13
612 PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 612-624 Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário Art & Psychosis: The Work of Arthur Bispo do Rosário Arte y Psicosis: La Obra de Arthur Bispo do Rosário Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro Artigo http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703001382013

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

612

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra deArthur Bispo do Rosário

Art & Psychosis: The Work of Arthur Bispo do Rosário

Arte y Psicosis: La Obra de Arthur Bispo do Rosário

Maria Cristina Poli &Dalva Botelho Gandra

Mesquita

Universidade Federal doRio de Janeiro

Arti

go

http://dx.doi.org/10.1590 / 1982 – 3703001382013

Page 2: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Resumo: Este trabalho se propõe a analisar o enlace entre clínica e pesquisa no campo daPsicanálise e suas consequências na leitura do sujeito do inconsciente. Partimos, pois, daconstatação de que, além dos casos clínicos, Freud também se valeu do estudo de artistas e deproduções culturais. Em especial, no estudo da psicose, a contribuição precursora de Freud sedeu a partir da leitura das Memórias publicadas por Schreber. Foi pela leitura e análise desselivro que o psicanalista baseou suas principais teses acerca da paranoia. Neste artigo, destacamossua proposição de que o delírio é uma tentativa de reconstrução do mundo, abalado pela crisepsicótica. A partir dessa leitura de Freud, buscamos analisar como, de modo similar, a obra deum louco genial, Arthur Bispo do Rosário, demonstra a atualidade do método freudiano e a im-portância de apreender a psicose, especificamente, nesse enlace com a produção cultural.Palavras-chave: Psicanálise. Psicose. Arte, Bispo do Rosário. Paranoia (Psicose).

Abstract: This work intends to analyze the link between clinical and research in the field of psy-choanalysis and its aftermath in reading the subject of the unconscious. Therefore we started atthe realization that, in addition to clinical cases, Freud also used the study of artists and culturalproductions. In particular, in studying psychosis, Freud’s precursor contribution came fromreading the published Memoirs of Schreber. It was by reading and analysing this book that thepsychoanalyst based his main theses about paranoia. In this article, we highlight his propositionthat delusion is an attempt to rebuild the world, shaken by the psychotic break. From thisreading of Freud, we seek to examine how, in a similar way, the work of a mad genius, ArthurBispo do Rosário, demonstrates the actuality of Freudian method and the importance of appre-hending psychosis, specifically, this link with cultural production.Keywords: Psychoanalysis. Psychosis. Art, Bishop of Rosario. Paranoia(Psychosis).

Resumen: Este trabajo se propone analizar el enlace entre clínica y pesquisa en el campo delPsicoanálisis y sus consecuencias en la lectura del sujeto del inconsciente. Partimos, pues, de laconstatación de que además de los casos clínicos, Freud también se valió del estudio de artistasy de producciones culturales. En especial, en el estudio de la psicosis, la contribución precursorade Freud se dio a partir de la lectura de las Memorias publicadas por Schreber. Fue por lalectura y análisis de ese libro que el psicoanalista basó sus principales tesis acerca de laparanoia. En este artículo, destacamos su proposición de que el delirio es una tentativa de re-construcción del mundo, sacudido por la crisis psicótica. A partir de esa lectura de Freud,buscamos analizar cómo, de modo similar, la obra de un loco genial, Arthur Bispo do Rosário,demuestra la actualidad del método freudiano y la importancia de aprender la psicosis, especí-ficamente, en ese enlace con la producción cultural.Palabras clave: Psicoanálisis. Psicosis. Arte, Bispo do Rosário. Paranoia (Psicosis).

613

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita

* Estudo desenvol-vido com apoio fi-nanceiro da Faperj

(bolsa de Auxílio Ins-talação e bolsa deIniciação Científica)

e CNPq (bolsaPIBIC – Iniciação

Científica).

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Este trabalho de pesquisa se propõe a analisaro enlace entre clínica e pesquisa no campoda Psicanálise e suas consequências na leiturado sujeito do inconsciente. Para tanto, parti-mos da constatação da importância da escritado caso na obra de Freud (Chiantaretto1999; Porge, 2007). É essa escrita e o modocomo ela opera com o singular do sujeito,rompendo uma tradição médica do estudo

de caso pautado na anamnese, que lhe per-mite fundar a teoria psicanalítica. Uma teoriaque, justamente, permite indicar o ponto deenlace estrutural entre esse singular e aquiloque é compartilhado em um determinadolaço discursivo. É a partir desse encontroque as categorias nosográficas - as neuroses,psicoses e perversão - atinentes à clínica psi-canalítica advêm.

Page 3: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Em suas escritas de caso, porém, Freud nãoreferia apenas aos pacientes atendidos porele. Também a análise e interpretação deobras de arte e de personagens como Leonardoda Vinci foram fundamentais. Em especial, ocaso de psicose ao qual dedicou um importanteestudo – o caso Schreber – nunca foi atendidopor Freud. Sua análise do caso se deu a partirdas Memórias publicadas por Schreber. Foipela leitura e análise desse livro que o psica-nalista baseou suas principais teses acerca dapsicose paranoide.

Depois dele, outros estudos clínicos se segui-ram, confirmando algumas e refutando outrasdas observações do psicanalista. Pode-se, noentanto, reconhecer um trabalho original porparte de Freud na escrita desse caso. Sobretudo,gostaríamos de destacar, sua proposição deque o delírio é uma tentativa de reconstruçãodo mundo, abalado pela crise psicótica. Ouseja, o psicanalista salienta, por meio deSchreber, a função positiva que seu escritoopera no seu restabelecimento, mesmo quenão tenha impedido outras recaídas.

