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Em memória de Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP) ArtE e rEsisTênCia Na ruA Ano V - N o 05 - Outubro de 2015

Revista Arte e Resistência- 5ª Edição

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Page 1: Revista Arte e Resistência- 5ª Edição

Realização CopatRoCínio apoio instituCional

Em memória de

Revista do Movimento de Teatro

de Rua de São Paulo (MTR-SP)

ArtE e rEsisTênCia Na ruA

Ano V - No 05 - Outubro de 2015

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Núcleo PaulistaNo de Pesquisadores e Fazedores de teatro de ruaGruPo de Pesquisa “crítica aos esPetáculos de rua”

Revista do Movimento de Teatro

de Rua de São Paulo (MTR-SP)

ArtE e rEsisTênCia Na ruA

Ano V - No 05 - Outubro de 2015

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ExpedienteConcepção da revista e revisão técnica: Alexandre Mate.Iniciativa: Movimento de Teatro de Rua de São Paulo e Grupo de Pesquisa “Crítica aos Espetáculos de Rua”, da Universidade Estadual Paulista – UNESP.Revisão: Carolina Heblig.Editores: Adailtom Alves Teixeira e Alexandre Falcão de Araújo.Colaboradores: Adailtom Alves Teixeira, Alexandre Falcão de Araújo, Caio Ceragioli, Carlos Rogério Gonçalves da Silva, Carolina Abreu, Clarissa Oliveira da Silva, Daniela Giampietro, Daniela Landin, Danilo Monteiro, Diego Cardoso, Emerson Natividade, Gabriela Bortolozzo, Gyorgy Laszlo, João das Neves, Juliene Codognotto, Kanansue Gomes, Leandro Pereira Alves, Lissa Santi, Luiz Eduardo Frin, Narah Neckis, Rodrigo Morais Leite, Simone Carleto e Zeca Sampaio.Projeto gráfico/diagramação: Maurício Santana | powerblack.com.br Fotógrafo: Ana Piccolo, Augusto Paiva e Jonatha Cruz.Jornalista responsável: Danilo Monteiro – MTB 11247.Revista nº5: Outubro de 2015.

Contato: [email protected] mtrsaopaulo.blogspot.com

Distribuição gratuita

Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

Arte e resistência na rua / Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. n.5 (2015) – São Paulo: Movimento de Teatro de São Paulo, 2015.

AnualISSN: 2237-5503

1. Teatro de rua – Periódicos. 2. Grupos de teatro – Periódicos. 3. Teatro – Periódicos. 4. Teatro – História – Periódicos. I. Movimento de Teatro de São Paulo.

CDD 792.028

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Revista do Movimento de Teatro

de Rua de São Paulo (MTR-SP)

ArtE e rEsisTênCia Na ruA

Ano V - No 05 - Outubro de 2015

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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)

O teatro popular e seu poder de interação com o público, Rodrigo Morais Leite

A folia nordestina na firula paulistana, Clarissa Oliveira da Silva e Leandro Pereira Alves

A encantadora história do circo, Adailtom Alves Teixeira

Palombando a história, ou, uma modesta homenagem à persistência do saber, Daniela Giampietro

O risco e... Muito mais do que um petisco, Clarissa Oliveira da Silva e Leandro Pereira Alves

A resistência e a opressão: uma história escrita em sangue, Gyorgy Laszlo

O desafio de trazer à tona e à cena o legado do movimento sindical de 1968: prova de fogo no verão paulistano, Alexandre Falcão de Araújo

Das nossas dificuldades em torno da busca de sempre: a relação entre forma e conteúdo, Daniela Landin

Tarde feliz, Luiz Eduardo Frin

O bebum com camisa do Brasil, Danilo Monteiro

“Boi que não vira gado”, Carolina Abreu

A gente sabe repartir, Luiz Eduardo Frin

[des]Água – ritos de rios e ruas como forma de [inter]romper o curso do sistema, Simone Carleto

[des]Água chuva! [des]Água poesia!, Lissa Santi

Canto que abre fonte, Carolina Abreu

Saltimbando por aí, Lissa Santi

Afrontando Bonifácio, Carlos Rogério Gonçalves da Silva

Deixa chover, Luiz Eduardo Frin

Sobre a poesia de tantos quintais, Daniela Giampietro

A praça, o palco, a infância: instantes de fuga na paisagem urbana, Gabriela Bortolozzo.

A miserável dança da trapaça, Gyorgy Laszlo

Na onda do hibridismo cultural: o caipira da cidade média na periferia da metrópole do capital triunfante, Gabriela Bortolozzo

Descortinando Olhares, Narah Neckis

“Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno”, Emerson Natividade

Claras revoadas, em forma de canção, de pássaros e urubus que visitam os Pombas Urbanas, Alexandre Falcão de Araújo

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Índice Geral

EDITORIAL

O QUE É O MTR

ARTIGOS

A Praça: o lugar do teatro de rua na cidade pós-moderna, Jussara Trindade

Do terreiro ao asfalto: um olhar sobre o jongo e o teatro de rua, Osvanilton de Jesus Conceição

Teatro do Oprimido como instrumento contra-hegemônico, Flavio Sanctum

Urbanidade contaminada: a diluição de fronteiras na cena teatral contemporânea, Cecília Lauritzen Jácome Campos

RELATOS

Nossa carne é de rua – e também o nosso coração, por que não?, Daniela Landin

A precariedade como linguagem e as “perninhas” que resistem unidas sob a lona, Juliene Codognotto

APREENSÕES CRÍTICAS

A Fêmea Dominante, Zeca Sampaio

Sobre Memória e Paixão, Lissa Santi

Quem tem voz é rei, Kanansue Gomes

Feios, sujos e palhaços, Alexandre Falcão de Araújo

Em busca de uma ética cômico-popular, Daniela Landin

Um bando que me faz perguntar ou Uma interrogação bandido, Caio Ceragioli

Aquela roda do teatro não teve patrão, não!, Diego Cardoso

M’borayu, Zeca Sampaio

A (re)criação de um mundo distante e a busca da Terra sem Males: encantamento e ausências, Alexandre Falcão de Araújo

Relampião: o retorno do mito?, Adailtom Alves Teixeira

Relampião, João das Neves

Um convite: vamos?, Kanansue Gomes

Virtuosismo na República, Lissa Santi

Praça da República, Feira e Malabares, Narah Neckis

Entre a brincadeira e o teatro... “Arrocha o fole!”, Daniela Landin

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Capas das edições anteriores da Revista Arte e Resistência na rua

EditorialA revista Arte e Resistência na Rua vem sendo realizada com bastante

dificuldades, mas ainda assim, continua vindo à público, demonstrando que a

resistência não está apenas no nome. Fruto de muito trabalho voluntário e mi-

litante desde sua criação, eis aqui a quinta edição, ainda que se possa afirmar

que parte de seu conteúdo saia com bastante atraso. As apreensões críticas fo-

ram realizadas em 2012 e 2013 durante a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas.

No entanto, como a modalidade teatral de rua ainda apresenta documentação

escassa, o conteúdo aqui apresentado é um registro histórico significativo tanto

para os grupos, quanto para os pesquisadores dessa arte.

As apreensões críticas vêm sendo realizadas desde 2008 por um grande

grupo de estudantes de graduação e pós-graduação e pesquisadores da área,

coordenados pelo professor Alexandre Mate, do Instituto de Artes da UNESP.

Nesse quinto número da revista, além das críticas de duas edições da

Mostra Lino Rojas, somam-se relatos, quatro artigos de pesquisas que vêm

sendo feitas na atualidade - no âmbito do Grupo de Trabalho Artes Cênicas na

Rua, da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes

Cênicas, além do registro iconográfico do teatro de rua.

Esta edição é dedicada à memória de Lua Barbosa, atriz do grupo Os Ma-

matchas, de Presidente Prudente/SP, que teve sua vida ceifada pela violência

policial no ano de 2014 e cujo trabalho está registrado também nas páginas

desta revista. Lembrar este trágico acontecimento é também lembrar a necessi-

dade de ocupação artística de espaços públicos, de luta pelas artes públicas e

por cidades mais justas, diversas e pacíficas.

Desejamos que Arte e Resistência na Rua continue a bater na pedra dura

do mundo mercantilizado, afinal a revista e os artistas que aqui aparecem são

parte da água mole da contramarcha mercadológica.

Boa leitura!

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Ainda em 2008, em novembro, o MTR/SP realizou a 3a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, que teve o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio do Ministério da Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo, do Aprendizes da Capela e do Sindicato dos Comerciários. Ainda na mesma época, realizou-se também o IV Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), com a presença de articuladores de 18 estados brasileiros: Acre, Amazonas, Ceará, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande

do Sul, Santa Catarina e São Paulo, ocasião em que foram discutidas técnicas e estéticas do teatro de rua e política pública cultural do País.Em 2009, no mês de abril, o MTR/SP publicou a Revista Arte e Resistência na Rua e produziu um documentário sobre a 3a Mostra e sobre o IV Encontro da RBTR. Ainda em 2009, em novembro, realizou a 4a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, que teve o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; o apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo e do Sindicato dos Comerciários. Na ocasião, o Movimento Escambo Popular Livre de Rua, com forte atuação nos estados do Ceará e Rio Grande do Norte, foi homenageado.Em 2010 foi criado o Núcleo Paulistano de Pesquisadores de Teatro de Rua, que realizou um curso de extensão coordenado por Alexandre Mate na Universidade Estadual Paulista - UNESP.

O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) nasceu em 2002 por intermédio da união de sete grupos durante a ação cultural Se Essa Rua Fosse Minha. Desde então, tem crescido significativamente o número de grupos interessados em debater temas pertinentes às especificidades do teatro de rua.De agosto a setembro de 2003, foi realizado o 1o Seminário de Teatro de Rua com a participação de 12 grupos. O encontro consolidou o Movimento e resultou na I Overdose de Teatro de Rua, com a apresentação de 15 espetáculos teatrais, no dia 3 de novembro de 2003, no Bulevar São João e Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Mesmo sem ter patrocínio ou apoio do poder público ou da iniciativa privada, a ação marcou o início de um processo mobilizatório política e artisticamente. O Movimento realizou, em junho de 2004, a II Overdose de Teatro de Rua e em julho daquele mesmo ano, o 2o Seminário de Teatro de Rua, que contou com a participação de pensadores, fazedores e políticos que atuam e pensam o espaço urbano. Ainda em 2004, realizou-se a 1a Temporada de Teatro de Rua de São Paulo, na Praça do Patriarca, com o intuito de transformar o local em espaço permanente para apresentação de espetáculos e divulgação da programação do teatro de rua.Desde a realização do 1o Seminário, o MTR/SP realiza encontros em que se estabelecem as bases de uma atuação propositiva para a inserção de manifestações artísticas no espaço público aberto, para a luta por políticas culturais específicas que atendam às necessidades de produção, de pesquisa e de circulação da arte popular, bem como para a ampliação das formas de acesso ao teatro.

O que é o MTR

Em 2006, o Movimento realizou a III Overdose de Teatro de Rua e lançou sua Carta Aberta em 29 de maio. A ação exigiu do poder público o lançamento de um edital, prometido desde 2004. Em setembro daquele ano, o MTR/SP realizou a 1a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, com recurso público da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e participou do II Fórum Artístico realizado pela Cooperativa Paulista de Teatro, no qual se discutiu política pública cultural, estética e a formação do artista que atua em espaços abertos.Em 27 de março de 2007, o MTR/SP organizou a IV Overdose de Teatro de Rua com a participação de grupos de diversas cidades paulistas e outros estados brasileiros. Em dezembro, foi a vez da 2a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, novamente em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Naquele ano, o MTR/SP participou, com movimentos de outros estados, da criação da Rede Brasileira de Teatro de Rua, hoje presente em mais de vinte estados.Em 2008, no dia 27 de março – Dia do Teatro –, realizou a V Overdose de Teatro de Rua. Na ocasião, solicitou aos poderes: Municipal, a ampliação de recursos para o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo; Estadual, a criação do Fundo Estadual de Arte e Cultura; e Federal, a criação do Prêmio Teatro Brasileiro.

Cortejo Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

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O Núcleo de Pesquisadores realizou o I Fórum de Teatro de Rua, em julho daquele ano, lançando na ocasião a 2ª edição da Revista Arte e Resistência na Rua. Em 23 de agosto de 2010, articulado a outros movimentos espalhados pelo Brasil e unidos na Rede Brasileira de Teatro de Rua, o MTR/SP foi às ruas manifestar a indignação pela privatização dos espaços públicos, pela ausência de políticas públicas para as artes públicas, mas, sobretudo, pela proibição constante aos artistas de rua, um claro desrespeito à Constituição Brasileira. O Movimento realizou um cortejo no centro da cidade e passou pela Secretaria Municipal de Cultura, encerrando a manifestação com cruzes e leitura de Manifesto (disponível em: http://www.mtrsaopaulo.blogspot.com/2010/08/carta-aberta-do-mtrsp-lida-na.html) em frente a Prefeitura, citando todos os casos de proibições e violência contra os artistas que ocorreram ao longo do ano. O Movimento realizou em parceira com a Secretaria Municipal de Cultura e com o apoio da Cooperativa Paulista de Teatro, de 5 a 14 de novembro de 2010, a 5ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, prestando homenagem ao Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP/PE); a Mostra marcou presença nas cinco regiões de São Paulo, com inúmeras apresentações e debates, ganhando o Prêmio Especial da Cooperativa Paulista de Teatro por ocupação da cidade.

Em 2011, juntamente com o Núcleo de Fazedores e Pesquisadores em Teatro de Rua, ocorreu a continuação do curso de extensão de teatro de rua, coordenado por Alexandre Mate na UNESP. Com essa parceria, realizou-se o II Fórum de Teatro de Rua na mesma instituição com o tema As Formas Fora da Forma, de 4 a 7 de julho, reunindo pesquisadores de todo Brasil para discutir o teatro de rua, de revista, o circo-teatro, o teatro de feira, o teatro épico, a ocupação dos espaços públicos e outros assuntos, com mediação e coordenação de Alexandre Mate. O Movimento também participou ativamente da construção do Movimento dos Trabalhadores da Cultura, que em 25 de julho, ocupou as dependências da FUNARTE/SP, reunindo mais de 800 trabalhadores de diversas categorias culturais e de outras áreas, reivindicando uma política pública destinada às artes públicas, o descontingenciamento das verbas de 2011 e a aprovação das Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 156 e 250, entre outras pautas. De 18 a 26 de novembro de 2011, o MTR/SP realizou a 6ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, com a temática da ocupação dos espaços públicos, homenageando na ocasião o diretor Ilo Krugli e o Teatro Ventoforte, grupo com 38 anos de existência.Em 2012 e 2013, ocorreram a 7ª e 8ª edição da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, e seus integrantes continuaram atuando junto à RBTR e ao Núcleo de Fazedores e Pesquisadores em Teatro de Rua.O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo conta hoje com a participação de dezenas de fazedores e pensadores, presentes no estado de São Paulo (capital, interior e litoral). Tem por objetivo, a formação de uma ação cultural que alcance indistintamente os cidadãos, de maneira a mobilizar a sociedade para novas formas e relações com o espaço público.

Programas de diversas edições da Mostra Lino Rojas

A menina que foi arquivada. Núcleo Cênico Projeto Bazar. Foto: Augusto Paiva.

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ARTIGOS

A PRAÇA: O LUGAR DO TEATRO DE RUA NA CIDADE PÓS-MODERNA

Jussara Trindade1

RESUMO

O artigo discorre sobre a noção de praça, proposta pela turismóloga Susana Gastal, a qual nos possibilita vislumbrar as profundas significações do teatro de rua para a cidade con-temporânea. Articulado a outras reflexões, apresentadas em obras de diversos estudiosos do tema da cidade na pós-modernidade, o significante praça adquire grande importância para o teatro de rua atual, pois reafirma a vinculação deste com a memória ancestral da praça públi-ca enquanto espaço de exercício da cidadania (a polis grega), de trocas de mercadorias, de encontro e festa (a cidade medieval).

Palavras-chave: teatro de rua; cidade; pós-modernidade; praça

ABSTRACT

The article discusses the concept of square, proposed by tourismologist Susana Gastal, which enables us to glimpse the deep meanings of street theater for contemporary city. Linked to other reflections, presented in the works of several City theme scholars in postmodernity, the significant square of great importance for the current street theater, since it reaffirms the connection of this with the ancestral memory of the public square as an exercise in space citizenship (the Greek polis), commodities exchanges, meeting and party (the medieval city).

Keywords: street theater; city; postmodernity; square

Nos últimos anos, os teatristas de rua têm-se empenhado na tarefa de compreender o seu espaço de atuação. Nesse desafio, tornou-se essencial estabelecer diálogos com as diversas esferas do conhecimento: história, geografia, sociologia, linguística, arquitetura, são algumas áreas cujas teorias tornam-se, a cada dia, mais conhecidas desses pesquisadores. Mas, foi do turismo que recentemente surgiram, a meu ver, algumas das ideias mais instigan-tes para o nosso campo de estudos.

Em Alegorias Urbanas: o passado como subterfúgio, a turismóloga Susana Gastal le-vanta questões sobre a cidade, conceito que nas palavras da autora “[...] se dá aos nossos sentidos como imagem”, e é articulado ao urbano enquanto “[...] imaginário construído e alimentado sobre ela” (GASTAL, 2006, p. 26). Como as discussões levantadas por Gastal se apoiam na moldura teórica elaborada por Frederic Jameson acerca da ideia de “pós-moder-no”, é necessário, antes, comentar alguns dos aspectos essenciais por ele abordados uma vez que, para a autora, a pós-modernidade é o contexto mais amplo em que se inscreve o texto “cidade”. 1 Mestre e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; pesquisadora bolsista pós-doc CNPq/NEPAA/UNIRIO; autora do livro A contemporaneidade do Teatro de Rua: potências musicais da cena no espaço urba-no (2014); Co-autora dos livros Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio (2010) e Tá na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel (2008); membro fundador do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE; coordenadora da Aldeia Cultural Casa Viva, centro cultural voltado para a formação, produção e pesquisa em artes cênicas, situado na região serrana do Rio de Janeiro.

Duo Morales. Dois na Roda. Foto: Augusto Paiva.

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Dentre os fatos históricos que, segundo o estudioso norte-americano, caracterizam o pós-moderno – as convulsões sociais dos anos de 1960, a queda do muro de Berlim, a presença generalizada da tecnologia na vida cotidiana – ele ressalta o advento do que ele denomina como capitalismo tardio (JAMESON, 2000) ou, ainda, capitalismo high-tech2, cuja característica determinante é a simbiose entre capital, tecnologia e cultura (GASTAL, 2006, p. 17). Nesta forma de capitalismo, a questão econômica avança sobre as sociais e culturais, dissolvendo-as no chamado “mercado”. Ou seja,

A produção de mercadorias é agora um fenômeno cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso imediato [onde] a propaganda tornou-se uma mediação fundamental entre a cultura e a economia, e se inclui certamente entre as inúmeras formas da produção estética (JAMESON apud GASTAL, 2006, p. 33).

Lidia Kosovski chama a atenção para este efeito do pós-moderno sobre o teatro. Num artigo intitulado Espaço urbano e performance teatral (2003), a cenógrafa reflete sobre os no-vos paradigmas que, ao dissolverem as tipologias arquitetônicas do teatro ocidental3, deline-aram o espaço cênico contemporâneo, possibilitando a emergência de práticas teatrais cujo “olhar topológico” – além de político e estratégico – irá, a partir dos anos de 1970, redefinir o terreno da cena da atualidade ao levá-lo a ocupar distintos lugares4 da cidade.

Dentre essas novas práticas teatrais, ela destaca as da cidade assaltada e da cidade negociada. A primeira é associada às formas artísticas em que “[...] o princípio fundador é o do questionamento e subversão da ordem vigente” (KOSOVSKI, 2003, p. 222), em situa-ções cujos exemplos mais representativos estariam, segundo a autora, nas expressões das vanguardas artísticas europeias, no agit-prop russo, nos happenings e na performance art, e em experiências teatrais pioneiras realizadas no Brasil por Augusto Boal, César Vieira e Amir Haddad. Já a segunda prática teatral, caracterizada por “[...] ações que traduzem uma polí-tica de animação da cidade”, (KOSOVSKI, 2003, p. 223), estariam situadas sob a égide de uma atitude mais concessiva e complacente em relação à ordem mercadológica/capitalística vigente, no que diz respeito à ideia de cultura como mercadoria.

Com base nessas categorizações, a autora interroga a atual tendência de “[...] oficia-lização e programação de lugares não convencionais para a cena, organizados como uma imensa rede de teatros, arquitetonicamente informal, volátil, nos grandes centros urbanos” (KOSOVSKI, 2003, p. 223), alertando para a iminente emergência de um paradigma teatral construído sobre o prisma exclusivo do mercado – o da “cidadania do consumo” – a ser, se-gundo ela, firmemente questionado.

A partir da década de 1980, torna-se cada vez mais corriqueiro o uso de galpões, foyers de centros culturais, jardins de museus, parques, ruas, praças como lugares possíveis para as performances teatrais – quando se percebe a presença de políticas públicas em relação ao espaço urbano, políticas que expressam a importância de reivindicação do direito à cidade, numa perspectiva de ampliação da cidadania no uso do patrimônio público e ambiental (KOSOVSKI, 2003, p. 221).

2 De acordo com Jameson, o capitalismo high-tech é o da globalização dos mercados, marcado pela impessoalidade das grandes corporações internacionais.

3 Utilizando um critério cronológico, a autora cita as arquiteturas grega, romana, elisabetana, barroca, clássica e italiana.

4 A autora utiliza a diferenciação entre as noções de lugar e espaço, proposta por Michel de Certeau na obra A invenção do cotidiano: 1. Artes do fazer (1994), para quem a primeira se refere a uma ordem estabelecida socialmente e, a segunda, à mobilização dessa ordem por meio de uma prática. Dito de outro modo: enquanto o lugar estabelece, o espaço pratica.

O “direito à cidade”, tão brilhantemente defendido por Henri Lefebvre (2001) como um direito “à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados” – e pre-sente, também, no sonho dos grandes encenadores do século XX que trataram de “explodir” o espaço das salas teatrais convencionais - ao ser interpretado à luz do capitalismo high-tech de nossos dias, torna-se uma justificativa plausível para a transformação do espaço público da cidade em simples mercadoria.

Sob o discurso “politicamente correto” das medidas de urbanização, saneamento e re-vitalização de áreas degradadas da cidade, ocultam-se amiúde ações de “higienização” e exclusão, aplicadas sistematicamente às populações menos favorecidas da sociedade. A cidade – lugar, em princípio, de todos – tende a ser transformada, por meio dessas estra-tégias supostamente avançadas, num espaço cujos benefícios mais significativos acabam tornando-se inacessíveis à maioria da população, e onde a vida de seus habitantes é regu-lada não tanto (ou somente) por meio de mecanismos disciplinadores como os analisados por Foucault em Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1999), mas principalmente através de mecanismos sutis de produção de uma subjetividade eminentemente capitalística – em que o próprio modo de viver, o desejo e os sonhos do cidadão estão submetidos às leis do mercado (GUATTARI, 2010).

Trazendo tais questionamentos para o universo do teatro de rua, poderíamos perguntar: Que “teatros” serão contemplados por políticas públicas de apoio ao teatro a ser oferecido gratuitamente à população com base naquele “direito à cidade” e no discurso da cidadania? Que critérios serão utilizados para definir quais e como os espaços da cidade podem ou não ser utilizados pelos artistas de rua? E, principalmente, quem tem esse poder decisório, diante da suposta “acessibilidade irrestrita” que a rua, enquanto espaço público, deveria oferecer ao cidadão?

“Como escapar?” – pergunta Kosovski.

Em busca de possíveis respostas, torna-se necessário interrogarmos o espaço - seja para conquistá-lo, ocupá-lo e usufruir dele, seja para compreendê-lo, amá-lo, acrescentar-lhe algo – sobretudo quando se trata do espaço da cidade, onde vive e trabalha a maior parte dos fazedores teatrais de rua. É urgente colocar em questão os discursos hegemônicos que valorizam certos ideais contemporâneos como, por exemplo, o “tecnológico”, o “cosmopoli-ta” e mesmo o “público”, pois “viver o espaço é uma construção de sentido que condiciona a sensibilidade e também é condicionada por ela” (GASTAL, 2006, p.81). Isso significa que o sentido físico é dado pela experiência sensível, mas é também dependente de uma rede de fatores sociais e subjetivos que definem essa experiência. A cidade não constrói sua significação da mera distribuição de objetos materiais – casas, prédios, ruas etc – mas das estruturas significantes de relacionamentos que aí ocorrem. Daí ser ela o resultado da rede de tessituras entre o que é fixo no espaço e o que flui – “[...] deslocamentos das pessoas, de bens materiais e simbólicos, comportamentos e culturas” (GASTAL, 2006, p. 73).

Na obra citada no início deste artigo, Susana Gastal elabora um pensamento semi-ótico5, defendendo a tese segundo a qual é possível organizar a leitura de determinados “textos” a partir de significantes que sobressaíram sobre outros. Destaca-se, no contexto da cidade (“texto” estudado pela autora), a recorrência dos significantes praça, igreja, palco, universidade, monumento e indústria. Dentre estes, destacam-se aqueles eleitos como três

5 A autora explica a sua adesão a uma vertente semiótica “pós-saussureana”, cuja lógica se realiza não pela “compreensão” do objeto investigado, mas por associações e contiguidades; ou seja, um objeto (“texto”) é estudado em sua relação com outros objetos (“textos”).

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matrizes de análise - a praça, o monumento e o palco – a serem utilizados numa abordagem da cidade sob as categorias de espaço, tempo e visualidade, respectivamente. A praça é a matriz significante que a autora escolhe para analisar a construção de sentido na cidade, com base na importância que a praça (enquanto elemento urbano físico) assume na constituição histórica e social do ocidente, ao legar à contemporaneidade um imaginário onde ela é tanto o espaço inerente ao exercício da cidadania (a polis grega), quanto local de trocas de merca-dorias, de encontro e de festa (a cidade medieval).

Por alimentar nos séculos subsequentes um imaginário urbano materializado tanto nos núcleos urbanos do interior quanto nas grandes metrópoles, para a autora a praça é um “tex-to” que permanecerá ativo

[...] no imaginário pós-moderno, ao [se] procurar reconstituir espaços de festa e de encontro, das trocas de bens materiais e de bens simbólicos com liberalidade de acesso e informalidade de uso [...] Na alma dos shoppings centers metropolitanos, nos halls de entrada de hotéis e edifícios corporativos, nos bares da cidade ou na roda do cafezinho em escolas e escritórios, lá estará a praça (GASTAL, 2006, p. 93).

Com base nas reflexões de Gastal, proponho pensar o teatro de rua como uma moda-lidade teatral cujas práticas reconstituem a praça no imaginário da cidade. Ou, ainda, consi-derar a ideia de que esta matriz arcaica é acionada no imaginário do cidadão todas as vezes em que um espetáculo de rua lhe é apresentado, independentemente da forma por ele utili-zada para ocupar fisicamente o espaço urbano. Seja em roda, performance processional ou invasão (TELLES, 2008); por meio de poéticas tradicionais ou de ruptura (OLIVEIRA, 2010); compreendido sob a perspectiva do épico (ANDREAZZA, 2008), da cultura popular (VIEIRA, 2007) ou do contemporâneo (CARDOSO, 2005; CARREIRA, 2009), o teatro de rua irá propor ao habitante da cidade converter-se em espectador-ouvinte ao mergulhar numa dimensão imaginária capaz de fazê-lo transcender os limites usuais do cotidiano e descobrir, nessa experiência, novos modos de reapropriação da cidade. Mas, como pode fazer isso o teatro de rua?

Partindo da premissa de que o urbano abrange elementos fixos - praças, monumen-tos, igrejas, indústrias, casas, ruas etc. – ao redor dos quais circulam fluxos de pessoas, mercadorias, relações sociais, manifestações culturais, trânsito de veículos etc. Gastal de-senvolve a tese segundo a qual, se os fluxos formaram a cidade antes dos fixos (segundo a autora, a sua origem está nos caminhos percorridos pelos nômades que ali acabaram se estabelecendo), hoje eles “[...] correspondem aos deslocamentos do sujeito na própria cida-de” (GASTAL, 2006, p. 94), de casa para o trabalho e vice-versa. No momento contemporâ-neo, esses deslocamentos ganham em velocidade (os meios de transporte tornaram-se mais rápidos), mas também em diversidade – muitas mercadorias dão-se, agora, sob a forma de fluxo (as transações comerciais realizadas por meio virtual, por exemplo). Outros tipos de deslocamentos – de ideias, saberes, crenças, culturas ou bens culturais –, são igualmente submetidos a um aumento de velocidade. Para a autora, o efeito mais notável disso sobre a cidade, constituída originalmente como lugar de fixos onde circulam os fluxos, será o da sua desmaterialização.

A pesquisadora explica do seguinte modo o processo pelo qual o excesso de velocidade dos fluxos leva à desmaterialização da cidade: todos os produtos que circulam na cidade são enraizados em fixos culturais específicos (a comida baiana, a moda europeia etc.); a veloci-dade dos fluxos pelos quais transitam permite, contudo, que esses produtos sejam consu-midos longe de seus fixos e circulem livremente como fluxo, tornando invisível a cultura da

qual são originários. Desvinculada dos fixos, esta passa a viver no imaginário das pessoas que o consomem. O paradoxo da pós-modernidade, para Gastal, é que ela aproxima o dis-tante, mas só no imaginário. Os conteúdos que constroem o sentido de um objeto longínquo não vêm junto com ele, pois os fixos (os lugares) aos quais ele está originalmente vinculado lhe são retirados, nos processos do mercado globalizado. Na vida cotidiana, isso quer dizer que um objeto tradicional, que carrega em seu conteúdo a identidade de um lugar, pode ser consumido em qualquer outro lugar, distante daquelas marcas de origem. Como saborear um acarajé genuinamente baiano, nas ruas de Ipanema...

Mas a lógica da desterritorialização, marca do capitalismo globalizado, não transfere apenas mercadorias. A hegemonia do fluxo na pós-modernidade atinge também a quem vive na cidade, levando a crescente circulação de pessoas a constituir, segundo Gastal, “[...] um fluxo com características próprias, um verdadeiro nomadismo pós-moderno, a exigir insta-lações específicas” (GASTAL, 2006, p. 96) – os não-lugares de que fala Marc Augé em sua emblemática obra Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade:

[...] são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde estão alojados os refugiados do planeta (AUGÉ, 2010, p. 36).

Na lógica dos não-lugares, imposta também à praça – em sua origem, um elemento fixo da cidade – os lugares da festa e da sociabilidade, assim como do encontro, tornam-se cada vez mais fluxos: a praça “[...] abandona os espaços públicos de livre acesso, para transitar por espaços privados ou privatizados: shoppings centers, casas noturnas, parques de lazer diversos, postos de gasolina. A praça abandona os lugares, para frequentar, não raro, não--lugares” (GASTAL, 2006, p. 97).

A hegemonia dos fluxos parece fragilizar a praça enquanto fixo. Mas, de acordo com Kevin Lynch, são os fixos – a praça, entre eles – que marcam concretamente as cidades como lugares, orientando o traçado do deslocamento dos fluxos que as atravessam. Desen-volvendo um pensamento sobre o teatro de rua que vai ao encontro destas reflexões, André Carreira afirma que

[...] o teatro de rua quase sempre transita em zona conflitiva com as instituições burguesas [pois] essa modalidade teatral basicamente rompe com os códigos e hierarquias do uso cotidiano da rua [e] como manifestação não hegemônica, propõe nestas zonas de conflito a busca de situações em que a rua reconquiste ou reforce sua característica de Lugar (Augé), isto é, seja um âmbito de convivência social que supere a superficialidade do universo do consumo, rompendo, ainda que momentaneamente, com a lógica pragmática do sistema de mercado (CARREIRA, 2007, p. 37-38).

Enquanto “manifestação do encontro e da festa”, o teatro de rua reafirma no imagi-nário do cidadão a praça como lugar do espetáculo (ainda que este seja apresentado num daqueles “não-lugares”, como a “praça de alimentação” de um shopping, por exemplo), pois traz para os espectadores a memória ancestral da praça pública, tanto como polis (o fórum público) quanto local de troca (de mercadorias) e encontro (de experiências). Caminhando na contramão de um discurso politicamente correto sobre a cidade limpa, higienizada e orde-nada, o teatro de rua recoloca o imaginário da praça no coração da cidade ao relembrar que a sua maior importância reside na sua função social e no seu usufruto pelo cidadão, e não numa suposta “boa” imagem urbana de organização e assepsia.

