá medicinal nelas! A receita da Vó Cacilda já dizia: resso-nância e articulação, para manter a tão cara comunicação que se vivenciou no espaço re-cém-significado.

Os dois meninos mencionados conti-nuam por lá. Vinício conta que: só lembrava de teatro quando o circo foi na escola em que estudava! Tânia nunca viu teatro mambembar para os lados do Jardim Maracanã. Só os pa-lhaços no centro de Sampa. Bruno não assistiu ao espetáculo: continua dormindo.

A margem está no centro. O centro co-mercial da Lapa, bairro de classe média, um centro de entroncamento do transporte cole-tivo. O espaço, que por ser público não é de ninguém, é povoado por muitos zés-ninguém, que festejam a alegria da vida, o princípio da fé e da festa.

Um teatro que reúna esse povo - nós, o povo - em procissão e diálogo. Um teatro que possa subverter a ordem opressiva cantando, que possa fazer coro à construção de uma nova sociedade e, ainda acordar os tantos Bru-nos, é esse o teatro que a cidade mais precisa.

Parabéns a esse grupo gauche, pela história, as conquistas e a preciosidade de seu Anuário! x

por Alexandre Falcão, artista aprendiz da Esco-la Livre de Teatro de Santo André; ativista do coletivo “Aliança Libertária Meio Ambiente” – Alma Ambiental, de Itaquera.

fotos: Rhadamés Sant’Ana

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Um belo domingo de sol. Quem passa pela Praça Miguel dell’Erba na Lapa deve sen-tir-se atraído por uma cantoria alegre, acom-panhada de pandeiros e violão, e por belos pa-nos coloridos esvoaçantes pela brisa. É a Cia. Baitaclã que começa seu espetáculo Anuário Imaginário, integrante da 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, organizada pelo Movimen-to de Teatro de Rua de São Paulo.

Logo ao início, os atores contam e can-tam a proposta do espetáculo: um passeio pe-las festas populares que marcam o calendário brasileiro. Os dois atores, Heraldo Firmino e Sandro Fontes, transformados eles próprios em bonecos mamulengos, brigam e brincam com as palavras anuário; calendário, folhinha, carnaval, até que um deles vem até o públi-co, fazendo dos espectadores também parte da “briga”, na primeira das muitas interações genuínas com o público. As atrizes Monique Franco e Sabryna Mato Grosso assumem boa parte da cantoria e encantam, com seus sim-ples e belos vestidos bordados de fuxicos. O texto, de autoria de Sabryna Mato Grosso, cos-tura momentos sagrados e cômicos e cumpre belamente a proposta do espetáculo, trazendo o linguajar, as crenças, as músicas e os ritos brasileiros.

Arlequino e sua amada Colombina vêm da commedia dell’arte com seu corporal e máscaras típicos, apresentar o começo do passeio, o Bacalhau do Batata, do carnaval de Olinda. Enquanto o coeso elenco salta de festa em festa, mostrando quadrinhas, cor-del, simpatias, capoeira, os santos juninos e o ciclo do boi, o público se delicia com cada piada, cada aparição do boi, cada música. A atenção da platéia é total mesmo em momen-tos opostos entre si, como a hilária cena do forró- altamente cômica, com Sandro Fontes vestido de mulher e Monique de homem: outro elemento emprestado da tradição popular. Ou-tro momento encantador ocorre com a bonita aparição do estandarte do Divino, com seu cântico e tambores. A interação com o públi-co é mesmo o ponto forte do espetáculo, com destaque para a presença de espírito de Moni-que Franco, que não perde a oportunidade de

III. 2. Anuário Imaginário – Um baita clã festeiro

ajudar o público a rir de si mesmo.Ao final do espetáculo, seu Washington,

vendedor ambulante da praça, me chama com um sorriso no rosto, falando alto: “Ô, tem que organizar mais dessas peças aqui para gen-te, hein? Eu estou aqui todo fim de semana e nunca tem teatro para gente. Mas a gente precisa. É muito bom quando tem, deixa a gente feliz.” Ponto para o MTR/SP, que teve o cuidado de escolher uma praça já meio aban-donada, mas de grande fluxo de pessoas que comutam entre a Zona Oeste e a Zona Nor-te, entre trabalho e casa. Além de vendedo-res como o Senhor Washington, o público era composto de moradores de rua, casais de na-morados, moradores da região e transeuntes que escolheram colocar um pouco de lirismo e boas risadas em sua manhã de domingo. Não é possível saber, mas é possível que alguns daqueles espectadores nunca tivessem tido contato com a cultura popular que é sua. Ou se já haviam ouvido aquelas cantigas ou mes-mo experimentado alguma das simpatias, po-dem não perceber em seu dia-a-dia que parte de sua alma brasileira é composta desses ele-mentos. Como são verdadeiras as palavras de Heraldo Firmino ao fim do espetáculo, segun-do o qual: “O maior tesouro de um povo é sua cultura”, todos aqueles que passaram por ali naquela manhã saíram enriquecidos. x

por Helena Cardoso, atriz, estudante do curso de Licenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP.

foto: Rhadamés Sant’Ana

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Eita que o coração do Oeste Paulista pulsa em cadência forte e ritmada! Esse Novo Oeste muito para lá das bandas de Rio Claro, onde a ferrovia iniciou sua romaria. Esse Oes-te Novo bem para dentro do cumprido Estado de São Paulo, que é Velho Oeste nas contra-dições, nos conservadorismos viciados pela cultura massificada que assola também nosso Interior.

Extremo Oeste de Tupi Paulista, onde nasci e passei a infância e adolescência. Ex-tremo Oeste de Assis, solo onde germinaram os grupos Matulão & Fabrincantes. O primeiro com oito anos de trajetória cênica em ruas e praças; o segundo com cinco anos perambu-lando com uma “carruagem” Santana pratea-da, festejando a cultura nativa pelo Vale do Rio Paranapanema. Dois coletivos independentes formados por artistas autodidatas, que man-têm um foco de resistência cultural, apesar da ausência de políticas públicas para grupos amadores na região.

De extremo a extremo, o Interior se viu refletido na Cidade Tiradentes, fronteira final à Leste da cidade de São Paulo, onde o peru passeia em frente aos barracos, talvez interes-sado na carroça carregada de alfaces, mas, com certeza indiferente à catadora de papelão que faz “a análise macroeconômica da crise do mercado da reciclagem.”

Num pedaço dessa populosa região - o Jardim Maravilha - é que tomamos uma tuba-ína na Toca do Índio, ouvindo o gostoso reg-

III. 3. Histórias da maçã - Viva a aRte encenada com R Retroflexo!

gae maranhense gravado num DVD de Suely, a Musa do Som, enquanto se aguardava o início da apresentação do espetáculo Histórias da Maçã, obra com dramaturgia de Elinaldo Mei-ra e Wender Urias, com direção de Sandro de Cássio Dutra.

Peça metateatral em que dois grupos de teatro se trombam em um local público e des-cobrem que estão naquele lugar para contar a mesma história: a de Adão e Eva. Por conta disso, decidem, então, duelar pela simpatia do público, trazendo duas visões distintas do mito cristão da criação do homem.

Início do trabalho: os atuantes saem pela rua convidando os moradores a assistir à peça. Encontram um povaréu voltando do cul-to da Igreja Universal. A menina, de uns oito anos de idade, com uma rosa na mão, pára o ator Sandro e diz:

- Aceita Jesus, moço!? - Eu aceito, mas você aceita o teatro?! E o povo, especialmente as crianças,

aceitou o teatro e sentou-se para assistir a Adão e Eva ou Eva e Adão, mas sem esquecer que nas histórias de Adão e Eva sempre exis-tem cobra, é claro!

Na primeira narrativa, os Fabrincantes assistem os integrantes do Teatro Matulão, contar em prosa caipira, a sua versão da histó-ria. Apesar de principiar com um conversê cai-pira respeitoso, inda que malicioso, logo o ator Ricardo Bagge se traveste de Eva, ganhando risadas da platéia ao expressar com seu corpo

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e voz o contraponto do tímido Jeca que inter-pretara até então.

Os Fabrincantes assumem o foco e a atriz Meire Alves protagoniza outra inversão do olhar:

- Sou mulher forte, negra e digna. Assim dá vida a uma Eva com consciên-

cia étnica e de gênero, incomodada com um Adão bobão que fica em casa cozinhando, com seu avental de fuxicos.

Esses atores de Assis são e formam um bando de palhaços ousados! Brincam o tempo todo com o público, chamam um de carneiro, outro de burro, sentam no colo deste crítico e levam até latido de pitbull!

Trabalho gostoso, em que se sente o prazer de expressar a alegria da cultura popu-lar. De conjugar o sagrado com o profano, de dar vazão a um caro plano: manifestar-se com liberdade e respeitar a integridade do público, que assiste se quiser e na distância que lhe aprouver, e dos atores: que jogam versos no universo, com a simplicidade do Criador.

Para encerrar, com três vontades fiquei: a de ver a dramaturgia da história dos Fabrin-cantes mestiçar-se à do Matulão - potenciali-zando o conflito cômico interpretado; a de ou-vir mais dos cantos que de início e de final são entoados; e a de crer que a empoeirada beleza da lavoura roxa e vermelha vai continuar ali-mentando o trabalho desses arruaceiros! x

por Alexandre Falcão, artista aprendiz da Esco-la Livre de Teatro de Santo André; ativista do coletivo “Aliança Libertária Meio Ambiente” – Alma Ambiental, de Itaquera.

Ir para a rua lançar perguntas de um jeito divertido e brincalhão. Com direito a presente para a platéia: balas de maçã-verde “afro–di-síacas”: bênção doce dos artistas de rua. Foi mesmo Deus quem criou o homem? Ou o ser humano nasceu mesmo foi da safadeza? Será que o homem veio do barro? E a mulher, veio da costela do homem? Histórias da Maçã é um espetáculo que combina com a harmônica (?) anarquia e o caos das ruas. Uma peça cujas imagens duram além do tempo da representa-ção, já que os atores utilizam-se da narrativa e contam com a imaginação dos espectado-res para construir e apresentar sua história. O teatro popular, como se sabe, fundamenta-se na participação do público com a obra e seus artistas.

Não dá para prever quem vai assistir ao espetáculo. Dessa vez, a maioria foi de crian-ças, que, com a sua agitação e alegria, desa-fiavam os atores, em disputa com aquelas, a chamar para si a atenção do público. Cada espectador era vivo e participava à sua manei-ra, alguns com timidez, só observando; outros quase pedindo para participar diretamente. Mas todos alegres, rindo uns dos outros. E a trupe banhou com novas cores e graça a co-munidade por intermédio das bandeirolas do

III. 4. Histórias da maçã- Cabelo de anjo: penas de canário

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cenário e dos figurinos - entre eles um avental de fuxico e coletes bordados, concebidos por Amélia de Jesus Oliveira.

A apresentação aconteceu domingo, dia 09/11/2008, no distrito de Cidade Tiraden-tes, Zona Leste de São Paulo, por ocasião da 3a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. A rua de terra e cascalho tinha nome estrangeiro – Naylor, e sobrenome árvore - de Oliveira, e ficava a aproximadamente 35 km. do marco zero da cidade de São Paulo: a Praça da Sé. Os grupos convidados foram Fabrincantes e Matulão, da cidade de Assis.

A proposta era contar duas versões de um mesmo mito: o de Adão e Eva. Os dois grupos revelam que irão competir entre si ao apresen-tarem diferentes versões da mesma história. O grupo Matulão é o primeiro a apresentar--se e é formado pelos atores Ricardo Bagge e Sandro Dutra (também diretor do espetáculo). Na versão dos dois vaqueiros, que param para descansar e “garram” a falar, do mito de Adão e Eva. Nessa prosa, indagam se o homem te-ria vindo de Deus ou da caverna? Como vêem uma adolescente de unhas pintadas, afirmam: “Xi, já nasceu de esmalte. Só pode ser coisa de Deus.”

Depois da apresentação do Matulão é a vez do grupo Fabrincantes. Dessa vez, Eva é apresentada como uma mulher forte, negra e digna, interpretada pela atriz Meire Alves. Grande exemplar de mulher forte e decidida. Na versão do grupo, a mulher foi feita à ima-gem e semelhança de Deus. Adão é interpre-tado por Wender Urias, que tem grande verve cômica. Depois de terminada a cena, os dois grupos tomam o centro do espaço de repre-sentação e cantam uma música. Poderiam ter cantado muito mais de tão gostosa que era a canção!