Neste artigo, iremos nos deter, portanto, aesse aspecto da pesquisa, buscando demonstrarcomo, de modo similar, a obra de um loucogenial, Arthur Bispo do Rosário, demonstra aatualidade do método freudiano e a impor-tância de apreender a psicose, especificamente,no enlace com a produção cultural.

Do delírio às Memórias de Schreber: uma reconstrução

Daniel Paul Schreber nasceu em 1842 e veioa falecer em 1911. Provinha de uma famíliade burgueses protestantes, abastados e cultos,que já no século XVIII buscavam a celebridadepor meio do trabalho intelectual. Muitos deseus antepassados deixaram obra escrita. Oslivros de seu bisavô tinham por lema a frase“Escrevemos para a posteridade”. Seu pai,Daniel Gottlieb Moritz Schreber, era médicoortopedista e pedagogo, autor de livros sobreginástica, higiene e educação das crianças.

A carreira de Schreber como jurista, funcio-nário do Ministério da Justiça do Reino daSaxônia, evoluía regularmente, com promo-ções sucessivas obtidas por nomeação diretaou eleição interna. Seu primeiro cargo foi ode escrivão adjunto, passando a auditor daCorte de Apelação, assessor do Tribunal econselheiro da Corte de Apelação. Em 1884,torna-se vice-presidente do Tribunal Regionalde Chemnitz. Sua ambição provavelmenterequeria algo mais, pois, no dia 28 de outubrode 1884, concorreu às eleições parlamentarpelo Partido Nacional Liberal. Nesta, sofreuuma fragorosa derrota. Tinha 42 anos, estavacasado há seis e tinha dezenove anos decarreira jurídica. Em um jornal da Saxôniasaiu, nesta ocasião, um artigo irônico sobresua der rota eleitoral, intitulado: “Quem co-nhece esse tal Dr. Schreber?”. Para quemfora criado no culto orgulhoso dos méritosdos antepassados e fora testemunha da ce-lebridade do pai, esse artigo trazia impressa,como um insulto, a face pública do seu ano-nimato. O relato autobiográfico de DanielPaul Schreber se tornou um dos recursosmais utilizados para o estudo da psicose,visto que, ali, seus delírios são descritos deforma muito detalhada.

Freud, a partir da análise do relato autobio-gráfico de Schreber, postula que a paranoiaexpressaria um mecanismo de defesa dosujeito contra sua libido homossexual. Eletambém estabeleceu a projeção comomecanismo característico da paranoia e sus-tentou que na redação das Memórias de umdoente de nervos observa-se a construçãodo delírio. Sua tese se fundamenta no seupróprio modelo teórico para as psiconeuro-ses, baseado nos conceitos de fixação,recalque e retorno do recalcado na formade sintomas.

O recurso à escrita por parte de Schreber ini-cia após o período que ele descreve como amorte do sujeito. O início da elaboração dasMemórias e a retomada do investimento nomundo são relatados pelo próprio doseguinte modo:

614

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 4: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Ao querer tentar dar ainda neste capítulooutros pormenores relativos à época que hápouco chamei de meu período sagrado, estoubem ciente das dificuldades que se me ante-põem (...) remeto-me exclusivamente à me-mória, uma vez que naquele período eu nãoestava em condições de fazer qualquer ano-tação (...) Eu acreditava que a humanidadeinteira tinha desaparecido, não havendo, por-tanto, nenhum, sentido visível em fazer ano-tações escritas. (Schreber, 1995, p. 74)

É assim que o autor, na sua reconstrução domundo, empenha-se em um trabalho árduoda escrita. Esse trabalho tem início em 1896,com notas em pedaços de papel, ganhandoo formato de relatos em um diário em 1897.Torna-se, posteriormente, um conjunto derascunhos para as futuras Memórias, reunidoem um caderno intitulado Minha Vida. Con-forme escreve Oliveira (2010, p. 166): “aelaboração minuciosamente ao longo detodos esses anos, tem para Schreber umpapel capital na sua luta para não se reduzirà posição de objeto do gozo divino”.

A escrita torna-se, para Schreber, um instru-mento do qual ele pode se valer perante osfenômenos alucinatórios que se impõem deforma invasiva. Ele fala, com propriedade,na argumentação sustentada para reaver seusdireitos civis: “diante da expressão escritado pensamento todos os milagres se revelamimponentes (...) e as tentativas de distrairmeu pensamento são facilmente superáveisquando posso me expressar por escrito”(Schreber, 1995, p. 312).

Ao longo da elaboração das Memórias, por-tanto, as alucinações são reduzidas. Ao ocupara posição do narrador de experiências muitoparticulares, Schreber promove o encadea-mento significante do que se encontra “solto”na forma de alucinação. Conforme seu tes-temunho:

As Conversas das vozes mudam continuamentee até mesmo nesse período relativamente curtoem que me ocupo da realização desse trabalho,

elas já sofreram diversas modificações. Já nãose ouve muita das expressões que antigamenteeram habituais (...) de modo que falar dasvozes, em grande parte pode ser definidocomo um simples zumbido na minha cabeça.(Schreber, 1995, pp. 210-211)

A escrita dos delírios funciona como recursopara a localização do gozo. Esse elemento édestacado por Freud. Segundo o psicanalista,como já destacamos, o delírio não deve serpercebido como uma expressão patológica,mas antes como um processo de reconstruçãoque pode ser mais ou menos bem sucedida.1

Porém, cabe ressaltar o quanto a precariedadedesse recurso fica à mostra na ausência de al-guém que verdadeiramente acolha o seu en-dereçamento, como aspira Schreber em sua“carta aberta a Fleschsig” (Schreber, 1995, p.27). Como diz Lacan (1985): “Em relação àcadeia do delírio, se assim se pode dizer, osujeito nos parece ao mesmo tempo agente epaciente. O delírio é tanto mais sofrido porele quanto mais ele não o organiza” (p. 247).