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A partir das considerações de Gastal, é possível supor que o teatro de rua, ainda que potente em qualquer uma das suas formas de ocupação do espaço, manifesta sua potência máxima quando, além de ocupar os fixos, também se funde aos fluxos da cidade – penetran-do em seus movimentos, ritmos, sonoridades –, pois nesse ato de fusão ele possibilita que, pela obra teatral, se dê o casamento entre o imaginário e o real, recuperando para o cidadão o sentido original, arquetípico, do espaço público urbano como o lugar do encontro, das tro-cas e da festa.

Ainda que submetido à velocidade dos fluxos e à desmaterialização dos fixos na cidade, o ser humano possui um substrato subjetivo e ancestral, enraizado no tempo e nos ciclos mais lentos e estáveis da terra e da natureza. É a necessidade de reencontrar esses conte-údos mais antigos que impelem ainda o homem a experiências do lugar, embora ele tenha construído o espaço desmaterializado da cidade pós-moderna. Por isso, prevê a autora,

A praça se manterá tanto como um fixo, em novos espaços públicos como as ruas – ocupadas por caminhantes de fim de semana, adolescentes em skates ou crianças em bicicletas – quanto, ainda, como praças criadas nos shopping centers com a finalidade de incentivar o encontro. Mas, cada vez mais, a praça será um fluxo que se dá onde quer que haja o desejo do estar-juntos para confraternização, trocas de mercadorias ou trocas simbólicas. A praça ainda será central nos projetos de revitalização das cidades, quando surgem as demandas por ressignificação de fixos, cada vez mais abandonados pelos fluxos econômicos, na sua peregrinação em busca de vantagens comerciais [...] A praça sobrevive como demanda das comunidades, porque está solidamente consolidada no imaginário urbano e, como tal, continua a alimentar a cidade (GASTAL, 2006, p.105).

Assim, podemos concluir, com Gastal, que “[...] quando as construções de sentido nos encaminham para a desmaterialização de tempo e espaço” (GASTAL, 2006, p. 219), a praça nos mostra que as questões do espaço na cidade podem ser resolvidas pela criatividade das pessoas, ainda mobilizadas pelo imperativo ontológico do estar-juntos. Nesse sentido, uma possível tática para a resolução dos problemas urbanos trazidos pela pós-modernidade pode estar na capacidade de criar praças na cidade - tarefa esta que o teatro de rua já vem cum-prindo há muito tempo, desde a sua convivência com os fluxos da cidade medieval – porque esta matriz fala, mais do que nunca, à necessidade do homem de viver em coletividade, quiçá em comunhão, e a praça – assim como a praça – é, por excelência, o lugar do teatro de rua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DO TERREIRO AO ASFALTO: UM OLHAR SOBRE O JONGO E O TEATRO DE RUA

Osvanilton de Jesus Conceição6

RESUMO

Este artigo é resultado de uma pesquisa sobre o jongo, o teatro de rua e o trabalho dos atores que nessa modalidade teatral estão inseridos. Nesse contexto investiga-se duas ca-racterísticas comuns do teatro de rua e sobre os aspectos do jongo. Com a realização desta pesquisa, visamos criar ambientes favoráveis para o desenvolvimento do potencial criativo, o alargamento da expressividade corporal e o aprimoramento vocal de atores, utilizando como parâmetro teatral os aspectos comuns ao teatro de rua brasileiro.

Palavras Chaves: interpretação teatral; jongo; teatro de rua.

ABSTRACT

This article is the result of a research on the jongo, street theater and the interpretation of the actors in this theater modality are included. In this context it investigates two of the com-mon feature of street theater and on aspects of jongo. With this research, we aim to create favorable environment for development of creative potential, enlargement of body expressive-ness and vocal enhancement of actors, using the common aspects of Brazilian street theater as a parameter.

Keywords: theater interpretation; jongo; brazilian street theater.

A roda é uma forma de agrupamento humano ancestral e reflete, quase sempre, a ne-cessidade de tornar horizontais as relações sociais que são desenvolvidas em seu contexto. Quando estamos posicionados e organizados numa roda, geralmente diluímos a imposição de uma hierarquia e as ideias relacionadas a ela. Nesse espaço circular não se observa o primeiro ou o último, nem se encontra um lugar de sobreposição, olhamos a face dos outros na mesma proporção em que somos vistos. Mesmo quando há hierarquias na configuração de uma roda, ela passa pelo consenso do coletivo onde se ver a expressão da face e o brilho dos olhos, diferente das filas e fileiras, outras duas formas de agrupamento humano.

Com base nisso, podemos entender a roda como uma possibilidade de organização do espaço escolhido para a realização da encenação do teatro de rua, e não como uma es-pecificidade dessa atividade teatral que pode ser organizada de diversas formas. Dentre as quais podem ser citadas: a disposição de atores e público em semicírculo, a orientação fron-tal em que os atores e o público ficam dispostos frente a frente e, por fim, a encenação itine-rante, com diferentes centros de atenção e atuação. Nesse último exemplo, pode-se observar que os atores utilizam-se de diferentes suportes para o desenvolvimento da encenação e o público movimenta-se em direção à cena, que pode acontecer nas escadarias de uma igreja, na copa de uma árvore ou em qualquer outro local da rua.6 Ator, professor e diretor teatral, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA, mestre em artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP, especialista em linguagens da arte pelo Centro Universitário Maria Antônia - USP, licenciado em teatro pela UFBA. Atuou na Companhia de Teatro Popular da Bahia (1999 - 2006) e foi membro fundador da Companhia de Teatro Popular Cirandarte (Salvador - BA, 2000 - 2002). Estuda processos criativos em teatro de rua e desenvolve pesquisas acerca de jogos teatrais, contato improvisação e de danças populares brasileiras como coco, ciranda, jongo, cavalo marinho entre outras.

Trupe de Circo Teatro Palombar. Nós na Lona. Foto: Anna Piccolo.

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Ao descrever o teatro de rua, André Carreira aponta para as inúmeras possibilidades que são comuns ao teatro de rua, quando afirma que o mesmo “[...] é um teatro de síntese expressiva. Síntese articulada num espaço cênico que se caracteriza por ter altura infinita, amplas dimensões laterais e as mais variadas profundidades” (2007, p. 45).

Além das dimensões físicas em que se desenvolve, o teatro de rua possui proposições sociopolíticas favoráveis às classes populares, dentre as quais reside à transgressão da ordem cotidiana dos espaços e das relações sociais que se desenvolvem nos mesmos. Por observar tal sentido de transgressão do teatro de rua, Carreira defende que:

O simples fato de que o teatro de rua exista implica um potencial transgressor, mas a concretização dessa transgressão manifesta-se em diferentes ordens. Em primeiro lugar o teatro de rua transgride o caótico deslocamento das pessoas nas ruas, pois, mesmo momentaneamente, propõe uma ruptura no uso cotidiano da rua. Recria o espaço da rua e inventa uma nova ordem, ao mesmo tempo em que impõe às pessoas que caminham pela rua uma mudança: de simples pedestres a espectadores. Em segundo lugar, ao ocupar a rua, o teatro se faz permeável à influência do que se poderia chamar “cultura da rua” (2007, p. 41).

No Brasil é grande a variedade de grupos teatrais e artistas independentes que se ocupam com as práticas, reflexões e difusão do teatro de rua. São grupos e artistas de di-ferentes regiões, desenvolvendo específicas configurações espaciais, organizando diversas formas de discursos cênicos, construindo distintas estéticas e assegurando que o teatro de rua seja tão plural como é a própria cultura brasileira. Assim, em meio a essa diversidade de práticas de teatro de rua, é possível observar que, paralelo ao sentido de transgressão, encontra-se o sentido de festividade, partilha e celebração.

O ator, autor e diretor teatral Fernando Peixoto vai mais longe na observação dessa relação entre o sentido de festividade e o teatro de rua ao defender que “No Brasil o teatro de rua está nas raízes das mais autênticas manifestações da identidade cultural nacional, ponto de partida essencial para uma compreensão da poesia popular e de um processo cultural especifico” (apud CRUCIANI & FALETTI, 1999, p. 143). Ainda hoje é comum encontrarmos nas manifestações populares brasileiras, suportes e materiais para o desenvolvimento de um teatro fundamentado por um discurso cênico articulado com as demandas das classes populares. Desse modo, podemos observar que as danças, as festas, os comportamentos, as músicas e as crenças, têm servido de matéria-prima para a feitura do teatro de rua.

O teatro de rua no Brasil é também um exemplo de resistência artística, econômica e cultural. Essa resistência permite que os atores se imponham diante da cultura capitalista que valoriza cada vez mais o luxo oferecido pelo prédio teatral e não o fazer artístico. Além de ser um exemplo de resistência cultural, o teatro de rua também é um notável veículo de contestação social, como nos descreve o diretor teatral e dramaturgo Romildo Moreira:

O teatro de rua no Brasil tem prestado um serviço social dos mais relevantes no contexto cultural á questão política nacional. Sempre esteve presente aos movimentos da sociedade organizada, nos momentos mais importantes da história política e social do país, tais como: movimento pelo fim da ditadura militar; campanha para as eleições diretas (Diretas já); discussões durante a elaboração da Constituição de 1988 (no Recife, por exemplo, houve um projeto intitulado Vamos Teatralizar a Constituinte, que resultou num grande encontro com grupos de teatro apresentando nas ruas espetáculos sobre o tema); isso, para citar apenas alguns dos mais notáveis momentos dessa intervenção a que chamamos teatro de rua (2000, p. 62).

Os professores e pesquisadores Licko Turle e Jussara Trindade também apontam para a relação do teatro de rua no Brasil quando defendem que:

No Brasil, nos anos de 1960 e 1970 o teatro de rua torna-se símbolo de resistência cultural à ditadura militar; nos 1980 e 1990 promove novas experiências estéticas, principalmente na reutilização dos espaços públicos, como praças e ruas, antes proibidos pelo regime autoritário (2010, p. 20).

Não obstante a essa questão, o pesquisador e diretor teatral Jessé Oliveira aponta tanto para o potencial de transgressão, como para o sentido de festividade também identificado como uma característica do teatro de rua brasileiro, quando afirma “[...] sugiro em termos de análise, a existência de duas poéticas de teatro de rua: uma chamada de teatro de rua tradi-cional, largamente desenvolvida em todos os cantos do Brasil e outra, denominada teatro de rua de ruptura” (2010, p. 17).

O teatro de rua brasileiro, com poética popular ou de ruptura, possui uma grande aber-tura para a inserção da música, do canto e da dança nas suas encenações. Essa confluên-cia de diferentes enunciados na sua configuração teatral pode ser devido a necessidade de desenvolvimento de encenações que arrebatem a atenção do público ou também pode ser uma consequência da ligação que o teatro de rua tem com as manifestações populares bra-sileiras, onde os diferentes enunciados, de modo equilibrado, formam um ambiente fértil para o florescer de uma atividade teatral aberta à interação de outras artes.

É justamente nessa abertura de interação de enunciados que se ancora a inserção do Jongo no desenvolvimento de uma investigação acerca do teatro de rua e do trabalho dos atores que nele estão inseridos. O jongo é uma dança rural afro-brasileira, com aspectos profanos propiciadores de divertimento e, também, religiosos, expressos no comportamento e nos cantos que fazem referências a alguns santos católicos e a algumas divindades perten-centes aos cultos afro-brasileiros. No entanto, o jongo tem um aspecto lúdico predominante por ser um feito cultural com movimentos coreográficos improvisados, cantos com linguagem metafórica e interação entre os participantes da roda.

No Dossiê IPHAN - 5: Jongo no Sudeste há um trecho que diz “Nos tempos da escravidão, a poesia metafórica do jongo permitiu que os praticantes da dança se comunicassem por meio de pontos que os capatazes e senhores não conseguiam compreender.” (2007, p. 14). Descrições como essa nos levam a observar que o jongo nem sempre teve o caráter lúdico como fator predominante e, nesse contexto da escravidão do negro no Brasil, também tinha a função de veículo de informação por meio das quais se organizavam fugas, levantes e outras formas de resistência à escravidão. Dessa prática só os mais velhos participavam, visto que, tinha também a predominância do aspecto mágico-religioso e por isso era preciso cuidado especial com as palavras e raciocínio rápido no desate de um ponto, coisa que os mestres conseguiam devido o acumulo de experiências.

Depois da abolição da escravidão o jongo passou a ter mais participantes e mesmo assim com precauções, só os iniciados nessa prática poderiam entrar numa roda e dançar, não era permitida a participação de crianças e visitantes. Os pontos de demanda eram frequentes e carregavam o poder da crença na palavra que os mais velhos ainda mantém, sendo esta crença um dos legados dos ancestrais que com a prática do jongo também trouxeram a cultura da oralidade existente em grande parte de países africanos dentre os quais cito: Nigéria, Gana, Guiné Gâmbia e Senegal, países da Africa Ocidental, onde a cultura da oralidade ainda hoje é fortemente representada pelas figuras dos conselheiros, músicos e contadores de histórias conhecidos aqui no Brasil como griots.

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A musicalidade é um dos aspectos de grande importância na prática do jongo, os tam-bores de nome tambu e candongueiro são cultuados pela comunidade a que pertencem. Eles são regados com cachaça, quando há fogueira são aquecidos pela mesma e são referencia-dos pelos jongueiros no inicio da roda e quando entram na roda pela primeira vez, passando por ele e fazendo um sinal com as mãos que varia de jongueiro para jongueiro e de comuni-dade para comunidade, mas, todos denotam o mesmo sentido de reverência.

O tambu é o maior dos tambores do jongo, ele mede cerca de um metro e meio de al-tura e tem aproximadamente cinquenta centímetros de diâmetro, seu som é forte e grave. O candongueiro mede entre sessenta e oitenta centímetros de altura e tem aproximadamente quarenta centímetros de diâmetro e seu nome deriva do termo candonga que significa intriga, mexerico. Os jongueiros mais velhos relatam que esse nome foi atribuído a este tambor por que seu som alto e agudo denunciava os locais secretos onde o jongo era realizado na época do cativeiro.

O aspecto musical dentro da prática do jongo ainda surge como um elemento propicia-dor de interação entre o público e os jongueiros, pois, antes de ser convidado a entrar na roda e dançar o público já tem participação ativa com palmas que acompanham os instrumentos e com a repetição dos refrões dos cantos conhecidos ou improvisados pelos mestres jon-gueiros. Embora algumas palavras sejam parte de um vocabulário específico, essa interação acontece naturalmente e a cada repetição mais pessoas agregam suas vozes na realização de uma resposta em uníssono.

Os pontos estão classificados em grupos distintos dentro da musicalidade do jongo e, nesse sentido, são entoados pelos jongueiros respeitando a ordem de acontecimento da roda. Ou seja, pontos de inicio e louvação, pontos próprios para a interação dos participantes e realização das movimentações e de despedida. Ao descrever os pontos de jongo, possibi-litando melhor entendimento desse aspecto musical e concomitantemente apontando o quão rica é essa linguagem metafórica, o pesquisador Marcos André afirma que:

[...] Os pontos de jongo têm frases curtas que retratam o contato com a natureza, fatos do cotidiano, o dia-a-dia de trabalho braçal nas fazendas e a revolta com a opressão sofrida [...]. Os pontos misturam o português com heranças do dialeto africano de origem banto, o quimbundo. São criados de improviso e exigem grande criatividade agilidade mental e poesia, muito comum aos negros bantos. [...] Os pontos podem ser de: abertura ou licença, para iniciar a roda de jongo; louvação, para saudar o local, dono da casa ou algum antepassado jongueiro; visaria, para alegrar a roda e divertir a comunidade; demanda, porfia ou gurumenta, para a briga, quando algum jongueiro desafia seu rival a demonstrar sua sabedoria; encante, era cantando quando um jongueiro desejava enfeitiçar o outro pelo ponto; encerramento ou despedida, cantado ao amanhecer para saudar a chegada do dia e encerrar a festa (2004, p. 7).

O jongo apresenta aspectos específicos de acordo com a região a que pertence, e esses estão presentes na forma de dançar, na vestimenta dos jongueiros, na realização dos pontos, na variação do ritmo, no vocabulário e até mesmo na nomenclatura, visto que, em alguns lugares o jongo é chamado de “caxambu” e os tambores, mesmo sendo referenciados como o “tambu” e “candongueiro”, têm outros nomes relacionados às suas figuras. Contudo, há princípios comuns à prática do jongo como um feito cultural afro-brasileiro. Em algumas comunidades as pessoas mais velhas ainda narram acontecimentos sobrenaturais ligados a essa prática.

O jongo faz parte da herança cultural deixada pelos ancestrais negros que foram se-questrados no continente africano e trazidos para o Brasil para serem comercializados. Tra-tados como mercadoria, vestidos com farrapos, nutrindo-se com restos de alimentos e de-senvolvendo formas árduas de trabalhos, foram privados de todos os direitos do ser humano. Mesmo com a existência de diversas formas de castração da identidade cultural, algumas expressões sobreviveram e fizeram parte do cotidiano desses negros, mesmo vivendo na condição de escravos. É nesse contexto de adversidades que o jongo começa a ser realizado aqui no país e tem como responsáveis por sua criação os negros que constituíam o grupo etnolinguístico bantu. No entanto, só há registros do jongo na região sudeste do Brasil, mais precisamente nos interiores e municípios de Minas Gerais e Espírito Santo e nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, nas regiões compreendidas pelo Vale do Paraíba como descreve a pesquisadora Maria de Lourdes Borges Ribeiro:

Verifica-se a vivência dessa dança nos seguintes municípios de São Paulo: Cunha, Caçapava, Ilha Bela, Salesópolis, São José dos Campos, Votuporanga, Caraguatatuba, Lorena, Miracatu, Piraçununga, Redenção da Serra, Taubaté, Iguape, Ubatuba, Pindamonhangaba, Areias, Lagoinha, São José do Barreiro, Bananal, Queluz, Silveira, Cachoeira Paulista, Piquete, Guaratinguetá, Aparecida, Jacareí e São Luís do Paraitinga; no Estado do Rio, sei do Jongo em Resende, Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí, Pinheiral, Arrozal do Piraí, Piraí, Parati e Angra dos Reis; em Minas Gerais, na região compreendida entre Carmo da Cachoeira e Passa Quatro; no Espírito Santo, no litoral sul (1984, p. 13).

Mesmo com a realização de inúmeras pesquisas, ainda não se apresenta com exata precisão a área de ocorrência do jongo, pois, existem comunidades em que o jongo deu lugar para outras práticas culturais. Nesse sentido, dentre as regiões acima listadas, acrescenta-se

Tambus do Quilombo São José da Serra. Valença - RJFonte: Arquivo do autor

Candongueiros do Grupo de Jongo de Barra do Pirai - RJFonte: Arquivo do autor

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a região de Campinas no Estado de São Paulo, onde se tem notícia do Grupo de Jongo Dito Ribeiro; a Zona Leste do Rio de Janeiro, com os grupos Jongo Banto e Jongo da Serrinha e o Município de Valença, no Estado do Rio de Janeiro, onde está localizado o Quilombo São José da Serra, com um grupo de Jongo que tem o mesmo nome do referido quilombo.

Em 2005, o jongo foi registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-nal – IPHAN como bem cultural imaterial do Brasil. No entanto, mesmo depois desse registro, ele continua sendo uma prática cultural afro-brasileira pouco conhecida nacionalmente devi-do a sua existência restringir-se à Região Sudeste do país.

Além da construção de uma referência na sua configuração espacial, que é circular e horizontal, a utilização do jongo como meio de trabalho corporal de atores que atuam no te-atro de rua, deve-se também aos seus elementos artísticos, lúdicos, dinâmicos e coletivos. Através desses elementos, vão se amalgamando a prática do Jongo com uma prática teatral que busca ter como característica, a disposição do público e a organização da encenação a partir da instalação de uma roda como espaço de vivências compartilhadas e construção de reflexões.

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TEATRO DO OPRIMIDO COMO INSTRUMENTO CONTRA HEGEMÔNICO

Flavio Sanctum7

RESUMO

A metodologia do Teatro do Oprimido, criada por Augusto Boal, propõe que as classes populares oprimidas utilizem a arte para representar sua realidade e, por conseguinte, trans-formar as situações de opressão em que se encontram. A partir do conceito de Hegemonia de Antônio Gramsci e Mito de Roland Barthes o artigo problematiza até que ponto o Teatro do Oprimido pode ser considerado um instrumento contra hegemônico na sociedade capita-lista. O artigo apresenta a análise do método boaliano tendo como norte a pesquisa cultural realizada pelo professor Eduardo Granja Coutinho, que também se utilizou dos conceitos de hegemonia e mito para abordar práticas culturais contemporâneas.

Palavras-Chaves: Teatro do Oprimido, Augusto Boal, Mito, Hegemonia

ABSTRACT

The methodology of the Theatre of the Oppressed, created by Augusto Boal, proposes that the oppressed classes using art to represent their reality and therefore transform situa-tions of oppression in which they live. From the concept of Hegemony by Antonio Gramsci and Myth by Roland Barthes this paper analyzes if the Theatre of the Oppressed can be con-sidered a tool against cultural hegemonic in capitalist society. This paper presents an analysis of the Boal method of having as northern cultural research conducted by Professor Eduardo Granja Coutinho, who also used the concepts of hegemony and myth to reflect on contempo-rary cultural practices.

Keywords: Theatre of the Oppressed, Augusto Boal, Myth, Hegemony

Introdução

Quando o teatrólogo brasileiro Augusto Boal iniciou as pesquisas do seu método, o Teatro do Oprimido, se alicerçou no pensamento de Karl Marx para, através de encenações teatrais, representar a luta de classes, cujo conflito antagônico acontecia entre figuras como patrão/empregado, latifundiário/camponês etc. Mesmo que Boal (1980) negue que o Teatro do Oprimido era um teatro de classes, na prática as peças tinham características de um teatro proletário, provavelmente herança do Teatro Político dos anos 1960 e 1970. Porém, isso não desmerece seu empenho na transformação social e política da realidade. Em toda sua vasta obra Boal defende um teatro em prol dos oprimidos, com objetivo de transformar a sociedade capitalista, propondo uma nova sociedade. Atualmente, diversas práticas inspiradas na meto-dologia de Boal seguem um conceito mais amplo de oprimido, não atentando somente à luta de classes, independente desta ser a base para a maioria dos problemas apresentados pe-los oprimidos. Ultimamente, os problemas apresentados nas peças dos grupos de Teatro do Oprimido se desdobraram para temas sociais gerais como racismo, homofobia, machismo, o que talvez a discussão somente no prisma da luta de classes não dê conta.

7 UniRio, doutorando em Artes Cênicas. Vinculado ao Núcleo de Estudos da Performance Afro-Ameríndia NEPAA orientador Zeca Ligiéro. CAPES. Curinga do Centro de Teatro do Oprimido.

Teatro Popular União e Olho Vivo. A cobra vai fumar. Foto: Augusto Paiva.

Núcleo Pavanelli. Aqui não, senhor patrão! Foto: Augusto Paiva.

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O Teatro do Oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o teatro proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe em sua totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da classe proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. Pode acontecer que essas opressões sejam o resultado da universalização dos valores da classe dominante (“As ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante” – Marx). Seja como for, é evidente que na classe operária podem existir (e existem) opressões de homens contra mulheres, de adultos contra jovens etc. O teatro do oprimido será o teatro também desses oprimidos em particular, e não apenas dos proletários em geral (BOAL, 1980, p.25).

Mesmo sem explicitar concretamente que essa sociedade ideal seria a Comunista, Boal se baseia na teoria de Marx, Engels e “herdeiros” como Brecht para a construção de um método artístico, hoje praticado em mais de setenta países em todos os continentes8. Para analisar a teoria estética de Boal em toda sua complexidade, levando em consideração sua ampliação e aprimoramento desde a criação do método até a morte de Boal em Março de 2009, será necessário avançar no pensamento marxista e levar em consideração o que filó-sofos como Roland Barthes e Antônio Gramsci defenderam. A sociedade recente sofre um processo de degeneração e dominação cultural em vários aspectos, o que foi detectado por esses pensadores e apontado também por Boal, de forma diferente, em sua última obra – A Estética do Oprimido (2009).

Neste ensaio analiso onde a teoria de Boal se complementa com as reflexões sobre sociedade e cultura feita por Roland Barthes e Antônio Gramsci através dos conceitos de Mito e Hegemonia. O Teatro do Oprimido pode ser entendido como um instrumento contra--hegemônico na luta por uma sociedade mais justa?

1. Teatro do Oprimido e Resistência Mítica

Desenvolvido a partir dos anos 1960-70, o método do Teatro do Oprimido (TO) surgiu durante a ditadura civil-militar brasileira e sul americana. Dentre as práticas do grupo teatral Arena de São Paulo, onde Boal era um dos diretores, eram experimentadas práticas artísti-cas que proporcionassem um debate com a plateia sobre os problemas ocorridos na época. Boal teve parceria com grandes artistas da cena brasileira como Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Plínio Marcos, Zé Renato, Amir Haddad, Chico Buarque, Nara Leão, entre outros.

1.1 – O Teatro Jornal

A experimentação do método se iniciou no Brasil com práticas como o Teatro Jornal, que eram encenações de notícias jornalísticas que mostravam as “entrelinhas” das reportagens. No período da ditadura brasileira, muitos meios de comunicação eram dominados por em-presários e políticos simpáticos ao regime militar. Quem não “dançasse conforme a música” teria seu jornal perseguido, fechado ou depredado. Assim, a manipulação de informações para o consenso popular era uma regra numa imprensa direitista. Gramsci já detectava em sua época que os jornais desempenhavam um papel de repressão e construção hegemôni-ca. A criação de slogans enaltecendo o Brasil como “terra boa de se viver”, a ocultação dos crimes realizados pela ditadura, eram acordados entre a imprensa e o governo brasileiro para acalmar a população e criar um ambiente confortável para a classe dominante. Com isso,

8 Atualmente o Teatro do Oprimido está inserido em diferentes comunidades na Índia, Moçambique, Guiné Bissau, Angola, Alemanha, França, Argentina, Estados Unidos, Austrália, Palestina, Espanha, Uruguai, etc. Alguns países não se tem registro de como a metodologia é utilizada, mas supõe-se que é praticada em mais de setenta países.

o grupo coordenado por Boal estudava as reportagens impressas pelos grandes jornais e buscava perceber quais manipulações eram feitas na construção da notícia veiculada. Como uma forma de resistência e denúncia, o grupo organizava clandestinamente apresentações teatrais com uma nova versão da notícia. Revelavam a opressão e a coerção ocultada pela mídia burguesa.

Como meio privilegiado de que a burguesia dispõe para expressar sua vontade, defender seus interesses econômicos e preservar seu poder político, os jornais desempenham, segundo Gramsci, a função de “partidos”, “frações de partidos” ou “funções de determinados partidos” (COUTINHO, 2009, p.51).

Nesse processo de criação e encenação estavam artistas como Celso Frateschi, Dulce Muniz, Hélio Muniz, Elísio Brandão, Denise Fallotico, Edson Santana e vários outros que contribuíram nessa construção. Era como uma arma contra a ditadura subliminar utilizada pelos meios de comunicação.

A forma de “teatro-jornal” tem vários objetivos. Primeiro, procura desmistificar a pretensa “objetividade” do jornalismo: demonstra que uma notícia publicada em um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma notícia e o seu próprio caráter dependem de sua relação com o resto do jornal. Se na manchete surge a tragédia da jovem que foi miraculosamente salva depois de atear fogo às vestes, desenganada no seu amor – esta tragédia de primeira página reduz à simples condição de jaits divers os sangrentos choques entre os guerrilheiros palestinos e os mercenários do Rei Hussein. Pergunta-se qual é mais importante: a conquista do tri-campeonato ou a seca do Nordeste? O Cidadão Kane, de Welles, já respondeu: “Nenhuma notícia é importante bastante para valer uma manchete; ponha-se qualquer notícia sem importância na manchete e ela se transformará em notícia importante!” Assim se manipula a opinião pública – o processo é simples, indolor (BOAL, 1971).

O Teatro Jornal tem nove técnicas que buscam essa desmitificação jornalística. Elas vão da mais simples a mais complexa em sua execução teatral. Na Leitura com Ritmo, por exemplo, os atores buscam descobrir qual ritmo pode se aproximar do conteúdo de determi-nada notícia. Esse ritmo deve revelar o fundo ideológico da notícia, facilitando seu entendi-mento político. O processo inverso também pode ser experimentado, como utilizar um ritmo completamente diferente para a leitura de determinada notícia. Como ficaria se a notícia sobre o aumento dos juros fosse lido em ritmo de samba ou a vitória de um time de futebol em canto gregoriano? O importante é os atores revelarem os conteúdos obscuros da notícia.

Outra técnica, mais elaborada, que exemplifica a potência do Teatro do Oprimido é o histórico. Depois do grupo escolher qual notícia será trabalhada, pesquisa-se fatos ocorridos no entorno daquela notícia, que a originou. Por exemplo, um estudante é assassinado a ca-minho da escola. Pode-se pesquisar e mostrar a violência que acontece com muitos jovens de comunidades pobres, a diferença social, a educação precária etc. Isso será encenado ao mesmo tempo em que a notícia é lida. Quando manipuladas e utilizadas para criar uma at-mosfera de consenso popular, as manchetes jornalísticas não nos dão a dimensão histórica e política dos fatos ocorridos. O grupo, após a pesquisa, encena esses fatos, revelando o aspecto sóciopolítico que o jornal ideologicamente escondeu.

Assim, o Teatro do Oprimido, através do Teatro Jornal, pode ser um potente instrumento de desmitificação, pois oportuniza aos participantes historiar politicamente o que foi esva-ziado de conteúdo social. E de acordo com Barthes e Gramsci a manipulação da sociedade através da comunicação também se dá com o esvaziamento político dos acontecimentos.

Para Barthes (2001) o mito é a ressignificação de uma ideologia popular ou da classe

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subalterna, esvaziada de seu conteúdo político. Seria uma “fala” que representa os oprimi-dos, transposto aos interesses da classe dominante, que é devolvido às classes populares como algo novo. Tais elementos, acontecimentos, manifestações culturais são dissociados dos fatos históricos que o acompanham e que referendam sua importância política para de-terminada classe social. Desta forma, sem a dimensão histórica e política, o conteúdo crítico de tal manifestação é enfraquecido. Por exemplo, nos anos 1980-90 a música funk das comu-nidades cariocas tinha um aspecto de denúncia, de manifestação social, de reivindicação por direitos. Quando a grande mídia se apodera do ritmo das favelas e “transforma” esse movi-mento em produto, mercadoria para as massas, suprime-se a questão política, a denúncia, a resistência social. Essa música é enlatada, massificada, mitificada pela indústria cultural, do entretenimento, que não tem nenhum comprometimento com a transformação social. Aquela “fala” da favela é absorvida pela ideologia da classe dominante, reorganizada como merca-doria e volta esvaziada de conteúdo crítico para a mesma população.

Outro exemplo de como esse processo de mitificação se dá é através das novelas onde os pobres, favelados ou suburbanos são representados de maneira jocosa, distorcida. Es-sas personagens representam o ponto de vista de seu autor, que contribui com a ideologia da emissora de televisão, reforçando as imagens deturpadas dessa população, que muitas vezes se identifica e absorve esse comportamento, começando a agir da mesma maneira. E essas atitudes são tomadas como algo natural do povo.

1.2 – O Teatro-Fórum

A metodologia do TO se desenvolveu ainda pela Argentina, Peru, Chile até chegar a países europeus como França, Alemanha, Áustria. Boal, perseguido por suas ideias anticapi-talistas, migrava por diferentes lugares do mundo, experimentando práticas teatrais. Nessas viagens surgiram outras vertentes do método como o Teatro Invisível, Teatro Imagem e es-pecificamente o Teatro-Fórum, que é a mais praticada no mundo e, no meu ponto de vista, a mais potente.