Não há interferência de um grupo na cena do outro. E se eles se provocassem mais? Que debate bom que seria! Ao espectador é prazeroso aceitar com gargalhadas que Eva e Adão tenham sido esculpidos pela saliva dos anjos de peruca de penas amarelas de canário ou ainda pela terra da Av. Naylor de Oliveira. x

por Ana Cecília Davids, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro do Instituto de Artes da UNESP e de Jornalismo da PUC-SP.

fotos: Joaquim Félix

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III. 5. Saltimbembe mambembancos - Mambembando na Vila Mara

Novembro, domingo à tarde, sol forte, Vila Mara - zona do extremo Leste da cidade de São Paulo. Uma praça ao lado da estação de trem Jardim Helena possui algo que chama atenção das famílias e transeuntes daquele lu-gar: trata-se de uma peça de teatro!

Nascido no interior de São Paulo, na ci-dade de Presidente Prudente, o Grupo de Cir-co e Teatro Rosa dos Ventos surgiu a partir da iniciativa de estudantes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, de buscar novas formas de integração e de troca de experiências com a comunidade. O grupo começou seu trabalho em abril de 1999, e, desde então, mas nada diferente à totalidade de outros, possui como característica sua rota-tividade entre os integrantes.

A organização interna do grupo se dá de forma dinâmica e autônoma, os integrantes distribuem as tarefas a serem realizadas en-tre si, o que garante que a forma de criação e concepção artística de seus espetáculos seja coletiva. Atualmente, o grupo está em cartaz com dois espetáculos: Hoje Tem Espetáculo! e Saltimbembe Mambembancos. O último deles integrou a 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas.

O espetáculo Saltimbembe Mambem-bancos é guiado por quatro palhaços que, constantemente, convidam o público a par-ticipar de seus números. Solicitação esta atendida de modo bastante receptivo. Os ato-res-palhaços apresentam cenas cômicas inter-caladas com números circenses, provocando muitos risos do público. Dentre os números apresentados um deles, por exemplo, promo-veu uma competição desleal entre um homem e uma mulher do público. Nessa competição, a mulher sempre saia vencedora devido às condições injustas proporcionadas ao homem pelos palhaços, o que causou grande diversão nos espectadores.

As crianças se envolveram e apropriaram--se do espaço no qual o espetáculo acontecia. Invadiram a lona, brincaram com os objetos de cena dos palhaços e respondiam a tudo que lhes era perguntado. A interlocução, ou a troca de experiência com a comunidade foi, de fato, estabelecida.

Houve um acontecimento que desviou o foco do espetáculo em determinado momento: em um dos números, os palhaços convidaram um espectador para participar. Este, com ver-gonha pelo que lhe pudesse acontecer: correu. Um dos palhaços, aproveitando a deixa, correu atrás dele, mas, em determinado momento, o homem caiu. O ator pareceu preocupado, conversou com o homem, que riu da própria situação e respondeu ao ator que estava tudo bem. O espetáculo continuou, mas o palhaço referiu-se ao homem, procurando integrá-lo de forma respeitosa e cômica aos números que se seguiram. Tal acontecimento revela a habi-lidade de um grupo que sabe lidar com o pú-blico e com os, eventuais, acidentes passíveis de acontecer em um espetáculo. Tal jogo de cintura é fundamental, sobretudo, no teatro popular de rua, na medida em que um espe-táculo só acontece de verdade por intermédio de um real processo de troca entre os artistas e o público.

Bastante relevante também a trilha so-nora criada pelo grupo. Ao som de guitarra, pandeiros, bumbo, pratos e outros instrumen-tos, os diversos números do espetáculo se desenvolviam a partir de uma trilha que cria-va climas. Nos momentos dos malabarismos, se estabelecia um clima de tensão através do som; quando alguém se dava mal, a trilha apresentava um efeito de “tiração de sarro”; e quando uma pessoa ganhava um número – como foi o caso da competição entre homem e mulher – exaltava-se sonoramente o vencedor.

Assim, a trilha possui um papel impor-tante no desenvolvimento do espetáculo: ela acompanha os números e compõe junto com os acontecimentos de cena. A rapidez de pen-samento; e a capacidade de improvisar a par-tir do acontecido coube não somente aos pa-lhaços, mas também aos músicos.

O espetáculo encerrou-se ao som da mú-sica Anunciação de Alceu Valença, na guitarra! x

por Nathália Bonilha Borzilo, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP.

foto: Joca Duarte

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III. 6. Saltimbembe, mambembancos - Profissão: mambembe

A música podia ser ouvida a metros de distância dali, era o primeiro estímulo convida-tivo. A quem a curiosidade foi despertada e a vontade de saciá-la mais forte que a indiferen-ça, pôde avistar, em uma praça, uma peque-na, mas entusiasmada aglomeração, formada por mulheres e homens, mas, sobretudo, por crianças, que aparentemente assistia a núme-ros circenses tradicionais executados por pa-lhaços em uma lona improvisada. Nela, profu-são de cores, e no alto, a indicação, em letras garrafais: Circo Teatro Rosa dos Ventos.

Essa imagem é uma entre tantas das que povoam o imaginário das pessoas que partici-param do primeiro dia de apresentações da 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas – e úni-co com espetáculos em regiões distantes do Centro da cidade. O cenário foi a Praça do Ca-sarão, ponto de encontro, portanto, de socia-

bilidade entre os moradores da região da Vila Mara, na zona leste da capital. Neste espaço, encontra-se um telecentro, um conjunto habi-tacional, uma estação de trem: Jardim Helena - Vila Mara.

No entanto, com o prosseguimento da apresentação, foi possível constatar que “as-sistir”, termo empregado no início deste texto, não fazia parte da proposta do grupo para o seu público, o que se configurou na principal qualidade do espetáculo Saltimbembe Mam-bembancos, já que assistir a algo pressupõe uma postura de espectador e não de alguém participante. Fazendo jus à tradição da comé-dia popular, caracterizada pelo diálogo recor-rente com o público durante a apresentação artística, ou seja, uma vivência polifônica e polissêmica, em que a presença do outro é fundamental, os integrantes do grupo Rosa

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dos Ventos mostraram grande sensibilidade e habilidade improvisacional para esse exercício de alteridade.

Parodiando o público a todo momento, o ponto alto desta interação ocorreu com a con-tribuição de um casal em um dos números do espetáculo. Uma competição entre uma mu-lher e um homem convidados a entrar na pe-quena lona armada. Para isso, vários artifícios cômicos foram utilizados: caminhar com uma colher na boca de modo a equilibrar um ovo, pular com os pés num saco, acertar argolas no braço estendido de um dos palhaços. No entanto, um elemento crucial alterava toda a essência da disputa. Os palhaços criavam situ-ações para que o homem não tivesse qualquer chance de vencer uma prova sequer, trapace-ando-o para que o sucesso coubesse à mu-lher. Inicialmente, uma tentativa de construir um aparente discurso feminista, consciente de que, em diversas situações da realidade objetiva, a mulher é quem é “trapaceada” so-cialmente, o espetáculo toma um rumo ines-perado. Após a óbvia vitória feminina, um dos palhaços, sem qualquer pudor, foge com a mu-lher para trás do pano vermelho e, ao simular uma cena de sexo às escondidas, peças de roupa passam a voar para fora da lona.

Esse momento ilustra o tom que permeia Saltimbembe Mambembancos, o da sátira desprovida de moral que busca sempre a con-tribuição do público. O caráter de improviso do grupo se mantém até num momento acidental – a abertura para o outro é um embarque para o caos, enquanto espaço de possibilidades, para o universo do desconhecido. À procura de um participante para a próxima cena, um dos palhaços começa a correr alucinadamente atrás de um homem, iniciando uma persegui-ção que motiva certa tensão. Nisso, o homem escorrega na guia e cai no meio da rua, ma-chucando levemente o pé. O palhaço, então, preocupado, volta para a praça amparando o sobrevivente e o espetáculo prossegue. Em cena, o ator comenta várias vezes sobre o ocorrido, manifestando claramente sua inquie-tação. Parece querer comunicar a sua atenção com o fato de se saber visitante naquela pra-ça, artista-estrangeiro que respeita os morado-res e o local de onde se apresenta.

Outra característica do trabalho está nos elementos da cultura circense, como malaba-rismos e diferentes números com claves – indi-viduais e em grupo. Quando havia erro – houve alguns –, os artistas reagiam com transparên-cia. Sem esconder a falha, evidenciavam-na pedindo vaias. Mas, quando dos acertos, sem titubear, solicitavam as palmas. A música tam-bém surge como um aspecto cênico, comuni-cando, com onomatopéias sonoras, geralmen-te uma situação de gozação sobre alguém. O repertório é variado, com rock’n roll e música popular.

O Rosa dos Ventos, de Presidente Pru-dente, interior do Estado de São Paulo, formou--se, em 1999, quando estudantes de diferen-tes cursos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) se reuniram para discutir festa e participação popular. De lá para cá, o trabalho dos artistas se divide en-tre teatro de rua, circo, música e educação. x

por Daniela Landin, estudante do curso de Licen-ciatura em Artes – Teatro, Instituto de Artes – UNESP. Jornalista formada pela Faculdade Casper Líbero.

fotos: Joca Duarte

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III. 7. À sombra das nuvens - À sombra das incertezas

(...) Adolescente, olha! A vida é nova... A vida é nova e anda nua - vestida apenas com o teu desejo

Mário QUINTANA Adolescente

O espetáculo cômico derivado da Com-media dell’arte da Cia. Troada apresentado no espaço da Brava Cia., conta a história de Qui-na, uma menina curiosa que sobe uma escada para saber o que há no final do mundo. Acom-panhada pelo amigo Dito, Quina depara-se com vários desafios na jornada: um vendedor da sorte que vende amor e certezas para Dito; o sonho ora pássaro ora sedutor pelo qual se apaixona; o velho morador de um buraco que carrega uma tocha; dois caminhos personifica-dos que se impõem como percursos obrigató-rios e soldados revolucionários que se perdem na liderança do grupo. Suas escolhas fora de padrão alteram a linearidade de sua vida. Aos poucos percebe que sua vida é um roteiro de teatro.

A Cia. Troada pesquisa e trabalha com teatro cômico, utilizando a máscara como lin-guagem; uso de técnicas circenses num espa-ço cênico reduzido. O autor desta obra, Viní-cius Torres Machado, que também é o diretor do espetáculo, atua como diretor e músico da peça. Vinícius pesquisa o teatro cômico popu-lar desde 1997 e a linguagem de máscaras desde 2001.

Assim, a trama, em À Sombra das Nu-vens, é permeada por intervenções do diretor e do narrador em processo de metalinguagem. Além de um repertório rico de imagens e de simbolismo transmitidos pelas alegorias. Ao longo da apresentação, várias interações jun-to ao público, majoritariamente de crianças, acontecem e são muito bem recebidas.

De uma forma lúdica e bem articulada, o espetáculo vai transmitindo uma bela fábula que trata de uma possível alusão às escolhas feitas ao longo da vida e a coragem de enfren-tar os obstáculos para alcançar sonhos que, de tão distantes, às vezes, parece impossível, realizá-los (o pássaro-sonho que Quina perse-gue e por quem se apaixona). Além das incer-tezas da chegada, do que se vai encontrar no fim da caminhada e também da percepção de que não se pode ter o controle dos passos fu-turos (acaso que toma conta da peça), e ainda, perceber que a caminhada é a própria busca: o ir, o buscar, o andar, tornam-se a chave do viver e do encontro consigo mesmo que, na peça, parece se dar por meio da retirada da máscara do rosto de Quina no fim da peça. x

por Cláudia Gonçalves, bacharel em Letras pela USP e fotógrafa profissional.

fotos: Augusto Paiva

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III. 7. À sombra das nuvens - À sombra das incertezas

III. 8. À sombra das nuvens – Quando a utopia encontra um recanto

O século XX, entre coisas muito boas, nos legou, infelizmente, a morte de algumas utopias e a vivência de terrores como a guer-ra. Apesar de momentos de grande descrença que assolaram a humanidade desde então, sempre há um olhar esperançoso para o futu-ro, que, mesmo sem inocência e já com certa desconfiança, faz com que ainda tentemos al-terar o status quo e não nos afundemos em conformismo. Se, adultos, lidamos também com a utopia coletiva, seus malogros e toda sua implicação ideológica, é desde a infância e pelo resto da vida que alimentamos sonhos de realização pessoal e criamos objetivos propul-sores para a nossa trajetória. Tratando deste tema, o espetáculo À sombra das nuvens, da Cia. Troada, pode ser recomendado a todas as faixas etárias, ainda que se destine mais dire-tamente ao público infantil.