No seminário sobre as psicoses, Lacan reco-nhece em Schreber diferentes etapas de re-construção em direção a uma atitude deconsentimento progressivo. Schreber admite,pouco a pouco, que a única forma de sairda situação em que se encontra é aceitarsua transformação em mulher. Com a con-cepção do delírio ao longo de sua escrita,Lacan revela o caráter processual da cons-trução delirante de Schreber.

Assim, o delírio na medida em que é escritoe publicado, constitui o instrumento inventadopor Schreber para localizar a interpelaçãoque Deus lhe dirige, permitindo-lhe não re-duzir-se a puro objeto do gozo divino.

A partir dessas contribuições que constituemos fundamentos das contribuições da psicanáliseacerca da função do processo criativo na psi-cose, analisaremos, na sequência, a importânciada arte de Arthur Bispo do Rosário na relaçãocom a loucura que lhe afligia.

615

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita

1 “A formação deli-rante, que presumi-mos ser o produto

patológico, é narealidade, uma ten-tativa de restabele-cimento, um pro-

cesso de reconstru-ção. Tal Reconstru-ção após a catás-

trofe é bem sucedi-da em maior ou me-nor grau, mas nun-ca inteiramente; naspalavras de Schre-

ber, houve uma pro-funda mudança in-terna no mundo”

(Freud, 1996, p. 78).

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 5: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Um labirinto de signos: a reconstrução de Bispo do Rosário

Arthur Bispo do Rosário produziu e colecio-nou um universo de miniaturas numa celaminúscula. Conjugou esforço, tempo e acor-dos políticos para assegurar tantas obras que,ao entrar no quarto-forte de Bispo em fins doano 70, o olho embaralhava. Um labirinto designos roubava a cena. (Hidalgo, 1996,p. 114)

Pouco se sabe da história de Arthur Bispo doRosário em época anterior à sua internaçãona Colônia Juliano Moreira, no Rio deJaneiro, onde morou por mais de 50 anosaté a sua morte. Sabe-se que é originário deuma cidade no interior de Sergipe, Japara-tuba, nascido em 1909 e descendente deescravos africanos, foi marinheiro na juven-tude, vindo a tornar-se empregado de umatradicional família carioca. Também traba-lhou na Light, companhia de energia elétricado Rio de Janeiro, entre 1925 e 1938, sendonesta época que foi acometido por um surtopsicótico delirante, às vésperas da comemo-ração dos festejos do Natal. Em sua crise,acreditava ter visto Cristo descendo à terracom sua corte de anjos azuis e de ter rece-bido deste a missão de ser portador damensagem perante Deus no dia do JuízoFinal. Deveria recriar o universo, tornando-se Deus de seu mundo, para entãoapresentá-lo reconstruído ao Criador original(Hidalgo, 1996).

Ao ser internado em hospital psiquiátrico, foidiagnosticado como esquizofrênico paranoide.Viveu até o fim de sua vida na Colônia JulianoMoreira, onde faleceu em 1989. Foi sempreconsiderado como um interno produtivo ecolaborador. Inicialmente, trabalhou na cozinhae, em razão de seu “bom comportamento”,foi-lhe concedida autorização para sair daColônia e regressar quando bem lhe conviesse.Porém, não há registro de que ele tenhasaído alguma vez. Portador da missão deapresentar o mundo perante Deus, ele co-meçou a produzir objetos com os materiaisque encontrava em seu cotidiano. Sua arte

baseava-se na criação de esculturas, faixas ebandeiras, quase sempre reinterpretações des-ses mesmos objetos, produzidos com materiaisalgumas vezes recolhidos do lixo.

Conforme afirmava, sua missão era a derecriar o universo, mostrando a sua percepçãode mundo ao Pai. Para isso, deveria estarportando um uniforme, uma espécie demanto que ele também se dedicou a realizar.Esse manto, com o qual pediu para ser en-terrado2, aproxima-se em muito dos trajesda nobreza, com suas próprias dragonas econdecorações.

Bispo mostra desde o início de sua obra umaobrigação com o seu dever. Existe métodoem sua produção e na escolha dos objetosmumificados com os fios de seu uniforme deinterno desbotado e esse método é seguido àrisca ao longo dos 50 anos de produção desua obra e de mais de mil peças produzidas.(Morais, 1998, p. 30)

Como postula Frederico Morais (1998), Bispodo Rosário passou a produzir objetos comdiversos tipos de materiais oriundos do lixoe da sucata que, após a sua descoberta,seriam classificados como arte vanguardistae comparados à obra de Marcel Duchamp.Entre os temas, destacam-se navios (temarecorrente devido à sua relação com a Mari-nha na juventude), estandartes, faixas demísses e objetos domésticos.