A partir de histórias reais de opressão compartilhadas coletivamente, um grupo encena a situação que considera a mais urgente a ser denunciada. Para a construção cênica são realizados diferentes procedimentos teatrais como jogos corporais, de interpretação, de cria-ção de cenários, figurinos e músicas. Nessas atividades o grupo se expressa artisticamente, colocando impressões pessoais sobre a situação ocorrida. Cores, imagens, formas, tudo que é incorporado à encenação precisa ter um significado, objetivo ou não, que fortaleça a his-tória contada. O coletivo interpreta a cena com elementos criados, imaginados e discutidos em conjunto. A peça deverá representar os sentimentos e a ideologia daquele grupo social. O objetivo é que a encenação seja a “fala” de determinado grupo social e uma contestação da realidade mitificada, de acordo com Barthes (2001). Portanto, nesse processo de criação de um espetáculo de Teatro-Fórum, o grupo deve se apoderar dos elementos artísticos para reler a realidade mitificada e apresentar à sociedade seu ponto de vista dessa mesma reali-dade. Assim, essa ressignificação do real não será representada pela classe dominante, mas pelos oprimidos, que a partir de sua realidade podem manifestar suas opressões por intermé-dio do teatro. E como resistência à fala roubada e mítica, o Teatro do Oprimido propõe que o próprio grupo crie todos os elementos do espetáculo.

O primeiro passo seria a ressignificação dos elementos de cena. Por exemplo, um celu-lar, que está intrinsecamente ligado ao significado de tecnologia, deve ser repensado a partir

do que ele representa para aquele grupo de oprimidos, naquela situação de opressão. Por exemplo, a personagem opressora pode ter um celular amarelo para representar a riqueza, ou com pedras coloridas, ou exageradamente grande como símbolo do poder. Os móveis da casa do oprimido podem ter vários braços que o segura e não o deixa sair, ou garras de monstro ou cores do nazismo para representar a opressão e o medo. Deve-se incentivar um significado não realista, não determinado e instaurar a dúvida sobre cada elemento cênico. O que esse elemento representa para vocês? Como esse objeto pode ampliar a opressão que queremos apresentar na peça? Assim, todo elemento deve ser modificado de acordo com as ideias e sentimentos daquele grupo de oprimidos: o tamanho, a cor, o formato, devem-lhe atribuir um novo conceito, com novas inspirações emocionais e políticas. Deve-se criar um novo signo, que se afaste do significado real, mitificado, imposto pela sociedade consumista que vivemos. É o ser humano que atribui valor aos objetos através de convenções sociais. Boal já dizia que vivemos numa luta sensorial.

Afinal, é pela interação semiótica, pela reelaboração e compartilhamento dos signos, que os sujeitos constroem suas identidades, organizam a sua visão de mundo, representando a realidade a partir de uma determinada perspectiva e de acordo com seus interesses, anseios e expectativas (COUTINHO, 2009, p.44).

E todo o processo de criação cênica passará pelo processo de reflexão dos elementos reais com objetivo da desmitificação. Tanto os objetos como o texto, as músicas, os movi-mentos dos personagens em cena, o cenário, deve representar essa fala dos oprimidos, que encontram no teatro uma forma de expressar seus sonhos e anseios por uma realidade mais digna e justa. “Nosso objetivo estético é mostrar essas ideologias camufladas de opiniões e revelá-las para que possam ser destruídas, quando for o caso” (BOAL, 2009, p. 211).

2 – Arte Hegemônica e Contra-Hegemonia

Importante pensarmos que não é o simples fato de fazer arte com a classe popular oprimida que o processo de reelaboração semiótica, que se refere Coutinho, ocorra ou seja prioridade. Muitos grupos teatrais inseridos em comunidades pobres são utilizados como instrumento de hegemonia cultural, a partir de uma leitura gramsciana. Preparar atores para atuarem nas grandes emissoras televisivas, se padronizando as necessidades do mercado, adaptando a auto-imagem ao que a TV almeja só fortalece a exclusão e a segmentação da sociedade, mantendo o ciclo de dominação através do capital e da propriedade privada. São instituições comunitárias que não despertam no oprimido sua vontade de lutar contra a ex-ploração e desigualdade de todos os dias. E não precisamos nos deter em grupos teatrais, já que muitas instituições ligadas às artes e à comunicação, como as rádios comunitárias, grupos musicais ou de dança, não fazem nada mais do que reproduzir uma cultura de massa, hegemônica e mitificada.

Não é à toa que, nos lugares onde a pressão social é mais intensa e o Estado mais opressivo, são mais escassas e precárias as organizações político-culturais populares. Nas favelas cariocas – e aqui vale utilizar a expressão gramsciana – as organizações pertencentes à sociedade civil são “débeis e gelatinosas”. Com exceção, é claro, das igrejas, cujo crescimento é proporcional ao desespero e à exclusão cultural da população (COUTINHO, 2008).

Por isso não basta estar numa comunidade, numa escola ou sindicato, trabalhando com oprimidos para que a arte produzida sirva como arma de libertação da classe subalterna. Essa arte precisa ter objetivos contra-hegemônicos, que dê oportunidade ao oprimido mos-

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trar o seu ponto de vista da realidade, para, a partir daí, transformá-la.

Uma Estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte. [...] Devemos pensar a arte do ponto de vista de quem a produz e pratica, não a partir de uma perspectiva contrária à nossa (BOAL, 2009, p. 167).

Nesse ponto, o professor e pesquisador de cultura brasileira e comunicação Eduardo Granja Coutinho faz uma análise de artistas ligados ao samba carioca e aponta como a mú-sica é utilizada por determinados artistas como Paulinho da Viola e Bezerra da Silva como uma fala popular. Esses cantores e compositores representam uma classe e através de seus sambas mostram as vivências e opressões dessa classe.

Ainda na música temos exemplos como Geraldo Vandré ou bandas de rock dos anos 1980 como Legião Urbana, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor que criticavam a sociedade no ponto de vista de uma juventude com ânsia por tempos melhores. Nas artes cênicas temos grupos de teatro popular como Tá Na Rua (RJ), Ói Nóis Aqui Traveiz (RS), Cia. Étnica de Dança (RJ), Carroça de Mamulengos (CE).

No Teatro do Oprimido podemos perceber uma resistência contra-hegemônica nos gru-pos comunitários, os GTOs. São diferentes grupos de oprimidos que se reúnem para, atra-vés da encenação de suas mazelas, abrirem espaço para um diálogo entre palco e plateia para transformarem a realidade opressiva em que vivem. Um exemplo de GTO é o Marias do Brasil, formado por empregadas domésticas vindas do nordeste para o Rio de Janeiro. Esse grupo está reunido há mais de dez anos e utilizam o Teatro do Oprimido para discuti-rem questões como direitos trabalhistas, assédio sexual e exploração. Essas empregadas/artistas já se apresentaram em diversos lugares do Brasil, em teatros e até em Brasília numa manifestação pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Enquanto esse grupo levantava politicamente questões pertinentes para todo o coletivo de empregadas domésticas a Rede Globo colocou no ar a novela Cheias de Charme, que teoricamente iria mostrar a “vida” das empregadas, seus problemas, suas carências e desejos.

Como vimos anteriormente, o conceito de mito em Barthes complementa a ideia de he-gemonia proposta por Gramsci. No mundo atual a população é coagida não mais pela força armada, mas por diferentes instrumentos de convencimento e controle social, para a manu-tenção do Estado e do poder econômico da classe dominante. Um desses instrumentos, de acordo com Gramsci é a comunicação, a Cultura.

Em linhas gerais, a conclusão a que Gramsci chegou foi a de que, nas sociedades industrializadas de “tipo ocidental”, a dominação de classes não se dá apenas por meio dos aparelhos de coerção, mas também pela “hegemonia”, isto é, pela busca do “consenso” do dominado. A sociedade civil, a esfera da cultura, aparece como uma das instâncias da luta política (COUTINHO, 2009, p. 46).

O Grupo Marias do Brasil participou de uma matéria especial, sobre o tema dos direi-tos trabalhistas das empregadas domésticas, no Jornal O Dia (29/04/2012) dizendo que os conflitos da novela global não condiziam com a realidade das tantas empregadas brasileiras. Mais uma vez as ações dos oprimidos são distorcidas pela ideologia da classe dominante. A mídia não tem o interesse de ser para o povo um instrumento de reflexão, de reconhecimento de sua imagem, mas reforça as ideias capitalistas de consumo, onde tudo se transforma em mercadoria.

Claro que mesmo dentro dos grupos de Teatro do Oprimido a conscientização política se dá de forma lenta, já que somos bombardeados todos os dias com as ideias capitalistas. Nessa mesma entrevista duas das atrizes do grupo confessam que sonham em fazer novelas na TV Globo. O processo de transformação popular para a reflexão política precisa ser um trabalho árduo, contínuo, de formiguinha.

Outra desvirtuação do Teatro do Oprimido que acontece ao utilizar a metodologia den-tro de empresas para que os empregados se tornem mais produtivos. Nesse caso eu diria que nem seria o método criado por Boal, pois de acordo com o mesmo para ser TO precisa estar de acordo com os fundamentos filosóficos do método. Não é porque se reproduz jogos ou exercícios criados ou sistematizados por Boal que tal prática pode ser denominada como Teatro do Oprimido. De acordo com o autor, precisa ter base na Ética e na Solidariedade, tendo em vista a transformação da realidade através do ponto de vista do oprimido. Nesses aspectos os teatros em empresas ou em situações onde o oprimido não seja o protagonista dessa ação, não pode ser considerado Teatro do Oprimido.

E de acordo com Boal:

O TO é um método teatral que se manifesta através da Estética do Oprimido, sistema com a mesma base filosófica, social e política, que engloba todas as artes que integram o teatro. [...] O TO é uma Árvore Estética: tem raízes, tronco, galhos e copas. Suas raízes estão cravadas na fértil terra da Ética e da Solidariedade, que são sua seiva e fator primeiro para a invenção de sociedades não opressivas. [...] TO é ensaio para a realidade – intervenção concreta no real. Não se trata apenas de conhecer a realidade, mas de transformá-la em outra melhor – obra dos próprios oprimidos conscientes, ou conscientizáveis, com os quais somos solidários. Nossa política é apoiar os grupos de oprimidos cujas políticas nós apoiamos (BOAL, 2009, p.185-6).

E nessa concepção artística fica difícil englobar o TO em práticas que se diferenciam das que objetivam a liberação dos oprimidos.

Conclusão

Num contexto geral observamos como a metodologia do Teatro do Oprimido pode ser um instrumento que fortaleça a reflexão das classes populares, criando espaços para a cria-ção e reelaboração subjetiva dos indivíduos. Quando temos a oportunidade de reinventarmos uma realidade através das artes cênicas, podemos nos afastar dela e a possibilidade de refle-xão se amplia. Como toda obra de arte é uma representação do real, o artista imprime nessa obra seus sentimentos, ideias e consequentemente sua ideologia. Eu concordo com Boal quando ele afirma que todo teatro é político, que fazer arte é, em si, um ato político. Optar não dizer nada com a arte, fazer arte pela arte, já é uma escolha política. Por isso, presumo que nós artistas/políticos precisamos utilizar nossa arte como instrumento de transformação so-cial. Não abrir mão da estética como arma de desmitificação da cultura e de desestruturação da sociedade do capital. Como estamos numa guerra dos sentidos, da cultura, da informação e da comunicação, precisamos utilizar as armas que a classe dominante usa contra nós. A arte é uma dessas armas, potente, que pode libertar a sociedade opressora e dominadora. “A construção de uma nova ordem pressupõe a organização de uma nova cultura e, portanto, meios capazes de criar e expressar uma vontade coletiva contra-hegemônica” (COUTINHO, 2009, p.54).

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Cortejo Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

URBANIDADE CONTAMINADA: A DILUIÇÃO DE FRONTEIRAS NA CENA TEATRAL CONTEMPORÂNEA

Cecília Lauritzen Jácome Campos9

RESUMO

O artigo problematiza o espectador da cena contemporânea, partindo da noção de “con-taminação”. Em tempos de discussão sobre as fronteiras do teatro com outras artes da cena é válido questionar-se a respeito do espaço da recepção. Como meio de questionar dentro da prática tais discussões, a reflexão aponta dois espetáculos: Bivouac (Generik Vapeur – Fran-ça) e Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote (Teatro que Roda – Goiás). Por fim, o artigo coloca em questão a noção de “urbanidade”, levando em consideração as interferências que as artes cênicas contemporâneas geram no espectador (cidadão) e suas possíveis reverbe-rações na criação de novas relações com a cidade.

Palavras-chave: espectador, contaminação, cena contemporânea, urbanidade.

ABSTRACT

The article discusses the spectator of the contemporary scene, starting from the notion of “contamination”. In discussion times on the boundaries of theater with other arts scene is valid to question themselves about the reception space. As a way of questioning within the practice such discussions, the article points out two spectacles: Bivouac (Generik Vapeur - France) and About the Adventures of Don Quixote (Teatro que Roda - Goiás). Finally, the ar-ticle questions the notion of “urbanity”, taking into account the interference that contemporary performing arts generate in the spectator (citizen) and their possible reverberations in creating new relationships with the city.

Keywords: spectator, contamination, contemporary scene, urbanity.

9 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Apoio: CAPES-FAPESC. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Endereço eletrônico: [email protected]

REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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_____. Teatro Jornal Primeira Edição. In: Latin American Theatre Review Vol 04, Nº 02, Spring - Kansas, U.S.A: The Center of Latin American Studies - The University of Kansas, 1971.

COUTINHO, Eduardo Granja. Gramsci: a comunicação como política. In: COUTINHO, Eduardo Gran-ja; FILHO, João Freire e Paiva, Raquel (orgs.). Mídia e Poder: Ideologia, Discurso e Subjetivida-de. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

_____. Velhas Histórias, Memórias Futuras. Sentido da Tradição em Paulinho da Viola. Rio de Ja-neiro: Ed. UFRJ, 2011.

_____. A comunicação do oprimido: malandragem, marginalidade e contra-hegemonia. In: PAIVA, Raquel e SANTOS, Cristiano (orgs.). Comunidade e contra-hegemonia: rotas de comunicação alternativa. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. (acessado em 22/10/2012 em: www.pixfolio.com.br/arq/1349113243.pdf)

Sites

http://migre.me/rR6F9

www.cto.org.br

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As manifestações artísticas contemporâneas encontram-se irremediavelmente entre-laçadas por práticas e discursos que se contaminam. Estudar tais práticas cênicas implica permear diversas áreas do conhecimento, pois o espaço em que elas acontecem representa âmbito de convívio social, manifestando práticas, poderes e usos.

Em artigo sobre a arte nos espaços públicos, a professora e pesquisadora Zalinda Car-taxo10 aborda a questão das intervenções urbanas na contemporaneidade, a partir da ruptura com determinados condicionamentos da arte moderna. Segundo a autora, na década de 1960 muitos artistas sentiram a necessidade de adotar novas posturas e procedimentos que buscavam resgatar uma relação mais próxima com o real, “[...] não apenas numa dimensão estética, mas também política, cultural e social” (CARTAXO, 2009, p. 3).

Nesse sentido, as estruturas institucionais e os lugares da arte, como museus, galerias e edifícios teatrais, passaram a ser questionados, suplantados, em favor de uma ampliação da arte contemporânea no espaço urbano. Ao se colocarem na cidade, reaproximando o sujeito do mundo, essas manifestações concebem acontecimentos que se infiltraram nas es-truturas do espaço urbano de modo que, muitas vezes, não são percebidas como tais. Nesse momento, o transeunte passa a ser público de arte, onde sua participação pode se tornar, com frequência, relevante e imperceptível, simultaneamente.

As experiências como espectadora de dois espetáculos específicos do 6º Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre11 guiam a discussão e proporcionam diálogos diversificados sobre os usos dos espaços da cidade, seus modos de apropriação, bem como da criação artística. A escolha dos referidos espetáculos ocorreu, a partir do envolvimento estabelecido no momento da recepção, cujos acontecimentos foram decisivos para o debate acerca das linguagens em “contaminação”.

10 Zalinda Cartaxo é artista visual, autora do livro Pintura em distensão e professora adjunta na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

11 O festival, que já está na sua sétima edição, aconteceu de 20 a 29 de Abril de 2014 na cidade de Porto Alegre (RS).

Cortejo Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

O espetáculo Bivouac, da companhia francesa Générik Vapeur12 é uma versão mo-derna de uma horda primitiva que controla as ruas e vira a cidade de cabeça para baixo. O espetáculo, que tem duração de 60 minutos, percorreu 600 metros do bairro Cidade Baixa, atravessando avenidas de grande fluxo, interrompendo a ordem do trânsito dos carros e pedestres. O percurso foi sendo delimitado por intermédio da movimentação dos barris con-duzidos pelos performers em associação ao carro elétrico que se mantinha na parte de trás do “cortejo”. Para o grupo,

Bivouac deseja executar restaurações, criar espaços arriscados, verificar os reflexos, a capacidade de saltar. Há o esboço de uma coreografia de balé coletivo, que se difere de um público para outro, onde se fragmenta em muitos a dupla “ator-espectador”, estando ambos muito perto e muito longe. Compartilham o mesmo espaço, respiram o mesmo ar e pertencem a dois mundos que não se sobrepõem, onde um pertence ao imaginário do outro (Tradução minha)13.

Dois aspectos que caracterizam esta performance ficam claros no momento da recep-ção: a itinerância e a contaminação. Ambos estão intimamente ligados em Bivouac, não ape-nas pelo fato do grupo deixar claro seu desejo em termos estéticos, mas pela potência de envolvimento que tais escolhas transparecem. A itinerância é marcante na participação do espectador, pois o leva a questionamentos como: Por que eu estou fazendo este trajeto e o que me leva a correr atrás dessas pessoas? Há uma espécie de condução que não é guiada, didaticamente falando, mas deixa claro um tipo de abordagem, cujo participante se sente convidado e parte integrante do acontecimento. Para Lehmann o objetivo principal desse tipo de encenação é menos a amarração estética do todo, mas, sobretudo, a produção de experiência. Busca-se uma interferência no espectador no intuito de que ele seja capaz de “[...] mobilizar sua própria capacidade de reação e vivência, a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida” (2007, p. 224).

A experiência como espectadora em Bivouac evidencia o “desvio performativo”, aponta-do por Fischer-Lichte (2008), sofrido pelo teatro a partir dos anos 1960. Tal redirecionamento não concebe mais o teatro como representação de um mundo ficcional que o público deveria observar, interpretar e compreender. Para Fernandes “[...] a performatividade elude o escopo da teoria estética tradicional, pois resiste às demandas da hermenêutica de compreender a obra de arte” (2011, p. 17), ou seja, a participação do público ultrapassa a missão de inter-pretar e produzir significado frente a uma performance. E “[...] isso não quer dizer que, numa performance, não haja nada para o espectador interpretar, mas também não se pode dizer que as ações do artista performativo apenas signifiquem alguma coisa” (FERNANDES, 2011, p. 17). Nesse sentido, o papel do espectador se amplia, pois assume uma posição de obser-vador que é, ao mesmo tempo, atuante e sujeito da fruição. Além disso, os espaços da sub-jetividade são incorporados à ação da recepção, visto que o contemplar foi redefinido como atividade, “[...] como um fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado” (FISCHER-LICHTE, 1988, p. 149).

12 GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <http://ftrpa.com.br/bivouac-franca-marseille/>. Acesso em: 02 jul. 2014.

13 “Bivouac redonne envie de courir, de frôler, d’esquiver, De vérifier ses réflexes, sa capacité de saut, de volte-face. De là s’esquisse la chorégraphie d’un ballet collectif, différent d’un public à l’autre, qui se fragmente en autant de pas de deux comédien-spectateur. Etre à la fois très près et très loin. Partager le même espace, respirer le même air et appartenir à deux univers Qui ne se superposent pas, dont l’un est l’imaginaire de l’autre”. GÉNÉRIK VAPEUR (Marselha) (Org.). Bivouac. 2014. Disponível em: <https://www.facebook.com/Generik.Vapeur?fref=ts>. Acesso em: 02 jul. 2014.

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O aspecto da contaminação é recorrente na cena artística contemporânea, chegando a refletir, inclusive, uma crise identitária das linguagens, abalando suas convicções episte-mológicas. Nesse sentido, segundo Fernandes, atualmente seria adequado falar em “[...] experiências cênicas com demarcações fluidas de território, em que o embaralhamento dos modos espetaculares e a perda de fronteiras entre os diferentes domínios artísticos são uma constante” (2011, p. 11). Para a autora, ainda, é importante pensar no espetáculo como even-to que envolve performers e espectadores numa atmosfera única, compartilhada, criando um espaço gerador de experiência que vai além do simbólico. Esse ato transgressor da cena contemporânea é capaz de reverberar fisicamente em seus participantes, de modo a criar um ambiente de “infecção emocional”.

No caso do Générik Vapeur, a contaminação toma proporções que transbordam a pró-pria cena, pois sua inserção instaura fraturas profundas nas dinâmicas do espaço utilizado. Tais rupturas tornam-se visíveis no nível do trânsito (automóveis e pedestres), das paisagens sonora e visual, bem como nas nuances de relação com o cidadão que vai estabelecendo ao longo do percurso, fazendo-se necessário pensar no espaço da cidade como ambiente. Segundo o pesquisador André Carreira,

[...] ambiente é o resultado da experiência cotidiana que se apropria do espaço que nasce como projeto, mas se deforma para alcançar uma organização que é sempre temporária. O ambiente se modula com uma durabilidade relativa, pois sua dinâmica interna sempre conduz a novas conformações (2008, p. 67).

É característico da performance possibilitar esse tipo de organização temporária, usual do ambiente. Tais escolhas, que residem no nível da “abertura” ou disponibilidade, relacio-nam-se com o espaço e com as atitudes internas, ou seja, no nível da “cena”, igualmente. Nesse sentido, Glusberg (1987, p. 83) aponta para o fato de que o elemento inesperado na performance pertence primeiramente ao artista e depois ao espectador, reforçando a ideia de que o performer se prepara para o acontecimento, mesmo que sua estrutura não esteja rigidamente articulada.

O espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu Escu-deiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido (2006)14 do grupo Teatro que Roda (Goiás, 2003) apresentou-se durante o festival no Largo Glênio Peres, centro da cidade de Porto Alegre. Uma breve sinopse da peça relata:

Um executivo cansado de sua rotina resolve mergulhar num mundo imaginário em busca de aventuras e emoções e passa a acreditar ser Dom Quixote. Descendo de um prédio, numa corda, gritando por sua amada Dulcinéia e se desfazendo de seu figurino de gravata, incorpora o cavaleiro andante. Sua primeira tarefa é encontrar seu fiel escudeiro, Sancho Pança, missão que acaba nas mãos de um catador de papel de rua. Mas não pode haver cavaleiro andante sem seu cavalo. Sancho então constrói com sucatas um cavalo para seu amo no seu carrinho de catador. Pronta a equipe, saem pelas ruas à procura de aventuras (FTRPA, 2014)15.

Neste espetáculo a itinerância se repete como traço marcante, entretanto, seu percurso não conduz o espectador a um questionamento brusco sobre o deslocar-se. Aliás, ele se tor-na quase imperceptível perante o grau de envolvimento que toma os participantes da ação. Há um fio condutor claro no desenvolvimento do espetáculo, que leva os espectadores a 14 TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Histórico. 2008. Disponível em: <http://migre.me/rRq0M>. Acesso em: 02 jul. 2014.

15 TEATRO QUE RODA (Goiânia) (Org.). Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança (um capítulo que poderia ter sido). 2014. Disponível em: <http://migre.me/rR7eF>. Acesso em: 02 jul. 2014.

essa sensação de deslocamento. O principal elemento que integra tal fio é a relação que vai se construindo ao longo do espetáculo entre Dom Quixote e Sancho Pança e, consequente-mente, entre este último e o público. A oscilação contínua entre ficção e realidade, feita pela personagem-ponte (Sancho Pança), coloca o espectador numa posição dual, conduz a um lugar em que persiste a dúvida e alimenta a integração. Para Silva (2011), Sancho está sem-pre lembrando ao público sobre o caráter ilusório das ações de Dom Quixote, o que garante uma atuação cúmplice da atriz com os espectadores.

A noção de invasão fica evidente na montagem, porque há uma mudança, não apenas na relação com o espaço urbano, mas também na relação com o próprio espectador. Podemos dizer que o espectador passa por dois processos de transformação ao se deparar com um tipo de espetáculo que se inspira na invasão. Uma, quando ele deixa de ser pedestre e passa a ser um espectador acidental da representação; e outra quando ele, “convidado” a ser espectador participante, se dispõe a entrar no jogo da ação e ser surpreendido pela forma como passará a redescobrir espaços próprios de convívio urbano e social (JÁCOME, 2013). Dom Quixote se concretiza invasor porque propõe uma ruptura lúdica no cotidiano, oferecen-do ao cidadão uma possibilidade de jogo, um momento de quebra na obviedade do dia-a-dia. Alguns dos mecanismos utilizados na encenação que contribuem para tais ressignificações são as instalações em prédios e monumentos, o uso da técnica do rapel e a inserção de uma escavadeira, onde as “Dulcinéias” são conduzidas.

É importante pensar que a contaminação como tendência contemporânea está presente em ambos espetáculos, de formas peculiares, mas simultaneamente similares, principalmen-te no que diz respeito às relações estabelecidas com o espaço urbano e com o público. A companhia francesa aproxima-se do gênero performático enquanto o grupo goiano tem sua escolha claramente apontada para o teatro. Não tanto uma questão a ser respondida, mas uma provocação se faz pertinente: ainda podemos ter fronteiras bem definidas entre lingua-gens ou esse é um mecanismo de sobrevivência utilizado pelos grupos frente ao sistema? Lehmann insiste na improdutividade da discussão sobre as definições, para o autor:

É óbvio que o teatro, assim como outras práticas artísticas avançadas, adotou elementos da performance (autorreferencialidade, desconstrução de significado, exposição do mecanismo interno do seu próprio funcionamento, mudança da atuação teatral para a performática, questionamento da estrutura básica da subjetividade repúdio – ou pelo menos crítica e exposição da representação – e iterabilidade), enquanto a performance, inversamente, se tornou teatralizada de muitas maneiras (2013, p. 874-75).

Ao assumir o desvio performativo como norte da situação é válido questionar se o dis-curso do “deixar-se experimentar” como prioridade se sustenta, principalmente no que diz respeito ao lugar do público. Outras questões reforçam a reflexão: “Em que medida estas ações afetam a percepção estética e operam ‘regras culturais’ válidas? Quantos atos como estes transformam os espectadores em performers eles próprios?” (SOARES, 2008). Des-granges complementa: “[...] como compreender a pertinência de uma proposta artística que convida o espectador a disponibilizar-se para um modo de leitura que ultrapasse a barreira da dimensão lógico-racional, e se permita saborear os descaminhos da experiência com a arte?” (2010, p. 50).

Pensar sobre o espectador que se torna performer é assunto delicado e requer repen-sar o cidadão e a cidade para tentar compreender o espaço urbano da recepção. Como meio de delimitar o espaço da discussão, por ora, introduz-se a noção de urbanidade no intuito de refletir sobre o lugar do indivíduo urbano frente a tais manifestações contemporâneas. Para

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Afonso, a urbanidade não se refere nem a uma delicadeza nem a um primitivismo do meio rural, mas “[...] a uma virtude essencial que define o homem atual na sua condição urbana” (2007, online). Sendo considerada assim, a urbanidade apresenta-se como a “condição ur-bana da humanidade”, incluindo todos que vivem neste meio, seja conscientemente ou não. Nesse sentido, a urbanidade alcança além do contexto cultural, social ou estrutural de uma cidade, podendo ser compreendida como o modo com que os habitantes de um lugar se re-lacionam segundo seu espaço e tempo.

A relação do indivíduo com a cidade, refletida nos seus traços da vida cotidiana, referida pela urbanidade, é, muitas vezes, turbulenta, pois reflete suas contradições. Para Desgran-ges “[...] o indivíduo lançado no isolamento de seus interesses privados, vê a multidão como ameaça constante, ou pela inexistência de um espaço público convidativo, ou pela perda da singularidade mediante a estandardização de comportamentos” (2010, p. 54). Nesse conflito reside o papel da arte como resistência aos modelos de interação oferecidos pelo sistema, cujos interesses permeiam processos de homogeneização dos espaços da urbe. Para Sco-cuglia, refletir sobre a cidade implica, necessariamente, atravessar outros campos do conhe-cimento como a sociologia, a antropologia e as artes.

Há uma necessidade crescente de aproximação entre áreas sensíveis desses campos de conhecimento, no sentido da valorização das subjetividades, das práticas cotidianas, das experiências de copresença nos espaços urbanos e dos instrumentos analíticos e conceituais que podem fundamentar uma compreensão da experiência de vida nas cidades contemporâneas a ser rebatida na prática de intervenção e na concepção de novos espaços e cidades mais humanitários (2011, p. 412).

Nesse sentido, o teatro e a performance na cidade surgem para sugerir ao individuo novas formas de vivenciar o urbano, para apresentar possibilidades do “se perder”, colocar--se num risco não-habitual, explorar o poético como desconhecido, contrapondo o sujeito ao modo usual e operacional de “ver, sentir e pensar o mundo”. Diante das possíveis realidades as quais o cidadão se expõe atualmente, pensar acerca dos efeitos da contaminação na cena e sua reverberação no ato de recepção reflete, igualmente, na discussão sobre a criação de espacialidades. Desse modo, ao pensar sobre as manifestações artísticas na cidade é im-prescindível reconhecer que, as mesmas, estão embutidas naturalmente de posicionamentos políticos, a partir do momento em que decidem interferir na lógica da cidade. Tais atos criam intromissões e estranhamentos produtivos, desvelando faces desconhecidas do espaço ur-bano.

Nesse sentido, é válido enxergar o exercício do “teatro performativo” na cidade na sua potência máxima de intercâmbio com as vozes do próprio espaço, intensificando trocas com a arquitetura, as vias principais e periféricas, seus ritmos e usos. A partir desse posiciona-mento, compreende-se a prática do teatro/performance na cidade como elemento essencial de interferência na urbanidade, criando novas espacialidades e novos lugares. A arte urbana desempenha, assim, papel crucial no pensamento/ação sobre as relações. Tal responsabili-dade é notável nos espetáculos analisados, pois a noção de cumplicidade que vai se confi-gurando entre ator e espectador confere força, no sentido de potência, para seus participan-tes que, mesmo questionando-se em alguns momentos a respeito das condutas tomadas, levam e deixam-se levar pelo acontecimento. Nestes casos, o cidadão, pedestre acidental ou espectador assume o papel de compositor do espetáculo, mesmo que não abandone seu posicionamento de “público potencial”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAFONSO, David. Urbanidade. Disponível em: <http://quintacidade.com/2007/11/30/urbanidade/>.

Acesso em: 13 ago. 2012.

CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.

CARTAXO, Zalinda. Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade. In: O Percevejo, Rio de Janeiro, n. 1, p. 01-16, 2009.

DESGRANGES, Flávio. Arte como experiência da arte. In: Lamparina: Revista de ensino de teatro, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p.50-56, jun. 2010.

FERNANDES, Sílvia. Teatralidade e Performatividade na cena contemporânea. In: Repertório, Sal-vador, v. 1, n. 16, p.11-23, jun. 2011. Semestral.

FISCHER-LICHTE, Erika. Perfomance e Cultura Performativa. In: Revista de Comunicação e Lin-guagens, Edições Cosmos, Lisboa, 1988.

_____. The transformative power of performance. London and New York, Routledge, 2008.

GLUSBERG, J. A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

JÁCOME, Cecília Lauritzen. Práticas de ocupação da cidade pelo teatro: um estudo a partir de grupos atuantes em Porto Alegre. 2013. 129 f. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.

LEHMANN, Hans-thies. Teatro Pós-dramático, doze anos depois. In: Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p.859-878, set. 2013. Semestral.

_____. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. Cultura e urbanidade: Da metrópole de Simmel à cidade fragmentada e desterritorializada. In: Metrópole, São Paulo, v. 13, n. 26, p.395-417, jun. 2011.

SILVA, Igor de Almeida. Dom Quixote e a invasão da poesia. 2011. Disponível em: <http://www.questaodecritica.com.br/2011/10/dom-quixote-e-a-invasao-da-poesia/>. Acesso em: 02 jul. 2014.