O texto de Vinicius Torres Machado acompanha a saga da garota Quina em busca de um objetivo utópico, que ela, Ingênua, per-segue sem esmorecer a cada obstáculo que encontra. São justamente essas barreiras que acabam sendo o fio condutor da peça, ense-jando todos os quadros e peripécias. Estudo sobre os impedimentos que truncam o percur-

so, a trama, aparentemente simples, abarca desde dificuldades alegóricas até outras extre-mamente concretas, dando conta, em alguma medida, da infinita variedade de problemas que podem aparecer num mundo absoluta-mente oportunista e competitivo, em que se costuma fazer de tudo para impedir o sucesso alheio. Deste modo, além dos obstáculos na-turais – como a gigantesca cratera escura que traga pessoas –, aparecem interesses tanto pessoais quanto coletivos que vão contra os da protagonista. Vemo-la se movendo por vezes com os próprios passos e por outras de forma manipulada, e é esse jogo de forças que defi-ne a possibilidade de concretização do sonho. Ao longo da obra, evidencia-se um dos maiores poderes que impedem a protagonista de agir autonomamente: o dramaturgo. Esse jogo me-talingüístico propõe uma nova dialética, pois Quina age por vezes contrariando os desígnios do autor da peça, enquanto que por outras ela é apenas massa de manobra da história que vai sendo criada; o que demonstra imensa fé tanto na palavra quanto na cena, pois, como no teatro, ambas se complementam; se acres-centam e até podem se negar.

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Há, no entanto, uma visão simplista no começo da cena em que se representa a re-volução. Uma das mais importantes utopias, senão a primeira, parece ter seu princípio cri-ticado ao ser alegorizada por rebeldes intran-sigentes que não aceitam opiniões adversas. Dessa forma, seria invalidada por ter, já no cerne de sua concepção inicial, um fator ex-tremamente negativo e contraditório. Em se-guida, dentro do mesmo quadro, aparecem as divergências entre os revolucionários quanto à nomeação de um líder, e a incapacidade de concordância acaba por liquidar a sublevação. O que se vê já não é mais a revolução malo-grada por ser revolução e, sim, uma rebelião, acredita-se que bem intencionada, termina por fracassar ao não saber lidar com os problemas internos. Vê-se, assim, mais um obstáculo à concretização de um objetivo.

Não apenas uma elegia louvando o utó-pico, a peça propõe uma discussão sobre a verdade e sobre os limites. Alcançando-se o objetivo final, o que mais haveria para ser con-quistado? Desse modo, relativiza-se até a pró-pria utopia enquanto fim em si mesmo, já que ela pode ser apenas uma nova etapa numa busca incessante, que sempre encontrará problemas por resolver e lugares a se chegar. Não encerrando seus significados no palco e expondo o próprio ato de criação através da figura do dramaturgo, o espetáculo não incorre num erro comum ao teatro infantil: achar que criança é burra. Trata de um tema importante e a princípio familiar a qualquer ser humano, sendo compreensível sem ser simplista ou redutor. É generoso por contemplar de forma inteligente todas as gerações, sem esquecer a sedução do público jovem, utilizando-se dos recursos próprios do teatro de rua, como ga-gues, inserções musicais e figurinos coloridos, para gerar formalizações atraentes.

O espetáculo, dirigido pelo autor do tex-to, exalta a lucidez e o controle sobre o sonho, para que ele seja perseguido sem que domine o sonhador. Por isso, há quebras que eviden-ciam a passagem da ingenuidade ao espanto. As interpretações das personagens sonhado-ras deixam claros os momentos em que vão se percebendo impedidas de agir, quando des-cobrem não ser tão fácil a realização de um

sonho. São, para isso, amparadas por meias--máscaras versáteis, que, juntamente com a expressão facial, permitem diferentes inten-ções e estados, desde a felicidade inocente até a preocupação e o medo. As quebras são grandes, pois tudo é feito de modo amplo, para poder competir com a prolixidade visual da rua; e compartilhado com o público, com interlocução constantemente dirigida a este. É necessário ressalvar, entretanto, que, em se tratando de um espetáculo apresentado ao ar livre, onde não há tratamento acústico e a obra está sujeita à interferência de todos os ruídos urbanos, os atores falam baixo demais, tendo sua voz encoberta muitas vezes pelas ri-sadas e pelos comentários das próprias crian-ças que assistem à montagem. Ainda, no caso específico de À sombra das nuvens, com um texto complexo e tão dependente da boa emis-são verbal, o inaudível é uma enorme perda. x

por Kiko Rieser, estudante de Direção Teatral da Escola de Comunicações e Artes – USP.

foto: Augusto Paiva

A arte crítica tem encontrado cada vez mais, meios e formas de exercer seus objeti-vos. Desse modo, têm muito em comum, ain-da que estilisticamente diferentes, o teatro de revista e o teatro de Brecht. Analisar causas; conseqüências e toda a intrincada rede de funcionamento do capitalismo é a técnica es-colhida pelo dramaturgo alemão e por quem mais se interesse pela transposição artística de princípios marxistas e, de um modo geral, da sociologia e da ciência política. Há outra forma mais rudimentar de lançar um olhar crí-tico para a sociedade, que se constitui através da paródia. Satirizando o objeto de estudo por meio da hipertrofia de seus aspectos negati-vos, empenha-se no sentido de tornar visível o invisível, o que não é pouco. Em tempos em que a dominação ideológica turva o olhar e es-

III. 9. Arrumadinho – A competição selvagem do mercado

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camoteia sua própria ação sobre os indivíduos, usar uma lente de aumento para destacar o que pode não ser aparente já é um esforço lou-vável. A uma primeira vista, é essa a pretensão do espetáculo Arrumadinho, da Trupe Olho da Rua, ao tratar da competição deliberadamen-te selvagem do mercado atual. Entretanto, se olharmos com mais acuidade, o espetáculo se apóia na fórmula paródica sem se restringir a ela, propondo algumas analogias e represen-tações simbólicas.

Já em seu prólogo, a ironia brinca com a dimensão trágica. Assim como o ritual de imolação do bode, que em grego deu origem à palavra tragédia, há uma espécie de sacrifício alegórico, em que mendigos são radicalmente transformados em vendedores engravatados. Não há transformação gradual, tampouco es-boço de vontade por parte das personagens, e o que se vê é um apagamento brutal do in-divíduo, imposto em alguma medida. Não há oposição, pois não há consciência crítica so-bre o processo, e a própria anuência passiva já tem seus traços de dominação. O tema da obra está simbolicamente introduzido e o que se vê a partir disso é o esforço claro por parte do poder hegemônico em operar essa trans-formação no máximo número de pessoas pos-síveis.

A figura do palestrante que tenta con-verter todos em vendedores vinculados à sua empresa; tem o claro tom demagógico e po-pulista dos charlatões que prometem mundos e fundos, e sua antinomia está em Reginaldo Elias, o ingênuo candidato que se deslumbra com a possibilidade de ascensão social. Fica, assim, claro o valor de face da empresa, que propõe que seus empregados se tornem “ven-cedores”, independentemente de quem sejam os perdedores e dos meios utilizados para que essa suposta vitória se efetive. A ausência de escrúpulos está posta, e a retórica do orador é construída de forma imagética e apelativa, com grande capacidade de sedução. Embora de forma paródica, dada a que todos vejam a franca exposição da artimanha, toda a estraté-gia de persuasão guarda grandes proporções com a realidade e é assustadora sua capaci-dade de convencimento.

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O espetáculo detecta com inteligência os pontos em comum entre esse típico charlata-nismo e os engodos das culturas de massa. Há analogias com as igrejas que estão mais preo-cupadas com a arrecadação de fundos do que com o programa religioso, existindo em núme-ro cada vez maior e sempre ampliando suas matrizes e filiais, e com os programas televisi-vos que encobrem seu real objetivo, o ibope, fingindo apelo social através da distribuição de alguns prêmios. São promessas diferentes, todas atrativas ao grande público, que escon-dem o real objetivo que jamais se volta a ter-ceiros, buscando sempre o benefício próprio. Mesmo com as diferentes estratégias de cada meio, o espetáculo evidencia como o tom do discurso popularesco e o sub tom interessei-ro que se esconde por trás são absolutamente iguais em todo prosélito populista.

Ampliando suas dimensões para o traba-lho informal e para o subemprego; o espetácu-lo entende que a competição desleal e interes-sada a qualquer custo apenas em um fim de sucesso pessoal contaminou todas as esferas do trabalho e, por isso, a exploração não de-pende de um vínculo empregatício, mas exis-te também entre iguais, se prejudicando para conseguir sobreviver, submetendo-se não a um patrão, mas ao próprio sistema. Da mesma for-ma que se anulam princípios idiossincráticos e crenças pessoais para competir no mercado, os camelôs estrangeiros da peça desvanecem a cultura de seu próprio país, vendendo produ-tos genericamente representantes de sua tra-dição, descontextualizada e superficialmente. Mais uma vez, o indivíduo se apaga, exercendo seu trabalho com o mesmo mecanismo reifi-cante de funcionamento de uma máquina. x

por Kiko Rieser, estudante de Direção Teatro da Escola de Comunicações e Artes – USP.

fotos: Augusto Paiva

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III. 10. ComiCidade – O minimalismo chega ao teatro de rua

Destas cidades nada restará, exceto o vento que por elas perpassa.

Bertolt BRECHT. Do pobre B.B.

Os fortes ventos que açoitavam os ban-ners e o material de cena do grupo Buraco d’Oráculo assim como as escuras e encorpa-das nuvens no céu, prenunciavam uma forte chuva que confirmaria: novembro não é o mês mais adequado para se fazer um festival de te-atro de rua.

Por precaução e através de uma espon-tânea interatividade, grupo e público desloca-ram palco e platéia para debaixo do viaduto, garantindo-se assim o desenrolar do espetácu-lo, a salvo de chuvas e trovoadas.

A peça Comicidade é uma adaptação do grupo e do diretor Paulo de Moraes de quatro cenas do Kyogen, gênero teatral japonês in-separável do teatro Noh (Nô): tem a mesma origem acerca de seiscentos anos atrás e o costume é apresentar essas pequenas cenas cômico-farsescas como números de intervalo da atração principal, que é a representação dramática do Nô.

O grupo Buraco d’Oráculo tem dez anos de vida e seu intuito é buscar um teatro que discuta o homem urbano contemporâneo e seus problemas. Curiosamente, o grupo en-controu uma forma de atingir seus objetivos, numa peça com seiscentos anos e de origem rural (conforme informação de Adailton Alves, um dos componentes do grupo). De outra for-ma, na maleabilidade e na universalidade resi-dem também o encanto e a eterna juventude dessa forma teatral.

Desde sua origem, o grupo tem trabalha-do com diretores convidados e já encenou cer-ca de sete espetáculos. Para esta encenação o diretor escolhido foi Paulo de Moraes, rema-nescente do saudoso e importantíssimo grupo de teatro paulista Ponkã, que trabalhava com a junção de elementos do teatro oriental, so-bretudo japonês, a certas particularidades da cultura rural brasileira.

O espetáculo de concepção minimalista realiza-se num tablado dividido em três cores: vermelha (área que funciona quase como os

bastidores do teatro, onde o ator aguarda para entrar em cena); preta (área de circulação e de entrada e saída de cena); branca (quadra-do central, onde se desenvolvem as ações do espetáculo). Completam o dispositivo cênico, quatro tubos, onde os atores fazem a troca do simples e eficiente figurino. Essa disposição geométrica orienta e dirige a visão do espec-tador. Apesar dessa sofisticação formal, o es-petáculo atinge o público (mesmo aquele não acostumado à linguagem teatral), pela fluidez dos diálogos e pela graça, simpatia e esponta-neidade do quarteto responsável pelas perso-nagens das quatro cenas. Alinhavando essas cenas, um quinto ator interage com o público, ora como um apresentador de televisão, ora como um pregador evangélico. Uma, certa, timidez interpretativa de Johnny Jhon, que representa esses papéis impede uma maior comunicação com a platéia, o que seria alta-mente interessante e produtivo para o desen-volvimento do espetáculo.