A sua obra mais conhecida é o Manto daApresentação, que Bispo deveria vestir nodia do Juízo Final. Com ele, Bispo pretendiamarcar a passagem de Deus na Terra. Os ob-jetos recolhidos dos restos da sociedade deconsumo foram reutilizados como forma deregistrar o cotidiano dos indivíduos, preparadoscom preocupações estéticas, onde se percebemcaracterísticas dos conceitos das vanguardasartísticas e das produções elaboradas a partirde 1960. (Morais, 1998, p. 187)

A partir da Psicanálise, podemos afirmar queBispo utilizava os significantes como elementopulsante em sua obra. Seu recurso à linguagemmanipula signos e brinca com a construção

616

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita

2 Esse pedido, noentanto, não foi rea-lizado a fim de quese pudesse preser-var a beleza artística

do manto.

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 6: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

de discursos, fragmentando a comunicaçãoem códigos privados. Inserido em um contextoexcludente, Bispo driblava a instituição atodo tempo, recusando-se a receber trata-mentos médicos. Todavia, dela retirava sub-sídios para elaborar sua obra e, assim, mesmosendo marginalizado e excluído, é consagradocomo referência da Arte Contemporâneabrasileira.

Como refere Lacan (1985, p. 106) sobre a“dissolução imaginária” do psicótico, podemosentender que o desencadeamento da crisede Bispo do Rosário produz, em compensa-ção, uma hipertrofia da imaginação. Conformeo psicanalista, essa forma de reconstruçãopromovida pelo delírio, quando da emer-gência de manifestações psíquicas inusitadase ameaçadoras, é produzida em função dacarência de amarras simbólicas.

Entre 1985 e 1986, o médico que atendiaos pacientes do Pavilhão Ulisses Viana, naColônia Juliano Moreira, escreve sobre oBispo:

vem mantendo a mesma conduta permaneceem seu quarto, realizando diversos trabalhosmanuais criados por ele. (...) calmo e orien-tado, vive num mundo particular, onde sejulga iluminado e profetiza o fim do mundobrevemente. Está na terra para cumprir suamissão. Recusa qualquer medicamento.(Morais, 1998, p. 07)

Com tantos anos de internação, no entanto,sua vida pregressa desvanecia sob a vistagrassa da Psiquiatria. Nenhum dos internosescapava a essa condição, imposta pelareclusão em uma instituição total, mas Bispoera a ovelha desgarrada de um rebanho semrumo; sua obra seu espaço de resistênciainterna à homogeneização proposta à lou-cura. Como afirma Hidalgo (1996, p .43): “Àmargem da vida na Colônia, ele se ilhavanum pedaço de cela e se esforçava paraconstruir um outro mundo. Neste, Bispoera rei.”

Arthur Bispo do Rosário e a Arte Bruta

Bispo já evidenciara seu talento artístico noperíodo anterior ao início das internações psi-quiátricas. Há registro da elaboração de pe-quenas esculturas de madeira e objetos diversos.Foi, entretanto, durante os 50 anos em queesteve internado na Colônia Juliano Moreiraque produziu a grande maioria de seus traba-lhos de pintura, escultura, bordado e colagens,com utilização de materiais os mais variadospossíveis. Seus trabalhos foram expostos pelaprimeira vez fora da Colônia em 1982, namostra À Margem da Vida, organizada pelocrítico de arte Frederico Morais, no Museu deArte Moderna do Rio de Janeiro.

Entre 1989 e 1993, portanto depois da suamorte, foram expostas seis mostras indivi-duais da obra de Bispo em várias instituiçõesculturais e museus do país, sob curadoria deFrederico Morais. Tais eventos contaram comum público de visitantes aproximado de 100mil pessoas. A exposição inaugural, noMuseu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,foi avaliada como de absoluto sucesso, pro-movendo publicação de reportagens,ensaios e artigos em jornais e revistas nopaís. Internacionalmente, a obra de Bispoparticipou da mostra Viva Brasil em uma dasprincipais instituições culturais de Estocolmo,na Suécia. Em 1995, representou o Brasil na46ª Bienal de Veneza, reconhecidamente oprincipal evento de artes plásticas domundo. A partir daí, surgiram uma série deconvites para que se expusesse sua obra nosEstados Unidos, México e Espanha.

A ressonância pública de sua vida e obraimpulsionaram a realização de filmes: O Pri-sioneiro da Passagem, realizado por HugoDenizarte, O Bispo do Rosário por HelenaRocha e Miguel Pozdoravski (Morais, 1998,p. 04). Alguns críticos de arte e artistas semostraram particularmente atentos para amodalidade pouco convencional de Bispo

617

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 7: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

ao confeccionar obras sem consideraçãopelas convenções acadêmicas, formalismosou enquadramento estilístico.

O pintor francês Jean Dubuffet foi um dosprimeiros a se interessar pela produçãoartística de pacientes psiquiátricos e de outrosartistas despossuídos de formação acadêmica.Denominou “Arte Bruta” a estas produçõesatípicas inventadas a partir somente dos im-pulsos do artista. Em 1949, ele colocou emquestão a forma de se denominar “arte dedoentes mentais” como se fosse algo distintoda arte em si (Soares, 2000).

Nessa mesma época, Arthur Bispo do Rosárioseguia seu rumo, compondo sozinho, re-mando contra maré das incongruências daColônia. “Não recebia o papel, a tinta e ocarvão, mas desfiaria o próprio uniformepara conseguir a matéria bruta de sua arte”(Hidalgo, 1996, p. 62).

Delírio e Arte

A arte nos confronta com percursos na con-tramão. Assim, a potência de uma obra dearte está em nos permitir o desvio, a deriva,o encontro de um enigma que não indica ocaminho, mas nos obriga ao movimento daimaginação. (Sousa & Tessler, 2007, p. 40)

O potencial artístico de Bispo confirmou-seenfaticamente após um episódio ocorrido em1967. De acordo com Frederico Morais, es-tando internado na Colônia e recluso na soli-tária após agredir outro interno (o que eradenominado como função de “faxina” contraa rebeldia de outros pacientes), foi acometidopor uma alucinação auditiva que dizia “Estána hora de você reconstruir o mundo”.