SOARES, Luiz Claudio Cajaíba. Algumas reflexões sobre os modos de recepção das Artes Cê-nicas contemporaneamente. 2008. Disponível em: <http://portalabrace.org/memoria/vcongres-soteorias.htm>. Acesso em: 02 jul. 2014.

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Cortejo Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

RELATOS

Nossa carne é de rua – e também o nosso coração, por que não?

Daniela Landin

Escrevo tardiamente. A experiência já não habita de modo tão intenso mais meu cor-po, foi transformada em fragmentos de memória. Uma percepção já precária, algo solapada pelas perturbações do presente. Cedo ou tarde, escrevemos sempre no instante do agora. É certo: o momento não é favorável, mas há urgência. Escrevo na cadência do pêndulo: entre a esperança e a perplexidade, em oscilações de segundos. Há dois dias, o Centro da cidade de São Paulo, que havia sido o contexto da oitava edição da Mostra Lino Rojas, em dezembro de 2013, foi palco de mais uma sucessão de arbitrariedades por parte da Polícia Militar, que reprimiu de forma extremamente violenta o 2º Ato Contra a Copa. Decidi, então, por inserir este parágrafo ao texto, que, por ser sobre o cortejo de abertura, centra-se em uma ação política e artística de ocupação do espaço público. Quando o direito à manifestação do descontentamento e da contrariedade é criminalizado, expressar-se acerca e pela liberdade, não como valor abstrato, mas como conquista e responsabilidade histórica, é uma forma de cuidar de si e do que é nosso, de zelar pelo que pode nos irmanar.

Primeiro fragmento que emerge, à superfície da consciência, do caldeirão das lembran-ças distantes (ainda que nem tão distantes assim): saias rodadas e camisas de veraneio a trajes pretos acompanhados de vendas, dos que lembravam aqueles que se valem de certa tática demonizada pela polícia e pela imprensa, ambas militarizadas, de quebrar algumas vidraças dos templos do capital. Aos poucos, a aglomeração ia ganhando corpo no Largo do Paissandu, no centro da capital paulistana, o pessoal se junta... Era bonito ver: os integrantes dos grupos, alguns já com seus instrumentos musicais e os estandartes dos próprios cole-tivos, aconchegando-se no alegre encontro, no aquecimento para a batucada que cortaria parte das ruas do entorno com música, gritos de guerra, panfletagem, sorrisos, anunciando a Mostra e inaugurando uma semana de teatro no espaço público. O batuque já ocupava nossos sentidos...

Uma roda foi formada: divisão de tarefas, decisão sobre o trajeto, informes e, finalmen-te, a partida.

Meu povo, tô na rua, vou fazer teatro agora. Quer ir mais eu, vâmo. Quer ir mais eu, bóra!

Pequena pausa ao exercício de rememoração: uma palavra sobre o ato de panfletar. A panfletagem é uma espécie de arte – requer técnicas e sensibilidade. É preciso explorar as diferentes formas de abordagem, a depender das circunstâncias. Chegar junto, mas na “maciota”. Com manha, mas sem perder a precisão. Há o aspecto informativo, é verdade, o performativo, mas, sobretudo, a alegria do encontro, a publicização (no sentido de tornar pú-blico) de algo em que se acredita e a democratização da informação desse “algo”.

Em frente ao Teatro Municipal (templo da Arte Oficial), experimentamos permanecer em certo ponto. O cortejo passa a ser cercado de muita gente, para quem cantamos e dirigimos nossas palavras sob olhares intrigados que se expressavam como se questionassem “de onde saiu esse povo?!”. Mais panfletagem. Quer ir mais eu, bóra! E vamos.

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Passando pelo Viaduto do Chá, rumo à Praça do Patriarca, os participantes do cortejo se deparam com um grupo de homens que, depois me contaram, formavam um círculo em torno de algumas mulheres em trajes mínimos – parecia se tratar da gravação de um progra-ma de televisão, desses que exploram e reificam o corpo feminino. Não consegui penetrar o cerco. Mas a reação dos artistas deambulantes marcou posição: Abaixo a baixaria! Mulher não é mercadoria! Dialogando com a cidade e seus acontecimentos, manifestando a discor-dância, denunciando os abusos.

Mas, antes disso, saindo da região do Municipal, se não me sabota a memória, os gritos foram outros: Não vai ter copa! Não vai ter copa! As palavras de ordem, que também vêm sendo utilizadas pelos participantes dos atos contra a Copa no Brasil, foram repetidas por um período bastante breve e logo misturadas a outras: É Lino Rojas! É Lino Rojas!

Em momentos em que a violência do Estado se torna lei e a coerção ao direito de se manifestar publicamente é propagandeada como ação antiterrorista, ganhamos novo fôlego com todo exercício que se preste à desorganização da ordem e da lógica do espaço públi-co organizado em estrutura urbana pouco afeita às expressões, à permanência, à troca, à experiência artística sem mediação mercadológica. Ao menos existem algumas louváveis experiências pela cidade que se constroem com base nesses sentidos. A Mostra Lino Rojas, organizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP) e aberta sempre por cortejos como esse, é um exemplo a ser recordado.

Estar nas ruas, numa perspectiva de luta, é continuar resistindo. Escrever a contraver-dade (contra a verdade inventada por consenso em parceria público-privada ou entre gover-nos e veículos de comunicação) é também uma forma de resistir. Escrever é ainda não se deixar morrer (de inércia ou sufocamento): é tender mais para o lado da esperança que da perplexidade.

Em tempo: no mesmo dia, mas à noite, no Bom Retiro, bairro da região central da ci-dade, outra abertura da Mostra se deu em forma de festa, na sede de um dos grupos mais antigos do país, o Teatro Popular União e Olho Vivo, que resiste há 47 anos. Houve uma fala breve de César Vieira (ou Idibal Pivetta), diretor e dramaturgo do coletivo, batucada do grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, registro das mãos pintadas com tinta na parede, além de comidinhas gostosas, que ninguém é de ferro.

Cortejo Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

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A precariedade como linguagem e as “perninhas” que resistem unidas sob a lona

Juliene Codognotto

O relato apresentado a seguir corresponde a uma roda de prosa, desenvolvida em cin-co de dezembro de 2013. A conversação começou ainda regada pela chuva, iniciada horas antes, bem no meio do espetáculo Ópera do Trabalho, do Buraco d`Oráculo, apresentado na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo. A chuva ajudou a revelar, também, entre outras coisas, a arquitetura, a princípio bizarra, de Paulo Mendes da Rocha - uma estrutura imensa e branca que protege gente de rua e de teatro.

Revelou uma imagem-símbolo com pernas de mais de 40 pessoas, entre artistas, pro-dutores, público, ajudando a mover uma tenda que protegia acessórios e instrumentos para debaixo da grande “tenda” de Paulo Mendes, construída ao lado da prefeitura da cidade. A “tenda-com-perninhas” caracterizava-se de ícone irretocável da cumplicidade que faz do precário poesia, e das forças coletivas que fazem da cena luta, e da luta arte. Durante a apre-sentação, os bêbados estavam entre os que cantavam e dançavam enquanto enfrentavam os perrengues de estar na rua. A partir dessa espécie de cantata perrengue, sem preparo prévio, a conversa começou

Tem conversa melhor do que a que nasce de uma imagem?

Tem união mais forte do que a que nasce de um perrengue?

Tem poesia mais poderosa que a que nasce de gente junta na rua?

Buraco d´Oráculo. Ópera do Trabalho. Foto: Anna Piccolo.

Pontos de partida: Primeiras propostas, primeiros passos de pés molhados

Com, pelo menos, as meias e a barras das calças molhadas, escutamos uma fala de Anderson Zaneti, doutorando do Instituto de Artes da Unesp, sobre as três peças do dia: (des)Água, do Coletivo Alma, Santimbembe mambembancos, do Rosa dos Ventos (Presidente Prudente-SP) e Ópera do trabalho, do Buraco d’Oráculo.

Citando Amir Haddad, a partir de uma publicação do Núcleo Pavanelli, Anderson apre-sentou três pontos ou três princípios que funcionariam como óculos para ler o que fizemos e vimos ao longo do dia:

1. Arte Pública: o que é? Algumas pistas decorreram da tragédia grega do período clássico em oposição ao teatro burguês, que se fecha e se troca por dinheiro. E pontuou: a arte é pública ou não desde a sua “forma de apresentação”.

2. O ator de rua é um doador universal: por este mote fomos convidados a pensar sobre a fundamental oposição entre doar e vender. Tal proposição foi pensada a partir do conceito de mercadoria. O trabalho, os corpos, as ideias, as vozes do ator e da atriz de rua são doados ou vendidos? Para quem? Em quais espaços? Em quais circunstâncias?

3. Fazer teatro de rua não tem preço: A cada proposição apresentada, mais pergun-tas. O que não teria preço neste fazer? O que, nas nossas vidas não pode (ou não deveria) ser vendido? De acordo com a teoria marxista o conceito de preço é abstrato; o trabalho do ator e da atriz de teatro de rua não tem medida, não acumula capital, nem gera lucro, estan-do, portanto, na contramão da sociedade de consumo; o preço compõe a tríade salário-preço-lucro; o que tem preço é privatizado; a rua ainda não é privatizada, mas está constantemente sob ataque.

Pontas de lança: A rua sob ataque e a privatização do que não tem preço

Esse ponto da privatização da rua foi retomado com o compromisso de registro. Apro-fundando as teses de Haddad: a rua ainda não é privatizada, mas está constantemente sob ataque. De quem são as ruas em São Paulo? De quem é a Avenida Paulista? De quem são as ruas nos Jardins? No Centro antigo? Na Zona Sul? De quem são as ruas nos Alphavilles pelo Brasil? De quem são as ruas, em geral, quando a polícia prende centenas de pessoas para averiguação por se manifestarem nelas? Quando pedestres e ciclistas precisam ter ní-vel alto de insanidade para desejar partilhá-las com os automóveis? Quando, em São Paulo, de uma hora para outra, volta a ser necessário cadastrar-se para apresentar um trabalho de arte na rua, ou avisar a Companhia de Engenharia de Trânsito - CET para caminhar com mui-ta gente na rua, ou implorar aos carros para atravessar a rua e, ainda, é proibido sentar-se em mesas na calçada após horário estipulado e realizar uma apresentação artística próxima a estações de metrô e prédios tombados? De quem são as ruas, enfim, quando a FIFA - uma federação de futebol - é dona de zonas de exclusão, de pelo menos 2 km ao redor de cada estádio, em diversas cidades do país?

Adailtom Alves afirma que o fundamental do teatro de rua é o enfrentamento e a com-preensão da importância em se perceber a cidade - entendida como o acesso a tudo que o espaço urbano reúne para a coletividade e a arte como valor de uso. No entanto, ressalta o artista e pensador que, cada vez mais a cidade é valor de troca, é mercadoria, inclusive ven-dável. Vejamos o exemplo dos grandes eventos e os múltiplos processos de gentrificação (ou “enobrecimento”, numa tradução mais precisa do termo em inglês), ele sugeriu.

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Pensei, então, que é sempre bom aproveitar que a Galeria Olido tem paredes de vidro para lembrar que nossa roda de conversa se dá no centro de São Paulo, muito próxima ao foco da especulação imobiliária na cidade, casa de um processo de gentrificação que atra-vessa gestões - PSDB, DEM, PSD, PT - para priorizar o interesse de grandes construtoras e de populações mais “qualificadas” e “nobres” aos das populações desses locais, que não são ouvidas ou consideradas. A arte - como alerta a urbanista Raquel Rolnik, relatora da ONU para questões de moradia no Brasil - é muitas vezes usada como “ponta de lança” dos pro-cessos de gentrificação. Opondo moradias que estão em condições inadequadas por omis-são do governo e a ilusão de uma cracolândia fixa a casas elegantérrimas, museus de ponta com telas planas contínuas infinitas e “praças das artes” com cerquinha para ninguém usar, molda-se a opinião pública e inventa-se a legitimidade para trocar o “ruim” pelo “bom” e o “feio” pelo “bonito”, ou, em outras palavras, privatizar a cidade e, consequentemente, as ruas.

Qual arte poderá ser, então, “ponta de lança” da resistência a esse processo?

Adailtom Alves ofereceu caminhos de resposta. “Estar na rua, fazer coisas na rua, é fazer resistência à cidade como mercadoria”. Ele falou em inserir oxigênio exatamente onde ele está sendo retirado. “Se a gente quer dialogar - e a arte só faz sentido no diálogo com o outro - a rua é o melhor lugar para isso. Nesse encontro, pode-se “reinventar” a cidade e o espaço público. Estar na rua é, em si, um enfrentamento, ainda que a poética não esteja fazendo enfrentamento, esteja às vezes, até reforçando o modo de produção atual”.

Ocupar a rua com arte pública, com doação, com algo que não tem preço. Resistir aos ataques. Dizer e cantar que a rua é de todos, encontrar-se na rua, que é de todos. Se há espaço para a proposição de lei “anti-terrorista” contra quem se manifesta na rua - crimina-lizando estratégias de mobilização e manifestação - “Então ocupar qualquer espaço público em diálogo com o outro é resistir ao fascismo”, afirmou Adailtom Alves. E com essa afirmação assume um lado. Briga junto com movimentos por moradia como direito e valor de uso, com movimentos por transporte como direito e valor de uso, com moradores de rua, com os que pensam o direito à cidade e lutam por sua garantia.

Adailtom Alves cita Raquel Rolnik, na abertura da fala do geógrafo David Harvey no Centro Cultural São Paulo – CCSP, durante a X Bienal de Arquitetura, em novembro de 2013: “A luta de classes migrou da fábrica para a cidade”. É o mesmo que explica Hermínia Mari-cato, urbanista, em entrevista em vídeo ao projeto jornalístico Arquitetura da Gentrificação (http://migre.me/rRq2T). Se a luta de classes está nas ruas da cidade, onde está o teatro de rua, então, os fazedores de teatro de rua teriam de escolher um lado da ponte, um lado do muro - o lado de quem manda construir os muros ou o lado de quem os quebra. E, conforme texto da cena da Ópera do trabalho, o trabalhador pode quebrar o que quer que seja em seus protestos, porque foi ele quem construiu e ele poderá reconstruir se preciso for.

Pontos comuns: As três peças do dia e algumas relações

“O comum entre nós não é só estar na rua, mas a vontade real de comunicar-se e trocar com quem está na rua”, defendeu Natália Siufi, do Grupo Parlendas, e exemplificou essa von-tade com a cena real que tínhamos acabado de viver na apresentação do Buraco d`Oráculo. “A peça continuou até não dar mais - o público e os atores querendo muito continuar ali”. O desejo do encontrar na rua e o modo coletivo de trabalhar talvez sejam mesmo os pontos comuns mais importantes, não só entre os grupos que se apresentaram no dia 5/12 na Mostra, mas entre todos os que estavam reunidos naquela roda e na Lino Rojas, de maneira mais geral. Voltamos

à imagem inicial da chuva que parou o espetáculo, nas palavras da Natália Siufi: “Juntamos todos para dar um jeito, juntos. Esta-mos acostumados ao trabalho conjunto, a enfrentar pepino juntos. E são vários os grupos diferentes que trabalham nessa mesma onda”.

Na condição de mediador, Anderson Zaneti propôs articular outros pontos que ligariam os espetáculos. Em (des)Água desta-cou a preocupação em tratar de um bem universal primordial e sua privatização, ressaltando a questão dos valores universais e daquilo que não tem preço, não pode (ou não deveria) ser vendi-do. Em Saltimbembe mambembancos, o trabalho com o “riso fes-tivo”, com a naturalidade e o envolvimento do público, o brincar e o comungar trazem a noção do que não pode ser calculado ou precificado? - esse fenômeno da partilha pelo riso não é efême-ro? Como medir o riso e seus efeitos? Na intensa troca dos atores com o público somos levados novamente a pensar o universal e, principalmente, o senso de coletividade, que estamos perdendo. E em Ópera do trabalho, a crítica direta ao trabalho alienado e à degradação do trabalho e do trabalhador, com a questão posta muito claramente em cena, traz o enfrentamento de uma questão pública, sem desvios. Forma-se então um conjunto de apresenta-ções com estruturas, linguagens e opções muito diferentes, mas compondo a mesma frente de batalha.

Pontos finais: Narrativas do que não foi filmado (ufa!)

A roda de conversa contemplou ainda muitas outras falas, com impressões de cada um dos espetáculos, histórias sobre o início do MTR e da mostra Lino Rojas, demandas de construção de políticas públicas e relações com fazedores de outros teatros que não o teatro de rua etc. Um ponto, porém, foi unânime e mui-to citado: a imagem-ícone da tenda-com-pernas. Uma pessoa lembrou que, infelizmente, a imagem não está registrada porque o câmera estava dentro da tenda, ajudando. Outra pessoa, faze-dor de teatro em Piracicaba, respondeu: “Infelizmente, não, ainda bem que não tem imagem! Assim, eu vou chegar em Piracicaba e já vou contar e vou aumentar um pouco!”.

Quando a câmera que registrava nossa roda de conversa foi desligada, alguém deu a ideia de encerrar com música. De repente, mais de mil vozes cantaram “Eh, camarada… nesses tempos difíceis o que fazer?”, completando a canção com nomes de mais de mil grupos de teatro de rua, numa representação final do bonito e difícil partilhar da invenção de caminhos. Pode ser que eu esteja exagerando a quantidade de vozes e nomes de grupos, mas ninguém vai saber - a câmera, nessa hora também, já tinha sido desligada.

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Os Mamatchas. A Fêmea dominante. Fotos: Augusto Paiva.

APREENSÕES CRÍTICAS

A Fêmea Dominante

Zeca Sampaio

Picadeiro colorido no meio da praça. Barraca de lona como cenário. Instrumentos no canto. Três palhaços fazem o cortejo.

Palhaços?

Não! Palhaças! Três palhaças seguidas por um músico cantam chamando o público para o espetáculo.

Esta é a primeira grande marca do espetáculo A Fêmea Dominante que o grupo de Presidente Prudente Os Mamatchas trouxe para a Praça da República no sábado, dia 24 de novembro de 2012, no primeiro dia de apresentações da 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. A presença de três palhaças em cena, em vez dos tradicionais palhaços, ou casais, propõe por si só um novo jogo cênico, sugerindo uma estética própria que atrai o interesse do público logo de cara. A linguagem popular, o escracho e os esquetes tradicionais de palhaços ganham uma nova roupagem quando encontram o universo feminino. Esta diferença é muito bem aproveitada pelo grupo, que parece mesmo interessado em explorar as imensas possi-bilidades que este novo jogo proporciona.

O arquétipo do palhaço, tão presente na tradição do teatro de rua, aparece em uma versão invertida e atualizada, surpreende e traz à tona um questionamento político sobre o papel do feminino, sobre a sua presença na rua, seu direito de comandar o escracho e a festa, ainda que esta não seja uma discussão explicitada no próprio espetáculo. Como ficou claro no debate feito com o público ao final da apresentação, a questão do papel da mulher no teatro, na rua e na sociedade aparece como um elemento forte de questionamento sem a necessidade de um discurso panfletário.

Com um enredo absolutamente sintético, em que as três palhaças disputam para ver quem é a fêmea dominante, servindo de ligação, o espetáculo é antes de tudo uma boa folia. As gags vão sendo encadeadas com números de malabarismo, música e brincadeiras com o público, de forma despretensiosa e divertida.

Trata-se, ainda, de um grupo em crescimento e de uma proposta cênica que embora já funcione na praça pode desabrochar em muitas direções. As atrizes mostram um potencial que para ser realizado necessita de estrada. O mesmo pode-se dizer a respeito dos núme-ros circenses e dos esquetes. A sensação é de que queremos mais. Mais audácia nas gags, mais exploração nas possibilidades cômicas e críticas que a situação sugere, mais força e definição nas personalidades de cada palhaça. Uma maior clareza nas características de cada palhaça permitiria um aproveitamento muito mais amplo das situações criadas tanto nos momentos a três, como nos diversos encontros a duas.

De qualquer maneira, aquilo que vimos na praça nos faz esperar com ansiedade pela próxima oportunidade de ver este ou um próximo trabalho do grupo que demonstra um po-tencial muito grande. Vida longa aos – ou deveria ser às? – Mamatchas!

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Núcleo Cênico Projeto Bazar. A menina que foi arquivada. Fotos: Augusto Paiva

Sobre Memória e Paixão

Lissa Santi

Aquela menina fora arquivada. Junto com ela, milhares de outras meninas, operários, artistas e gente de mentalidade livre, de denúncia. Arquivaram-se as meninas, arquivou-se a arte, arquivou-se a paixão e aqueles que os criaram. Essa é a história simplificada deste período político brasileiro conhecido como ditadura.

Este, com certeza, é o grande mérito do espetáculo A menina que foi arquivada, do Núcleo Cênico ProjetoBazar: levar para a rua a nossa história, tão enormemente esquecida e, à custa de muita luta, trazida à luz em um tempo recente. O trabalho parte de um recorte específico tocante aos autores, amantes e profissionais de teatro.

O espetáculo traz, metaforicamente, todo o universo próprio daqueles dias. Relembra e usa, ora ressignificando, ora não, palavras de Chico de Assis, de Guarnieri, de Nelson Ro-drigues. Isso explicita não só a produção artística existente para falar dessas questões, mas também como todas elas continuam muito atuais . Talvez isso já se caracterize em uma razão pela qual tantos textos e histórias sofreram censura.

A impressão que fica é de que a motivação foi além da observação dos processos de obras censuradas existentes no Arquivo Miroel Silveira, no qual pesquisou o grupo, mas se alimentou também da paixão pela denúncia, nutrida pelo grupo, e a identificação com a pró-pria situação de censura.

Todo o espetáculo se passa de acordo com a grande personagem escolhida e apre-sentada de maneira metafórica: a menina que foi arquivada, e vale a pena observar, deglutir e denunciar sua trajetória. Existe uma questão constante e incômoda, mas para a qual não encontramos resposta: livramo-nos da censura?

Talvez pelo fato de não termos resposta para isso, o final da trajetória da menina e, consequentemente, final do espetáculo, nada mais é que uma grande conversa, revelação mesma da menina, o que torna o final um não final. E esta escolha também nos faz pensar.

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Núcleo Cênico Projeto Bazar. A menina que foi arquivada. Fotos: Augusto Paiva

Quem tem voz é rei

Kanansue Gomes

Um coro entra em cena trazendo um arquivo, desses comumente usados para guardar pastas em escritórios e repartições públicas altamente burocráticas. O espetáculo tem início e, de repente, de dentro do arquivo sai uma menina. A menina não fala.

Com A menina que foi arquivada, o Núcleo Cênico ProjetoBaZar trouxe uma discussão importante a ser feita ainda nos dias de hoje: acabou a censura? Ou melhor, acabou a dita-dura? Parece-nos que faz muito tempo que a ditadura civil-militar acabou e que, com o fim dela, acabaram também o abuso de poder, o autoritarismo do governo e a censura. Porém, podemos afirmar sem dúvidas que a ditadura existe, sim, disfarçada no falso moralismo, nas proibições de greves, na repressão aos movimentos sociais. Quando alguém é violentado por fazer parte de algum movimento social é sinal de que a ditadura tem vestígios vivos.

Talvez, algumas pessoas gostariam de apagar da história do Brasil esse período cha-mado de ditadura civil-militar, entretanto, rememorar é importante. Rememorar é lembrar que somos sujeitos histórico-sociais e que podemos fazer alguma coisa para transformar a socie-dade. Sobre esse ponto de vista, não devemos descartar o passado: o hoje só existe porque existiu o ontem, e é no hoje que o território é fértil para as mudanças.

A menina que não fala é fruto de um aborto mal sucedido. A mãe tenta abortar e morre, mas a menina nasce e vai para um orfanato. Pensando no suposto fim da ditadura, o que aconteceu foi um aborto – mal sucedido – que gerou milhões de brasileiros e brasileiras sem voz; são os oprimidos e oprimidas.

A peça foi carregada de uma rica e surpreendente simbologia: um arquivo que é o es-quecimento, uma menina que não tem voz, e personagens censurados que são trazidos dos arquivos reais e existentes da ditadura são alguns dos símbolos mais marcantes da peça. A atitude do Núcleo Cênico ProjetoBaZar foi importante. Rememorar é lembrar que o presente é fruto do passado e que o futuro é fruto do presente. O que fazer no presente para transfor-mar o que virá?

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Trupe Lona Preta. O Circo da Lona Preta. Fotos: Augusto Paiva.

Feios, sujos e palhaços

Alexandre Falcão de Araújo

Uma vez meu pai me disse algo mais ou menos assim:

- Filho, essa coisa de fazer teatro de rua é algo pobre, pra-ças são lugares sujos...

Pois bem, vendo a apresentação da Trupe Lona Preta e de seu circo homônimo, na Praça da República, pensei: meu pai estava certo! Quase tudo que nossos pais nos ensinaram com a maior boa vontade cristã, Sergio e Joel Carozzi destroem: seus personagens são feios, sujos e palhaços. A lógica da palhaçaria é revisitada com fortes traços periféricos e se escancara de forma mal-educada, fora dos padrões limitadores da educação e moral burguesas. A estética do espetáculo é construída por, entre outros elementos, uma lona preta no chão, um figurino cheio de remendos e pelo dialeto dos “manos da quebrada”. Tudo é explicitamente épico (eles “mostram que mostram”) e os atores assumem a linguagem grotesca como forma de causar riso e incômodo.

A atmosfera criada no precaríssimo circo de rua lembra o uni-verso dos circos mambembes do interior do país e seus palhaços boca-suja. Mas, o peso da urbanidade traz um diferencial às gags clássicas. O humor, a malícia e a violência têm os tons do extremo da Zona Sul de São Paulo e de várias periferias mais, onde a luta pela sobrevivência tem características específicas. Também por isso, seus palhaços dialogam muito bem com os moradores de rua com os quais dividem o espaço de cena.

No bate-papo ao final da apresentação, a despeito da experi-ência da trupe em realizar trabalhos junto a movimentos sociais, os atores expressaram certa preocupação por não conseguir tratar de questões explicitamente politicas no espetáculo. Como foi levan-tado no debate, é importante pensar no potencial político do riso no âmbito da linguagem grotesca, como forma de enfrentamento das hierarquias e busca de superação (mesmo que simbólica) das relações de opressão. Por isso, acredito que esses palhaços, que causam gargalhadas em vários lugares aonde o teatro não chega, estão também fazendo teatro político, dentro de um contexto maior, que passa pela articulação com os movimentos sociais e a opção por se apresentar nos espaços marginais do território. Como a pró-pria dupla sinalizou, o riso não serve para esquecer os problemas, mas para vê-los de formas distanciada e se fortalecer para a luta.

Logo, torno a lembrar da frase do meu pai e, por concordar com sua afirmação, valorizo ainda mais o trabalho desses artistas de rua e assumo a mesma opção: insistir em fazer arte em meio ao caos da cidade.

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Em busca de uma ética cômico-popular

Daniela Landin

Perambulando pela Praça da República, contornando o coreto, observando as pessoas que passam, em horário de almoço, a passeio ou simplesmente ao léu, incluindo os morado-res de rua e os transeuntes distraídos, que contrariam a tendência da pressa e a lógica da produtividade sobre o tempo. Assim, é possível assistir a umas tantas cenas de rua, em sen-tido brechtiano, e desfrutar do teatro cotidiano ao qual o dramaturgo alemão fazia referência. Em meio ao alvoroço de estímulos – a essa altura, todos eram suspeitos de serem artistas –, onde estariam os atores do coletivo programado para se apresentar àquele horário? De repente, um pequeno grupo de sujeitos de rosto pintado de branco, trajando camiseta listra-da e suspensórios, atravessa a praça. Alerta. Segundos depois, a constatação: alarme falso. Tratava-se de trabalhadores contratados por um órgão que, por sua vez, é contratado pela Companhia de Engenharia e Tráfego (CET) para orientar pedestres e motoristas quanto às normas de trânsito, por meio da mímica. Em outras palavras, mais um exemplo da precari-zação do trabalho do artista. Naquele dia extremamente quente, os jovens maquiados e de figurino, cansados, pingavam de suor. Fim do expediente para uns, início para outros. Ao lado da estação de metrô, sem o abrigo de qualquer sombra, os palhaços da Trupe Lona Preta começavam a se preparar para a apresentação.

Trupe Lona Preta. O Circo da Lona Preta. Foto: Augusto Paiva.

Formado por gente de teatro, presente especialmente para assistir à peça, e gente da rua, que interrompeu o seu trajeto, fisgada pela diversão, um bravo público se protegeu e enfrentou o sol forte como pôde. Amparado em uma relação direta com estas pessoas – recurso explicitamente popular –, o espetáculo passou a ser construído na forma de brincadeiras a partir de paralelos que os atores faziam entre elas e figuras televisivas, aludindo a possíveis semelhanças com sujeitos projetados em nosso imaginário pela indústria cultural. E assim, fazendo rir, os artistas foram se apresentando, estabelecendo comunicações, compartilhando foco e atenção. Todas e todos eram partes significativas daquela experiência.

O trabalho tem como base um conjunto de elementos da tradição do circo-teatro que se evidenciam em clássicos números de palhaço. Do jogo rápido, preciso e muito vivo entre Joel e Sergio Carozzi, descortinam-se situações atravessadas por confusões, quiproquós, burlas em que os atores fazem uso de expedientes populares de atuação – anti-ilusionismo, interpretação farsesca, vínculo ininterrupto com o público sempre em chave satírica – e acessórios cênicos bastante reconhecíveis no que diz respeito à filiação a uma linhagem cômica – instrumento musical, mala preta, baldes de água e de papel picado, bexigas. Desta série de características, destaca-se a relação entre os tipos Branco e Augusto. Em Circo da Lona Preta, este último cabe a Rabiola, figura que, direto do Capão Redondo (bairro do extre-mo-sul da cidade de São Paulo), faz referência ao vocabulário das quebra-das, com gírias e jeitos de dizer próprios; diferencia-se por ser barulhento, afetado, desbocado e muito ingênuo. Já o primeiro tipo é evocado por Chico Remela, que diz vir de Pindamonhangaba (cidade do interior do Estado de São Paulo); magro e esguio, chapeuzinho de palha na cabeça, é o sabichão, diplomático no trato com as pessoas, adota um tom professoral em relação ao outro – ao contrário de Rabiola, sabe ler e é ele quem ensina o seu par-ceiro a cumprimentar o público.

Um aspecto significativo do espetáculo está na brincadeira com algu-mas passagens bíblicas. Chico Remela tenta explicar ao seu parceiro certas questões, de acordo com a mitologia cristã, como o nome do primeiro ho-mem e da primeira mulher. Não só Adão e Eva, mas uma série de elementos desse universo torna-se motivo de piada nas confusões de Rabiola. Com isso, os palhaços subvertem o pressuposto segundo o qual se deve encarar o discurso religioso hegemônico com a maior seriedade. Ao fazer do sagrado um tema para comédia, minam o caráter pretensamente verdadeiro destas narrativas, apontando para a possibilidade de pensá-las como mais um mito de origem.

A pesquisa da Trupe Lona Preta, voltada para a valorização da tra-dição cômico-popular do circo-teatro, parece estar intrinsecamente ligada a uma ética. Dessa forma, assiste-se a um espetáculo ancorado em números de palhaço que explicita a vocação política desse tipo de trabalho, com base em uma clara tomada de partido em relação à desigualdade. O ponto de vis-ta assumido é daqueles que estão em situação desfavorável nesse contexto, ou seja, o dos sujeitos das classes populares.

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Cia. dos Inventivos. Bandido é quem anda em bando. Fotos: Augusto Paiva.

Um bando que me faz perguntar ou Uma interrogação bandida

Caio Ceragioli

Em uma tarde de sol, em plena Praça da República, alguém foi assassinado. [Quantas pessoas são assassinadas em praças paulistanas?]. Não havia corpo, não havia nada, a não ser uma mancha de sangue no chão e algumas pessoas querendo saber o que de fato havia ocorrido [quantos corpos são omitidos e quantas pessoas se omitem nessa situação?].

Esse é o enredo inicial que desencadeia toda a história de Bandido é Quem Anda em Bando, da Cia dos Inventivos. A peça, sem sombra de dúvida, deixa seus espectadores transbordados de perguntas, questões e até mesmo algumas respostas sobre o ser humano em relação a seu meio e como ele é subjugado a sua própria sociedade, ou ao seu próprio chanceler.