Sendo um espetáculo concebido para apresentações na rua, talvez coubesse uma maior interatividade com a platéia, buscando uma cumplicidade maior com, por exemplo, as feministas que acabam com o machão barbu-do, ou com a jovem que domina o ladrão na primeira cena do espetáculo. Os atores, em diversos momentos dirigem-se diretamente ao público. Porém, falta aquela fisgada: que faria alguém tirar o corpo da cadeira e vibrar: “ES-TOU COM VOCÊS”.

Em tempo: a chuva só chegou nos últi-mos cinco minutos do espetáculo.... x

por José Cetra Filho, pesquisador de teatro.fotos: Augusto Paiva

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III. 11. O salto - O desafio da escuta sensível, no tempo da rua

A santa trindade do teatro de rua, sempre alardeada por Amir Haddad: bêbado, criança e cachorro, se presentificou, misturada à classe artística, na 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas na apresentação do dia 12/11, no Vale do Anhangabaú.

A reprise: O Salto do ator André Garcia Alvez, que se preparava em camarim aberto (expediente épico), teve o início modificado, devido à participação do Senhor Antônio Men-des, um morador de rua bêbado que exigia um real para sair de cena, acontecimento comum neste tipo de teatro que busca principalmente uma efetiva troca de experiências com o es-pectador.

De maneira muito engraçada, o palhaço Migué Brugelo Ditoefeito conduziu uma chuva de moedas dos espectadores, do alto do Via-duto do Chá, para pagar Antônio, que, antes de sair, “dividiu” 10% do seu lucro com o palhaço. Essa foi uma das várias interrupções que abri-lhantaram a reprise.

Antes da entrada, ao colocar o nariz sem qualquer cuidado e ironizando o ato, o ator questiona, numa crítica muito pertinente, à linha de palhaços psicologizados, que exi-gem diversos rituais para vestir e para tirar o nariz, mas anulam às vezes a crítica política e social, inerente ao arquétipo.

Incitando o público a cantar, o palha-ço fez entradas com diferentes músicas, ani-mando os espectadores e preparando-os para o grande número: pular três vezes, de olhos vendados, sem tirar os pés do banco. Ao final revela-se que são os pés do banco e não os do palhaço que não seriam tirados.

Não cabe aqui discutir apenas dramatur-gia (canovaccio neste caso) ou cenário e figuri-no, mas sim a sensibilidade do artista que, na rua, é obrigado a se adaptar a diversas situa-ções inesperadas. Com um humor que oscila-va do Branco ao Augusto, chegando às vezes ao bufão, o palhaço não ignorou nenhuma in-tervenção da platéia.

Porém, cada pequena intervenção transformava-se em outra cena, às vezes for-çadamente e por isso talvez o tempo, e aqui

falo principalmente do ritmo, ficou alongado, causando certo desinteresse de parte dos es-pectadores. É indispensável esta troca, e estes desvios só enriquecem o roteiro, mas não sem-pre. É preciso não perder de vista o tempo cô-mico que é o limite exato entre o riso e o tédio.

O teatro refuncionaliza o lugar da rua em espaço artístico. O artista não pode se es-quecer de que é ele que está interferindo na rua e não o contrário. Só digo isso porque es-tranhei o pedido do palhaço para que alguns trabalhadores, próximo ao local de apresenta-ção, que executavam um serviço, diminuíssem o barulho para não atrapalharem seu “salto”.

A escolha dos esquetes foi acertada e a condução de vários deles também. A maquia-gem, cenário e figurino eram bons e só ajudaram no jogo. Talvez o maior controle do tempo (crono-lógico e cômico) e um maior cuidado na interlo-cução com a platéia, que por uma ou duas vezes foi constrangida pelo ator ao invés de divertir, tra-riam maior qualidade ao número. x

por Natália Siufi, estudante do curso de Licencia-tura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP. Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.

foto: Augusto Paiva

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III. 12. O salto – A sensibilidade de um palhaço

Vale do Anhangabaú, uma tarde de terça--feira, um dia de sol entre nuvens. Na praça extensa, logo abaixo do Viaduto do Chá, um samba tocava alto. Nesse mesmo lugar uma roda de pessoas aguardava para assistir a um espetáculo de rua.

“Esse é o meu camarim” o ator dizia ao se maquiar, “na rua mesmo”. O espetáculo foi batizado de um esquete que deu o nome ao próprio espetáculo: O Salto. A promessa do pa-lhaço era de dar três saltos de olhos vendados sem tirar os pés do banco. O que era para ser breve, no fim, teve duração de 1 hora e 15 mi-nutos, o que resultou no esgotamento do riso da platéia.

Durante a apresentação, o palhaço não ignorava qualquer reação da platéia, sempre criava um jogo com quem estivesse disposto a brincar. Não lhe faltou, em momento algum, percepção de tudo o que acontecia com a pla-téia; faltou, porém, algumas vezes sensibilida-de de como lidar com elas. É muito delicado fa-lar do outro sem falar de si. Um palhaço, antes de tudo, é aquele que aponta, ou seja, a graça está nele se ridicularizar e não ao outro.

Tratando-se de um espetáculo na rua, em pleno horário comercial, no centro de São Paulo, parece que André Garcia Alvez (que tam-bém assina o texto e a direção do espetáculo) pouco deu importância aos trabalhadores que estavam logo ao lado exercendo suas funções.

O palhaço pediu durante a apresentação, que os mesmo parassem de fazer barulho, pois ele precisava de concentração. Sendo essa atitu-de uma brincadeira ou não, revela a idéia de que, para ele, a apresentação de seu número fosse mais importante do que o serviço dos trabalhadores.

Após inúmeras intervenções, por fim, ele cumpriu sua promessa e deixou claro que o que estava sendo apresentado era um traba-lho artístico no qual ele tirava sustento para sua família, portanto, reforçava ao público de contribuir com dinheiro. Aqueles que davam mais dinheiro recebiam brindes: nariz de pa-lhaço, chaveiro e broche. Estratégia bem mon-tada e de bom gosto, mas pecou ao se indig-nar com aqueles que deram poucas moedas ou nenhuma.

No trabalho de palhaço pode-se encon-trar, também, uma crítica aos vícios sociais e a diversão para todos. Ele é cruel, não para refor-çar valores da hegemonia burguesa e sim para subvertê-la. Ele é sensível não para ser amado e sim para amar ao outro. Ele não causa o riso pelo riso e não aponta, mas questiona. x

Juliana Arapiraca, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP.

fotos: Augusto Paiva

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III. 12. O salto – A sensibilidade de um palhaço III. 13. Viva Malasartes! Histórias de um povo de algum lugar – Desconstruindo mitos

Ao desconstruir o mito do herói popular brasileiro Pedro Malasartes destruindo-o e fa-zendo-o renascer através de outros mitos de caráter universal (Fausto e Fênix, por exemplo), o espetáculo Viva Malasartes! Histórias de um povo de algum lugar; exalta o suposto poder que o povo teria para enfrentar e destruir os poderosos que o exploram. Esse caráter popu-lista, tão em voga nos anos 1960 e 1970, mos-tra-se, infelizmente nos dias hoje, simplista e um tanto utópico. Se, em muitos momentos, no conteúdo, o espetáculo tem esse caráter ul-trapassado e até panfletário, na forma, ele flui e agrada ao público a que se destina.

O espetáculo realiza-se em dois planos: o mítico e o cotidiano. As cenas do cotidiano que procuram revelar e denunciar os dramas do homem contemporâneo foram, escritas por vários dramaturgos, a partir de uma oficina coordenada pelo diretor do espetáculo Calixto de Inhamuns (que substituiu Rubéns de Brito, falecido durante o processo de montagem). Essas cenas são intercaladas com as míticas, em que são mostradas a ascensão, a queda e a ressurreição do mito popular. Há um desnível dramatúrgico muito grande entre os dois pla-nos e o espetáculo ressente-se disso, perden-do seu ritmo, cada vez que o público é chama-do “de lado”, para ouvir uma das histórias dos dias atuais. Os mitos são suficientemente for-tes para mostrar que a barra pesada dos dias de hoje pode ser administrada e até mudada. Em relação ao texto, cabe ainda comentar a estranheza causada pelo uso de certa forma empoada e sofisticada (uso da 2ª pessoa no tratamento, entre outras coisas), utilizada pela defensora do nosso herói Pedro Malasartes.

O elenco do espetáculo revela energia e frescor juvenil contagiantes, e só está menos à vontade nas cenas do cotidiano, parecen-do não acreditar no que está dizendo. Desta-

Infeliz o país que precisa de heróis.

Bertolt BRECHT. Galileu Galilei.

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que para o simpático e clownesco jovem que interpreta Malasartes, revelando uma habili-dade fundamental para um ator de teatro de rua, que é saber interagir com simpatia com as participações nem sempre convenientes do público.

O espetáculo se estende por mais de hora e meia, resultando um pouco longo para uma obra de rua. Para quê dois finais, prati-camente iguais? O povo enfrenta Mefistófeles para salvar Malasartes através de uma apo-teótica batucada, perde a parada e volta com outro mito brasileiro, o Boitatá, para um novo embate de que sai vencedor. O primeiro final é muito mais catártico que o segundo e o espe-táculo ganharia muito se terminasse ali.

Ressaltem-se ainda os simples e colori-dos figurinos, a bela e eficiente trilha sonora e o cuidado com a visibilidade e a audição do público, através do uso de praticáveis e pernas de pau. Este último aspecto é muitas vezes ne-gligenciado por aqueles que fazem teatro de rua, fazendo o público andar de lá para cá ad-mirando a nuca do espectador que está à sua frente e ouvindo fragmentos do que os atores dizem.

E viva Malasartes!!! Ainda somos um povo infeliz e precisamos de heróis. x

por José Cetra, pesquisador de teatro.

Passando embaixo do Viaduto do Chá, no final da tarde do que poderia ser somente mais uma quinta-feira, observava-se uma mo-vimentação especial. Tratava-se dos artistas do Núcleo Pavanelli, que se aqueciam para o espetáculo que ali se iniciaria em breve. No entanto, olhando bem, podia-se constatar que não eram apenas eles que se preparavam, com jogos e vigorosos movimentos. Em meio aos artistas, alguns moradores de rua partici-pavam contentes das atividades, dançando, jogando, movimentando-se pelo espaço que conhecem tanto. Pareciam sentir-se acolhidos por parte do grupo e demonstravam não que-rer sair dali até o término do espetáculo. Nós, público sentado imóvel e ansioso, observáva-mos, divertidos e invejosos, o que seria ape-nas um dos muitos momentos de interação, não apenas efetiva, mas íntima, com a platéia, durante o espetáculo Viva Malasartes! Histó-rias de um Povo de Algum Lugar.

O espetáculo nasceu de discussões co-letivas acerca da realidade política e social brasileira, que culminaram na questão da necessidade de heróis por parte de um povo. Para abordar o tema, o grupo optou por duas narrativas paralelas: uma mítica e outra coti-diana. A primeira narrativa mostra a saga do astuto Pedro Malasartes, homem do povo que acaba deixando-se levar pelas maravilhas do consumo e do poder, dados a ele através do uso de um cartão de crédito ilimitado por um emissário dos “Senhores do Mundo”. Esse ho-mem torna-se um suposto herói do povo, povo esse que vive as situações da segunda linha dramatúrgica, a narrativa cotidiana, a qual mostra as difíceis situações de luta diária pela sobrevivência, vividas pelos que esperam a in-tervenção do “herói” Malasartes. Envolvido em suas agruras, Pedro Malasartes, no entanto, esquece-se dos que dele depende; tão encan-tado está com as maravilhas proporcionadas pela riqueza. O texto é coletivo e colaborativo, e foi coordenado por Calixto de Inhamuns, tam-bém diretor do espetáculo (em substituição a Rubéns de Brito, falecido durante o processo de montagem).