Quinet (2006) caracteriza esse momento dabiografia de Bispo do Rosário como sendo:

desencadeante de sua criação como sintoma.A partir daí, Bispo nega-se a sair da reclusão aqual permaneceu por sete anos, decidido a

acatar a ordem recebida, usando então a arte,para retratar ‘tudo o que existe no mundo nomomento de sua passagem’. (p. 227)

É a partir de então que Bispo irá utilizarobjetos e dejetos recolhidos no cotidiano desua permanência na Colônia para fabricarminiaturas (utensílios domésticos, maquetesde esportes, etc.), produzir esculturas mumi-ficadas (elaboradas com a linha azul quedesfiava de seu uniforme interno), bordarpainéis nos quais escrevia com agulha elinha nomes de pessoas, países, aconteci-mentos, acidentes geográficos.

A designação dessa forma de arte como “ArteBruta” e a discussão acerca da chamada ‘artedos loucos’, porta em si questões cruciais. Aabsorção cultural de formas originais e diver-sas de manifestações expressivas e a incor-poração de modelos informais, distanciadosde uma lógica linear e coerente, são aspectosem proliferação e que perpassam as mais di-ferentes modalidades artísticas contemporâ-neas (o cinema, a música, a literatura). E, seisso ocorre no nível da arte, é porque con-siste em uma esfera de veiculação e retraçãodaquilo que se vislumbra na totalidade doprocesso sociocultural.

A obra de Bispo do Rosário apresenta, emparticular, além da originalidade de sua exe-cução, a evocação imediata da figura de seuautor e dos alicerces biográficos de sua ela-boração. Trata-se de alguém movido por de-lírios místicos, situado, em relação aos padrõesnormativos, como “à margem”, conformediriam antigos teóricos sociais. Assim, é umaobra cuja intitulação categórica a situarianos rótulos de estigma, exclusão, marginali-dade social.

E eis que a obra de Bispo desponta, nesseestágio de produção cultural pós-moderna,exercendo fascínio e admiração no público,descortinando a inadiável necessidade deredimensionamento dos valores, de inclusão,na multiplicidade de discursos, de uma óticaque abarque as alteridades.

618

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 8: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Bispo do Rosário agia sob influência de vozesalucinatória que lhe diziam o que fazer.Conforme Quinet, diferentemente da criaçãopela sublimação, a criação pelo sintoma im-plica o tratamento da Coisa (das Ding) sóque, desta vez, há o esvaziamento do gozo.Daí que a forma do sujeito barrar a Coisa sedê por meio de sua arte. O sintoma é, assim,entendido como uma modalidade criacionistade o sujeito lidar com o gozo para não seraniquilado. Esse é o caso da obra de Bispoque, com sua arte, faz um “inventário domundo”, povoando-o de objetos que con-densam, despedaçam, partilham o gozo daCoisa de modo a não ser invadido por ela.Sua obra é, portanto, fruto de um intencionalinventário do mundo, advindo da impossi-bilidade de reconstrução pela via única dodelírio que, no seu caso, era constituídopela missão de representar a existência daterra junto ao Criador.

Arthur Bispo do Rosário, incitado pelasvozes, fazia arte com os objetos de seu dia adia, criando para si próprio uma ressignifica-ção do mundo. É preciso notar que, em ne-nhum momento, ele fez qualquer tipo detrabalho envolvendo santos ou imagens decunho religioso normativo, ou que tenhaproduzido imagens em tela ou desenhos dequalquer tipo. A reinterpretação do mundoque realizava era-lhe absolutamente singular,pois ao fazê-lo, reinterpretava a si e aomundo a sua volta estabilizando uma signifi-cação em seu delírio.

Psicose e Criação

A importância da arte para a construção daobra de Freud é notória em diferentes textosque trabalham tanto o tema da produçãoartística como os efeitos estéticos produzidosno espectador. Conforme indica Rancière(2009), a arte tem uma importância funda-mental na fundação da Psicanálise: ela dátestemunho da tese freudiana do inconsciente.

Isso é perceptível em diferentes aspectos daargumentação freudiana. Seu recurso à tra-

gédia de Édipo Rei, por exemplo, enquantoficção que encena o núcleo da constituiçãosubjetiva. Também, sua recorrência ao termoErgreifung3 para indicar o efeito de ser “to-cado” por uma obra, ser verdadeiramentecapturado por ela. Uma obra de arte seria,então, uma espécie de armadilha para o su-jeito, uma captura deste que estaria, comsua dor e beleza, escondido de si mesmo: oinconsciente.

Freud, no entanto, não se dedicou a trabalharsobre a especificidade da criação artística napsicose. Deu-nos a indicação preciosa deque nesse o inconsciente se expressa “a céuaberto”, o que permitiu que muitos artistas,entre eles os surrealistas, aproximassem aloucura da criação. Devemos a Lacan o de-senvolvimento das questões relativas à clínicada psicose aportando uma leitura sobre otema da criação que não a idealize ou ro-mantize. Em síntese, tem-se a tarefa na Psi-canálise de considerar a obra do artista loucosem desmerecer seu sofrimento.