Utilizando-se do ambiente da rua, a Cia. explora de maneira muito significativa a relação de seus atores com o público, o qual, em alguns momentos do espetáculo, não sabia se aqui-lo era teatro ou a vida cotidiana, fato esse que corroborava a reflexão sobre o espetáculo. Personagens, não no sentido clássico da palavra, que representavam vozes oprimidas, cala-das e silenciadas foram aparecendo ao longo do espetáculo, criando coragem para formarem um bando, um bando de marginais que lutavam para sair da margem da sociedade.

O espetáculo possui um ritmo interessante que não cansa o espectador. Tal feito deve-se, muitas vezes, à música, a qual cumpre um papel significativo em vários jogos cênicos, movi-mentações espaciais, diálogos e monólogos. Dessa maneira, é possível afirmar que a música, nessa peça, também é texto, é dramaturgia. Nessa perspectiva, um maior aprofundamento na questão técnica do canto potencializaria ainda mais essa tessitura dramatúrgica.

Por fim, saí da praça naquela tarde de sol quente atravessado pelo espetáculo, divertido (no sentido brechtiano da palavra, é claro), cheio de perguntas, respostas e pontos de vista sobre a vida cotidiana em uma imensa cidade como São Paulo.

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Aquela roda do teatro não teve patrão, não!

Diego Cardoso

O texto que aqui se inicia não constitui uma crítica ou o julgamento de um apreciador. E se o deveria ser, não cumprirá tal função. Trata-se do relato de alguém que presenciou um debate público na rua, em que o teatro teve função de chamar, envolver e agitar o povo.

Aqui não, senhor patrão! teve uma característica curiosa: começou como um espetácu-lo e terminou como um ensaio.

Logo de início, o grupo Núcleo Pavanelli se mostrou com muita música, habilidades circenses e jogo teatral com quem ia chegando, instaurando seu espaço e já deixando claro o que se veria no decorrer da peça: que o grupo precisava mais do que um público, mas de espectadores que pudessem compor junto o espetáculo. A arena que rapidamente se formou na Praça da República não manteria sua forma por muito tempo.

O espetáculo propôs um percurso pela história a partir do ponto de vista do trabalhador. Nos três períodos diferentes que a peça aborda, os trabalhadores se veem diante da opres-são de um patrão e da necessidade de reação. A figura do patrão empunhava um chicote cujo estalo podia ser ouvido de longe por quem passava. E por curiosidade provocada pelo som do chicote ou não, quem parava para assistir se deparava com uma história atual, contada por trabalhadores para trabalhadores.

Foram estes atores/trabalhadores os grandes responsáveis por envolver aquele públi-co. As músicas, o funk, o rap, as rimas e as quebras eram não só apenas recursos épicos usados para distanciar e questionar, mas também linguagem em que o povo se reconhecia.

Núcleo Pavanelli. Aqui não, senhor patrão! Fotos: Augusto Paiva.

Com o avançar do espetáculo foi se acumulando o desejo de reviravolta. O grande mo-mento da peça se deu quando o público foi chamado à luta. A história que até então cercava aquelas personagens, foi por sua vez cercada por um coro de trabalhadores, no qual não havia distinção entre ator e espectador. Foi aí, então, que o espetáculo se transformou num grande ensaio... para a revolução! Aqui não, Senhor Patrão! mostrou que a opressão ainda existe, com ou sem chicote, mas mostrou também que apesar dela é possível haver mobili-zação. Alguma palavra que condense em si festa e vitória é capaz de definir o que se viu na Praça da República quando a figura do patrão caiu. O microfone aberto no final do espetáculo mostrou que o espetáculo diz o que o povo precisa ouvir e o que o povo quer dizer.

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M’borayu

Zeca Sampaio

O espetáculo do Circo Teatro Capixaba en-cerrou com força e encantamento a 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, no galpão do Centro Cultural Arte em Construção, sede do grupo Pom-bas Urbanas, em Cidade Tiradentes. Herdeiros da Tradição do Sonho eles reacenderam a chama da presença Tupi-Guarani naquele local em que o sonho tornado realidade mantém uma comunida-de reunida para comemorar a cultura.

Desde o princípio, o canto e a dança reto-mada de nossos primeiros antepassados denun-ciam que vamos participar não apenas de uma apresentação teatral, mas que ali se retomará o sentido mais antigo dessa arte: o teatro como ce-lebração espiritual.

Retomando o fio das procissões dionisía-cas, das danças cerimoniais indígenas e do culto às forças espirituais que criaram e construíram o tempo de hoje, o grupo conta os mitos da criação e do surgimento do homem na tradição Guarani que hoje vive na Serra do Caparaó, sua terra de adoção. De tal forma os atores se envolvem com o tema que fica a dúvida se estamos diante de um espetáculo dramático ou de um verdadeiro culto, se é que é possível diferenciar essas duas dimen-sões neste tipo de cerimônia.

Circo Teatro Capixaba. M´borayu. Fotos: Augusto Paiva.

De qualquer maneira, a beleza dos textos – e que delícia ouvir o som de nossa língua primeira sendo entoada no centro da roda – das músicas e das danças, tornam o espetáculo um prazer mesmo para os mais céticos. A força das interpretações dão vida e verdade às narrativas do surgimento de Pindorama e das gentes que a povoam.

O espírito livre encontra meios para encarnar em pássaros, insetos, sapos, animais, no fogo, na água, nos ventos; o Sol-Kuaracy, a Lua-Jacy e a Terra-Nande Cy; os deuses Naman-du, Tupã, Iara. Todo esse universo, tão esquecido e paradoxalmente tão presente em nossa bagagem cultural é revivido sempre de forma surpreendente e cativante. Mesmo quando não conseguimos seguir linearmente o texto falado, seja por causa dos ruídos que interferem, ou das dificuldades inerentes à projeção nos espaços não convencionais do teatro, ou ainda pela linguagem mesclada do português e do Tupi-Guarani, a fruição não se perde, envolvidos que ficamos pela música, pela dança e pela beleza das vestimentas e dos diversos materiais de cena. A riqueza de elementos apresentados magnetiza a atenção, fazendo com que o tempo todo estejamos curiosos e maravilhados pela beleza simples de elementos rústicos e naturais como as esteiras de taboa e bambu, sementes, penas, fios e cordas, arcos, flautas, cestos...

A importância de um espetáculo como esse, que retoma essa tradição renovando-a e apresentando ao público como festa e ritual, precisa ser medida em confronto com o silêncio do discurso hegemônico que só convida o índio para figurar como o exótico, o “estrangeiro”, o outro que não somos e contra o qual cometemos tantas barbaridades. De fato, muitas bar-baridades foram e continuam sendo perpetradas contra os donos originais destas terras, po-rém como o espetáculo nos chama a atenção, é hora de nos percebermos não como outros, diferentes, mas como eles, os que também são vítimas ao mesmo tempo em que permitem e apoiam a destruição desses povos.

Nós somos todos legítimos Tupis-Guaranis e Gês, Nagôs e Bantos, Arianos, Orientais, Árabes e toda a sorte de mistura que daí surgiu por aqui. M’borayu, o amor, o espírito que nos une, nos chama para um encontro novo, em que os anciãos em torno do fogo vão re-lembrar as guerras e atrocidades, mas também a beleza das tradições, cantos e danças que nos unem e dão a energia necessária para seguir sonhando e construindo sempre e sempre a Terra Sem Males.

É este encanto – ou, encantamento – que anima o trabalho do Circo Teatro Capixaba, criando uma verdadeira cerimônia de encerramento para esta 7ª Mostra Lino Rojas, alimentando o fogo deste sonho coletivo de um teatro mais próximo do povo das ruas, atuante, comprometido e tantas vezes desconcertante.

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Circo Teatro Capixaba. M´borayu. Fotos: Augusto Paiva.

A (re)criação de um mundo distante e a busca da Terra sem Males: encantamento e ausências

Alexandre Falcão de Araújo

“Nós (...) lutamos arduamente pela vida mais digna das novas gerações indígenas e lutamos pela justiça verdadeira, (...) milhares de corpos físicos de povos Guarani-Kaiowá já foram assassinados/matados pelos fazendeiros (...). Estes fazendeiros e políticos truculentos nunca vão matar a nossa luta (...). O nosso sonho sagrado de retornarmos e recuperarmos a parte de nosso território antigo nunca será morto (...). Nossa luta é infinita e imutável, inacabável, assim o nosso sonho é igual ao ar, similar à noite e brilho do sol e estrelas” (resumo dos discursos de lideranças da Aty Guasu Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, agosto, 2012).

A praça 65, na Cidade Tiradentes, receberia a apresentação de M´borayu, do Circo Teatro Capixaba, mas nesse dia a chuva torrencial pegou a todos de surpresa e o teatro de rua teve que se refugiar debaixo do teto do incrível Centro Cultural Arte em Construção. Foi nesse contexto que a trupe sediada em Patrimônio da Penha, uma pequena vila rural na região da Serra do Caparaó-ES, compartilhou seu trabalho que trata da criação do universo, da terra e do homem, a partir da tradição oral Tupi-Guarani. O desafio dos artistas capixabas não era pequeno: adaptar o espetáculo para um espaço fechado, lidar com as dificuldades de acústica e estabelecer a conexão entre um público predominante urbano e periférico e uma cosmogonia complexa e distante daquele locus cultural. Segundo o programa da peça, o grupo pretende abrir a trilha da recuperação do “maravilhoso simbolismo dos textos e dos rituais sagrados, devolvendo-lhe seus mais profundos significados”. Para isso, investe de forma muito bem-sucedida na caracterização das figuras/entidades guaranis, na musicali-dade e nas canções, nas coreografias e transformação do espaço cênico. A beleza rústica dos figurinos, adereços e elementos cenográficos, a diversidade de instrumentos musicais e a expressão corporal geram um princípio de encantamento, uma faísca que ilumina uma pequena fatia do gigantesco universo Guarany Mbya.

No entanto, a narrativa, apesar de extremamente poética e rica em imagens, é difícil de ser apreendida, de um lado devido à complexidade da história – afinal, trata-se de inúmeros deuses e relações que até então eram desconhecidas à maioria do público presente, e de outro, pelo fato de muitas vezes não conseguirmos ouvir os atores, já que as vozes compe-tiam com os sons externos e dos instrumentos musicais. Talvez fosse interessante o grupo investir em procedimentos de repetição e sublinhar certas passagens da narrativa para que a mesma se torne mais clara a este público que está distante, geográfica e culturalmente, daquela vivência ameríndia.

Além disso, não pude deixar de lembrar dos conflitos por terra que naquele mesmo momento estavam implodindo em um território Guarani Kaiowá em Dourados, Mato Grosso do Sul. O espetáculo tangencia a questão dos conflitos indígenas atuais, mas, a busca por uma abordagem “pura” da mitologia ancestral desses povos traz uma aura de certa forma romântica à obra, e dá a sensação de haver um abismo temporal que torna incomunicável o tempo longínquo da mitologia guarani e a situação atual destes mesmos povos indígenas no Brasil. Tive dificuldade em manter o encantamento proposto pelo grupo e desejei ver um ímpeto antropofágico, devorando e regurgitando as histórias ancestrais em diálogo com o também belo, mas extremamente violento e opressor cotidiano dos povos indígenas em ter-ras brasileiras na contemporaneidade.

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Relampião: o retorno do mito?

Adailtom Alves Teixeira

Todo o mundo já ouviuFalar sobre Lampião,O famoso cangaceiroCorajoso e valentãoQue, na região Nordeste,Assombrou todo o sertão. (Lampião: herói ou bandido? João Firmino Cabral)

Manhã de um domingo nublado, dia 25 de novembro de 2012, um grupo de atores de dois grupos, Paulicea e Miolo e outros convida-dos, se preparam para apresentar o espetáculo Relampião dentro da programação da 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas na Praça Car-los Kozeritz, no Jardim Julieta, zona norte da cidade de São Paulo. As pessoas do local tem certa familiaridade com a arte teatral, pois é ali que o Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo desenvolve diversas atividades, dentre as quais sua própria mostra de teatro. A praça é cortada por uma avenida bem movimentada e é também ponto final de transporte coletivo e ainda é rodeada por conjuntos habitacionais populares, todo esse fervilhamento de gente é complementado pela feira livre que ocorre aos domingos naquele local. Últimos ajustes no equipamento de som e os atores estão prontos para começar a apre-sentação de Relampião.

O prefixo re, de origem latina, de acordo com Mini Aurélio (2010: LXXXV), tem o signifi-cado de para trás, repetição, intensidade, mudança de estado. Dessa forma, podemos dizer que o termo “relampião” seria um desejo de repetir algo do passado, com certa intensidade, para, assim, mudar determinado estado de coisas. O desejo traduzido no termo tenta aproxi-mar, por meio do espetáculo, o cangaço das questões cotidianas na atualidade. “O que há em comum entre a luta do cangaço e as lutas pela vida na contemporaneidade?”, perguntam-se todos os envolvidos no projeto, em seu material gráfico distribuído ao término do espetáculo.

Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, após perder o pai, assassinado pela polícia, cria um bando de jagunços que apavorou o sertão nordestino, tornando-se depois um mito contraditório: bandido ou herói? O espetáculo Relampião também tem como mote as perdas. Cada personagem perdeu ou perde algo todos os dias: a mulher que busca ter sua casa, o desempregado, o sambista que teve sua música roubada (ou “vendida”, como depois se descobre), a mãe que perdeu seu filho em mais uma violência da grande cidade... Inúmeras são as perdas, por isso, o artesão Virgulino, personagem do espetáculo, alude ao passado na tentativa de refazer o presente, ao se dirigir diretamente ao público: “Tá cheio de Lampião por aí, basta reluzir”. Todas as personagens trabalham ou “vivem” na rua; são o que já se chamou em certo momento da história de lumpemproletariado ou, contemporaneamente, de refugos humanos.

A dramaturgia, apesar de ter sido finalizada por Solange Dias, foi criada por todos os atores, que fizeram suas pesquisas e levaram para a sala de ensaio. Aysha Nascimento, faz a mãe que perdeu seu filho na violência da grande cidade, leva à cena um texto no qual

fundiu Carlos Drummond de Andrade e Marcelino Freire, apresentando um discurso vigoroso sobre a perda e o enfrentamento das mazelas. Discurso, sim. No espaço épico da rua, quan-do bem feito e contextualizado, tudo é permitido.

Alfaias, sanfona e rabeca, sons característicos do Nordeste se fazem presentes no espetáculo e nos transportam no tempo e no espaço. A música apresentada ao vivo, sem dúvida, faz com que o espetáculo conquiste o público, seduza os ouvidos e o corpo de todos. Daí a importância de mencionar a direção musical de Charles Raszl, que possibilitou que o ambiente nordestino se fizesse presente por meio da música. Plasticamente, o espetáculo é muito bem resolvido, encanta e agrada os olhos. Este é o primeiro espetáculo dirigido para rua por Alexandre Kavanji, daí alguns pequenos problemas como o personagem Virgulino, que tem chave dramática, os atores ainda muito presos às suas marcas, ignorando, em alguns momentos a relação que se faz necessária na rua. Mas isso a própria rua e a relação com o público tendem a modificar. Kavanji, que já tem uma longa história teatral, ganha o espaço aberto. Que bom!

Se o Lampião do passado começou sua trajetória a partir da perda, depois veio a co-meter muitas atrocidades também, tanto quanto as sofridas por ele e sua família, o Lampião do presente, por meio do espetáculo, também comete um equívoco – claro que incomparável ao Lampião do passado, mas digno de nota: ele fica todo o espetáculo procurando reunir um bando para enfrentar seus problemas, mas ao conseguir, vai enfrentar justamente um dos seus, um fiscal que ao longo do espetáculo procura um emprego de carteira assinada (que representa uma melhor dignidade em sua concepção) e encontra emprego no ambiente de

Cia do Miolo e Cia Paulicea. Relampião. Foto: Jonatha Cruz.

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enfrentamento dos seus. Essa contradição não é resolvida e nem desenvolvida, o espetáculo finaliza com o bando em claro enfrentamento com o fiscal, mas se este representa a opres-são clara e direta, a verdadeira máquina que faz esse mecanismo funcionar sequer é tocada, isto é, a estrutura que está por trás disso tudo bem como o sistema que a gera. Nesse ponto, penso eu, reside o maior problema do espetáculo.

Relampião

João das Neves

Dois grupos jovens, dedicados ao teatro de rua, a Cia Paulicea e a Cia do Miolo, se uniram para nos apresentar o espetáculo Relampião.

A obra pretende reviver a lendária e emblemática figura do cangaceiro, associado aqui à luta cotidiana de todos aqueles que, a ferro e fogo, fugindo da seca, da semiescravidão imposta pelo latifúndio, que, os re-lega à condição de miserabilidade, buscam nas cida-des grandes, melhores condições de vida.

Tudo isso soa a um discurso eternamente repeti-do. De boas intenções o inferno está cheio.

E, não bastariam elas para fazer de Relampião um espetáculo atraente, alegre e que pudesse a levar um espectador tão fluido como o do teatro de rua a uma reflexão sobre sua própria realidade, por próxima que fosse.

Espetáculos de rua frequentemente iludem seus realizadores. Com um público quase sempre numero-so, afinal como bem diz o nome de um de nossos mais prestigiados grupos, o espetáculo “Tá na rua”. E, in-dependente de sua qualidade, já se faz simpático por estar ali, gratuitamente, à nossa disposição. Quebran-do nossa rotina, convidando-nos a uma solidariedade descomprometida etc.

Cia do Miolo e Cia Paulicea. Relampião. Fotos: Jonatha Cruz.

Mas, para que atinja seus objetivos, nada disso é suficiente.

É frequente, cada vez mais, a existência de espetáculos descuidados que pensam se justificar pelo simples fato de estarem na rua. De oferecerem gratuitamente os seus trabalhos. Julgam-se, por isso, populares, comparando-se, e não sem certo ar de superioridade, às manifestações espontâneas de nosso povo. Esquecem-se do essencial. Que essa “espontaneidade” foi construída durante dezenas, centenas de anos de silenciosa decantação. De uma prática que se solidificou e sofisticou através de gerações, podendo ser comparada em qualidade e rigor artístico a qualquer manifestação artística da norma culta.

Assim, os reisados, os bumba meu boi, as escolas de samba, ou o congado mineiro, entre muitas outras, são grandes espetáculos épicos, de óperas populares. Espetáculos que, partindo de matriz religiosa como todo o bom teatro, se oferecem ao público da polis com uma profundidade e excelência que pouquíssimos de nossos palcos logram atingir.

Todas essas considerações são fruto do impacto causado em nós pela apresentação de Relampião, que assistimos na 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, no Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo.

Ali estava um trabalho envolvente. Um trabalho capaz de fazer uma releitura criativa do significado das carrancas de proa do rio São Francisco, das folias e reisados, das esculturas em madeira das Zefas, dos desenhos e pinturas das Marias Lira, das figuras em barro dos Vitalinos e Ulisses, dos cavalos marinhos, frevos, cavalhadas, das procissões de semana santa sobre os tapetes efêmeros e coloridos de pós de serra nas ruas de Ouro Preto, da riqueza percussiva dos reinados negros dos congos etc. Não meras reproduções parafolclóri-cas, mas a apropriação poética de nossas manifestações mais queridas, para um instante de afirmação de nossa identidade e reflexão sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos.

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Um convite: vamos?

Kanansue Gomes

Foi num dia de muita chuva que a Cia. Teatral Boccaccione se apresentou com o es-petáculo Ubu Rei e, enfrentando todas as intempéries, proporcionou muita diversão a quem passava pela Praça da República, em São Paulo, na tarde da apresentação.

Antecedendo o espetáculo, os integrantes da companhia realizaram uma oficina com interessados(as) em participar da peça. Tratava-se, basicamente, de instruções de marca-ção de cena e de representação das figuras que comporiam o coro – função realizada pelos interessados(as) que participaram da oficina. Segundo a Companhia, essa oficina também tem como objetivo preparar quem nunca havia atuado em uma peça, para que o(a) partici-pante sentisse mais segurança ao estar em cena.

O grotesco e o bufão foram muito utilizados no espetáculo, isso ficou evidente, principal-mente, nas personagens Mãe Ubu e Pai Ubu, cômicos por excelência. O uso da improvisação também foi marcante, como se o espetáculo fosse um grande roteiro de ações improvisadas – que lembrava os canovacci – onde existia um ponto de início e um ponto final, mas todo o percurso entre esses dois extremos era executado a partir do jogo com o público e os (as) integrantes do coro, dessa forma, fazendo com que o espetáculo não se pautasse somente no ensaiado e no previamente combinado e criasse uma atmosfera viva na qual todos eram jogadores e atuadores. A música também compôs a apresentação, mas a instrumentalização musical poderia ser mais bem aproveitada e desenvolvida pelos atores.

Os pontos fortes da peça foram a utilização do espaço como um todo e a participação dos espectadores. Os atores rompiam constantemente o chamado “espaço cênico” e inva-diam a “área do público”, jogando com ele e gerando o riso. A Cia. Boccaccione não deixou a desejar em sua apresentação: a peça foi engraçada, reflexiva e encantadora. Em resumo, o espetáculo foi um convite ao lúdico, ao outro.

Cia. Boccaccione. Ubu rei. Fotos: Augusto Paiva.

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Virtuosismo na República

Lissa Santi

O espetáculo está para começar. Passa um tempo, muito tempo. O público está inquieto ao sol das onze da manhã em plena Praça da República. Todo o clima anuncia que vai acon-tecer alguma coisa ali. Tem um cenário colorido no meio do sol, uma música chamativa que se repete, os atores do Duo Morales se maquiando e preparando as demais coisas aos olhos daquele mesmo público. Mais gente se junta.

A espera é significativa para o processo de acumulação de espectadores, tudo é feito a nossos olhos, a expectativa, por si, já interessa, chama. Passa realmente muito tempo, coisa que é desgastante para quem se encontra ali desde o início previsto.

Começa o espetáculo Dois na Roda, anunciado animadamente pelos atores, que en-tram de maneira barulhenta com uma engenhoca estrondosa de vários instrumentos juntos. O público, impaciente, esquece sua impaciência. Cada par de olhos fugidios passa a ter um foco de atenção.

O que se segue é uma grande demonstração de virtuosismo em malabarismo, própria de uma lona de circo, mas a céu aberto. Os atores demonstram grande capacidade de entre-ter e que logo mostram que não há apenas dois naquela roda, mas tantos quantos passarem por ali.

Para que não se esgote rápido, a demonstração de habilidades é permeada por uma grande interação com o público, constantemente chamado ao centro da cena, o que deixa em dúvida se isso ocorre de maneira delicada ou não.

Acaba-se o espetáculo, e é surpreendente que mais gente parou, embaixo daquele sol, para observar os atores, que tanto reafirmam suas personagens ao longo daquele período.

Fica claro o quanto a demonstração de coisas difíceis e belas preenche o cotidiano.

Duo Morales. Dois na roda. Fotos: Augusto Paiva.

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Praça da República, Feira e Malabares

Narah Neckis

O Grupo Duo Morales marcou presença e movimentou a feira popular da Praça da Re-pública, na 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, com a peça Dois na Roda. Espetáculo de circo, no qual o destaque vai para grandes números de malabares e equilibrismo.

Em um sol escaldante, em frente à Secretaria da Educação, avistava-se uma lona de circo, cortinas e instrumentos de malabares. A sensação era de estranheza, um vazio percor-ria o ambiente. De fundo via-se lindos painéis relativos ao primeiro de dezembro, dia Mundial da luta contra HIV.

O espetáculo, embora marcado para começar às 11 horas, iniciou-se com 40 minutos de atraso. Tal demora foi uma forma, um pouco cansativa, que a companhia encontrou para atrair o público que passava.

A música do espetáculo começava, parava, reiniciava e nada da peça começar. As pessoas que frequentavam a feira da Praça da República olhavam com uma expressão de interrogação no rosto, como se perguntassem: o que vai acontecer aqui?

Depois de longa espera, Dani Morales aparece em cena e começa a se maquiar. Surge Guga Morales arrumando seu cabelo com grande dificuldade. Neste momento é estabeleci-do um jogo com a plateia muito interessante. O espetáculo não tinha começado do ponto de vista convencional, no entanto já acontecia para todos que ali estavam.

Os atores saíram de cena, e formalmente, interagindo com a plateia, apresentaram o es-petáculo por três vezes. Iniciava-se a peça, que transcorria em diálogo constante com o público.

O primeiro número de malabares feito com bolas e argolas foi belo, uma mescla de descontração com rigor técnico. O público colaborava para o número jogando bolas para o ator equilibrar.

Duo Morales. Dois na roda. Fotos: Augusto Paiva.

Um dos pontos positivos da peça foi à forma como os atores interagiam com o público, este atuante o tempo todo na composição do espetáculo. Os artistas batiam foto com a pla-teia, simulavam briguinhas com as pessoas que assistiam à peça, davam parte do figurino para os presentes segurarem; enfim, o público era o centro do espetáculo, da festa popular.

Um momento a ser destacado foi do malabares com faca que não aconteceu. Criou-se uma expectativa e esta foi desviada causando riso e descontração. Nos ensinamentos de Kant: “o riso provém de uma expectativa que se resolve subitamente em nada”.

Outro número belo foi o realizado com faca, bola, taças, copinhos e prato, demonstran-do grande domínio técnico de malabares e equilibrismo. Tal demonstração contrastou com o personagem de Dani Morales, figura desastrada que acaba por “quebrar” todas as louças utilizadas no malabares. Cena que ficou muito engraçada e prazerosa de assistir.

Um momento poético a ser relembrado foi quando uma criança da plateia ajudou a atriz a arrumar os bastões que ela tinha derrubado. Foi um instante lúdico, belo, cristalino, obser-var a menina e sua alegria em poder ajudar, em fazer parte do acontecimento chamado Dois na Roda.

Por fim, com Duo Morales, numa tarde ensolarada, vivenciou-se alegria, equilíbrio, in-teração, prazer, improvisação e descontração. Valeu a pena esperar, contemplar e participar.

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Entre a brincadeira e o teatro... “Arrocha o fole!”

Daniela Landin

Uma grande roda de pessoas, sentadas e em pé, ocupava parte da Praça do Patriarca naquela tarde ensolarada de início de dezembro. Quase todas muito atentas ao que estava sendo apresentado, com sem-blante aberto e vivo; não raro, ouvia-se uma gargalhada. O foco do inte-resse, em meio aos tantos estímulos do Centro de São Paulo, estava em uma barraca (ou empanada) de onde surgiam bonecos animados pelo mamulengueiro pernambucano Danilo Cavalcante, que hoje reside em Guararema, interior paulista. Com as pancadas e pauladas que um bone-co desferia no outro, um garotinho se divertia em riso solto. No momento de um beijo entre duas “personagens”, a mãe que o acompanhava retru-cou: “olha a indecência, tem criança aqui!”, como se conversasse com aquelas figuras de madeira que apareciam e sumiam da vista do público.

No espetáculo A festa da Rosinha Boca Mole, do Mamulengo da Folia, a relação com o público se dá pelo menos de duas formas. Uma delas ocorre por meio de um contato direto, seja numa menção específi-ca a uma pessoa, seja no convite à uma participação mais efetiva, como no momento em que alguém é chamado para bater com um bastão no boneco em formato de cobra (que funciona como uma espécie de anta-gonista na narrativa). A outra forma opera por conta do caráter dialógico no que se refere ao contexto da apresentação - para aquele público, naquele lugar, naquele momento histórico. Com base no domínio de as-pectos comunicacionais e numa percepção apurada dos significados em torno da ação de ocupar o espaço público, Danilo articula suas falas de modo a agregar à experiência diferentes sujeitos. Naquela tarde, acom-panhavam a apresentação muitas pessoas do meio teatral, mas também aquelas que simplesmente passavam pelo local, além de moradores de rua. O espetáculo tende a se comunicar com esses públicos tão diversos por conta da pluralidade de registros e referências da linguagem traba-lhada por Danilo.

A comunicação aqui opera em diferentes dimensões, por exemplo, no que diz respeito à sonoridade: o espetáculo é marcado por efeitos vocais e tecnológicos para a representação dos mais variados barulhos escatológicos, sendo que cada boneco tem a sua “chegança” com uma canção. Vale lembrar que o mamulengueiro se apresenta com um gru-po de músicos, remetendo à formação tradicional da brincadeira – Ana Vilela (triângulo), Erasmo José (zabumba), Sabino (pandeiro) e Zé do Fole (sanfona) compõem o Trio Agrestino. Há também a dimensão visual, graças à plasticidade encantatória dos bonecos, e a discursiva, em que o artista faz referência a acontecimentos políticos (como o superfatura-mento nas obras do Metrô nas sucessivas gestões do PSBD no governo paulista), provoca riso pelos comentários jocosos atribuídos aos bonecos e até menciona elementos da tradição teatral. Em suma, difícil precisar

a efetividade da comunicação pretendida pelo mamulengueiro. Possível é afirmar que seu trabalho se movimenta na direção de uma resistência cultural e do esforço permanente em, mais até que travar diálogo, propiciar uma conversa coletiva, num constante chamado ao jogo. Há, portanto, a construção de uma experiência, que é um dos traços mais marcantes do popular na cultura.

Mas, afinal, é teatro ou é brincadeira? Ou seja, trata-se de uma experiência flagrante-mente artística ou relativa a uma manifestação cultural popular? Enquanto alguns pesquisa-dores reafirmam a equivalência entre as práticas, outros defendem os pontos de contato e de distância entre uma e outra. O Mamulengo da Folia parece borrar essas fronteiras, uma vez que tende a se apropriar dos elementos de uma e de outra e criar uma potente síntese. Este “teatro de mamulengo”, assim como uma série de trabalhos de teatro popular, é marcado pela polissemia, em que Danilo Cavalcante, ciente do lugar híbrido que ocupa, parece lançar mão de expedientes de ambos os campos em prol da reinvenção da experiência artístico-popular de rua.

Mamulengo da Folia. A festa da Rosinha Boca Mole. Foto: Anna Piccolo.

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O teatro popular e seu poder de interação com o público

Rodrigo Morais Leite

A abertura da 8º Mostra Lino Rojas, sempre de-dicada ao teatro de rua, ficou a cargo do grupo Ma-mulengo da Folia, especializado no tradicional modelo pernambucano de teatro de bonecos. Composta de apenas um manipulador (o mestre bonequeiro) e de uma banda de forró, com sua formação clássica (uma sanfona, uma zabumba e um triângulo), a trupe de ar-tistas nordestinos encarregou-se de animar o público presente à Praça do Patriarca antes mesmo de a Mos-tra ser oficialmente inaugurada, o que só aconteceu após a chegada de um desfile de artistas populares ao local. Para o bonequeiro, que até então exercia a função de mestre de cerimônia, o término do desfile foi a deixa para que iniciasse sua apresentação em um pequeno palco erguido ao lado da banda, palco esse mais conhecido pelo nome de empanada. Diante de um número considerável de espectadores, beneficia-dos por uma tarde de clima agradável em São Pau-lo, começou o espetáculo de mamelungo, intitulado A Festa da Rosinha Boca Mole.

Público assistindo ao Mamulengo da Folia. Foto: Anna Piccolo.

Muito mais importante do que a história, focada nas peripécias da Rosinha do título para ficar com seu namorado, eram as constantes improvisações realizadas pelo manipulador dos fantoches, pródigo em introduzir uma série de gags no roteiro com o objetivo de escarnecer um ou mais espectadores. Estes, por sinal, conhecedores dos códigos próprios do teatro de mamelungo, não se faziam de rogados e interagiam a todo instante com o mestre bonequei-ro, desafiando-o a um embate verbal. Contudo, por mais espirituosos que fossem os especta-dores, a vitória nesses embates cabia, quase sempre, ao artista popular, o responsável pela sentença final e definitiva, uma espécie de touché sem a presença de espadas.

Em se tratando de um modelo de teatro com fortes elementos farsescos, com suas cor-rerias e pancadarias, as armas “de verdade” não poderiam ficar de fora da empanada, por-tadas por aquelas personagens tipificadas próprias do universo mamelungo, como o policial, o capataz e outros. Não faltaram também, é claro, certas figuras de bonecos bichos, como a cobra, alusão, dizem os especialistas no assunto, ao pecado original. Depois de gargalha-rem muito às custas da jocosidade do mestre bonequeiro, sempre disposto a satirizar tudo e todos, o final, em forma de apoteose, convidou o público a cair no forró, prova cabal de que São Paulo é a mais nordestina das cidades brasileiras e de que o teatro popular continua insuperável no tocante àquilo que hoje em dia se convencionou chamar de interatividade.