III. 14. Viva Malasartes! Histórias de um Povo de Algum Lugar – Viva Malasartes! Reabrindo Feridas e Sorrisos

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O contato próximo com a platéia per-mitia que nos sentíssemos ao mesmo tempo conduzidos e livres, numa certa itinerância (processionalidade), para observar as diferen-tes cenas que brotavam ora aqui ora ali, das mais diversas formas, de maneira que essa movimentação nos manteve vivos e atentos. A história foi abordada por intermédio de um humor que combinava, em doses equilibra-das, a ingenuidade e a malícia, atingindo, pelo que se pode constatar, a totalidade do públi-co bastante diverso, presente num espetácu-lo de rua. Além disso, os atores incluíram de forma tão calorosa os presentes e contaram com tanta fé a sua história, que era comum ver muitos semblantes tomados de doce en-cantamento, além de momentos preciosos de intervenção de muitos dos espectadores nas ações da peça. Assim, embora a peça tenha resultado um pouco longa para a circunstân-cia, o público não apenas manteve-se no local como aumentou em número desde o início ao fim do espetáculo.

As cenas que constituíam o plano parale-lo, aquele do cotidiano, dispersavam um pou-co a atenção e o público, porque faziam cair o ritmo até então contagiante do espetáculo. Tais esquetes, dramaturgicamente, possuíam um conteúdo mais simplista, e por vezes re-dundavam em pregões excessivamente didá-ticos. O público decerto já se sentia impelido à ação ao presenciar tantas situações que provocavam à crítica e à reflexão; não era ne-cessário, e parecia mesmo subestimá-los, que se fosse didático em relação aos problemas e necessidades públicas, que a platéia conhecia tão bem. Também no concernente a essas ce-nas, não parecia que elas tivessem recebido o mesmo cuidado e vigor que as demais, em relação à visibilidade e à escuta, e no que se referia à interpretação e ao texto.

Havia o mito apresentado, um represen-tante dos Senhores do Mundo e uma represen-tante do Povo, personificados vivamente por atores que se apresentavam com pernas de pau. O representante dos Senhores do Mundo, o Palhaço do Sarcasmo, era nada menos do que o próprio demônio – conceito de divertida tendenciosidade; este tinha uma personalida-de divertida (além de sarcástica) e linguagem popular. A representante do Povo, ao contrário, apresentava gestos afetados, rigidez estóica e uma fala empolada. Os conceitos confundiam--se um pouco na mente espectadora: afinal,

quem se parecia mais com o povo, quem o al-cançava mais? Se os Senhores do Mundo ten-tam seduzir parecendo-se mais com o Povo, então deve ser porque o Povo busca um líder próximo a ele. Sendo assim, a “entidade” míti-ca que o simboliza, apresentando-se daquela forma, reúne elementos que provocariam, teo-ricamente, a rejeição, e não a adesão popular. Creio que pareceria mais coerente se as duas personificações se aproximassem do popular; isso tornaria, aliás, mais difícil para o povo dis-cernir o que é melhor... afinal não é essa uma de nossas grandes dificuldades?

Ademais, além da música e da dança contagiantes e dos figurinos, simples, mas be-los e funcionais, o Núcleo Pavanelli, através desse trabalho, nos presenteou com belíssi-mas imagens, tanto em estética quanto em significado. Nos fez crer, decerto como crêem eles, num povo que sempre retorna de suas quedas para lutar melhor quando imbuídos da força de sua própria cultura, reunidos contra um inimigo comum, mostra-nos a comunidade que encontra forças, para salvar a si própria. Na mesma medida em que se torna forte, para a difícil tarefa de abandonar a espera pela sal-vação vinda de outrem.

Ao final do espetáculo, a expressão das pessoas dizia muito mais do que os seus aplau-sos. Viva Malasartes! Histórias de um Povo de Algum Lugar foi, sem dúvida, um acontecimen-to intenso e colorido para aqueles transeuntes que não imaginariam, quando acordaram de manhã, que em plena quinta-feira, passando distraídos debaixo de um viaduto, tropeçariam em seu próprio retrato. x

por Isabela Penov, estudante de Licenciatura em Artes – Teatro, Instituto de Artes da UNESP.

foto: Augusto Paiva

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III. 15. Tu decides 2 – What a wonderful world

A Cia. Circo Teatro Ybimarã, que em Tupi significa “terra sem males”, é formada por ex--integrantes do Teatro Ventoforte. Trata-se de um grupo que não teve vínculos com cursos universitários de teatro ou escolas de circo, mas que desenvolve um trabalho de enorme sofisticação, lançando mão de sátiras a mo-delos eruditos de apresentações circenses e teatrais.

Para a 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, o grupo apresentou o espetáculo Tu Decides 2, em que uma companhia de circo estrangeira, a Camaleón (formada por Hernán Hernandez, Hernandez Hernán e Hernandito Hernandito) apresenta a história melodramáti-ca do casal Janete e Getulión. Os atores apre-sentam a trama e é o público quem decide o que acontece com as personagens por meio de uma votação feita com palmas, medidas por uma engenhoca batizada de “parmôme-tro”, medida por Hernandito (Eliane Weinfur-ter).

Janete e Getulión são tipos sociais bem marcados. O marido, motorista de caminhão, gosta de futebol e faz o tipo machão que ao primeiro enfrentamento se acovarda. A mu-lher é lavadeira e passadeira, dona de casa, aparentemente submissa ao marido, mas que subverte o papel social a ela conferido através de uma traição, que acontece com a ajuda de um homem da platéia escolhido por ela.

Janete trai Getulión e o público decide se o marido descobrirá ou não a traição e se o casal viverá feliz para sempre. O público deci-de pela traição, pela descoberta do marido e pelo final feliz. Não há texto escrito, somente um roteiro de ações (canovaccio). A apresenta-ção desenvolve-se por intermédio do improvi-so, que conta inclusive com a participação da platéia.

Os atores Fernando Cavalcanti (Janete) e Marllon Chaves (Getulión) interagem com os espectadores em diversos momentos. Janete assedia os homens da platéia, ressaltando al-gumas das suas peculiaridades, como a bar-ba, a idade ou a camiseta do time de futebol. A escolha é improvisada e o eleito do dia foi

um jovem que usava uma camiseta do Corin-thians, o que abriu espaço para que várias pia-das fossem incluídas ao longo do espetáculo, inclusive por parte de quem assistia.

A interpretação dos atores é permea-da de gestual exagerado e o trabalho de voz lembra os excessos de sentimentalismo das brigas de telenovelas, em tom de sátira. Tudo é anti-naturalista; desde os figurinos, capas brilhantes dos Hernández sobre roupas de fu-tebol verde aos adereços: o “parmômetro”, um boné de chifres é uma cúpula de abajur, usada para vestir o espectador.

A platéia, como é recorrente no teatro de rua, dá seu espetáculo à parte. Na cena de briga, um espectador de aparência semelhan-te à do presidente Lula, grita: “Bate devagar”, e um hippie de barbicha fica envergonhado quando assediado por Janete. O espetáculo encaixa-se com perfeição no espaço público. O trabalho de voz é poderoso e não fica dimi-nuído pelo ruído do ambiente. O exagero dos gestos leva ao riso.

Tu Decides 2 é uma peça dinâmica que atende com maestria à vontade popular. Exis-te abertura para que os espectadores tenham voz ativa dentro da história, e participem como atuante. Além da diversão, há crítica explíci-ta às companhias estrangeiras de circo e às formas burguesas de teatro, como formas de interpretação dramáticas e a produções recor-rentes nos canais abertos de televisão. E tudo isso com trilha sonora de arrasar corações como o final feliz ao som de What a wonderful world, imortalizada por Louis Armstrong. x

por Ana Cecília Davids, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP e do curso de Jornalismo, da PUC-SP.

fotos: Augusto Paiva

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III. 16. Esperando na Rodô. Sítio do Jeca - Os versos singelos do clown de “Pira”

A delícia dos espetáculos de rua é que eles começam de um sopro. Quando menos se espera, alguma coisa acontece em algum confim. É uma surpresa. E o foco vai se criando e o espaço de representação se configurando. Uma personagem, ao longe, começa a cami-nhar, cumprimentar e a reunir em torno de si pessoas comuns. Ingênuo e aberto. Caipira e clown. O Jeca.

Ele vem da roça para a cidade grande. Chega cumprimentando os homens sentados do Vale do Anhangabaú. Homens diversos. Distingue-se de longe somente uma mala e o nariz vermelho, máscara mínima. Dá-lhe cora-gem! O clown, tão despido de couraças e de olhar livre, frente ao desconhecido. Desfilando poesia tragicômica pelo Vale do Anhangabaú. “Clowmpira”, de Pirassununga, interior de São Paulo.

Chegando na rodoviária, cenário da peça Esperando na Rodô, desencontrado de seu primo, de quem só se sabe as palavras li-das em uma carta, Jeca tem de esperar... E o que faz enquanto espera? Come uma banana, liga o rádio e toma aulas de como virar estrela. Vindo de um mundo estranho àquele em que se encontra, por ouvir o rádio e obedecer à voz onipresente que diz como ele deve ser e agir para se tornar estrela, acaba preso por dois policiais.

O clowmpira cumpre uma trajetória. Como tantos outros que vêm para a cidade para virarem estrelas, tirarem a roupa por di-nheiro ou trabalharem nos buracos das cons-truções, como os tatus. Esperando na rodô é uma das peças presentes na 3a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, e trata-se de uma pesquisa iniciada pelo ator Reinaldo Facchini com o clown e com o caipira, que conhece do seu convívio com a população da cidade de Pi-rassununga.

No cenário, um relógio parado e um banco. Espaço de passagem. Meio de cami-nho. Em uma placa está escrito Rodoviária. O ponto de encontro de duas vias: a do porvir e a daquela que já não é mais. O Jeca levanta uma placa para se apresentar. Um dos lados, vazio. Ele aponta o vazio, e aponta para si mesmo

naquele espaço em que: “Artista entra mudo e sai pelado.” Quase não há fala. Muitos gestos e os objetos transformam-se com poesia.

O Jeca solitário come ao lado do bone-co que carrega na mala, réplica de si próprio. Personagem da personagem, no cenário do cenário, em um espetáculo carregado de me-tateatro. Camadas e mais camadas de sentido armando o destino do Jeca, que depois de ter concluído o curso para virar estrela, fica sem o que fazer.

...E lembra, com ingenuidade, das palavras

do primo: “Na capitar, quem tira a roupa ganha dinheiro.”. O clowmpira arma um strip tease e é levado em cana.

Havia Jecas na platéia? Não soube de Jecas, mas de um peruano e um catarinense que dividiam uma garrafa de vinho. E de um homem que pedia dois reais: um para comida e outro para a cachaça - peça dentro da peça, e gritava para o Jeca: “Cachaceiro!”, sendo reprimido por outro homem que queria saber da história do clowmpira. Foram muitas vidas juntas, espectadoras de uma peça comovente, bem acabada, singela e profunda. x

por Ana Cecília Davids, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – teatro, do Instituto de Artes da UNESP, e de Jornalismo – PUC-SP.

foto: Augusto Paiva

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III. 17. Esperando na Rodô. Sítio do Jeca. Coreografia (do) interior

O espetáculo começa e quase ninguém percebe. Cenário montado, música e um palha-ço perdido no Vale do Anhangabaú. “Onde?”. Distante de sua “lona-rodoviária”, lá estava ele, escondido na paisagem urbana, entre pombas, transeuntes, moradores de rua, garo-tos de skate... Propondo seu jogo, lançando a rede, chamando público. E a cada um com o qual interagia, expondo-se como é, figura paté-tica e simplória – expondo-se como somos –, com seu chapéu de palha, seu nariz vermelho, sua roupa singela, seus gestos ridículos, pare-cia manifestar, tal qual um Carlos Drummond de Andrade, o seguinte enigma, em Procura da poesia: “Trouxeste a chave?”.

Mesmo já nos limites espaciais do que seria um palco, na forma de uma semi-arena, o palhaço ainda disputa atenção com o univer-so multifacetado daquele microcosmo do Cen-tro de São Paulo – ambiente de múltiplas vo-zes e presenças, a rua, coisa pública. A partir da pantomima do artista em cena, um Senhor, que intervinha com um discurso parcialmente inteligível, espécie de solilóquio próprio, ao ser repreendido por outro, respondeu: “Teatro é bom, eu sei. (pausa) Ó o Jeca Tatu aí. Isso aí é coreografia muda!”, referindo-se à persona-gem do espetáculo Esperando na Rodô – Sítio do Jeca.