Como vimos, o sujeito psicótico é invadidopor um gozo, sob a forma de sofrimento, deangústia, de despedaçamento do corpo, devozes e outros fenômenos da ordem do in-suportável. Ademais, conforme escreve Quinet(2006, p. 221), será

para lidar com esse gozo que invade e dianteda ausência do significante que poderia contê-lo, [que o psicótico] usará o recurso do delírioe ou da arte, sendo ambos da ordem da criação,criação sui generis, pois não passa pela ordemestabelecida da cultura que é estruturada sim-bolicamente segundo a ordem do pai simbólico,do Nome-do-Pai. Quando referida à artecultural, a criação pode ser articulada aoconceito de sublimação, teorizado por Freud,como um dos destinos da pulsão sexual.

Além de ser significante da paternidade, oNome-do-Pai sustenta o neurótico diante davertigem e até mesmo da angústia diante daborda, do limite da cadeia simbólica. Umavez que, conforme Lacan (1991), toda criaçãoimplica no tratamento da Coisa (das Ding), oartista tenta fazer surgir na tela, nos objetos,

619

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita

3 Literalmente: “quecomove, emociona”(DICIONÁRIO Ale-mão-Português,2009, p. 197).

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 9: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

nas letras, o que resta do gozo perdido pelainscrição do significante da filiação. Esse, oNome-do-Pai, na medida em que é inscritono sujeito barra seu acesso à Coisa, esvazian-do-a de gozo, esvaziamento que tem para osujeito o significado da castração.

Assim, é esse gozo da Coisa, do qual osujeito na neurose sofre de nostalgia, gozoperdido desde sempre, que o artista tentaevocar no espectador. Ao fazê-lo, ele traz àbaila a temática da castração, produzindocerta suspensão. Essa situação, que deveriaprovocar horror, horror da castração, o artistaa escamoteia (produz um velamento) com aarte, fazendo emergir a fruição estética, oprazer que a arte normalmente propicia. As-sim, a arte, no sentido cultural e sustentadapelo Nome-do-Pai, se organiza em torno dovazio da Coisa, povoando esse vazio com osobjetos imaginários que tanto satisfazem nos-sos devaneios.

Já na psicose, por não haver essa mediação,a criação, conforme indica Quinet (2006), éuma tentativa de recriar ou reconstituir o elaque falha na simbolização e que joga osujeito no vazio da significação. O delíriobusca, portanto, preencher as lacunas dodiscurso e restabelecer uma lógica que sequebrou (Quinet, 2006, p. 221).

Lacan, em seu seminário sobre as psicoses,escreve: “um delírio deve ser julgado em pri-meiro lugar como um campo de significaçãoque organizou um certo significante” (Lacan,1988, p. 141). É nesse sentido que o trabalhodo analista na clínica da psicose não diferesubstancialmente da clínica da neurose: épreciso deixar o sujeito falar para que aquiloque é da ordem do real, não simbolizado,possa encontrar ali um meio de inscrição.

Bengalas imaginárias

A palavra “bengala” tem, no uso comum, osentido de suporte e apoio. Materialmente,a bengala é um bastão, um bordão que tema função de amparar alguém, permitindo

um caminhar. Considerando o uso ou possedesse objeto por aquele que apresenta umadeficiência, a bengala pode restituir a capa-cidade em algum momento perdida; suafragilidade como instrumento de apoio, noentanto, pode também sofrer os efeitos deuma ruína, fazendo sua função despencar.

Do mesmo modo, os delírios são para ospsicóticos uma espécie de “bengala imagi-nária” que surge como meio de sustentaçãopara o sujeito. Sustentação daquilo que sefaria sentir aos pedaços, como queda e frag-mentação, não fosse a significação, mesmoque frágil, que o delírio lhe confere. A mate-rialidade desse delírio pode ser observadatanto na escrita das Memórias por Schreber,como a produção da “Arte Bruta” por ArthurBispo do Rosário.

Antes da primeira crise, o psicótico encon-tra-se muitas vezes sustentado subjetivamenteem uma relação dual, com um duplo imagi-nário. Por falta do significante do Nome-do-Pai, o psicótico encontra compensação emuma série de identificações com personagensnos quais se apoia. Lacan (1988) comparaesta situação pouco estável do sujeito antesdo desencadeamento psicótico a um ban-quinho de três pés, ao qual falta o quarto péque lhe daria estabilidade.

Nem todos os tamboretes têm quatro pés.Há aqueles que ficam em pé com três. Con-tudo, não há como pensar que venha faltarmais um só senão a coisa vai mal. Pois bem,saibam que os pontos de apoio significantesque sustentam o mundinho dos homenzinhossolitários da multidão moderna são em númeromuito reduzido. É possível que de saída nãohaja no tamborete pés suficientes, mas queele fique firme assim mesmo até certo mo-mento, quando o sujeito em certa encruzilhadade sua história biográfica, é confrontado comeste defeito que existe desde sempre. Paradesigná-lo, contentamo-nos até o presentecom o termo Verwerfung. (p. 231)

O sujeito psicótico é, pois, levado a servir-sede “bengalas” imaginárias que, no entanto,não lhe dão apoio quando ele tropeça no

620

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 10: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

buraco da significação ausente. O termopré-psicose, expresso pelos fenômenos ele-mentares, deve ser tomado ao pé da letra,diz Lacan, de que o sujeito chegou à beirado buraco. Dessa maneira, o que mantém oesquizofrênico estabilizado, ou pelo menosfora do surto, são as bengalas imaginárias,sustentadas no eixo narcísico, bengalas dasquais ele se dispõe como uma forma de serelacionar consigo mesmo e com o mundo.Na medida em que há uma dissolução ima-ginária, essas bengalas não servem mais desustentação para o sujeito. Tem-se aí, a pre-sentificação do real e, consequentemente, odesencadeamento do surto psicótico.