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Mamulengo da Folia. A festa da Rosinha Boca Mole. Foto: Anna Piccolo.

A folia nordestina na firula paulistana

Clarissa Oliveira da Silva e Leandro Pereira Alves

No dia 3 de Dezembro de 2013, num sol bonito que anunciava o verão próximo, o “Ministro da Manteiga” se derretia sobre seus falsos números. Outros, que não têm nada a ver com essas falácias empresariais, faziam poesia. Um Trio Agrestino contagiava a Praça do Patriarca e um círculo de transeuntes já se formava em torno da montagem de uma estrutura ainda irreconhecível, ao som de um frenético forró. Daí chegava o Cortejo. Nós, com os outros artistas, e depois o povo todo, havíamos percorrido as ruas do Centro de São Paulo como que recrutando soldados para uma grande guerra-festa. Enquanto todos se ajeitavam, foi anunciada a tal mostra de teatro e seu primeiro espetáculo.

Entra Danilo Cavalcante e Mimosa. Esta, uma eguinha formosa, des-sas que se veste como saia pra rodopiar bonito. Ela requebra, namora, pei-da, faz-o-que-quer. Dentro dela, de camisa de chita - uniforme também dos músicos -, vem o artista conduzindo-a e orquestrando tudo. Sem ordens, tudo é uma harmonia só: sanfona, pandeiro, triângulo e plateia. E o remele-xo, que a toda hora vai e vem, faz a gente se coçar. Estamos rendidos a um brincante por excelência. Por detrás, a estrutura antes irreconhecível é ago-ra uma misteriosa barraca. Danilo instiga. Pergunta se queremos conhecer Rosinha. A gente anseia, já se rindo antes da hora – mérito todo do cabra. Ele então se esconde na barraca; e eis que surgem os bonecos da “mão molenga”. O Coronel, o Padre com sua cobra Anacrondia, o Policial, o Dia-bo – conhecido também como “Pai do Bush” -, Rosinha e, por fim, Benedito. Um a um todos os bonecos são apresentados. Todo o público os reconhece. São personagens tradicionais da cultura popular, com requintes peculiares do talentoso manipulador. Entre o público: chinelos, sandálias, tênis, botas fabris e sapatos (anti) sociais. Gente de todo tipo, como é comum na cidade. No entanto, é evidente uma maioria daquele povo que leva a metrópole no lombo. Com um belíssimo sotaque pernambucano e as nuances caricaturais de cada personagem, somos todos – nordestinos, descendentes e simpati-zantes - enfeitiçados pelo espetáculo que honra nosso pé rachado e nossa cabeça chata.

O casamento é de Rosinha e Benedito, mas o Tinhoso entra pra acabar com a festa. O ápice se dá quando, em meio a muita confusão, Anacrondia engole a todos. Cena particularmente impagável, por ouvirmos esta pérola de um trabalhador que passava na hora: “Deve ser o PT comendo o povo!”. Enfim, resta o valente herói que, depois da ajuda desastrosa e malograda de alguns espectadores, luta e vence a cobra. A cena que segue é hilária, pois o resgate depende do público, que dá de ombros ao Padre e ao Policial, mas não hesita em salvar a noiva. O fim não foge à estória arquetípica, mas não é isto que está em jogo desde o início. A vitória da trama é a do imaginário popular. A força que se demonstra é a desse infinito lúdico nordestino, e a prova de fogo são sorrisos escancarados em meio a uma cidade triste.

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A encantadora história do circo

Adailtom Alves Teixeira

O circo sempre encantou por colocar o ser humano em seus limites, seja os do ridículo, como fazem os palhaços, seja os do extraordinário, como os trapezistas. Mas ser um artista circense sem nascer no mundo do circo é algo bastante recente na história dessa arte no Brasil. Até a década de 1980 para aprender a arte circense era necessário pertencer a uma família dita “tradicional” ou fugir com o circo, como se dizia. Tudo isso é passado e hoje mui-tas são as possibilidades de se adentrar o mundo da arte circense, e o Circo Teatro Palombar, composto por jovens artistas é a demonstração clara dessa mudança.

Fruto de um projeto criado no Centro Cultural Arte em Construção – sede do Pombas Urbanas, em Cidade Tiradentes, situado no limite leste da cidade de São Paulo – e coorde-nado por Adriano Mauriz, o coletivo é formado por jovens que dominam diversas técnicas: malabares, monociclo, pirofagia, trapézio, contorção, mágica, mas sobretudo, a técnica do palhaço, elo entre as demais. O projeto que deu origem, o Somos do Circo, foi criado em 2005, mas os aprendizes formaram o coletivo em 2012, com o objetivo de estudar a história do circo e seu entorno, isto é, saber se em seu bairro havia pessoas ligadas ao mundo do circo. Dessa forma, nasceu o espetáculo Nós na Lona – uma arriscada trama de picadeiro e asfalto.

Circo Teatro Palombar. Nós da Lona. Fotos: Anna Piccolo.

A história é bastante simples, porém eficiente, visa passar em revista toda a história do circo, desde a antiguidade chinesa e greco-romana, passando pelos saltimbancos medievais, os cômicos dell`arte, chegando ao circo moderno com Philip Astley. A cada momento histórico um número circense é apresentado. Quem conta a história é um mestre de cerimônias já can-sado de sustentar a tradição. Conta para um “vendedor ambulante”, que ao longo da história vai se apaixonando pela história, ao mesmo tempo em que vai se tornando um palhaço.

O espetáculo apresentado na 8ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, no dia 03 de dezembro de 2013, criou uma roda em torno de si de mais de 500 pessoas, que ficaram ma-ravilhadas, tanto pela destreza dos números apresentados, como pela força daqueles jovens artistas. Não é um espetáculo curto, tem mais de uma hora de duração, ainda assim, o pú-blico não arredou pé, mesmo nos momentos mais frágeis, como, por exemplo, em cenas de muitas falas e em que a voz dos artistas não chegam a todos. O espetáculo parece ter sido criado pensando uma cena pequena, para poucas pessoas, por outro lado, a estrutura de banda (charanga), trapézio e cenário são grandiosos, criando certa contradição, entre o que se propõe e o que se apresenta enquanto estrutura. Porém, toda a espetacularidade do circo está presente. Os jovens se desnudam artisticamente. É um espetáculo muito verdadeiro e que apresenta toda a paixão de seus criadores pelo mundo do circo e uma bela homena-gem aos nossos grandes palhaços, como os Picolinos (Roger Avanzi, Nerino Avanzi e Roger Avanzi Filho).

O público, encantado, vê até o que não é mostrado, como uma senhora que estava com sua filha ao ver um beijo falso entre a índia Potira (Esmael Ferreira) e uma pessoa do público, chamada a participar da cena. A senhora afirmou: “não é que ele beijou a boca dela mesmo!” Nem houve beijo e nem era ela, mas a verdade é tamanha que convenceu a assistente, que depois chamou sua filha para ir embora, mas a menina se recusou, assim, ficaram até o final do espetáculo.

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No espetáculo, a todo momento, os artistas buscam a participação do público. O mo-mento alto é no malabares com os facões e no número com as facas. O primeiro pela des-treza, o segundo pelas brincadeiras de palhaços durante a execução do número, tornando o público cúmplice na armação. As tiradas de palhaço e as armações que tornam o público cúmplice das trapaças, deixam o espetáculo delicioso.

O momento frágil é quando tratam da commedia dell`arte, apesar do treinamento corpo-ral, a cena não mostra os tipos e o uso da máscara não é bem realizado. Poderiam também encurtar um pouco toda a história, o que tornaria o espetáculo ainda mais dinâmico. Mas, é importante lembrar que se trata do primeiro espetáculo da trupe, logo, é certo que irá crescer bastante.

Na passada de chapéu, um senhor que interviu bastante nas cenas, colocou suas moe-das e fez questão de beijar a índia Potira. Retribuiu a gentileza de ser bem recebido e aceito por todos daquela trupe. O coletivo é composto por Esmael Ferreira, Guilherme Silveira, Hen-rique Nobre, Leonardo Galdino, Letícia Cássia, Marcelo Nobre, Paulo Wesley, Rafael Garcia, Telber Victor e conta com a participação de Juliana Flory e Cinthia Arruda.

Circo Teatro Palombar. Nós da Lona. Foto: Anna Piccolo.

Palombando a história, ou, uma modesta homenagem à persistência do saber

Daniela Giampietro

Foi costurando os caminhos da metrópole que o grupo Circo Teatro Palombar, formado por jovens artistas do bairro Cidade Tiradentes – extremo leste de São Paulo –, inaugurou as apresentações da 8ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. Na Praça do Patriarca, com um forte calor bastante típico das tardes de verão, o público ia ocupando seu lugar na roda enquanto os artistas finalizavam os preparativos. Em cena, um trapézio fixo, um tecido acro-bático e alguns praticáveis dividiam o espaço com uma banda já posicionada. Em breve, o centro da cidade se transformaria em palco-picadeiro de números “vindos de longe”, frutos do acúmulo e da transmissão de múltiplos saberes. Saberes, estes, sempre pautados na árdua e persistente tarefa de trabalhadores de todos os tempos. O termo “palomba”, que inspira o nome do grupo, significa uma espécie de linha grossa usada para costurar as velas das em-barcações - e os fios que cosem as velas, cosem lonas e histórias.

O espetáculo Nós da Lona – Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto constrói uma síntese narrativa sobre a história do circo. Tendo como mote a relação entre Dimbo, um vendedor de pipocas cujo sonho é ingressar no circo, e uma trupe circense, o público acom-panha, por intermédio de números didaticamente inseridos no espetáculo, parte da origem histórica desta arte milenar. Estruturada de modo episódico à semelhança dos espetáculos circenses de variedades, a peça é costurada pelos diálogos entre o mestre de cerimônias da trupe e o simpático pipoqueiro que, aos poucos, vai se encantando com a história e o modo de vida dos artistas.

A partir do recorte proposto pelo grupo é possível observar uma grande ênfase dada aos esquetes cômicos, sendo que a maioria deles transita com a paródia de números circen-ses tradicionais. Dois bons exemplos estão na apresentação de um fajuto atirador de facas, elaborada com a divertida participação do público, e na revelação dos truques de Alfacim, um “mágico indiano” pra lá de duvidoso. É importante lembrar que, no picadeiro, desmistificar a magia dos acontecimentos e brincar com o erro sempre fez parte do repertório de palhaços. Mas, também, vale ressaltar que antes de tornar-se palhaço o artista circense precisava dominar muito bem todas as habilidades corporais exigidas para os números acrobáticos. A paródia, portanto, ia muito além do simples arremedo dos números “sérios”. Afinal, o princi-pal encantamento das artes circenses reside na superação do corpo e no enfrentamento de habilidades extracotidianas. Não é a toa que dentre os números apresentados pelo grupo os que mais chamavam a atenção do público eram aqueles que, apesar da aparente simplicida-de, demonstravam precisão e destreza por parte dos atores. Malabares com tochas, double trapézio e acrobacias de solo arrancavam comentários entusiasmados durante toda a apre-sentação. Talvez a explicação para isso esteja na necessidade de encontrar, em exemplos de rigor e superação, um caminho que aponte para novos desdobramentos diante das fragi-lidades e limitações humanas. Ou, quem sabe, um caminho que aponte para antigos-novos saberes vindos de longe por terras e mares da história.

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O risco e... Muito mais do que um petisco

Clarissa Oliveira da Silva e Leandro Pereira Alves

... um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo...(Torquato Neto)

Praça Patriarca. Fim de tarde. Uma flor furou o asfalto. Segundo espetáculo da Mostra Lino Rojas. Sai a caixa-preta donde fantoches viveram epopeia e invade o Centro Velho uma – sempre – encantadora arena circense. Encantadora assim, coisa mágica. De atrapalhar público antigo a voltar do almoço e de grudar mais um montinho de gente nova assim cabeça-cabeçacabeça, quase sem buraco pra quem quer ver as pompas todas. Rufam os tambores: é a Trupe Palombar! Vindos de longínqua terra, ainda São Paulo, Cidade Tiradentes, esses jovens provam os (dis)sabores da grande aventura de dedicarem suas vidas à arte do circo e do teatro.

Prólogo. Enquanto alguns ajustes são feitos no cenário, um jogo entre dois persona-gens. Um pipoqueiro atira pedaços de banana para um macaco que realiza acrobacias en-saiadas para conquistar a comida. O público, prestes a dar cambalhotas para ver o que suce-de, transforma-se todo em crianças. Crianças pequenas, médias e grandes. Nas pequenas o sorriso habitual que sempre é novo. Nas grandes, é de espantar o incomum brilho nos olhos.

Dimbo, o pipoqueiro, será o anti-herói da trama. Ele sonha integrar uma trupe circense, e eis que um dia seu sonho pode se tornar realidade. Através de suas desventuras, desenro-la-se a obra baseada numa pesquisa coletiva sobre a história do circo. Pesquisa deslumbran-te com direito a uma exemplar homenagem ao histórico Palhaço Carequinha.

Circo Teatro Palombar. Nós da Lona. Fotos: Anna Piccolo.

Bom espetáculo, e por isso mesmo – é importante que se diga – fica aquela vontadinha de tê-lo compreendido melhor. A falta de microfone tornou alguns trechos inaudíveis – o que não dispersou a plateia que se mantinha fascinada pelas atrações circenses. Estas prendem pelas imagens criadas, mas em momentos nos quais a fala é a mais importante, a peça torna-se dificultosa para quem não está próximo da arena. Há outro contraponto. Os atores demonstram agilidade na execução circense, porém, essa segurança ainda não é vista de forma plena nos momentos de interpretação.

Contudo, difícil fazer essa crítica quando nos pegamos em vários momentos também maravilhados com os números de pirofagia, de trapézio, de monociclos, etc., etc. e outros belos etc’s. A banda, situada na lateral do palco, faz toda a trilha sonora da peça. É um show à parte e de tal excelência que algumas vezes deixa de ser apenas trilha para quase se tornar protagonista.

Por fim, se a experiência é importante para a lapidação de um artista, temos na Trupe Palombar uma contradição. É inacreditável nesses meninos e meninas tão jovens a capa-cidade de se mostrarem mestres e de nos fazer lembrar a magia de sermos todos, sempre, crianças.

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Teatro dos Ventos. Máquinas paradas Cobrasma 68. Foto: Anna Piccolo.

A resistência e a opressão: uma história escrita em sangue

Gyorgy Laszlo

Quando o muro separa uma ponte une Se a vingança encara o remorso pune Você vem me agarra, alguém vem me solta Você vai na marra, ela um dia volta...

Em frente à Prefeitura da Cidade de São Paulo uma manifestação pintava de camisas e bandeiras a rua de vermelho. “Rua, rua, rua, queremos moradia!” era o grito que de longe já se ouvia. A ruptura com a rima e a harmonia do verso parecem dizer mais do que a frase por si só. O Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e a Frente de Luta por Moradia (FLM), organizadores da manifestação, marcavam sua posição: a exigência de uma ação efetiva para o fim da especulação imobiliária que corrói a cidade e a resolução permanente para a situação das tantas pessoas desabrigadas a rondar pelo centro.

A coincidência entre o horário do espetáculo, que nos narra a histórica greve de 1968 na COBRASMA (Companhia de Materiais Ferroviários), acontecer junto à manifestação de de-sabrigados não passou despercebida: a bandeira do MSTC foi hasteada no centro da cena.

O grupo nos apresenta um contexto histórico complexo preenchido de atrocidades de maneira crua e direta, em uma linguagem que aproxima o público das personagens. A Cia Te-atro dos Ventos parece entender o teatro de rua como disparador de um debate amplo a ser feito no espaço público. Infelizmente, ali, alguns problemas impediram a concretização desta intenção: armado como uma arena circular, o espetáculo teve que se rearranjar por conta do posicionamento do público que evitava se expor diretamente ao sol. Não fosse o calor, que tornava as sombras lugares atraentes e acomodava o público, transformando-o em um espectador não-participante, e os microfones, que, apesar de darem um alcance maior à voz dos atores, silenciaram o público, este poderia fazer coro com os trabalhadores em greve, dando ao espetáculo maiores estofo e potência.

O ano de 1968 é conhecido como o começo dos “anos de chumbo” da ditadura civil--militar, quando foi decretado o Ato Institucional nº 5. Para lembrar de que época tratavam, numa das primeiras cenas, um “milico” prende e tortura uma manifestante; em seguida, volta--se para o público e questiona, com um sorriso sardônico, a existência de tortura no Brasil. Diante da personagem torturada, a pergunta leva a uma reflexão profunda: como pode a violência contra um ser humano amordaçado, desprovido de qualquer direito ou possibilida-de de defesa, ser legitimada? Ou mesmo: até que ponto esta atrocidade pode ter qualquer justificativa? A pergunta, em tom irônico, insinua que a prática não acabou com o dito fim da ditadura, quando a população pôde voltar às urnas – quantos ainda hoje são torturados e desaparecidos?

O espetáculo provoca a refletir sobre a greve a partir das contradições dos trabalhado-res. Um deles se posiciona a favor do patrão, contra sua classe, porque precisa assegurar seu emprego: há toda uma família dependente de seu parco salário. Mas quantos ali não estão na mesma situação? Além de todas as tensões internas entre os trabalhadores, há ainda a repressão externa. Como resistir ao exército pronto a invadir a fábrica? E mais: quem são estes homens fardados a enfrentar este “inimigo”? Um deles, chamado Carlos, questiona seu comandante. Como podem trabalhadores brasileiros desarmados serem considerados

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inimigos de outros trabalhadores, também brasileiros, de armas à mão? Bonita homenagem ao desertor do exército Carlos Lamarca, perseguido e assassinado pela ditadura.

Máquinas Paradas... acaba no justo momento da invasão da fábrica pelos militares, desnecessário seria mostrar o que dali sucedeu: massacres, mortes, desaparecidos... A apre-sentação se encerra e a história continua, repetindo – até quando? – estas mesmas páginas sujas de sangue. De sangue, mas também de muita luta e muita resistência.

Quantas máquinas ainda precisarão ser paradas?

...E se a força é tua ela um dia é nossa Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando Que medo você tem de nós, olha aíVocê corta um verso, eu escrevo outro Você me prende vivo, eu escapo mortoDe repente olha eu aí de novoPerturbando a paz, exigindo troco Vamos por aí eu e meu cachorro Olha um verso, olha o outro Olha o velho, olha o moço chegando Que medo você tem de nós, olha aí(Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro)

Teatro dos Ventos. Máquinas paradas Cobrasma 68. Foto: Anna Piccolo.

O desafio de trazer à tona e à cena o legado do movimento sindical de 1968: prova de fogo no verão paulistano

Alexandre Falcão de Araújo

É uma hora da tarde, o sol faz arder a pele e os olhos, e o coração abafado de São Paulo recebe, do jeito que pode, os sujeitos que dão vida ao concreto fervente da Cidade. É nesse contexto que a Cia. Teatro dos Ventos caça uma sombra e monta a arena de rua para apresentar Máquinas paradas Cobrasma 68. A peça tem como principal referência a greve de 1968 em Osasco (cidade-sede do grupo), que contou com a participação de 12 mil meta-lúrgicos da Cobrasma e outras empresas.

A obra teatral estreou em 2012, tendo sido montada por encomenda do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e região, mas Luiz Carlos Checchia, diretor e dramaturgo do grupo, considera a apresentação na 8ª Mostra Lino Rojas como um marco zero para a companhia, na medida em que se trata de uma reestreia. Segundo o diretor, o Sindicato interferiu no processo criativo, alterando o final proposto pelo grupo. Por isso, após a finalização da tem-porada com patrocínio da entidade osasquense, o grupo decidiu retomar o final inicialmente pensado. A apresentação na Praça do Patriarca foi a primeira com a nova estrutura e também foi a estreia da atriz Camila Costa Melo, sua primeira apresentação no grupo e primeira apre-sentação na rua, sendo ainda a retomada das apresentações da peça, após longo período sem contato com o público.

A ansiedade pela reestreia se fez sentir, o elenco parecia inseguro, aproveitando pouco as oportunidades geradas pela estrutura cênica. O roteiro de encenação se vale evidente-mente da forma épica, com jogo de troca de papéis, relação direta com o público, quebras de cenas e contraposição de falas que intencionam levar a reflexões dialéticas, além de jogos de palhaçaria e humor para mostrar as histórias da organização dos trabalhadores (muitos deles também estudantes) no enfrentamento da classe dominante, detentora dos meios de produção, e do governo, com citação direta ao período ditatorial. Nesse meio, a migração, a necessidade de sobrevivência, o trabalho alienado e os conflitos de poder em torno da enti-dade sindical são mostrados, realçando ao final a crise entre revolução e negociação. Porém, a execução cênica fica aquém das possibilidades derivadas de temática tão rica e complexa, fato ocasionado também por influência do calor extenuante e dos ruídos da cidade (incluindo a manifestação de movimentos de moradia, ocorrendo ao lado, da qual o espetáculo incorpo-rou uma bandeira como cenografia).

Além dos fatores ambientais, talvez pelo nervosismo, o elenco não utilizou todo o poten-cial das cenas, a exemplo daquelas em que havia relação direta com o público. Em algumas situações, faltou delicadeza (como no momento da entrega das rosas); em outras, faltou criar empatia, foi como se não houvesse tempo para estabelecer uma relação real com as pes-soas ali presentes. Alguns “buracos” de cena, aparentemente por problemas técnicos com amplificação de instrumentos musicais, também geraram perda da vivacidade do elenco, que era retomada nos momentos cômicos, nos jogos clássicos de humor, cuja simplicidade per-mitia ao grupo divertir-se em cena e consequentemente divertir o público.

Em conversa após a apresentação, os integrantes compartilharam as dificuldades de manter vivo o processo criativo, na medida em que no ano de 2013 grande parte do tempo do grupo foi canalizado para a militância teatral, tanto local como mais ampla. Assim, o dé-ficit no campo técnico-estético é sentido no coletivo e reiterado por este leitor crítico. A volta

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Teatro dos Ventos. Máquinas paradas Cobrasma 68. Foto: Anna Piccolo.

às ruas pareceu indicar a necessidade de retomada do equilíbrio entre os fazeres político e teatral, pra que a práxis seja continuamente alimentada, tanto em termos de participação política, como em termos de fruição e prazer estético. Já em termos estruturais, talvez fosse válido inserir citações documentais, pois apesar de toda a pesquisa histórica realizada para se chegar à obra, as referências não ficam claras para a pessoa comum do público que des-conhece o passado de lutas de sua própria classe. Creio que com mais tempo de trabalho e de experiência cotidiana nas ruas e quiçá algumas alterações de estrutura, a Cia. Teatro dos Ventos possa se apropriar mais de sua obra e cumprir a função social do teatro a que tão claramente e coerentemente se propõe e cuja necessidade se faz tão evidente quanto a destacada militância praticada pelo grupo.

Das nossas dificuldades em torno da busca de sempre: a relação entre forma e conteúdo

Daniela Landin

Em 1968, quando o Brasil completava o seu quarto ano sob ditadura civil-militar, uma expressiva greve de metalúr-gicos irrompeu na cidade de Osasco, na Grande São Paulo, ten-do como princípio irradiador a paralisação na fábrica Cobrasma. Esse é o contexto histórico da narrativa apresentada pela Cia. Teatro dos Ventos e que gira em torno da tomada de consciência de um operário que não participava das discussões políticas da sua categoria até o início da greve, quando se vê obrigado a se posicionar diante dos acontecimentos.

Antes da apresentação, algumas pessoas já buscavam refúgio do sol forte do começo de tarde na sombra das laterais do espaço que vinha sendo delimitado. Depois de um tempo de preparação inicial voltada principalmente para o teste dos microfones, é emitido por uma atriz, nos degraus de uma escada, um discurso desprovido de nuances, como se fosse uma extensão do momento anterior. A fala, informativa tanto do período histórico em que se insere a peça quanto do ponto de vista do grupo no que se refere à ditadura, abre o espetáculo.

Máquinas Paradas – Cobrasma 68 é o segundo espetáculo do que a companhia intitula de Trilogia do Trabalho, iniciada com O preço do feijão – uma história de anarquistas, sonha-dores e todos nós – que esta leitora crítica pôde assistir na I Feira de Teatro de Rua de Soro-caba, realizada em maio de 2011 pelo grupo Nativos Terra Rasgada. Em ambos, fica evidente o trabalho de pesquisa e o estofo histórico empreendido pelo grupo, numa perspectiva de militância. Outra recorrência está no debate acerca de uma situação de greve relacionada ao município onde o coletivo atua – em O preço do feijão, a história se passa inicialmente em São Paulo com desdobramentos em Osasco. Este dado revela noção de pertencimento e, sobretudo, percepção do local de onde se fala.

A discussão levantada pelo trabalho é extremamente relevante e sua pertinência se redimensiona ao ser levada às ruas, democratizando o acesso à História (não oficial) e apon-tando para a dimensão pública do teatro. No entanto, o descuido com a forma acaba por en-fraquecer o conteúdo, uma vez que há certa carência de uma experimentação mais profunda dos recursos de teatralidade e procedimentos estéticos.

Em inúmeros momentos, por exemplo, salta aos olhos o que aparentemente seria uma despreocupação com o trabalho de interpretação, com pouca atenção dada à expressão cor-poral, às possibilidades de ocupação do espaço e também à ação vocal. Quanto a este último aspecto, o uso do microfone, ao fazer com que a fala seja produzida sem muito esforço, leva os atores a se concentrarem na comunicação verbal, relegando o corpo a um estado bastan-te cotidiano, próximo ao abandono.

A sensação é a de que os movimentos, já marcados, não se apresentam de forma “orgânica” e que o contato com o público e com os estímulos da rua pouco atravessam os intérpretes, como se o discurso e as ações se realizassem externamente e não constituísse aqueles corpos. Além disso, parece não haver um movimento em direção à construção da ex-periência daquele momento ou mesmo para o encontro e a troca. Quando há menção a algu-ma tentativa de relação com o público, a ação é automática, sem espera da reação do outro. Dessa forma, o próprio discurso, tão significativo nesta peça, perde a sua força comunicativa.

Possivelmente, as questões levantadas dizem respeito à precarização do artista de rua, que tende a acumular trabalhos para sobreviver, somada à conciliação da prática teatral com a atuação política militante. Mais que isso: o alcance da elaboração de uma síntese entre for-ma e conteúdo é uma dificuldade pedagógica de boa parte dos grupos que buscam um pro-cesso de politização por meio do teatro. Afinal, se a relação dialética entre essas duas dimen-sões é o que gera uma prática artística revolucionária, é preciso não subestimar a potência estética de um processo, mas fundi-la à ética, já que são partes de uma mesma experiência.

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Tarde feliz

Luiz Eduardo Frin

Eu pensei que todo mundo fosse filho de papai noel...(Canção de natal, Assis Valente)

Primeira citação brechtiana: “O teatro tem que se comprometer com a realidade, porque só assim será possível e será lícito produzir imagens eficazes da realidade (BRECHT, 2005, p. 136).

Segunda: “O teatro consiste na apresentação de imagens vivas de acontecimentos pas-sados no mundo dos homens que são reproduzidos ou que foram, simplesmente, imagina-dos; o objetivo dessa apresentação é divertir” (BRECHT, 2005, p. 127).

Consulta ao dicionário etimológico: Divertir – Do latim dīvērtěre -, ir-se embora, afastar--se (CUNHA, 1986, p. 273).

Resume-se, assim, a apreciação crítica de Alto dos palhaços, da Trupe Olho da Rua, apresentado na 8ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, que divertiu ao se relacionar com a realidade na qual estava inserido, ao satirizar a celebração do natal. O espetáculo foi apre-sentado no centro da cidade de São Paulo, na tarde do dia 04 de dezembro de 2013 – por-tanto, já nas proximidades da festa, no auge do frenesi consumista que o período e o local inspiram.

Na ocasião, a diversão do público foi percebida não apenas pelas risadas, pois se pode ver espectadores que, além de rirem, apontavam para as os atores e inclinavam-se um pouco para trás, algumas vezes com as mãos a cobrir a boca para, metaforicamente, se distanciar dali e ir para outro lugar, longe do desespero caótico do centro da metrópole. Um local que permitiu que todos refletissem sobre o absurdo da vida em uma sociedade consumista.

Trupe Olho da Rua. Alto dos Palhaços. Fotos: Anna Piccolo.

Como, então, ao presenciar a reação do público frente às cenas de Alto dos palhaços, não pensar nas proposições de estranhamento e de distanciamento formuladas por Bertolt Brecht?

Pois os intérpretes da Olho da Rua, “estranhavam”, subvertiam atividades comuns à época natalina, como escrever cartas ao Papai Noel, ou cantar Noite Feliz, para que todos que assistiam ao espetáculo se dessem conta do absurdo de situações que presenciam, ou participam, com naturalidade, normalmente, ano após ano.

O apontamento por parte do público, a inclinação dos corpos, as risadas, as mãos na boca, atestavam corporalmente esse movimento de reconhecer e se distanciar, ou melhor, de se reconhecer no absurdo.

A questão da religiosidade que também concerne à festa não foi evitada pela trupe. Seus intérpretes, tarimbados, abordaram criticamente a questão, com muito humor, por inter-médio de diversas técnicas de representação (teatrais e circenses). É necessário ressaltar que nessa abordagem os atores não se deixaram seduzir pelo caminho fácil da destilação de preconceitos, como, infelizmente, tem se tornado comum, atualmente, em manifestações de, ditos, humoristas.

Alto dos Palhaços (assim mesmo “alto” e não “auto” como o esperado – de se estranhar, não?); enfim, Alto dos palhaços é um espetáculo de acertos. As reflexões propostas pela Trupe são provenientes de situações concretas, reconhecidas pelo público, que levadas à cena de maneira hiperbolizada, alicerçada na competência técnica do grupo (cita-se, como exemplo dessa competência a elevada qualidade musical do espetáculo), apresentam o absurdo de uma vida tida como normal por todos, ou muitos, de nós.

Referências

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o teatro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996.

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Trupe Olho da Rua. Alto dos Palhaços. Foto: Anna Piccolo.

O bebum com camisa do Brasil

Danilo Monteiro

O que pode e o que quer o teatro de rua com o bêbado com camisa da Seleção Brasilei-ra? Ele, que está aparentemente embriagado, que pode ser tomado como a figura folclórica do Bebum da Rua, que mora na rua, que sobrevive de catar latinhas de alumínio, o que ele quer e o que ele pode com o teatro de rua?

Ele quer dançar. Ele quer cantar. Ele quer tocar e fazer parte. Ele é inconveniente, im-põe sua presença, ignora voluntária e involuntariamente a convenção atores-público.

Pra quem faz teatro de rua no Brasil, ou o acompanha, esta é uma questão mais velha que andar pra frente, e corre o risco de ser neutralizada a ponto de não ser mais uma questão.

Mas, como ela se impôs nas apresentações de Alto dos Palhaços, da Trupe Olho da Rua, e Marruá, do Parlendas, na Mostra Lino Rojas de 2013!

Uma das melhores coisas do teatro de rua é justamente estar na rua e, assim, ser sem-pre incompleto: está sujeito a chuvas (mas nesse caso geralmente não há espetáculo), bêba-dos, cachorros, aos ruídos da rua e às intervenções dos passantes e do público que para e acompanha, e completa seu cenário com a arquitetura do local da apresentação.

O local da Mostra, e a época próxima ao Natal, já criaram uma situação muito favorável ao Alto dos Palhaços, o ácido e divertidíssimo anti-auto de Natal da Trupe santista. Na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo, com lojas abertas, no meio de um dia da semana, e com seus figurinos propositalmente ridículos de personagens natalinos - o Anjo, o Duende, a Rena, o Boneco de Neve, a Árvore de Natal etc. - a Trupe começou sua encenação tirando fotos com passantes, a pedidos destes, em frente a vitrines, malgrado sua evidente (ou não) figuração “esculhambatória”.

A própria praça, e o local escolhido para a representação - com o prédio da Prefeitura e o Viaduto do Chá com o Teatro Municipal ao fundo - traziam para o contexto das peças uma camada adicional: o diálogo com os significados e a história do local.