Jeca, além do antológico nome do cai-pira paulista, é, também, aquele com o qual o palhaço do ator Reinaldo Facchini foi batizado. O ator iniciou sua carreira em Pirassununga, no interior do Estado, cidade de origem tam-bém de sua personagem. A mala do Jeca per-manece aberta durante boa parte da apresen-tação: um mundo íntimo exposto a todos. Nela, uma piada quase bairrista: um recorte onde se lê “Já tem americano achando que a capital do Brasil é Pirassununga.” A referência ao que

é estrangeiro não pararia por aí. Ainda no in-terior da bagagem deste palhaço, que passa todo o tempo em uma sala de espera de rodo-viária, nota-se uma foto de Mazzaropi, um dos palhaços mais singulares da cultura popular: o imortalizador do Jeca no cinema nacional.

Com isso, o universo pelo qual o Jeca transita, ganha contornos mais claros. O espe-táculo faz parte do projeto “Clownpira”, como define o próprio ator, que compreende uma pesquisa híbrida entre a estética e a poética do clown e a do caipira, numa investigação dos costumes e tradições da população pirassu-nunguense, com atenção especial aos mora-dores do bairro de Itupeva. Por meio dessa fu-são, é possível entender este trabalho de ator a partir da idéia do palhaço duplo. Ou seja, além de um estado de clown, há a proposição da linguagem do caipira, compreendido aqui como um palhaço em essência. A leitura, por-tanto, da personagem pode ser feita com base no pressuposto de que há um hipercódigo a ser interpretado em suas diferentes camadas de sentido.

De um lado, o clown, contrário a toda idéia de acabamento e perfeição. Do outro, o caipira, com sua postura rústica e simples. Igualmente figuras marginais e ineficientes dentro de um contexto hegemônico de merca-do e produtividade, são também espontâneas e ingênuas na manifestação de uma lógica particular. Figuras, essencialmente éticas, e li-gadas à expressão popular tornam-se cômicas no momento em que assumem a fraqueza e o ridículo humanos. Além disso, a proposta con-fere ao estudo da linguagem clownesca uma forma à brasileira, no registro de alguém cons-ciente de sua origem. Tal encontro de univer-sos temáticos mostra-se imensamente feliz, ao ampliar a potência de ambos.

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Alberto CAEIRO/Fernando PESSOA. O Tejo é mais belo.

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Por fim, a alusão à peça Esperando Go-dot, de Samuel Beckett, é um desafio diverti-do. Parece dizer respeito tanto à idéia de que Jeca perdura à espera de um ilusório sucesso na cidade grande, numa chave trágica de en-tendimento – há um relógio parado em cena, o que intensifica essa sensação –, quanto a uma típica piada de palhaço, que se apropria de referências eruditas para justamente zom-bar delas. Em determinado momento do espe-táculo, Jeca está se exercitando para ganhar a vida na capital como artista/modelo/apresen-tador. Isso ocorre por meio de um áudio-curso, em que o “professor”, representado apenas por uma voz, ensina de forma unilateral téc-nicas risíveis ao seu “aluno”. Em um exercício de dança, a voz menciona diversos passos do

balé clássico com nomes em francês, numa sátira ao tom pernóstico daquilo que é preten-samente ilustrado. x

por Daniela Landin, estudante do curso de Licen-ciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP, jornalista formada pela Faculdade Casper Líbero.

foto: Augusto Paiva

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III. 18. A Brava - A Brava venceu!

Na 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Ro-jas no Anhangabaú, logo após um rápido pró-logo, que se encerra num caráter processional, em que o público é conduzido ao real local da cena, após presenciar a “bruxa” Joana acor-rentada, a Brava Companhia anunciou (expe-diente épico) o início oficial de seu espetáculo: A Brava.

Valente, intrépida, valorosa, selvagem. Alguns dos significados do dicionário para bra-va. Palavra, aliás, muito bem escolhida para representar esta Companhia. A mesma pala-vra escrita pelos atores, nos rostos uns dos outros, no início do espetáculo, quando, de maneira belíssima, concentram-se para entrar em cena.

Digo isso porque invadir a rua, espaço de grande competição sonora e visual – e que necessita de uma interlocução constante e sensível com o público para que funcione – já é tarefa ousada. A ousadia se amplia, princi-palmente, porque os integrantes da Cia. conse-guiram esse feito sem abrir mão da qualidade estética e do trabalho de ator: alcançando um grau de originalidade na tão explorada história de Joana d’Arc. Além disso, é preciso ser valen-te para misturar rock, reggae, rap, ciranda e outros estilos musicais em uma mesma peça, sem “perder a mão”. Ou para fazer inserções cômicas em momentos cruciais da narrativa, como os da execução da personagem princi-pal.

Queria ressaltar a excelente perfor-mance corporal dos atores que emociona o público, em diversos momentos, apenas com o trabalho das imagens construídas corporal-mente. Um destaque para a cena em que Már-cio Rodrigues e Ademir de Almeida represen-tam uma evolução histórica da guerra.

Passeando por diversos estilos, do pop à cultura popular – possibilidade absoluta-mente plausível e mesmo fundante no teatro épico – os criadores do espetáculo não “eco-nomizam” nas sátiras e críticas, com grande humor, como no nome dos soldados: Mac e Donalds. Do mesmo modo, lançam mão de diversos recursos, sobretudo aqueles ligados

ao gestus brechtiano. Em tese, trata-se de um conceito criado por Bertolt Brecht, em que há uma materialização da contradição entre a fala e o gesto do ator. Ex: Quando o rei colo-ca a coroa e dá um gritinho, fazendo um gesto afeminado, em contradição ao poder e força, representada pela imagem do monarca.

As músicas, permanentemente utiliza-das, poderiam ser trabalhadas melhor, no con-cernente ao arranjo e composição das letras. Isso, entretanto, não se problematiza em fun-ção da boa conjunção da utilização de todos os outros elementos, como: cenário de obje-tos ressignificados; figurino de grande impac-to visual; iluminação com tochas de fogo em momentos precisos; impecável interpretação, principalmente dos dois atores já menciona-dos e de Rafaela Carneiro.

A atuação menos presente do ator Fá-bio Resende deve-se, possivelmente, ao fato de ele ser o diretor do espetáculo. Sua partici-pação em cena não impossibilitou o excelente trabalho de orquestração sensível, criativa e de grande ousadia.

Trinta e cinco minutos antes de termi-nar o espetáculo; de acordo com os atores do grupo, cai uma forte chuva. A platéia acompa-nha os atores e realoca-se embaixo do viaduto do chá. Ao final da peça, com o público bas-tante entusiasmado, acompanha com palmas a bela música narrativa que encerra a peça afirmando: A Brava venceu! E aqui acrescento: O bom teatro venceu! x

por Natália Siufi, estudante do curso de Licencia-tura em Artes – Teatro, no Instituto de Artes da UNESP. Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.

foto: Augusto Paiva

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III. 19. A Brava

Como era de se esperar a Brava Compa-nhia não se intimidou com a chuva. E, aque-les a quem a água não espantou, assistiram a um espetáculo que conta muito mais do que a saga de Joana d’Arc. A Brava Companhia, cuja origem e sede localizam-se na Zona Sul de São Paulo, possui um trabalho multiplica-dor e ativo nas zonas periféricas da cidade, e completa neste ano dez anos de existência. Na 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, os integrantes da Cia. mostraram o resultado de mais de um ano de trabalho numa montagem fundamentalmente épica, inspirada na histó-ria da corajosa moça francesa que possuía o privilégio de ouvir suas próprias vozes: Joana d’Arc.

O trabalho dos atores é vigoroso e insti-gante, além de conter a prontidão imprescindí-vel ao teatro feito na rua: os atores incluíram todos os imprevistos ocorridos em suas ações cênicas muito criativamente. Dentre os impre-vistos incômodos, pode ser citado o forte tem-poral, que exigiu muito jogo de cintura; den-tre os mais encantadores, merece destaque aquele em que uma catadora de lixo, passan-do casualmente pelo local, completou a músi-ca que cantava o rei, interpretado por Márcio Rodrigues. Essa catadora cantou um trecho da ópera Fígaro, e ganhou entusiasmados aplau-sos da platéia... (Sim, as ruas têm tesouros escondidos!). A interlocução com o público foi efetiva. Tímida, talvez, em alguns momentos em que a troca de experiências poderia ter sido mais íntima e efetiva.

A concepção do espetáculo une o pop e o popular, da música aos figurinos. A direção musical - de Fábio Resende, que é também o diretor do espetáculo – é ousada, e mistu-ra diversas referências, de ritmos nordestinos ao rock “pesado”; a execução é dos próprios atores. Os figurinos, belos e funcionais, resol-vem com poucos adereços a representação dos signos essenciais à obra, e ganham o seu tom mais brasileiro graças a um minucioso trabalho artesanal. O cenário é também muito funcional, e faz os palácios brilharem mais aos nossos olhos... ao, sucateá-los.

A dramaturgia é coletiva e competente. O riso está sempre presente, mas unido ou se-guido sempre do espasmo, do nó na garganta; é o riso que nos guia pela saga, nossa e de Joana, ao mais profundo de nós. Entretanto, algumas das tiradas cômicas não contemplam a totalidade das realidades que se reuniam na-quela platéia. Foi possível notar que vários ali presentes sentiram-se perdidos por alguns ins-tantes, simplesmente por não identificar mar-cas de whisky ou personagens de livros como Onde Está Wally? Felizmente, tais ruídos não foram constantes a ponto de impedir que, para todos: o espetáculo se configurasse, além de tudo, em um acontecimento prazeroso, diver-tido, crítico. O texto, por seu dinamismo, pega a todos por uma mão sutil, mas fortemente de maneira que torna difícil querer soltar.

“A guerra, a luta, a contenda /batalha, briga e discórdia /o inimigo, o veneno /men-tira, rei e governo /a praga, a dor, a doença /traição, ódio e inveja /A Brava venceu!” Naque-le dia chuvoso e frio, a Brava, da Brava Com-panhia conseguiu aquecer-nos com um ímpeto de força e coragem diante da inconstância da coroa dos reis. Depois dos aplausos, mesmo em meio aos costumeiros barulhos da cidade, foi possível seguir pelas ruas tal como Joana: escutando vozes preciosas... x

por Isabela Penov, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP.

foto: Augusto Paiva

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III. 20. A folia no Terreiro do Seu Mané Pacaru – Sol de guarda-chuvas esperando o mamulengo

Na 3ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, a Cia. Mamulengo da Folia, composta pelo artista Danilo Cavalcante, acompanhada pelo Trio Agrestino, apresentou-se para um público pequeno, mas muito participante. Se-gundo ele, a Cia. surgiu da preocupação com a extinção do teatro popular de bonecos do nor-deste (o mamulengo), uma vez que, segundo o que ele conhece, só existe tal manifestação apenas em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Na platéia, alguns guarda-chuvas aber-tos para barrar o sol forte. Entre nós, o ator re-quisitava algum ajudante para tocar triângulo, porque o zabumbeiro e o sanfoneiro estavam sem seu acompanhante. Imprevistos sempre comuns no teatro de rua e que o tornam mais rico no que diz respeito a uma real troca de ex-periências. O espetáculo começou aí: todos se divertiram ao ver as tentativas dos voluntários de acertar o ritmo com o trio, até que o toca-dor, enfim, chegasse.

O Trio Agrestino (grupo nascido em 1969) animou com forró as lacunas entre as saídas e entradas das personagens, muito bem conduzidas pelo ator. A grande maioria dos bonecos era de luva (alguns montados em animais de madeira) e os outros de haste (articulados). Um único boneco de pano (uma grande cobra) surgiu quase no final do enredo. Os bonecos, muito bem manipulados, dialoga-vam com a platéia o tempo todo. Impressio-nante como o artista conseguia desdobrar-se entre os vários bonecos, conduzir a história e ainda perceber, de dentro da barraca, as figu-ras da platéia com quem podia brincar. Todas as intervenções transformaram-se em mote para piadas improvisadas, muito bem esco-lhidas. Versatilidade, improviso e generosida-de. Características comuns ao artista popular, que tem de estar presente o tempo todo, com atenção e escuta para não deixar o jogo cair ou mesmo esmorecer.

Marieta, filha de Seu Mané Pacaru, ce-lebra seu casamento com o vaqueiro Benedito,

quando chega o, “coisa ruim”, que tenta im-pedir a cerimônia. Neste enredo, muitos tipos sociais são apresentados à platéia, rechean-do a história. Danilo Cavalcante deu conta do recado, com grande maestria, recuperando o espírito e o fazer da cultura popular, numa fá-bula cheia de críticas e sátiras a esta nossa sociedade.