É neste momento que a produção artísticapode restituir ao sujeito sua significação, re-construindo a “bengala” perdida. A funçãodo belo de modo geral, na cultura, produzefeitos imaginários que vêm a fazer suplêncianos vazios da significação. As artes, dizendode forma muito rápida, oferecem uma imagemque responde (mesmo que não satisfaçam)a nossa ânsia de representações ideais.

Assim, as suplências, bengalas imaginárias naclínica, são marcas da diversidade dos fenô-menos do acontecer psíquico. Como consta-tamos nessa pesquisa, para o psicótico, a redesignificante é lacunar, apresentando falhas empontos importantes de amarragem da signifi-cação. Na psicose, a foraclusão do significantedo Nome-do-pai impede o deslizamento dosentido. É neste lugar que os fenômenos deli-rantes, alucinatórios, se produzem.

Como dissemos, a construção delirante veminstaurar uma forma de realização muitoprópria de reconstrução. No delírio, vamosencontrar uma construção imaginária quepermite um desgarramento daquilo que porvezes se impõe como perseguidor e intole-rável. Por meio de uma produção como asMemórias de Schreber e a criação artísticade Arthur Bispo do Rosário, esse imaginárioganha consistência. Em alguns casos, comoindica Lacan acerca da obra de James Joyce,essa forma de escrita pode até fazer às vezesdo significante foracluído.

Para concluir: a obra como metáfora delirante

A natureza deu ao artista a capacidade deexprimir seus impulsos mais secretos, desco-nhecidos até por ele próprio, por meio dotrabalho que cria; e estas obras impressionamenormemente outras pessoas estranhas aoartista e que desconhecem, elas também,a origem da emoção que sentem. (Freud,2006, p. 218)

Pesquisar a relação entre arte e psicose éaventurar-se a penetrar em um universodenso e complexo. Na clínica psicanalítica,seja com pacientes neuróticos ou psicóticos,a realidade que nos ocupa é a realidade psí-quica, aquela criada pelo próprio sujeitoque está ali e que sofre. Trata-se de umarealidade cifrada e inscrita em uma rede sig-nificante que possui lacunas, vazios de signi-ficação, mais ou menos abrangentes e im-portantes conforme a estrutura com a qualestejamos lidando.

Como já indicamos, as criações e obras dearte são construções que podem permitir aosujeito uma sustentação subjetiva tambémna neurose, mas, sobretudo, na psicose. ParaLacan (1985), trata-se de reafirmar essa con-cepção abordando a metáfora delirante comouma “solução elegante” para ordenar o caossignificante.

No caso de Schreber, revisitado acima, osdois elementos principais do sistema delirantesão sua transformação em mulher e sua re-lação favorecida com Deus. A metáfora de-lirante produzida é a significação de ser“Mulher de Deus”. Assim como o Nome-do-Pai na neurose, esse significante temfunção de ponto de basta. Com isso, há li-mitação do gozo, anteriormente avassalador.A metáfora delirante, portanto, tem funçãoorganizadora, permitindo nova ordem sim-bólica ali onde não estava havendo nenhumae possibilitando a recomposição do imaginário.

Conforme indica uma importante observaçãode Freud (2006, p. 286):

621

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 11: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Os delírios dos pacientes parecem-me serequivalentes das construções que erguemosno decurso de tratamento analítico – tentativasde explicação e de cura, embora seja verdadeque estas, sob as condições de uma psicose,não podem mais do que substituir o fragmentode realidade que está sendo rejeitado no pre-sente por outro fragmento que já foi rejeitadono passado (...). Tal como nossa construçãosó é eficaz porque recupera um fragmentode experiência perdida, assim também odelírio deve seu poder convincente ao ele-mento de verdade histórico que ele insere nolugar da realidade rejeitada.

Podemos verificar que Schreber formula emsua escrita o quanto sua tarefa consistia emreparar a catástrofe que atingira seu mundo.4

Freud (2006, p. 78) escreve que por meiodo delírio:

o paranóico constrói-o de novo, não mais es-plêndido, é verdade, mas pelo menos de ma-neira a poder viver nele mais uma vez.Constrói-o com o trabalho de seus delírios. Aformação delirante, que presumimos ser pro-duto patológico, é, na realidade, uma tentativade restabelecimento, um processo de recons-trução.

Como vimos, também Arthur Bispo do Rosáriose utiliza do delírio, da missão recebida de serportador da reconstrução do mundo peranteDeus no dia do Juízo Final. Ele deveria tornar-se deus de seu mundo, para então apresentá-lo ao Criador original. Desse modo, tornaliteral a forma como o homem comum vê oartista: como criador de um novo mundo.

Nas palavras da biógrafa de Bispo, LucianaHidalgo (1996, p. 195):

Sem que algum dia tivesse saído de sua celapara visitar exposições ou folhear revistas dearte em alguma biblioteca sofisticada, Bispofez nos anos 60 assemblanges (...) A lógica for-mal com que Bispo envolve seus trabalhosantecipa certos aspectos da nova culturainglesa (...). Os textos costurados de Bispolembram os manuscritos de Joaquim Torres-Garcia, nos quais se funde palavra e imagem.(...) O manto e as demais roupas de Bisporemetem aos parangolés de Hélio Oiticica,tanto quanto sua cama-nave assemelha-se àcasa-ninho de Oiticica em sua residêncianova-iorquina ou Éden que ele expôs em Sus-sex, Inglaterra.