Seria justo perguntar: o que quer e o que pode o poder municipal - ou o Teatro Municipal - com o bebum com camisa do Brasil? Ou, por outro lado, com o teatro de rua?

Também vêm à mente imagens das manifestações de junho de 2013 na cidade, que neste local tiveram desenvolvimentos importantes: a multidão exigindo a redução da tarifa do transporte público, a tentativa de ocupação do prédio da Prefeitura, a van da Record sendo incendiada, agências bancárias destruídas.

O bebum, a Prefeitura (fomentadora do evento), o Municipal, as manifestações. Todas estas são camadas com as quais dialogaram as peças apresentadas na Mostra Lino Rojas de 2013.

Mas, também, seria justo perguntar: e as peças “em si”?

O Alto dos Palhaços vem sendo apresentado há anos pela Trupe Olho da Rua, e nota-se uma dramaturgia tão bem acabada e amarrada que, talvez, não suporte a interferência bárbara do bebum com camisa do Brasil. Seu gestual inteligente e despojado, sua linguagem ácida e acessível, sua dramaturgia que comenta parodicamente a barbárie institucionalizada do Natal, o Duende com camiseta do MTC (Movimento dos Trabalhadores da Cultura), seus

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figurinos genialmente escrachados, têm quase tudo para compor uma das mais brilhantes peças do teatro de rua do Brasil. Mas, para dialogar com o trabalhador, precisam entrar em conflito - e também criar algum nível de acordo - com o bebum da camisa do Brasil, com o poder público, com o Teatro Municipal.

Seria o caso de invocar toda a conflituosa relação da Trupe Olho da Rua com os po-deres públicos (municipal, estadual, federal) para poder existir, comer, ter uma sede, criar, ensaiar, apresentar-se. De fato, estes poderes podem atrapalhar muito mais do que o bebum, além de poderem fazer muito mais do que ele pelo teatro de rua - embora, frequentemente, não o façam.

Mas tão verdadeiro quanto o fato de que o Alto dos Palhaços é um espetáculo brilhante que tem grande poder de comunicação e de esculhambação com o ritual natalino, é o conflito da Trupe com o bebum da camisa do Brasil durante a apresentação na Mostra.

Este conflito, ressalte-se, foi tratado dentro das regras do espetáculo: inúmeras tentati-vas de incluir o bebum na encenação, com delicadeza e com humor, mas às vezes também com irritação e cansaço, pois o bebum era incansável e se impunha à circunstância. Falava “fora de hora”, tentava tomar os instrumentos musicais da Trupe etc. A peça não rendeu o que poderia render para a maior parte do público, que para lá se deslocou, ou que passou por ali e resolveu ficar.

Mas, dentro do que pode o teatro de rua, talvez neutralizar totalmente a interferência do bêbado fosse mentiroso, política e esteticamente mentiroso. Então, a peça ganha este perso-nagem real, com ele contracena, antagoniza, dialoga, e expõe nossa chaga: o teatro de rua acontece na rua. Não pode, não deve esconder ou neutralizar a rua. O conflito, aqui, é mais verdadeiro e teatral do que a pacificação. Atrapalha o que foi previamente ensaiado - mas põe em cena o que estava no canto do olho e expõe outra camada do real.

A apresentação imediatamente posterior na Mostra, Marruá, do Parlendas, já iniciou tendo como certa a interferência do bebum, de pelo menos este bebum. Ele não tinha can-sado, mas o grupo conseguiu trazê-lo mais para dentro da encenação. Neutralizá-lo seria quase impossível: além das suas interferências, a camisa da Seleção destoava terrivelmente do figurino em cores sóbrias dos atores.

Também não foi fácil a vida do Parlendas nesse dia. Coisas da vida: um ator teve um piriri a poucos instantes do início do espetáculo, e seus papéis tiveram de ser realizados por outros atores do grupo. Para o público, nada foi perceptível, pois o Parlendas está tão coeso e apropriado do seu Marruá que a substituição se fez sem maiores problemas.

Isto fala sobre a intensa dedicação que o grupo pôde desenvolver principalmente após ter sido contemplado com verbas do Programa de Fomento ao Teatro do município - condi-ção material de produção que, nunca é demais lembrar, foi conquistada pela mobilização da categoria teatral na cidade. Soube há pouco que o grupo não foi contemplado pelo Fomento na sua mais recente edição, o que sempre nos dá um frio na barriga, medo de que o trabalho sofra em sua continuidade.

O Parlendas incorporou inclusive “não-atores” em seu elenco nesta peça. Quem vê o desempenho homogêneo, seguro e elegante do conjunto dos atores não percebe, talvez, a intensidade dos treinamentos a que se dedicaram para atingir esse resultado.

A dramaturgia, um turbilhão nem sempre claro mas bastante persuasivo sobre a vida em lugarejos do Acre e outros rincões brasileiros, é fruto de viagens e pesquisas do grupo. Trupe Olho da Rua. Alto dos Palhaços. Foto: Anna Piccolo.

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Nesse sentido, “incorporar” no elenco o responsável pelo registro em vídeo e o preparador vocal, entre outros, traz uma “verdade”, uma autoridade sobre o que se faz e como se faz, que são elementos cruciais para o resultado de Marruá.

Será que foi por isso que o Parlendas conseguiu incorporar com menos conflito o bêba-do com camisa do Brasil em sua apresentação? Ou porque já tinham visto o trabalho que ele dera à Trupe Olho da Rua? Ou porque têm feito muitas intervenções teatrais em manifesta-ções de rua, em circunstâncias ainda mais adversas? Ou por que conseguiram mais condi-ções do poder público para sua pesquisa continuada? Ou porque o sol estava menos forte, castigando menos seus atores? Ou porque sua dramaturgia era mais aberta? Ou porque a peça tinha mais música?

Não respondo. Acho mais valioso o campo de reflexões a que essas perguntas nos le-vam, no sentido de pensar o teatro de rua não apenas a partir de seus caracteres meramente “artísticos”, mas sim de incluir estes no conjunto de fatores a que eles estão expostos.

PS: Vi o bêbado com camisa do Brasil, outro dia, em frente aos teatros da Praça Roo-sevelt. Ele não cantava, não dançava, não interferia em nenhuma peça. Ele catava latinhas.

Público durante Mostra Lino Rojas 2013. Foto: Anna Piccolo.

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Boi que não vira gado

Carolina Abreu

Não se sabe muito bem de onde surgiu o cortejo que se aproxima tocando e cantando:

Quem vai passando,Ó nóis chegando,

Vem olhar...Oh, Dona Maria, chama sua tia

O convite é delicado, nem parece malicioso. É muito gentil e alegre. Sua força primeira é mesmo a alegria: riso generoso, orgulhoso de repetir a brincadeira. Com frescor quase in-fantil anuncia logo em coro “o Grupo Teatral Parlendas, não tão orgulhosamente assim, tem o quase prazer de apresentar: histórias de nascimento e morte”.

Na plateia, alguns olham ainda desconfiados, contendo o sorriso, mas não há quem não se renda ao tom da palhaçada. Naquela tarde ensolarada da Praça Patriarca, éramos, já no começo, plateia com mais de 70 pessoas que se ajeitavam sem medo de chegar perto.

Arena instaurada, o assunto vai ficando sério. “Marruá” é boi que não vira gado, boi bra-vo que não se deixa prender para o abate. Mas essa não é a história de um personagem, um bicho ou pessoa, é sim história de uma gente, de um tipo de gente, repetida através de uma multiplicidade de biografias. Marruá é espetáculo que faz uso da polifonia de vozes da gente lutadora desse enorme Brasil como fio narrativo que atravessa tempos e distâncias sem per-der a substância da vida de cada canto de terra. Vozes, histórias e músicas que percorrem o popular do coco, do boi, do siriri, apontam o lírico em canto gregoriano, o oficial dos hinos e rearranjam músicas da MPB.

Grupo Parlendas. Marruá. Foto: Anna Piccolo.

De início, somos transportados ao universo do soldado da borra-cha: oprimidos que se tornaram desbravadores por decreto presidencial no início do século passado. A selva Amazônica mostra seus perigos. Mundo de mistério e terror que acobertou a exploração de índios e tra-balhadores na extração da borracha. Marruá percorre os negócios com pessoas no ciclo da borracha: corpos que têm seu valor usurpado pelas cifras do dinheiro. Assunto pouco conhecido para alguns, que por vezes surge enigmático, mas que o gesto preciso da composição cênica acaba por dispensar maiores explicações.

O ritmo das composições que entrelaçam a seriedade e o sofrimen-to da exploração capitalista com o deboche da palhaçaria popular criam pulso para o espetáculo. Espanto e riso.

O sol logo dá trégua na praça, mas um bêbado insistente multiplica o trabalho do grupo em cena. Gentileza e improvisação são os recursos mais eficazes, porém, neste caso, não suficientes para aquietar o ho-mem carente de tanta atenção. Os atores, já bem informados com a ex-periência do teatro de rua – abençoado que é pelo imprevisto e as inter-venções –, conseguem incorporar o bêbado como novo personagem da realização teatral. O número de espectadores se multiplica rapidamente, um dos atores desaparece, mas o espetáculo não perde seu rumo.

O cantar de um galo anuncia o próximo cenário do enredo: algum quilombo mais ao sul. Lugar de trabalho duro na roça, resistência polí-tica, sonhos e fofocas à beira rio. O jogo de diferentes temporalidades musicais (siriri, coco, funk, canto gregoriano) nos convida a notar a atu-alidade da violência doméstica, da imoralidade dos preconceitos de raça e classe e da injustiça na partição das terras.

Com jeito delicado, risonho e quase despretensioso o espetáculo aponta a exploração da mulher na estrutura familiar tradicional. Contos de fadas, sonhos de redenção e comemorações de casamentos que repetem histórias de violência e exploração doméstica. Mas logo volta para a temática que o impulsiona: a força de resistência e luta da gente. Atravessando as paredes do teatro, o Grupo Teatral Parlendas distribui armas e convida os espectadores a compor cena. Marruá é espetáculo de rua que oferece compartilhar comida, paus e pedras na luta pela vida, uma vida mais justa, uma vida plena.

Parlendas não é teatro que brota do nada... ele vem devagarzinho, convidando, conquistando, abrindo sorriso no rosto da gente. Sorriso que vira espanto diante da seriedade da expropriação da terra, da opressão da mulher, da usurpação do sonho, da luxúria gananciosa daqueles que exploram o corpo e a força do outro. Mas quando o gosto amargo toma a boca, o olhar fica bravo... quase como pirueta, a palhaçada ajuda a gente a pensar sem se render ao fatalismo. O sorriso volta ao rosto, mas neste momento, então acompanhado de alguma revolta.

O Grupo Teatral Parlendas é fruto que honra a terra fértil donde brota, oferece flores e já prepara semente.

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A gente sabe repartir

Luiz Eduardo Frin

Ao final do espetáculo Marruá do Grupo Teatral Parlendas apresentado na Praça do Patriarca na cidade de São Paulo, na tarde de 04 de dezembro de 2013, a atriz Natália Siufi, com sorriso no rosto, convida o público a comer uma melancia que fora utilizada em cena e diz algo como:

“Vamos comer, gente! A comida é pouca, mas a gente sabe repartir... Como repartimos com vocês essas histórias que criamos a partir de relatos de pessoas que vivem em comuni-dades de resistência, como assentamentos, que visitamos pelo Brasil”.

A proposição do grupo em dividir a melancia, assim como a fala de sua atriz ao fim do espetáculo, sintetiza e comenta o trabalho do Parlendas com mais qualidade do que o que pode ser escrito aqui. Isso pelo fato que Marruá é uma grande oferenda e um grande convite.

Durante o espetáculo, a oferta de músicas e danças inspiradas na cultura popular con-vida o público do centro da metrópole a conectar-se, ou a reconectar-se, com referências estéticas esquecidas, abandonadas, ou, renegadas na grande cidade.

A oferta de uma movimentação cênica com marcações precisas convida o público a adentrar sem medo e sem resistências o mundo da representação, da teatralidade, ao mes-mo tempo em que compartilha com ele procedimentos contemporâneos de encenação.

Grupo Parlendas. Marruá. Fotos: Anna Piccolo.

Também é contemporânea a estruturação fragmentada da dramaturgia. A oferta dos blocos narrativos que se sucedem, convida o público a procurar por uma história, por uma fábula, e o faz constatar que a fábula que se estrutura por retalhos é a que se apresenta concretamente, todos os dias, a cada espectador presente naquela tarde no centro de São Paulo: Marruá é sobre a luta, a luta pelo existir com dignidade.

Dignidade com a qual o grupo se apresenta, deixando bem claro que sabe do que está falando e como está falando. Fica evidente que tudo é muito bem pensado e realizado.

Os figurinos são funcionais e representativos; a movimentação dos atores em momen-tos é esquemática com proposição de ser elemento componente da(s) narrativa(s) e em ou-tros é livre e busca incentivar a participação dos espectadores; a cenografia, composta por elementos simples, serve ao objetivo de representar ambientes nos quais a ação se dá; isso sem falar na poética e inspirada confecção dos adereços, que, como está na ficha técnica do programa da mostra, foram compostos por artistas de diferentes partes do país e que traz, concretamente, para o palco, as andanças do grupo.

No final, como uma corifeia do grupo, Natália Siufi não esconde o orgulho de convidar a todos para que a partilha simbólica da arte seja realçada pela partilha do alimento, atitude que evidencia artistas comprometidos como a transformação da realidade na qual estão in-seridos.

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[des]Água – ritos de rios e ruas como forma de [inter]romper o curso do sistema

Simone Carleto

A gente precisa é de uma revolução(Coletivo Alma)

No horário de início do espetáculo [des]Água, o grupo de atores e atrizes do Coletivo Alma (Aliança Libertária Meio Ambiente) formava uma roda para o aquecimento. Ao começa-rem a emitir os sons da bela vocalização que fazem como preparação vocal para a cena, as pessoas são atraídas para ver o que acontece no local. Os figurinos em cores que remetem à relação com a terra e a natureza seriam transformados com adereços ao longo da história contada. Então, com o forte calor do sol, o elenco convocou o público para a representação, abrindo alas para o teatro de rua. Os atores e atrizes logo mostram que cantam, dançam, representam e tocam instrumentos, características dos artistas que desenvolvem diversas habilidades para conquistar o público, marcante no teatro popular e de rua, que tem sua capacidade de comunicação calcada fundamentalmente nessa presença viva. O grupo se apresenta, contando a respeito de sua origem e militância na Zona Leste de São Paulo. A dra-maturgia do espetáculo dividido em quadros que podem ser vistos individualmente – o que, aliás, é oportuno nesse tipo de proposta –, passa a ser apresentada, com os atores e atrizes revezando-se nos diversos papéis, para dar vida às personagens que contam a história de como os seres humanos num sistema capitalista exploram recursos naturais e pessoas como se fossem infinitos.

Coletivo Alma. [Des]água. Fotos: Anna Piccolo.

“Cadê o rio que tava aqui?” Pneus, bacias, balde, moringas, água e a música executada ao vivo dão os tons das cenas, que presentificam a pesquisa que foi realizada em cidades e lugares que substituíram o curso dos rios com a industrialização. E deságua em tantas can-ções que acentuam a característica musical do espetáculo, em ritmos diversos que trazem à tona várias questões fundamentais para que se discutam os desdobramentos e engrena-gens de um sistema que chegou a um quadro insustentável. Tendo a água como alegoria, é alcançado o nível máximo de estresse hídrico – assim como o sistema mostra-se esgotado, a partir do caos instaurado no planeta. “Pra onde você vai? Tudo compra, compra, e nada alivia!”. São apresentados animais em águas contaminadas; população ribeirinha frente à desapropriação (“Como nossa vida rio pode seguir livre?”); a vida caótica na cidade, em meio ao individualismo, nervosismo, confusão e palavrões; a exploração dos trabalhadores; pro-cessos de disputa por lucro, poder; cooptação e alienação. Para tanto, é criada a empresa que produz água engarrafada [des]Água, que mostra em detalhes alguns meandros desses processos.

Assim, a partir da interação com o público e forte presença do caráter ritualístico do teatro, o grupo destaca a possibilidade de reflexão a respeito dos temas abordados, eviden-ciando contradições e provocando os presentes a pensar em possíveis soluções. O grupo ao final sai de cena com o refrão “o protesto recebe uma chuva de bala e avança entre fumaça, com sangue na cara...” em boca chiusa, o que pode ser compreendido como provocação para a observação atenta dos movimentos sociais e tomada de atitude daqueles que tiveram contato com a obra. Desse modo, aprofundam o tema de forma contundente e realizam um dos principais aspectos do teatro de forma épica: colocar em questão.

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[des]Água chuva! [des]Água poesia!

Lissa Santi

Parte da beleza do teatro de rua está em seu envolvimento com aquilo que a compõe. As pessoas que passam por ali e se sentem curiosas com o que está acontecendo, as cores que destoam do clima urbano, as roupas (figurinos) diferentes dos atores e atrizes...

O espetáculo do coletivo ALMA não foi diferente em nada disso, em sua preparação ali na Praça da Bandeira, embaixo daquele calor de início de verão. Os figurinos em tons terrosos (tons não-paulista-nos) denunciavam que ali estava para ocorrer o transporte para algum lugar, para algum momento extracotidiano.

O espetáculo – que traduz os sentimentos de um rio represado e as consequências de seu aprisionamento para as pessoas do arredor – além de traduzir as mesquinhas necessidades comerciais e predató-rias em relação à natureza que nos cerca (ou que, antes, outrora nos cercou), possui um sutil jogo de cores que tudo esclarece. Além de demonstrar que nem sempre de tons berrantes e mil tons provenien-tes de diferentes cores é feita a alegria. Para o coletivo em questão, com certeza, ela é feita de tons que a nossa natureza mais primitiva oferece.

[des]Água começa com acessórios e figurinos em tons de rio. E é assim que ele aparece, ou melhor, é indicado. Como mostrar um rio que não existe mais? Um rio ideia? Coisa que, por sinal, é perfeita-mente coerente com a pergunta feita no início do espetáculo ao micro-fone, pelo ator Alexandre Falcão: “cadê o rio que tava aqui?”.

Essa pergunta, por sinal, é respondida ao longo do espetáculo conforme as cores terrosas são substituídas pelas herméticas, mais condizentes com nosso triste cotidiano. O rio se foi, portanto, junto com aquelas cores. O espetáculo fica preto, branco e cinza e a tribo dos homens pneus mais uma vez serve de denúncia ao absurdo, se colocando em um patamar imagético tão coerente com a realidade que nos faz enxergar a problemática dela, podendo pensar: “então essas imagens que se colocam aí são verdadeiras! Logo, a realidade atual é absurda...”.

O rio represado, representado por uma atriz, se mostra forte e frágil ao mesmo tempo, na medida em que tenta resistir, mas percebe a impossibilidade disso. Quanta sensibilidade ao considerar o caráter humano de um rio! Mesmo que isso também indique nossa necessi-dade de considerar humanos os aspectos naturais, para que tenham uma sobrevida e nossa atenção.

O papel das metáforas todas foi cumprido e, de tanto pedido, naquele dia, Sampa de fato “desaguou”. Não foi em forma de rio. Foi em forma de poesia... e de chuva também!

Coletivo Alma. [Des]água. Foto: Anna Piccolo.

Canto que abre fonte

Carolina Abreu

A Praça Patriarca estava ocupada por três caminhões e uma kombi de Serviços de Pre-servação Urbana da Prefeitura de São Paulo quando eu cheguei. O barulho das máquinas do trabalho impediam qualquer conversa por ali. A dinâmica cotidiana da cidade parecia soterrar as possibilidades do teatro que estava previsto: uma arara de roupas, três pneus, um cano marcando arena eram movidos para girar o palco a fim de oferecer alguma sombra para o público interessado.

Sem se mostrarem ameaçados ou intimidados com as disputas da cidade, os atores do Coletivo Alma formam círculo e apenas com um monossílabo para o aquecimento de voz irrompem brecha na superfície do ruído urbano. A afinação coletiva surge como fonte donde brota o extraordinário. Logo o círculo se abre, toma posição e anuncia com canção caminho para [des]Água. O espetáculo corre, então, com delicadeza e força.

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Evoca-se, bem no início, as entidades da natureza com tons e musicalidades populares não exatamente como passado mítico, mas sim como forças que dão vazão ao fluxo da vida. A água ganha corpo que então é violentado, obstruído, canalizado, mercantilizado. A encena-ção dos negócios revela de forma direta e pertinente a expropriação de um bem comum: nos-sa água. A água engarrafada, monopolizada, precificada é símbolo importante de toda uma série de desapropriações, cercamentos, subtrações que sofremos no sistema capitalista.

O público que rodeia a arena instaurada pelo teatro logo se torna espectador que atua junto. Alguns arriscam cantar refrão, mas há quem entre no centro da cena – neste caso, uma senhora – e componha com sucessos de Roberto Carlos. Um cachorro preto leva a sério a encenação da briga dos motoristas estressados, avança com alguma agressividade e lembra a todos a maravilha do improviso do teatro de rua.

Tambores de pneus, canos de borracha, tubulações de plásticos tocam os novos sons produzidos pelas cidades de rios encanados. Singles publicitários se fazem ouvir oferecendo-nos o que já era nosso, a água, mas também comandando o ritmo do trabalho fabril que nos faz escravos nesse sistema mercadológico.

A tragédia humana diante do encanamento dos fluxos e o monopólio da água potável ainda é lembrada pela escassez da vida de quem mora à beira do rio, pra quem quando “cho-ve não sobra nada”. A dureza das questões é magistralmente conduzida pela competência e beleza das composições musicais. Também as composições cênicas, ora surpreendentes, tal como os momentos de bom humor e riso, oferecem um espetáculo delicioso para qualquer público, de qualquer idade ou lugar.

Porém, o calor tórrido da cidade, as altas temperaturas do concreto no início da tarde paulistana, não nos deixam esquecer a conexão essencial entre a água e o direito. Sede de água, sede de acesso à vida plena. [des]Água é arte que trata da secura na boca frente nossos direitos constrangidos. De fato, o encantamento do espetáculo não desata o nó que fica na garganta. «Quanto falta para estourar a represa?» é a interrogação da peça e a provocação afirmativa do Coletivo Alma.

Rosa dos Ventos. Saltimbembe Mambembancos. Foto: Anna Piccolo.

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Público assistindo ao grupo Rosa dos Ventos. Foto: Anna Piccolo.

Saltimbando por aí

Lissa Santi

Uma trupe de homens alegres no meio da Praça da Bandeira. Eles estão perto de um cenário colorido e são homens alegres porque puxam conversa com as pessoas que estão ao redor. Comentam da cor dos cabelos, comentam do tempo, comentam do futebol...

De início, há um estranhamento por parte das pessoas que não sabem direito o que está acontecendo, com tanta prosa, puxada assim ao acaso. Quase sem ser percebido, um daqueles homens começa a pintar seu rosto, seguido por cada um deles. É num repente que se repara que suas roupas também são coloridas e a trupe de homens vai aos poucos ficando mais alegre, mais comunicativa, mais chamativa em suas cores, “proseio” e convites: “venham se sentar! O espetáculo já vai começar!”.

É então que a trupe se transforma em um grupo de palhaços. Aos poucos, em uma preparação que é um espetáculo em si, e que não se resume a uma mera preparação, aqueles homens, já enormes em energia, ficam gigantescamente coloridos.

Impossível dizer que nada naquela atmosfera tenha mudado! Os risos dos espectadores e espectadoras espontâneos eram seguidos pelos olhos brilhando em um resto de infância, desses com os quais a gente só topa se algo assim, simples, se coloca em nosso caminho.

Foi muito mais que acrobacia, muito mais que música, malabares e cor o que recuperou aqueles sorrisos: foram os olhos insistentes nos olhos...

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Afrontando Bonifácio

Carlos Rogério Gonçalves da Silva

Em meio ao ruído das buzinas, motores e à passagem de som feita pelas atrizes e ato-res do Buraco d’Oráculo, um barulho enervante de uma corneta daquelas de festas infantis se destacava. Seu dono, menino negro, pobre e só, divertia-se circulando com alarde entre os apressados transeuntes de vários perfis – de office boys a executivos. Fazia seu espetá-culo particular entre os curiosos e o público jovem que aos poucos se acomodava no chão da Praça do Patriarca, cenário do espetáculo Ópera do Trabalho. Concebido para homenagear José Bonifácio de Andrada e Silva, dito patriarca da Independência, esse espaço é uma sín-tese do processo histórico-político brasileiro, afinal, o homenageado esmerou-se na criação de um projeto de país excludente e antidemocrático. Outra praça não seria tão simbolicamen-te apropriada à apresentação de um espetáculo de inspiração épico-brechtiana, que propõe uma reflexão pública sobre a exploração do trabalhador brasileiro. Curiosamente a estátua do patriarca está de costas à encenação, tendo a contragosto que ouvir versos como “Eu não posso esperar para valer mais do que eu valho”, “Sou como boi amarrado que não muda de lugar” e “O trabalhador que tudo fez, pode tudo destruir”.

Atrizes e atores vestem uniformes marrons, que remetem ao universo do trabalho braçal e ao mesmo tempo dão unidade às personagens. É a classe trabalhadora que, literalmente, terá voz, sendo apresentada através de suas variadas faces: a lavadeira, o carvoeiro, o lixei-ro, o operário, o camelô. E volta e meia, marcando presença, o menino pobre, negro, com sua indefectível corneta e menos só, assume o protagonismo misturando-se à encenação.

Buraco d´Oráculo. Ópera do Trabalho. Fotos: Anna Piccolo.

Há uma heterogeneidade nas opções estéticas do pessoal do Buraco d’Oráculo, que utiliza alguns elementos próprios da ópera como fio condutor do espetáculo, porém uma ópera ressignificada e próxima da rua e do trabalhador, com as músicas transformadas em veículos de despertar político. Didaticamente temas como mais-valia, luta de classes, cares-tia e conflito entre capital e trabalho são apresentados, seja através de um jogo de futebol ou da sátira a célebres e estéreis programas televisivos. A função didática do espetáculo parece bem-sucedida, na medida em que os trabalhadores que o presenciam ficam absorvidos com a discussão proposta, sentindo-se ali representados, compreendendo, interagindo, divertin-do-se.

Não há como saber se a classe trabalhadora brasileira conseguirá um dia reverter deci-sivamente o processo de exploração que há séculos lhe acomete ou se o socialismo grassará pelo país, porém há um belíssimo saldo da Ópera do Trabalho, apenas possível por ser um espetáculo de rua: a apresentação deu ao menino negro, pobre e só, a possibilidade única e efêmera de ser coreuta de sua própria vida. Talvez, durante a apresentação, ele tenha se esquecido do abandono, da pobreza e da solidão. Talvez.

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Deixa chover

Luiz Eduardo Frin

Tomara que chova, três dias sem parar...(Marchinha de Carnaval de Romeu Gentil e Paquito)

Não é novidade escrever que um espetáculo teatral nunca se repete em suas diversas sessões. Cada apresentação traz algo de surpreendente, ainda que o trabalho em questão tenha sido exaustivamente ensaiado e reapresentado em diversas e inúmeras oportunidades.

Na rua, essa característica da atividade teatral potencializa-se. O imponderável rela-cionado a qualquer atividade artística realizada ao vivo manifesta-se com maior liberdade do que no ambiente, aparentemente, controlado da sala de espetáculo. Tanto é que as trupes que se apresentam nas vias públicas estão acostumadas com isso e é possível perceber que desenvolvem expedientes para lidar com os (im)previstos.

Pois bem, cidade de São Paulo, dia 05 de dezembro de 2012, Praça do Patriarca. Tudo pronto para a apresentação do espetáculo Ópera do Trabalho, criação coletiva do Buraco d’Oráculo, grupo com sede na Zona Leste da capital paulista, com quinze anos de atividades.

Da mesma maneira que no chão da praça estava tudo pronto para o espetáculo, no céu também estava tudo pronto para uma tempestade de verão, daquelas.

Inicia-se a apresentação, os atores chegam pelas ruas em procissão, e o vento (forte) os acompanha.

O Buraco d’Oráculo possui uma produção bem estruturada: cenário, adereços, instru-mentos amplificados e figurinos muito bem elaborados fazem parte da peça que, em quadros, apresenta situações do universo do trabalho, com enfoque nas agruras da vida do trabalhador.

Buraco d´Oráculo. Ópera do Trabalho. Fotos: Anna Piccolo.

A chuva começou... A chuva apertou. Questões se impuseram: Continuar ou não o es-petáculo? Até quando?

E aí, o representado se reapresentou concretamente. Os “trabalhadores-artistas” e os “trabalhadores-público” uniram-se na missão de vencer as dificuldades e continuar o espetá-culo que virou, ou sempre foi, festa.

Alguns seguravam o cenário para que ele não voasse com o vento, outros procuravam reparar problemas técnicos que se apresentavam, outros cobriam do jeito que desse os ar-tefatos que não podiam tomar chuva, outros cantavam, outros dançavam, outros batiam pal-mas. Tudo isso sem que ordens se impusessem, sem que um patrão, ou um gerente, ou um coordenador, ou um segurança particular, berrasse comandos.

É claro que muitos dentre os “trabalhadores-público” se renderam e foram se abrigar em marquises próximas, ou simplesmente continuaram seus caminhos. Mas é preciso ressaltar que muita gente ficou, compartilhando aquele momento tão único, tão singular e que nunca se repete.

Ficou porque de alguma maneira conectou-se com os ideais do Buraco d’Oráculo, evi-dentes nos olhos de seus intérpretes enquanto continuavam com o espetáculo em meio a tantas dificuldades, que, naquele momento, tomaram a forma (e o conteúdo) da forte chuva, mas que certamente adquiriram diversas molduras nos anos de existência do grupo.

O espetáculo, então, terminou. Não sei se era o fim previsto, mas não importa. Quem, assim como eu, ficou na Praça do Patriarca até aquele momento, teve a oportunidade de vivenciar a proposição temática de um espetáculo teatral realizar-se concretamente no momento de sua apresentação.

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Girandolá. Conto de todas as cores. Foto: Anna Piccolo.

Sobre a poesia de tantos quintais

Daniela Giampietro

Era uma vez um dia que se chamava Seis de Dezembro do Ano de Dois Mil e Treze. E era uma vez uma praça que ganhou cores quando o céu só queria chover. Então, um poeta inventou uma menina que inventou o mundo... ou foi o contrário? Foi a menina que desenhou o poeta que plantou atores de vento e histórias?

Baseado no livro de poemas de Mário Quintana: Lili Inventa o Mundo, o espetáculo Conto de todas as cores da companhia Girandolá é, antes de tudo, uma delicada homena-gem à poesia e à capacidade imaginativa da criança. Tendo como ponto de partida a neces-sidade de uma trupe em superar uma crise criativa, o público acompanha a criação coletiva de uma nova história: a história da menina Lili. Brincando com saltos no tempo e no espaço, a obra constrói um fluxo narrativo sem linearidade, convidando o público a entregar-se ao “de-senho” de um mundo recortado pela imaginação infantil e sua existência repleta de quintais e personagens poéticas. Na vida de Lili, as imagens oníricas se manifestam sem pedir licença às “adultices” limitadoras do inevitável crescer. Rabiscado por gigantescos lápis de cor – e este é o principal elemento cenográfico da peça –, o universo interior de Lili, e de crianças de todos os tempos, é o elemento-chave das narrativas que se desdobram em cenas elaboradas com cuidadosa simplicidade. Durante a representação, era possível notar como as persona-gens e os elementos poéticos da peça despertavam o interesse das crianças que, embora estivessem em menor número, permaneciam atentas, mostrando-se bastante presentes.

Interessante também perceber que a identificação se dava tanto pelo riso, como na apresentação da engraçadíssima personagem de uma professora autoritária e falastrona, quanto pelo silêncio de encantamento, como na belíssima cena lírica e musical em que o gru-po faz uso de uma marionete. Apesar de o espetáculo não ter sido concebido originariamente para a rua, a delicadeza da encenação consegue ser preservada mesmo em meio às mais diversas intervenções, embora em alguns raros momentos talvez fosse interessante haver um pouco mais de amplitude vocal e gestual. Mas isso é apenas um detalhe que não com-promete em nada o mérito do espetáculo onde a delicadeza e a dignidade cumprem, perfei-tamente, o desafio de transformar o universo poético da infância em imagens inesquecíveis.