Algumas personagens foram suprimi-das, pois o sol estava muito forte e o artista

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teve a sensibilidade e a generosidade de per-ceber e encurtar sua história. Os guarda-chu-vas fecharam-se, quentes e aliviados, não os mesmos em uma próxima chuva, e cheios de um gostinho de quero mais. x

por Natália Siufi, estudante do curso de Licencia-tura em Artes – Teatro, no Instituto de Artes da UNESP. Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.

fotos: Augusto Paiva

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III. 21. Dupla de dois - Poesia em ação

“É hora de espetáculo, não é para brin-car aqui!”, ordena, pela terceira vez, já quase em tom de súplica. Não se trata de um pai ralhando com seu filho, tampouco um irmão mais velho repreendendo o mais novo, apesar de ser uma fala de alguém que detém poder sobre outro. Nesse caso, um poder relativo. No contexto de um espetáculo de palhaços, a ori-gem da fala no imperativo tende a ser a de um clown Branco para um clown Augusto. De fato.

Estamos, portanto, diante de um espetá-culo de palhaços que segue arquetipicamente uma estrutura que remonta às origens da com-media dell’arte, em que chamava a atenção à presença de dois servos, os zanni, que provo-cavam um sem-número de situações cômicas, seja por trapalhadas, escatologias ou pelos próprios trejeitos. A dupla que representava esta tradição da comédia popular naquela tarde de quinta-feira, no Centro de São Paulo,

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eram os atores Marco Ponce e Erich Santana, da Cia. Circo de Trapo.

Erich é o Augusto, bobo e eterno perde-dor, emocional e ingênuo. Já Marco nos apre-senta o seu Branco, símbolo do patrão e do intelectual, ou seja, daquele que manda e tem as idéias, também chamado de “escada”, por ser o palhaço que alimenta a piada do outro. Lembrando, em termos físicos e de comporta-mento, a dupla Hardy e Laurel, conhecida por O Gordo e o Magro, Marco está sempre às vol-tas com as confusões provocadas por seu par-ceiro, Erich que pensa apenas em se divertir. Nesse sentido, o nome do espetáculo, acerta-damente tautológico, faz pleno sentido: Dupla de dois.

Deste embate, surgem inúmeras situa-ções cômicas, com destaque para os números musicais. A trilha sonora se mostra marcante desde o início do espetáculo, com a chegada da dupla de palhaços. A idéia é brincar com o pressuposto de que eles viajam mundo afora mostrando suas habilidades – parte do cená-rio é composto por um suporte com imagens, alteradas de forma propositalmente grosseira, em que os palhaços são vistos, nos mais va-riados lugares do globo e com diferentes per-sonalidades, como o Dalai Lama, por exemplo.

Nesse momento, somos embalados por dois dos maiores clássicos da música fran-cesa – Ne me quitte pas (de Jacques Brel) seguida de Non, je ne regrette rien (de Edith Piaf). Contrastando com o efeito sublime das canções eles: mala nas mãos e emoção cari-catural, concebem gestos largos e passionais, com direito a abraços em quem estiver por perto. Este primeiro contato com o público se dá como se os palhaços estivessem chegan-do de mais uma viagem internacional para um novo espetáculo, mas é também o momento em que se dá o início da relação com o outro, tão cara ao teatro de rua.

Outra situação em que há uma busca pelo sublime seguida de sua respectiva quebra ocorre em um número de balé com as mãos. Aqui, não eram os pés que vestiam meias e sa-patilhas, mas as mãos de Erich Santana, que produziram “passos”, em uma bela cena. A ruptura se dá com a tentativa ingênua – bem ao sabor do clown – de atribuir um sentido à

imagem, em que Marco ergue placas com di-zeres como “graça” ou “tensão”, dependendo da habilidade demonstrada pela “bailarina”.

Tudo ao som de uma trilha sonora deli-ciosamente heterogênea. A partir da primeira dificuldade a ser solucionada pela dupla – hastear a bandeira com o nome da Compa-nhia – ocorrem diversos números circenses, entre acrobacias e malabarismos, musicados por um inusitado repertório, de Ray Charles a Menudos, passando até por Locomia, banda espanhola que fez sucesso em rádios comer-ciais no início da década de 1990. Com isso, o imaginário do público é acionado, o que reper-cute, mais uma vez, em efeito cômico.

A Cia. Circo de Trapo surgiu como reflexo do desejo em investigar a linguagem do circo, do palhaço e do teatro de rua. Desta pesquisa, resultou seu primeiro trabalho, Um, dois e três, de 2002. Posteriormente, o interesse em pes-quisar a literatura infanto-juvenil fez com que os artistas ocupassem a Biblioteca Municipal Pau-lo Setúbal, localizada na Vila Formosa, bairro da Zona Leste da capital onde, vêm aprofundando estudos na área do teatro popular. x

- por Daniela Landin, estudante do curso de Li-cenciatura em Artes – Teatro, do Instituto de Artes da UNESP, jornalista formada na Faculdade Casper Líbero.

foto: Joca Duarte

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III. 22. O cabra que matou as cabras – Castiga o falo que o “Nu Escuro” vem aí

Manhã de sol em São Paulo. O bonito e original cenário em tom bege está natural-mente iluminado pelo astro rei. Enquanto isso os jovens astros reis de Goiânia preparam-se para entrar em cena e iluminar ainda mais a bela manhã. Na platéia, habitantes do Vale do Anhangabaú, pessoal ligado ao teatro e uma humilde mãe carregando o seu bebê. Exageros e licenças poéticas à parte foi realmente muito prazeroso assistir ao simpático, mas não isen-to de problemas, espetáculo.

O texto é baseado na farsa medieval A farsa do advogado Pathelin, de autor desco-nhecido, aclimatada com inserções de ele-mentos da cultura popular brasileira, princi-palmente daquela nordestina. O espetáculo foi concebido em processo colaborativo, mas quem assina a dramaturgia é o diretor Hélio Fróes. O texto é irregular, tornando-se às vezes emaranhado e cansativo. Há várias interferên-cias musicais que vão desde os folguedos po-pulares até Tim Maia e Tom Zé (a música des-te, num momento particularmente engraçado). Esses apartes musicais em algumas situações tornam o espetáculo tímido, fazendo-o perder o ritmo.

O Nu Escuro nasce em 1996, com in-tegrantes do extinto Castigando o Falo. A es-colha dos nomes denuncia a irreverência e o bom humor do Grupo. Neste espetáculo atuam 4 integrantes do grupo e uma atriz convidada (Eliana Santos), que está menos à vontade e com menor rendimento em cena, apesar de ter feito chorar o grande incentivador de teatro de rua, de Goiânia, Marcos Amaral Lotufo, com o “pum” da personagem apresentado por ela. Os espetáculos são dirigidos por um dos ele-mentos do grupo, neste caso, Hélio Fróes, que não participa como ator. Os atores usam e abu-sam do grotesco e do escatológico arrancando

Ridendo castigat mores. (expres-são atribuída por Paulo Ronai ao poeta)

Jean de Sauteuil.

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gargalhadas da platéia e fazendo-a pensar, confirmando a expressão latina em epígrafe: “Rindo corrige-se os costumes”. Todo o elenco tem bom desempenho, mas cumpre destacar o trabalho primoroso de Abílio Carrascal (o tal do “cabra que matou as cabras”, pivô de toda a trama), com uma brejeirice, uma graça e es-gares de olhos dignos dos nossos melhores Oscaritos. Esse é um ator talhado para viver nossos heróis/malandros populares como Ma-cunaíma, Pedro Malasartes, Jeca Tatu e Pe

O cenário, construído a partir de cenários e objetos de cena de outros trabalhos, é um espetáculo à parte: o sol que vira lua, os bone-cos que surgem em montanhas íngremes ilus-trando as histórias da mulher que virou cabra e do homem que virou bode. Melhor de tudo, é a esposa do advogado transando com seu amante (um boneco). Deve ser uma grande di-versão assistir ao show que acontece atrás do cenário.

O espetáculo, concebido para a rua, deve render muito bem também num palco italiano tradicional.

E por falar em teatro de rua foram hilárias as reações dos atores e da platéia primeira-mente com o caminhão do lixo. Interessados no espetáculo, que se apresentava; os coletores pararam para assistir ao espetáculo e esquece-ram o caminhão ligado... Como o barulho era grande, uma das atrizes, de grande verve histri-ônica, manda o caminhão tomar naquele lugar com duas letrinhas... Claro, o público vem abai-xo. Um pouco depois, aproxima-se o helicóp-tero do Prefeito, em coro e espontaneamente, vociferam todos: Cai fora, kassab. Quem pode, pode; quem não pode se sacode! x

por José Cetra Filho, pesquisador de teatro. fotos: Augusto Paiva

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III. 23. Café pequeno da Silva e Psiu - Richa, distribuindo pedaçinhos de amor

O Centro Velho de São Paulo parece fei-to para, o caminhar. Várias ruas somente para pedestres, prédios antigos para contemplar e praças para circular. Em cada parte deste mio-lo central de São Paulo, coisas interessantes podem acontecer. É o caso, quando nos depa-ramos com as cadeiras em baixo do Viaduto do Chá. Os passos viciados nos trajetos do dia-a-dia dominam os olhos curiosos dos tran-seuntes que cruzam o caminho das cadeiras brancas de plástico. Alguns se deixam vencer pelos olhos e, a exemplo de outros curiosos, param e sentam timidamente nas cadeiras. Como o garoto de rua que senta em silêncio, aguardando... O quê? O espetáculo do palha-

A criança olha/ Para o céu azul.Levanta a mãozinha,/ Quer tocar o céu.Não sente a criança/ Que o céu é ilusão:Crê que o não alcan-ça,/ quando o tem na mão.

Manuel BANDEIRA. Céu.

ço. Deixando de lado toda a sisudez e precau-ção que a vida lhe impôs, ele sorri, quem sabe, com sua inocência restaurada, como a crian-ça que verdadeiramente é. Como outros, ele é transformado, pelo palhaço, no centro do es-petáculo e aplaudido pelo seu desempenho no palco inventado, sob luz invisível. Assim, Richa (Richard Riguetti), o palhaço do Grupo Off-Sina (algo talvez como: sem destino), espalha, en-tre os espectadores, pedacinhos de amor, cari-nho e humanidade.

Os adultos riem como crianças que, no fundo também são. E, em uma hora de espe-táculo, uma hora a salvo do cotidiano, muitas vezes, duro e envelhecido. Uma hora transfor-mada em esquecimento; sorrisos, gargalhadas e aproximação amorosa.

Um encontro marcado com o espetáculo, com o palhaço, com a nossa criança interior.

Assim, Petit Cafè é uma encenação cir-cense; com cenas de picadeiro e cheio de im-provisos conforme o público e as situações do momento da apresentação. O Palhaço Café Pequeno (Richa) utiliza recursos do teatro, do circo e da música para envolver o público nas ruas onde passa.

por Cláudia Gonçalves, bacharel em Letras pela USP, fotógrafa profissional.

foto: Augusto Paiva

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III. 24. Deus e o Diabo na terra da miséria – Oigalê: Miséria na cidade paulistana

Lá embaixo do Viaduto do Chá e do alto das pernas de pau, Deus e o Diabo condenam Miséria a vagar pelas estradas: seu destino é o mundo. Passa, então, a circular pelas cidades, campos, esquinas e calçadas; impossibilitada de ir tanto para o Paraíso quanto para o Infer-no.

Esta peça é uma livre adaptação do Ca-pítulo XXI do livro Dom Segundo Sombra de Ricardo Guiraldes, conhecido como Ferreiro e a Morte. O teatro de rua aliado à cultura pam-piana, enfocando, neste caso, o contador de causo que vira teatro, trova, rima e música.

Assim, os pedestres assistem a este es-petáculo e também ao morador de rua que, empolgado, entra em cena dançando e can-tando com o Grupo Oigalê. Uma mulher, ao ver a encenação, traz à memória a sua terra natal onde brincava com pernas de pau. Canta com o grupo e ri muito. Lembra da infância e renova a vontade de voltar para sua terra de origem.