A obra de Arthur Bispo do Rosário vazou asfronteiras do hospício, do Rio de Janeiro, doBrasil, da Europa, e ancorou na Suécia. Pormeio da arte, o inconsciente a “céu aberto”do psicótico, que escancara a falha nacadeia simbólica e na produção de significa-ção, pode incluir os pontos de ruptura dacadeia significante, na inscrição de um novolaço do sujeito com o mundo. A criação,como procuramos demonstrar neste artigo,é a via pela qual o sujeito pode passar dosingular ao coletivo. Isso vale tanto para osujeito em sofrimento como para a própriateoria psicanalítica, que, por meio de seusconceitos, busca circunscrever a particulari-dade de cada trabalho de transferência.

Podemos dizer, por fim, que, para criar, épreciso deixar aparecer a sede que cada umtem de se apresentar ou representar. Nãopara preenchê-la, mas deixar que surja, quese faça a busca do que falta a dizer. Sempre,ainda, mais. Como vimos, a leitura da clínicapasseia pela escrita da cultura.

622

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra Mesquita

4 “No auge de suadoença, Schreberconvenceu-se daiminência de umagrande catástrofe:fim do mundo. (...).O fim do mundo é aprojeção de sua ca-tástrofe interna: seu

mundo subjetivochegou ao fim”

(Freud, 2006, p. 76).

PSICOLOGIA:CIÊNCIA E PROFISSÃO,

2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Page 12: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

623

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Maria Cristina Poli Doutora em Psicologia pela Universite de Paris, França. Docente da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ. BrasilE-mail: [email protected]

Dalva Botelho Gandra MesquitaGraduação em Psicologia pela Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro – RJ. BrasilE-mail: [email protected]

Endereço para envio de correspondência:Rua Pasteur, 250 – Fundos. Praia Vermelha. CEP 22290-240. Rio de Janeiro, RJ. Brasil

Recebido 14/05/2013, Aprovado 12/12/2013.

Page 13: Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário · Dalva Botelho Gandra Mesquita Universidade Federal do Rio de Janeiro A r t i g o ... expressaria um mecanismo de defesa do sujeito

Chiantaretto, Jean-François. (1999). L’écriture decas chez Freud. Paris: Anthropos/Econômica.

Freud, S. (2006). Delírios e Sonhos na Gradiva deJensen. In Edição Standard Brasileira das ObrasPsicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol.9. 2a ed.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalhooriginal publicado em 1907).

Freud, S. (2006). Leonardo da Vinci e uma Lem-brança de sua Infância. In Edição StandardBrasileira das Obras Psicológicas Completas deSigmund Freud. Vol. 11, 2a. ed.). Rio deJaneiro: Imago. (Trabalho original publicadoem 1910).

Freud, S. (2006). Notas psicanalíticas sobre umrelato autobiográfico de um caso de paranóia(demência paranoides). In Edição StandardBrasileira das Obras Psicológicas Completas deSigmund Freud. (Vol. 12. 2a ed.). Rio deJaneiro: Imago. (Trabalho original publicadoem 1911)

Freud, S. (2006). Moisés e o Monoteísmo. InEdição Standard Brasileira das Obras PsicológicasCompletas de Sigmund Freud. (Vol. 23, 2aed.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho originalpublicado em 1939).

Freud, S. (2006). A perda da realidade na neurosee na psicose. In Edição Standard Brasileira dasObras Psicológicas Completasde Sigmund Freud.(Vol. 9, 2a ed.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalhooriginal publicado em 1924).

Freud, S. (2006). Neurose e psicose. In EdiçãoStandard Brasileira das Obras Psicológicas Com-pletas de Sigmund Freud. (Vol. 9, 2a ed.). Riode Janeiro: Imago. (Trabalho original publicadoem 1924).

Hidalgo, L. (1996). O Senhor do Labirinto. Rio deJaneiro. Ed. Rocco.

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 03: As psicoses.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Lacan, J. (1991). O seminário, livro 07: A ética dapsicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-tor.

Lacan, J. (2007) O seminário, livro 23: O sinthoma.Rio de Janeiro: Zahar.

Morais, F. (1998). Uma biografia em curso. Catálogoda exposição Registro de minha passagempela terra, Belo Horizonte.

Oliveira, R. A. S. (2010). A Invenção do Corponas Psicoses. São Paulo. Biblioteca Edição.

Porge, Erik. (2007). Transmitir la clínica psicoana-lítica. Buenos Aires: Nueva Visión.

Quinet, Antonio. (2006). Teoria e clínica dapsicose. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universi-tária.

Rancière, Jacques. (2009). O inconsciente estético.São Paulo: Editora 34.

Schreber, D. P. (1995). Memórias de um Doentedos Nervos. Rio de Janeiro, Graal.

Sousa, E., & Tessler, E. (2007). Imagens perfuradas.In Coutinho, F. et al. (Org.), A vida ao rés-do-chão: artes de Bispo do Rosário. Rio de Janeiro:7letras.

Soares, I. A. (2000). Arthur Bispo do Rosário aarte bruta e a propagação na cultura pós-mo-derna. Psicologia: ciência e profissão. 20(4),38-45. doi: 10.1590/S1414-9893200000 -0400005

624

Maria Cristina Poli & Dalva Botelho Gandra MesquitaPSICOLOGIA:

CIÊNCIA E PROFISSÃO,2014, 34(3), 612-624

Arte & Psicose: A Obra de Arthur Bispo do Rosário

Referências