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A praça, o palco, a infância: instantes de fuga na paisagem urbana

Gabriela Bortolozzo

A paisagem da cidade é constituída de diversos elementos. Mais do que por aspectos físicos, o espaço urbano constitui-se por sua fluidez e vida. O homem e suas relações com e neste espaço são as principais formas de gerar esta paisagem, dotando-a de significados múltiplos por meio da reprodução das relações sociais.

Desta forma, é intrínseco à paisagem e à formação da cidade a ocupação, a vivência e a transformação por aqueles que nela/dela vivem. Tais feitos constituem parte daquilo que Lefebvre (2001) chamou de O direito à cidade, ou seja, o direito de torná-la permissiva a to-dos os cidadãos.

O teatro de rua é uma das formas de promover tais direitos por inúmeras questões li-gadas ao coletivo; uma delas se dá pelo fato de peregrinar por espaços públicos, permitindo o exercício da liberdade e da cidadania, gerando interação entre classes, devolvendo aos expropriados o direito de experimentar a arte por meio da gratuidade, assim instigando todos à criatividade, lembranças e reflexões.

É o que fez o grupo Girandolá no dia 06 de dezembro de 2013 na Praça da Patriarca, centro da cidade de São Paulo, ao apresentar a peça infantil Conto de Todas as Cores. Nela era possível notar a intenção dos artistas, da periférica Francisco Morato, em trazer para o núcleo da imponente capital as fantasias de uma criança que se sentia livre para criar um mundo imaginário.

Girandolá. Conto de todas as cores. Fotos: Anna Piccolo.

Nas aventuras lúdicas vividas pela personagem Lili e pessoas de seu cotidiano, o pú-blico é convidado a imaginar histórias anacrônicas, horas e outras interrompidas por seus contadores. Neste vai e vem de personagens e troca de atores, a peça foi possibilitando aos presentes se reconhecer, e quando não, se divertir com as caricaturas em cena.

Em meio à praça da cidade caótica, diversas pessoas “esticaram os pescoços”, aco-modaram-se na sombra da árvore, ou sentaram-se no chão, para prestigiar aquilo que se apresentava: a possibilidade de imaginar, lembrar, experimentar, ou simplesmente sorrir ao observar as brincadeiras inocentes da criança.

Portanto, um dos trunfos do Girandolá foi desviar os cidadãos do seu moderno cotidiano e permitir ao público instantes, minutos que possibilitaram reflexões ou diversão na constante do mundo produtivista.

Aquele público fisgado pela peça esboçou diversas reações: o bêbado da praça quis cantar e dançar, o religioso discutiu sobre o fim do mundo e muitos riram de personagens simples como o cachorro serelepe, o diretor e a professora histéricos, o poeta de papel ma-chê.

Como um grande fluxo de vida, o lugar da praça, que não permitia grandes efeitos de luz e som, camuflou por vezes as falas dos personagens, e alguns se distanciavam das nar-rativas. Nada mais previsível na cultura moderna, na qual tempo e o espaço são raridades, privilégios.

Desta maneira, o grupo Girandolá conseguiu desenvolver em local público e fluído uma das mais satisfatórias funções: promover a curiosidade e diferentes vivências aos cidadãos, ressignificando este fragmento da cidade.

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A miserável dança da trapaça

Gyorgy Laszlo

Meu corpo é um andrajoApoiado a um bordão.

Em meio à estradaParo.

Além o sol beija a montanha.

Agradeço-te, Deus,A esmola de mais um dia.(Mendigo, Dante Milano)

Num autofalante nos arredores do Teatro Municipal, um homem grita palavras em nome de Jesus; o som metalizado de sua voz é abafado pelos vendedores de chips de celular que perambulam oferecendo uma mercadoria de preços irrisórios. Em meio a esta polifonia, dois esfarrapados chamam a atenção. Julia, personagem interpretada por Yonara Marques, que dá o nome da peça do Grupo de Teatro Cirquinho do Revirado, de Criciúma, acomodada numa espécie de trono andrajado, uma carroça coberta de quinquilharias e lonas sujas, um longo vestido onde parece caber um mundo inteiro, grita ao microfone, flerta com as pessoas que passam, mostra-se insatisfeita com as esmolas que ganha e chicoteia Palheta, interpre-tado pelo ator Reveraldo Joaquim, o outro mendigo, para que este se apresse a cumprir suas ordens. Uma delas é puxar a carroça para o centro da Praça do Patriarca, lugar marcado para a apresentação do espetáculo, que ele tenta executar com certa dificuldade. Ao meu lado, um senhor ri e fala pra mim: “caramba, ela está batendo de verdade”.

Cirquinho do Revirado. Júlia. Fotos: Anna Piccolo.

A carroça, enfim, para no centro da cena e o que se apresenta diante da grande roda formada pelo público são cenas grotescas e discurso divertidamente agressivo. Os dois es-farrapados, que carregam consigo os restos de um circo incendiado, tanto em suas quin-quilharias quanto no corpo escoriado, mendigam a atenção do público com a promessa da dança da aleijada (no cartaz que ostentam: “Dansa da alejada”).

Julia diz não ter os movimentos das pernas e por isso precisa de Palheta. Este a acom-panha pelas ruas mesmo sendo maltratado e escorraçado a todo o tempo. Numa das cenas, por exemplo, Palheta está entretido com o público e não presta atenção em seus gritos; ela, então, puxa de debaixo do pano uma banana, descasca-a sinuosamente e, depois de morder um pedaço, chama-o para pegar o resto da fruta que está apoiado num facão. Esfomeado, ele corre para perto. Julia o segura pelo pescoço, aproxima o alimento precioso de sua boca, num movimento perigoso – a faca roça sua pele –, e em seguida atira a banana para longe, deixando-o desesperado. O público gargalha estridentemente.

Além do constante jogo com o público, marcado pela trapaça, o espetáculo apresenta, com um lirismo torto, a decadência de uma vida marcada pelo charlatanismo. O que fazer quando nos encontramos em um estado de extrema pobreza? Julia e Palheta estão nesta situação-limite e se apoiam em artifícios melindrosos, suas únicas armas, para conseguir al-guma esmola para sobreviver. Ao mesmo tempo, enganam aqueles que passam – muitas ve-zes, pessoas a um passo deste mesmo estado. Esta contradição parece ser intransponível. O charlatão estará sempre dividido entre a miséria e a trapaça, neste limbo de dor ofertado por um sistema econômico excludente.

Os dois bufões se relacionam com o público o tempo todo, mandando este se calar quando acham apropriado, ofendendo outros que passam e pedindo dinheiro. “Só ajuda quem

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quiser ir pro céu”, Palheta nos implora. Ao contrário do que poderia se imaginar, o público se diverte com as ofensas e ri alto com as cenas escatológicas. Matheus, ao meu lado, estava hipnotizado com o jogo dos atores. Vestido de calça jeans, uma camiseta bem passada e um boné com os dizeres Funk Ostentação, acompanhava um grupo de amigos que lhe dizia, de certa distância: “Matheus, Matheus, vamos lá. A gente vai chegar atrasado.”, insistentemente. Quando se cansava de ignorá-los, ele respondia: “Peraí, só mais um pouco, peraí!” e manti-nha os olhos vidrados e o sorriso largo no rosto. A julgar pelas roupas e as pastas nas mãos, pareciam ser adolescentes em busca de uma oportunidade de emprego.

Cirquinho do Revirado. Júlia. Fotos: Anna Piccolo.

Nativos Terra Rasgada. Ditinho Curadô. Foto: Anna Piccolo.

Na onda do hibridismo cultural: o caipira da cidade média na periferia da metró-pole do capital triunfante

Gabriela Bortolozzo

O Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada, do interior de São Paulo, levou para a periferia da capital, um pouco da identidade caipira com a peça Ditinho Curadô. Porém, um alerta! Em sua cidade de origem resta pouco do que já foi esta cultura, e ela, atualmente, é deficiente em serviços, principalmente públicos, ligados à área, por isso, este grupo é, antes de tudo, um exemplo de resistência em Sorocaba.

Atuantes no Movimento de Teatro de Rua, o grupo que completou dez anos de traba-lho, há cinco representa pelos espaços púbicos de sua cidade. Na 8ª Mostra Lino Rojas os integrantes do Terra Rasgada trouxeram consigo suas experiências a serem debatidas e apreciadas por um público quase exclusivo do teatro.

Portanto, a peça Ditinho Curadô, mais do que fazer este público se divertir com os trejeitos do caipira, trouxe uma crítica à perda desses valores socioculturais por conta da imposição de valores guinados pelo capital. Isto é percebido em seu andamento, onde o personagem principal, através do poder divino de falar com santos, vê a oportunidade de se beneficiar.

De uma forma simples e cômica, os personagens da peça nos mostram como Ditinho é levado, pela ganância do sucesso e do dinheiro, a sua ascensão e posterior decadência, ao passo que, com a ampliação de seus contatos sociais, entre comerciantes e políticos, as relações mais íntimas e relevantes do seu cotidiano, como as familiares e de vizinhança, vão sendo minadas. O curador ajuda candidatos a se elegerem, se torna famoso, mas seu dom não é suficiente para resolver problemas do seu entorno.

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Quase didaticamente é possível traçar um paralelo entre a história de Ditinho e outras que se tornam cada vez mais banais dentro da sociedade. A construção de estruturas em-basadas nas principais leis do capitalismo são as grandes condutoras de sobreposições de interesses individualistas em detrimento do coletivo, o que se atrela a organizações sociais, políticas e econômicas, que engendram problemas facilmente detectados pelas populações.

Por isso, representações dessas problemáticas, como a cidadã que perde sua casa em uma enchente, a criança que falece por falta de atendimento público, o desempregado sem qualificação, entre outras, são alguns dos exemplos que a trama expõe a fim de demonstrar as consequências desses interesses. Seja em São Paulo capital, no interior do estado, ou em qualquer região do país, as questões levantadas são muito similares. Consequentemente, estas analogias criam um hibridismo em comportamentos e culturas que acabam afetando a maioria dos territórios.

Assim, voltemos ao ponto inicial, o Nativos Terra Rasgada consegue por meio de uma história simples erguer a bandeira da resistência ao tratar dessas questões sob a ótica de uma cultura marginalizada e igualmente resistente, a do caipira. Este permite concepções de mundo diferentes dos parâmetros anteriormente destacados, já que as inter-relações pesso-ais, a vivência familiar e o tempo são estimados acima de valores contabilizados pelo capital.

Nativos Terra Rasgada. Ditinho Curadô. Fotos: Anna Piccolo.

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Descortinando Olhares

Narah Neckis

A impunidade é mais dolorosa do que a morte.Edna Guarani

O Teatro Imaginário Maracangalha, com o espetáculo Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno, descortinou olhares na 8ª Mostra de Tea-tro de Rua Lino Rojas, no bairro Cidade Tiradentes, Zona Leste.

Num domingo tranquilo, quando nada mais se esperava além de um merecido descanso, surge o grupo fazendo um cortejo pelo bairro. A sensa-ção inicial foi de estranhamento. O que afinal essas pessoas queriam? Seria uma manifestação?

Parando para ouvir, percebemos que o grupo falava do líder guarani Marçal de Souza e sua batalha incessante pelos direitos dos povos indíge-nas; teria sido brutalmente assassinado depois de recusar a proposta de um fazendeiro que lhe oferecera grande quantia para que convencesse os Kaiowá a saírem da aldeia de Pirakuá, em Bela Vista (MS), para reservas já demarcadas pelo governo. O assassino foi absolvido.

Quanto mais conhecíamos a história de Marçal, mais nos simpatizáva-mos com sua luta e resistência. A luta pelos índios servia de pano de fundo para denunciar todo um sistema de impunidade instaurado em nosso país. A história de Marçal é a história do povo brasileiro, do cidadão oprimido.

Uma peça instigante: não tem como ficar indiferente e não refletir a respeito de nossas lutas diárias. Um momento emocionante do espetáculo foi quando fizeram um minuto de silêncio para as pessoas que foram assas-sinadas no Brasil por lutarem por justiça.

Além de ser um espetáculo engajado politicamente, tem um trabalho de pesquisa riquíssimo. A Dramaturgia foi brilhantemente tecida com citações, muitas delas do líder guarani Marçal de Souza.

Um ponto forte da peça foi a escolha dos instrumentos cênicos: o pano vermelho, como símbolo de vida e morte, e o bambu (taquara), símbolo sa-grado para os guaranis.

A manipulação destes instrumentos cênicos foi primorosa e, por vezes, poética. O pano vermelho ora cobria o público, ora simbolizava o povo mas-sacrado. Não seríamos todos nós massacrados por este sistema de impuni-dades?

Por fim, não menos importante mencionar o trabalho dos atores, estes disponíveis para o improviso, dialogavam o tempo todo com o público. Os atores interagiram, inclusive, com um cachorro de rua que ali passava e re-solveu integrar-se ao elenco como mais novo membro.

Enfim, Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno é um espetá-culo necessário, reunindo pesquisa, técnica e engajamento político. Grupo Imaginário Maracangalha. Tekohá. Foto: Anna Piccolo.

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Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno

Emerson Natividade

O Teatro Imaginário Maracangalha participa da mostra de Teatro de Rua Lino Rojas 2013, trazendo muita energia, alegria e entusiasmo. Maracangalha traz a indignação, a re-volta e a luta do povo indígena Guarani Kaiowá, que perdeu há mais de trinta anos seu principal líder e ativista: Marçal de Souza, que defendia a liberdade indígena, a liberdade de expressão, o respeito à cultura de um país e a alegria de ser o que se é. O espetáculo traz de forma tocante a trajetória do líder guarani e sua resistência histórica na luta pela terra e os direitos dos povos indígenas. Marçal de Souza, assassinado em 25 de novembro de 1983, é mais um brasileiro que lutou pela igualdade social e pelos direitos dos índios no solo nacional. Esta sina acompanha tantas outras personalidades, como o seringueiro Chico Mendes, que também lutou por igualdade social e acabou morto covardemente, ou seja, é uma realidade que precisamos mudar enquanto povo.

O trabalho do Teatro Imaginário Maracangalha, que atua desde 2006 em Campo Gran-de–MS, fala da luta de um povo, que fez, faz e fará parte da história de nossa terra. A união de um povo que luta com alegria, disposição e amor, buscando o respeito até os dias de hoje.

O espetáculo foi apresentado em uma praça na Cidade Tiradentes, próximo ao Centro Cultural Arte em Construção. O trabalho artístico começou com um cortejo, que peregrinou entre o centro cultural e a praça. Ao chegar à praça, as pessoas do bairro se concentraram para entender o que estava acontecendo, pois muitos não sabiam que era teatro, outros acreditaram ser um protesto e estavam querendo se engajar, e quando perceberam que era teatro, se frustraram um pouco. Outros transeuntes também participaram do espetáculo, que, aliás, teve um participante ilustre: um cachorro preto, que se manifestava durante as cenas mais exaltadas. A figura de Fernando Cruz à frente da trupe Maracangalha trouxe força, coragem e leveza, enquanto o elenco seguro mostrava muita energia e indignação com a situação contada no Tekoha, palavra que significa modo de estar, sistema, hábito, costume, lei, pois se refere à terra tradicional, ou espaço que por tradição e justiça pertence ao povo, pertence à cultura guarani.

Grupo Imaginário Maracangalha. Tekohá. Fotos: Anna Piccolo.

Um grito permeia toda a peça: “A Impunidade é muito mais dolorosa do que a morte”. Desde a primeira vez em que é dita, essa frase gera identificação no público, pois eles viven-ciavam aquele sofrimento e aquela impunidade na sua comunidade. O povo indígena deseja justiça!

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Claras revoadas, em forma de canção, de pássaros e urubus que visitam os Pombas Urbanas

Alexandre Falcão de Araújo

A 8ª Mostra Lino Rojas de Teatro de Rua foi encerrada ao som doce e cortante das Clarianas, recebidas calorosamente no Teatro Ventre de Lona, do Centro Cultural Arte em Construção. Ali, duas quebradas de extremos opostos – Taboão da Ser-ra e Cidade Tiradentes – se encontraram numa celebração da vida, da luta e da arte. As meninas, acompanhadas de Giovani Di Ganzá, anunciam que vieram para “abrir as portas”, trazidas pela felicidade. E, a partir daí, desfilam beleza e criticidade ím-pares. Os arranjos e as vozes agudas, nitidamente inspiradas na tradição nordestina, remetem à sonoridade da banda recifen-se Comadre Fulozinha, mas materializam de forma poética uma singular apropriação da lida cotidiana metropolitana periférica.

O canto é lindo e, apesar de se pretender não virtuoso – como anunciado por Naruna Costa, intérprete e diretora musical do grupo – traz o refinamento típico de quem se alimenta da téc-nica para encarnar a poesia em experiência concreta, marginal e militante. As imagens saltam aos olhos e aos ouvidos, vemos o palco ser povoado de pássaros e urubus que voam desde as auras das atrizes-cantoras, com asas de ar, de carne e de caxi-xis. O figurino delicado e rústico traz a impressão de que todos vestem redes de dormir, reconfiguradas nos traçados dos cor-pos, preenchidas de cortes de algodão cru e outros elementos naturais.

Show Clarianas. Fotos: Anna Piccolo.

O discurso apresentado em música é de quem assume e cumpre o papel de narrar o próprio povo, por meio de uma crônica social, lúdica e leve, quando possível, mas violenta e dolorosa, quando necessário. Há preciosas provocações dialéticas em forma de canção (caracterizando talvez até um gestus social, na proposição de Bertolt Brecht), como em “Erê”, que principia em ritmo mais lento, narrando ações de uma infância ingênua e saudosista para, na sequência, acelerar na medida em que denuncia diversas formas de violência prati-cadas contra e por crianças.

Ainda em relação à forma, este leitor crítico se encantou com a simpatia do grupo e com os sorrisos que perpassam todas as interpretações, mas, em alguns poucos momentos os considerou excessivos, visto que às vezes não dialogam com o sentido proposto na canção, mas também não parecem ser usados intencionalmente para provocar contradição. Os sor-risos deliciosos mantém o vínculo afetivo com o público, mas poderiam ser quebrados mais vezes, para gerar incômodo e evitar as sutis fagulhas do que poderia se tornar uma espeta-cularização.

Sutilezas formais à parte, é gostoso lembrar que no caldeirão libertário que sedia o gru-po Pombas Urbanas, as Clarianas levantaram o público, impressionaram-se com a resposta efusiva e caótica dos trabalhadores-artistas, mas mantiveram a delicadeza das pétalas de rosas lançadas ao palco e durante todo o show conduziram-nos pelos meandros melódicos do samba, coco, frevo e maracatu, prestando homenagem à ancestralidade feminina (e às raízes brasileiras e nordestinas de cada uma das artistas), além de fechar “a gira” do 1º Encontro Estadual de Teatro de Rua com tambores, muita percussão, violino e necessárias (além de belíssimas) vozes.

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OS AUTORES

Adailtom Alves Teixeira

Ator e diretor teatral; mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; professor do curso de Teatro da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

Alexandre Falcão de Araújo

Ator, arte-educador e pesquisador teatral. É mestre em Artes pela Uni-versidade Estadual Paulista (Unesp), colaborador do coletivo Aliança Libertária Meio Ambiente (ALMA) e professor do curso de Teatro da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

Caio Ceragioli

Estudante do curso de Licenciatura em Arte Teatro, Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).

Carlos Rogério Gonçalves da Silva

Mestrando em Artes no IA/Unesp, sob a orientação do Prof. Dr. Ale-xandre Mate. Especialista em Artes pelo IA/Unesp. Formado em His-tória pela FFLCH/USP. Professor de História do ensino básico.

Carolina Abreu

Pós-doutoranda no departamento de antropologia da FFLCH/USP, bolsista FAPESP; membro do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama - NAPEDRA.

Clarissa Oliveira da Silva

Formada em Letras-Espanhol pela Universidade Ibero Americano e pós-graduada em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes. Trabalha com teatro há 5 anos, integrando o coletivo Filhos da Trupe, que pesquisa o corpo no teatro de rua.

Daniela Giampietro

Mestranda no Instituto de Artes da Unesp. É integrante da Companhia Estável de Teatro e professora do curso de teatro infantojuvenil da Fundação das Artes de São Caetano do Sul.

Daniela Landin

É formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e em Licenciatura em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista); participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com).

Danilo Monteiro

Músico, dramaturgo e diretor teatral. Integrante do Coletivo Dolores Boca Aberta.

Diego Cardoso

Estudante da graduação do curso de Licenciatura em Arte Teatro do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesqui-ta Filho” (UNESP). É ator, dramaturgo e pesquisador de teatro inseri-do no Laboratório-Portal Teatro Sem Cortinas.

Emerson Natividade

Ator, arte-educador, dramaturgo, diretor teatral, jornalista, produtor, poeta. Formado em Artes Cênicas e Comunicação Social.

Gabriela Bortolozzo

Graduada em Licenciatura e Bacharelado em Geografia pela Univer-sidade Estadual Paulista (UNESP). Mestranda, desenvolve pesquisa na área de Geografia Humana, presentando como objeto de estudo lutas artísticas e sociais no espaço urbano.

Gyorgy Laszlo

Participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com), sobre teatro e teatralidade nos espaços públicos.

João das Neves

Autor, tradutor, diretor, ator e iluminador teatral. Dirigiu o setor de Te-atro de Rua do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Es-tudantes (UNE) até 1964, quando a entidade foi extinta pela ditadura. Ainda em 1964, foi um dos fundadores do histórico Grupo Opinião. Escreveu e dirigiu O último carro, ganhador de mais de 20 prêmios, entre eles o Golfinho de Ouro, Moliére e o prêmio da Bienal Inter-nacional de São Paulo. Foi indicado como melhor diretor ao Prêmio Shell de 2007 (Besouro cordão de ouro) e de 2009 (A farsa da boa preguiça).

Juliene Codognotto

Formada em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero; tra-balha na área de Informação e Comunicação do Centro Cultural São Paulo; estuda teatro e educação na Unesp, faz parte do coletivo que criou e mantém a Bacante (www.bacante.com.br).

Kanansue Gomes

Ator e pesquisador das artes cênicas urbanas contemporâneas, com ênfase em arte relacional e performatividade nos espaços públicos.

Leandro Pereira Alves

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Tem formação no setor metalúrgico. Informalmente, amante e amador em artes. Acaba de ingressar em Ciências Sociais na USP.

Lissa Santi

Formada em Licenciatura em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Luiz Eduardo Frin

Ator formado pelo INDAC- Escola de Atores, instituição na qual é pro-fessor de teatro. Cursa o doutorado em artes cênicas sob a orientação de Alexandre Mate na UNESP, onde concluiu o seu mestrado.

Narah Neckis

Atriz, professora e advogada. Formada em Artes Cênicas pela Univer-sidade Estadual Paulista (UNESP). Especialista em Direito Autoral e Leis de Incentivo a Cultura pela Ordem dos advogados do Brasil/SP. Pertencente ao Grupo de Pesquisa Teatral Nativação.

Rodrigo Morais Leite

Doutorando e mestre em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), onde realiza pesquisa rela-cionada à formação da historiografia teatral brasileira.

Simone Carleto

Atriz, diretora e arte-educadora com graduação e mestrado em Artes pela Unesp - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Doutoranda pela mesma instituição. Coordenadora da Escola Viva de Artes Cênicas de Guarulhos.

Zeca Sampaio

Diretor, autor e professor de teatro.

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3 de dezembro | quarta-feiraLocal: Praça do Patriarca - Centro

14h30 Núcleo Pavanelli (São Paulo/SP)Espetáculo: Dia de Benedito - se fugir o bicho pega, se ficar o mundo come!

Sinopse: Na festa de São Benedito um homem sai do interior com sua família e vai pra cidade grande em busca de vida melhor. Ao tentar se matar, o homem é abordado por Lúcifer que lhe propõe repassar fatos de sua vida para depois decidirem qual a melhor escolha: ir para o inferno ou continuar na mesma vida na qual mal conseguem sobreviver com sua família. Entre as histórias de sua mulher e seus filhos, o público testemunha a resistência brincante da cultura popular paulista e o estranhamento das mazelas do cotidiano.

Contato: 11- 9.6563 9248

16h Cia. Teatro dos Ventos (Osasco/SP)Espetáculo: A Via Nada Sacra da Revolução

Sinopse: A partir de colagem de cenas e canções revolucionárias, o grupo constrói uma narrativa poética acerca de processos revolucionários do século XX. Para isso, lança mão de cenas de peças montadas anteriormente pelo grupo, como Preço do Feijão, Máquinas Paradas (ambas peças de rua) e Maikovski - a Voz da Revolução (para espaços não convencionais), além de canções revolucionárias, como “Bella Ciao” e “Comandante Che”. A Via Nada Sacra da Revolução é um espetáculo onde lírico e épico dialogam para potencializar uma mensagem de luta e transformação.

Contato: 11-9.8228 3495

17h30 Trupe Lona Preta (São Paulo/SP)Espetáculo: O Concerto da Lona Preta

Sinopse: O Concerto da Lona Preta é um espetáculo inspirado na tradição circense e em músicas que fazem parte do imaginário popular. Cinco músicos, ou melhor, cinco palhaços tentam de forma divertida executar um concerto musical com um amplo e variado repertório, que abrange arranjos musicais concernentes às manifestações populares, eruditas e popularescas.

Contato: 11- 9.8794 2151

18h30 BatucadaCelebração musical de abertura da 9ª Mostra entre todos os grupos do MTR/SP

P R O G R A M A Ç Ã O

4 de dezembro | quinta-feiraLocal: Praça do Patriarca - Centro

14h00 Buraco d’Oráculo (São Paulo/SP)Espetáculo: O Cuscuz Fedegoso

Sinopse: Dona Maria do Cuscuz vende seus quitutes nas ruas. Entre as guloseimas está o cuscuz feito com fedegoso, um matinho cheiroso. Como não encontra comprador, oferece o tal cuscuz a um pedinte, que ao se deliciar com a iguaria, finge passar mal para não ter de pagar. Desesperada dona Maria pede ajuda a Mãezinha do Quixadá, uma raizeira que vende ervas medicinais. A raizeira, então, lança mão de toda sua charlatanice para identificar a suposta doença do pedinte, de forma que possa arrebanhar mais fregueses para seus miraculosos produtos. Fica armada uma grande confusão, que só acaba com a presença dos guardas de plantão, que chegam para estabelecer a ordem e os bons costumes.

Contato: 11- 9.8152-4483

17h Pombas Urbanas (São Paulo/SP)Espetáculo: Era Uma Vez Um Rei

Sinopse: Um grupo de mendigos se encontra no final de tarde na cidade. Com latas, plásticos e papelões eles “criam” o espaço onde vivem, descansam e fazem festas. De suas relações nasce uma brincadeira na qual, a cada semana, um deles será rei, depois presidente e em seguida, ditador. O jogo humano e imaginativo se torna intenso e esses mendigos saem da realidade em que vivem para representar as relações de poder da mesma sociedade que os marginaliza.

Contato: 11 2285-7758

18h30 Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes (São Paulo/SP)Espetáculo: Rolezinho Político Carnavalesco

Sinopse: Foi durante a brincadeira de carnaval que surgiu, em meio à folia, a vontade de acrescentar espécies de evoluções teatrais ao folguedo de rua. O cortejo político-cênico-carnavalesco simula a firme decisão da população periférica em derrubar o Rei Momo de seu trono. Tudo isso, em meio a muito sexo, fartura e festa. Assim, a sátira operária do “trabalho” ilustra a batalha entre o Capetalismo e a Santa Preguiça, padroeira dos vagabundos, acompanhada pela potente sonoridade da batucada do Dolores.

Contato: http://doloresbocaaberta.blogspot.com.br

5 de dezembro | sexta-feiraLocal: CDC Vento Leste

Rua Frederico Brotero, n° 60. Patriarca. Zona Leste

Das 11h às 20h Encontro do MTR (Movimento de Teatro de Rua)

20h Jongo dos Guaianás (São Paulo/SP)

Sinopse: Há 10 anos, o grupo de educadores, festeiros e batuqueiros de Guaianases criaram a roda Jongo dos Guaianás, inspirada no Jongo do Tamandaré, de Guaratinguetá (interior paulista), que promove esta manifestação da cultura popular há mais de 100 anos, contando e cantando a história dos negros e das negras escravizadas. Tombado como Patrimônio Cultural Brasileiro, o Jongo chama as pessoas presentes para entrar na roda, cantar e dançar ao som dos batuques do tambu e do candongueiro.

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6 de dezembro | sábadoLocal: Praça do Casarão / Vila Mara – Zona LesteAo lado da estação de trem Vila Mara/Jardim Helena

17h Teatro Popular União e Olho Vivo - TUOV (São Paulo/SP)Espetáculo: A Cobra Vai Fumar - Uma estória da FEB

Sinopse: A partir de relatos de ex-pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, que combateram na Itália na Segunda Guerra Mundial (1944-1945), o espetáculo conta, em fragmentos, um “passado presente”, como se a memória teimasse em esquecer e também lembrar.

Contato: 11- 3331 - 1001

6 de dezembro | sábadoLocal: Arsenal da Esperança – Zona Leste

R. Dr. Almeida Lima, 900 – Brás

20h Núcleo Teatral Filhos da Dita (São Paulo/SP)Espetáculo: A Guerra

Sinopse: Três soldados partem para a guerra e, no caminho, esquecem quem é o inimigo. A partir dessa constatação, o espetáculo apresenta cenas que revelam o absurdo de guerras invisíveis vividas cotidianamente. Num campo de batalha que se transforma constantemente, atrizes e atores representam diversos personagens e situações que se inter-relacionam, trazendo à tona um mundo onde a “espetacularização” da violência, impulsionada pelo desejo de poder, ganância e interesses privados, aliena e desumaniza o homem, separando-o da vida.

Contato: 11 - 2285 7758

7 de dezembro | domingoLocal: Praça Carlos Kozeritz. Jardim Julieta. Zona Norte

11h Cervantes do Brasil (Icapuí/CE) e Bando La Trupe (Natal/RN)Espetáculo: Trecos e Trecos

Sinopse: Trecos e Trecos é uma ação de arte pública de rua, composta por um repertório de breves espetáculos (“trecos”), que são apresentados, normalmente, ao longo de um dia de ocupação de espaços público (praças, ruas, feiras, parques). Entre os espetáculos, acontecem rodas de conversas com temas levantados na hora entre os artistas e espectadores.

Contato: 84- 8897 2863

7 de dezembro | domingoLocal: Centro Cultural Arte em Construção – Zona Leste

Av. dos Metalúrgicos 2.100. Cidade Tiradentes

11h Grupo Rosa dos Ventos (Presidente Prudente/SP)Espetáculo: Saltimbembe Mambembancos

Sinopse: Saltimbembe Mambembancos é uma festa popular na qual palhaços se apresentam como artistas saltimbancos, formando uma roda para exibir suas habilidades. As técnicas de malabarismo, acrobacias de solo e perna de pau são mostradas sem formalidades, acompanhadas por música ao vivo. O espetáculo brincante representa a essência da linguagem desenvolvida pelo Rosa dos Ventos, com interpretação livre de artistas cômicos populares e verborrágicos, improvisadores por opção, influenciados pelo teatro, circo, palhaço de circos e principalmente pelos artistas de rua.

Contato: 18- 9.9742 59 94

7 de dezembro | domingoLocal: Centro Cultural Arte em Construção – Zona Leste

Av. dos Metalúrgicos 2.100. Cidade Tiradentes

16h Mamulengo Rasga Estrada (Presidente Prudente/SP)Espetáculo: O Sumiço do boi Pintadinho

Sinopse: O espetáculo conta a história do sumiço do boi Pintadinho, fato que causa mil confusões com personagens clássicos do mamulengo e faz com que Simão passe por apuros para recuperá-lo. Com linguagem popular, a história é narrada de maneira leve e solta, com trocadilhos, escatologias e pitadas de críticas sociais. Quitérina, Coroné João Redondo, a cobra e até o Cão dos Inferno vão aparecer para ajudar Simão a entrar e sair das enrascadas criadas por ele próprio. Contato: 18- 9.9747 8811

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Realização CopatRoCínio apoio instituCional

Em memória de

Revista do Movimento de Teatro

de Rua de São Paulo (MTR-SP)

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Ano V - No 05 - Outubro de 2015

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