Esta inusitada apresentação e alguns, igualmente, inusitados espectadores fizeram parte da vida daqueles que pararam para ver o

O destino parece subsidiar a rea-lidade com aventuras portadoras de mortíferas ilusões. Como conse-qüência, instaura o medo no âma-go da vida e golpeia a caixa do de-sejo com flecha do ressentimento, da raiva, da mesquinharia. E cos-tura com fios invisíveis episódios inesperados, para montar com eles afrescos, mosaicos, ou simples te-las sujas pinceladas de caráter, re-lances de imagens fugazes, logo se tornam esmaecidas.

Para que desta forma falemos, ante tantas surpresas, do destino, do fado ou, quem sabe, de misté-rios e enigmas.

Ah, se fôssemos menos distraídos!

Nelida PIÑON. Fado.

Grupo Oigalê com sua peça Deus e o Diabo na Terra da Miséria que há nove anos apresenta este trabalho nas ruas de Porto Alegre e, ago-ra, nas ruas de São Paulo com pano de fundo de um Vale do Anhangabaú chuvoso. Trouxe alegria, lembranças e a mensagem de Miséria, tão íntima de alguns que assistiam ao espetá-culo, e a possibilidade de mudança... x

por Cláudia Gonçalves, bacharel em Letras pela USP, fotógrafa profissional.

fotos: Augusto Paiva

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Lendas de Sepé Tiarajú – Teatro Popular União e Olho VivoA encenação mostra um julgamento ocorrido em 1759. Portugueses e espanhóis julgam os índios guarani, entre os quais Sepé Tiaraju. O acordo feito entre Portugal e Espanha determinava que os habitantes das missões jesuíticas guarani abandonassem suas casas. O espetáculo desdobra-se em forma de opereta e revela-se mais atual que nunca nesse início de século XXI.

Ficha técnicaCoordenação de texto e Direção: César VieiraMúsicas e Coordenação Musical: José Maria GiroldoCoordenação de Cenários, Figurinos e Vídeo: Graciela RodriguesAssistente de figurinos e cenários: Gabriel PrestoCoordenação de percussão: Lucas CésarColaboradores: Bia Zaterka, Maria Alice Silva e Benedito Gomes Lima TeixeiraAtores: Ana Lucia Silva; Cátia Fantin; Cícero Almeida; Douglas Cabral; Elieser Martins; Lucas César; Marisa Dutra; Monique Macedo; Neriney Moreira; Oswaldo Ribeiro; Paloma Siqueira; Saryda Andara; Will MartinezDuração: 60 min.Contato: Tel/fax: 055 11 33311001 / 55794722e-mail: [email protected]: [email protected]

Anuário imaginário, um calendário popular – Cia. BaitaclãO espetáculo apresenta um passeio pelas tradições populares do Brasil, que ocorrem ao longo do ano e desenvolve-se como um grande festejo, onde o público relembra canções, costumes e tradições.

Ficha técnica Direção: Heraldo FirminoAtores: Heraldo Firmino; Monique Franco; Sabryna Mato Grossoe-mail: [email protected]

A sombra das nuvens – Cia. TroadaO espetáculo conta a história da menina Quina que sobe uma escada para conhecer o fim que não pode ser visto. Um espetáculo de rua que se utiliza de máscaras para contar sua história.

Ficha técnica Direção: Vinícius Torres MachadoAtores: Elisa Rossin, Beto de Souza, Fernanda Faria, Carlos Gomes, Thaís Rangel e Vinícius Torres Machadoe-mail: [email protected]

Saltimbembe Mambembancos – Grupo Rosa dos Ventos (Presidente Prudente – SP)O espetáculo é composto por música ao vivo e desenvolvido por meio de números de variedades apresentados por quatro palhaços. A proposta objetiva a diversão e a participação popular. São palhaços grotescos, semelhantes a bastiões e bufões na forma de se relacionarem com o público. O resultado é a festa em que os charivari,(balbúrdia, desordem, confusão) desenvolvem-se no universo do circo.

Ficha técnicaCriação e Direção: Rosa dos VentosAtores: Tiago Munhoz, Gabriel Mungo, Felipe Madureira, Fernando Àvila e-mail: [email protected]

Histórias da Maçã – Teatro Fabrincantes & Matulão (Assis – SP)Dois grupos de teatro disputam uma praça. Além de compartilharem o mesmo público, os integrantes dos dois grupos surpreendem-se quando, se dão conta que encenam a mesma história, cujo tema central é a criação do mundo. Duelam pela simpatia da platéia e por meio disso revelam um paraíso de gargalhadas.

Ficha técnicaTexto: Elinaldo Meira e Wender UriasDireção: Sandro de Cássio Dutra Atores: Meire Alves, Ricardo Bagge, Sandro de Cássio Dutra e Wender Urias da Cruze-mail: [email protected]

Arrumadinho - Trupe Olho da Rua (Santos – SP)A partir de um cortejo profético e anunciador, seis gerentes de vendas e suas respectivas visões de mundo e de mercado apresentam-se à plateia. Por meio de um intenso jogo com o público, as personagens provocam, criticam e questionam o homem moderno e o estado de pateticidade a que chegou, em relação ao trabalho e ao sonho de prosperidade. Arrumadinho da Trupe Olho da Rua ao transitar com expedientes épicos corresponde a uma revista urbana, uma brincadeira de pular corda ou uma ode denunciante às indústrias farmacêuticas.

Ficha técnicaDireção – Zeca Sampaio.Atores – Alan Plocki, Caio Martinez, João Paulo Pires, Juliana Pellin, Raquel Rolloe-mail: [email protected]

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Circonosotros – Família Milan e o Gran Circo Guaraná com RolhaResultado de uma longa pesquisa de tradições circenses do século XIX e início do XX, o espetáculo apresenta ao público, números e aparelhos já não mais utilizados pelos circos tradicionais. Toda a ambientação do espetáculo completa-se por intermédio do figurino e da música.

Ficha técnica Direção: Marcelo MilanAtores: Sandra Saraiva e Marcelo Milane-mail: [email protected]

ComiCidade – Buraco d`OráculoO espetáculo apresenta-se por meio de uma seqüência de quatro curtas histórias adaptadas da comedia clássica japonesa, denominada Kyogem. As histórias, retiradas de ações cotidianas e conhecidas de todos, passam-se nos dias de hoje em uma cidade qualquer.

Ficha técnica Direção e adaptação: Paulo de MoraesAtores: Adailton Alves, Edson Paulo, Lu Coelho, Johnny John e Selma Pavanelli (atriz convidada) e-mail: [email protected]

Top! Top! Top! - Ivo 60O grupo paulistano pesquisa a linguagem de quadrinhos do importante cartunista e militante político Henfil, trazendo suas antológicas personagens das tirinhas do papel para as ruas. O espetáculo desenvolve-se a partir de diversas cenas, acompanhadas de música ao vivo e dança.

Ficha técnicaDireção: Pedro GranatoAtores: Ana Flávia Chrispiniano, Felipe Sant’Angelo, Marina Leite, Pedro Felícioe-mail: [email protected]

O salto – Será o Benidito (RJ)O Palhaço Migué Bruguelo Ditoefeito, personagem que tem no seu nome a síntese do espírito e malemolência do Brasil, depois de apresentar-se à plateia, promete que irá dar três saltos, de olhos vendados, sem tirar o pé do banco. Mas até que cumpra o prometido, tudo pode acontecer.

Ficha técnicaTexto/Direção/Cenário/Encenação - André Garcia Alvez e-mail: [email protected]

Dupla de dois – Circo de trapoDois palhaços viajam pelo mundo apresentando números de acrobacias, malabarismo e balé, embalados por músicas de “ícones” mundiais como Ray Charles, Jacques Brel, Edith Piaf e Menudos.

Ficha técnicaDireção: Cia. Circo de TrapoElenco: Marco Ponce e Erich Santanae-mail: [email protected]

Viva Malasartes! Histórias de um povo de algum lugar - Núcleo PavanelliDuas histórias paralelas e (in) dependentes ocorrem em dois planos: um mundo mítico, ritualístico e o outro cotidiano (real). No mundo mítico a personagem da história é Pedro Malasartes, esperto e astuto. No mundo cotidiano e real, o povo criador de Malasartes, enfrenta tempos difíceis.

Ficha técnicaDireção e dramaturgia: Calixto de InhamunsAtores: Anderson Areias, Danilo Caputo, Dany Ivan, Edward Diniz, Francisco Júlio, Harley Nóbrega, Ioneis Lima, Kelly Laser, Lena Silva, Lucas Branco, Marcos Pavanelli, Mariana Paudarco, Misael Alves , Paulo Dantas e Rimenna Procópio.e-mail: [email protected]

Esperando na rodô – Sítio do Jeca (Pirassununga)A proposta desenvolve-se por meio de uma pesquisa que em se compara a essência do clown à do caipira. Desse modo, Jeca é apresentado por meio do universo caipira e algumas de suas tradições em uma rodoviária.

Ficha técnicaDireção: Marco PavaniAtor e Palhaço: Reinaldo Facchinie-mail: [email protected]

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A folia no Terreiro de Seu Mané Pacaru – Cia. Mamulengo da FoliaSeu Mané Pacaru celebra o casamento de sua filha Marieta com o vaqueiro Benedito. Para o acontecimento, uma grande festa será realizada. E eis que o conflito se estabelece quando o “coisa ruim”, o “fut” como é chamado o diabo, invade a festa impedindo o casamento e obrigando Marieta a casar-se com ele.

Ficha técnicaConfecção de bonecos, roteiro, atuação e direção: Danilo Cavalcante Músicos acompanhantes: Trio Agrestino.e-mail: [email protected]

Tu decides 2 - Circo Teatro YbimarãO Circo Teatro Ybimarã apresenta um espetáculo sem texto definido, mas pautado em um roteiro improvisacional. A peça desenvolve-se no universo de pequenas companhias circenses que caminhavam, até um passado recente, pelo País.

Ficha técnica Criação e direção: O ElencoAtores: Eliane Weinfurter, Fernando Cavalcanti e Marllon Chaves e-mail: [email protected]

Êh! Boi - Grupo Teatro Kabana (MG)Êh! Boi leva para a rua a brincadeira do boi, por meio de figurino colorido, e pelo burlesco, convida à participação espontânea da plateia. Esta, desavisada, percebe-se integrante de um espetáculo popular ao formar uma orquestra de tacos que, em cortejo, acaba por desfilar pelas ruas.

Ficha técnicaDireção: Mauro XavierBrincantes: Rubens Xavier, Pedro Delgado, Nélida Prado, Geovanne Sássa, Léo Ladeira, Mauro Xavier.e-mail: [email protected]

O cabra que matou as cabras - Cia. de Teatro Nu Escuro (GO)Adaptada de farsa de anônimo medieval, um advogado vigarista, que sobrevive dando pequenos golpes em seus clientes, acaba por envolver-se em um caso de assassinatos de cabras e bodes. Uma trama cheia de traições, trapaças e reviravoltas.

Ficha técnicaDireção e Dramaturgia: Hélio FróesAtores: Abílio Carrascal, Adriana Brito, Eliana Santos, Izabela Nascente e Lázaro Tuim e-mail: [email protected]

Café Pequeno da Silva e Psiu - Grupo Off-Sina (RJ)Café Pequeno da Silva e Psiu, ao tomar o palhaço como protagonista do circo, mostra-o como um cidadão comum, que enfrenta os problemas do cotidiano à sua maneira, por meio de situações caóticas, com uma enorme persistência e bom humor. Cheio de habilidades, o palhaço apresenta números de malabares, mágica, manipulação de boneco, música e poesia.

Ficha técnicaDireção: Lílian Moraes Texto e Atuação: Richard Riguetti e-mail: [email protected]

Deus e o Diabo na Terra de Miséria - Grupo Oigalê (RS)Livre adaptação do Capítulo XXI do livro Dom Segundo Sombra de Ricardo Guiraldes, a peça utiliza-se de diversos recursos do teatro de rua mesclados à cultura dos pampas gaúchos. Deus e o Diabo; é um “causo” que vira teatro, trova, rima e música. Uma farsa gaudéria que conta como a Miséria espalhou-se pelo mundo.

Ficha técnicaAdaptação e direção: Hamilton LeiteAtores: Giancarlo Carlomagno, Hamilton Leite, Ilson Fonseca, Janaina Mello, Vera Parenzae-mail: [email protected]

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Famiglia Milan e o Gran Circo Guaraná com Rolha:: Foto Augusto Paiva

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Top! Top! Top! - Ivo 60:: Foto Augusto Paiva

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