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FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS – FMU Centro de Pesquisa e Pós-Graduação – CPPG JESSE GERVA DE ALMEIDA Advogado, Professor de Direito Comercial e Associado de um escritório de advocacia especializado em Direito Societário. Rua Teodoro Sampaio, n.º 352 – 6º andar – conjunto 68, São Paulo-SP, CEP 05406-000 Fone: (11) 9976-2928 - Fax (11) 3088-6745 e-mail: [email protected] R.A.172187. A HARMONIZAÇÃO DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES E A COMPATIBILIZAÇÃO COM A NECESSIDADE DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TECNOLÓGICO Artigo desenvolvido ao Programa de Pós Graduação - Especialização - “lato sensu” em Direito Empresarial da UniFMU para obtenção do grau de pós-graduado, sob orientação do Prof. Ms. Manuel Nabais da Furriela SÃO PAULO 2008

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FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS – FMU

Centro de Pesquisa e Pós-Graduação – CPPG

JESSE GERVA DE ALMEIDA

Advogado, Professor de Direito Comercial e Associado de um escritório de advocacia especializado em Direito Societário.

Rua Teodoro Sampaio, n.º 352 – 6º andar – conjunto 68, São Paulo-SP, CEP 05406-000 Fone: (11) 9976-2928 - Fax (11) 3088-6745

e-mail: [email protected] R.A.172187.

A HARMONIZAÇÃO DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES E A

COMPATIBILIZAÇÃO COM A NECESSIDADE DE DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO E TECNOLÓGICO

Artigo desenvolvido ao Programa de Pós Graduação - Especialização - “lato sensu” em Direito Empresarial da UniFMU para obtenção do grau de pós-graduado, sob orientação do Prof. Ms. Manuel Nabais da Furriela

SÃO PAULO

2008

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FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS – FMU

Centro de Pesquisa e Pós-Graduação – CPPG

JESSE GERVA DE ALMEIDA

A HARMONIZAÇÃO DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES E A

COMPATIBILIZAÇÃO COM A NECESSIDADE DE DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO E TECNOLÓGICO

Artigo desenvolvido ao Programa de Pós Graduação – Especialização - “lato sensu” em

Direito Empresarial da UniFMU para obtenção do grau de pós-graduado, sob orientação

do Prof. Ms. Manuel Nabais da Furriela

Aprovado pelo professor orientador em 29/08/08.

_________________________________________ Prof. Ms. Manuel Nabais da Furriela

Orientador

3

São Paulo, 29 de agosto de 2008.

DECLARAÇÃO DE INEDITISMO Declaro para os devidos fins e efeitos que o artigo A harmonização dos interesses dos

consumidores e compatibilização com a necessidade de desenvolvimento

econômico e tecnológico de minha autoria nunca foi publicado em qualquer meio seja

ele impresso ou digital.

____________________________

Jesse Gerva de Almeida

4

Àquele que deu Seu Filho unigênito para

todo que Nele crê não pereça, mas tenha a

vida eterna.

Aos meus primeiros e eternos professores:

D. Mabel, Dr. Joeli, Joeli Jr e Jonnathan

Gerva.

To those who are part of me: Gerva-Lewis-

Balfour. You live within my heart.

À minha fonte de inspiração: Lelayne.

A todos que de alguma forma participaram

deste trabalho, em especial os alunos da

Fundação Bradesco.

5

A Justiça é a manifestação do correto, do natural. O Direito, em contrapartida, é a positivação de normas.

Portanto este não se confunde com aquela. O grande número de leis é a prova de que o povo não se respeita.

Toda vez que a caneta do legislador toca o papel, uma lágrima da Justiça toca o solo.

O autor

6

RESUMO

O CDC é uma norma tipicamente protecionista. Por tal razão, para defendermos os

direitos do consumidor, basta que abramos o código e façamos uma leitura gramatical e

literal: ao fornecedor incumbe cumprir suas obrigações e, ao consumidor, gozar seus

direitos.

Classificado pela lei como a parte mais frágil da relação de consumo, o consumidor tem

a nítida impressão que a lei o protegeu de tal maneira que não lhe caberia qualquer

ônus.

Todavia, com base na doutrina e na jurisprudência, buscaremos demonstrar que a norma

prima mais pela boa-fé e pelo equilíbrio do elo que ligam as duas partes da relação do

que por uma proteção desmedida e irrestrita do consumidor.

ABSTRACT

Brazilian Consumers Code is a typic protecionist law. Therefore, to defend the

consumer’s rights, we only need to open the code and do a grammatical and literal

reading: suppliers must fulfill with their obligations and, consumers enjoy their rights.

Classified by the law as the most fragile side of the relationship of consumption, the

consumer has the distinct idea that the law protected him so much that he does not have

any burden.

Nevertheless, based on the doctrine and jurisprudence, we will find out that this code

gives much more value to the good faith and to a real balance of this bond than to a

unrestricted protection of the consumer.

PALAVRAS-CHAVES: Direito do Consumidor; boa-fé; práticas realmente abusivas;

publicidade permitida; obrigações do consumidor; a relativização do “pacta sunt

servanda”; ética; função social da empresa.

7

SUMÁRIO

RESUMO..........................................................................................................................6

ABSTRACT .....................................................................................................................6

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................8

I – HARMONIZAÇÃO: PRINCÍPIOS E DIREITOS BÁSICOS ............................11

1.1 BOA-FÉ, EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO.....................................................................12

1.2 HIPOSSUFICIÊNCIA E ÔNUS DA PROVA ..................................................................14

II – RESPONSABILIDADE.........................................................................................18

2.1 CAUSAS EXCLUDENTES .........................................................................................19

III – PRÁTICAS COMERCIAIS.................................................................................23

3.1 DANO MORAL NA COBRANÇA DE DÍVIDAS.............................................................24

IV – CONTRATOS .......................................................................................................27

4.1 A VALIDADE DO “PACTA SUNT SERVANDA” E A TEORIA DA IMPREVISÃO .............29

V – A NOVA EMPRESARIALIDADE .......................................................................34

5.1 O CDC À LUZ DA NOVA EMPRESARIALIDADE ......................................................34

5.2 A VALORAÇÃO DA ÉTICA E DA MORAL .................................................................36

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................38

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................39

8

INTRODUÇÃO

O agrupamento humano traz diversas vantagens. Uma vez notado este fato, o homem

passou a criar grupos, cada qual com sua finalidade específica, v.g., defesa, segurança,

produção, comércio, etc. Todavia, ao lado dos benefícios, existem também

desvantagens na mesma proporção, razão pela qual a comunidade cria normas para

nortear as condutas de seus membros. Logo após uma norma ser criada (quando não

antes), a sociedade cria punições face às infrações cometidas por seus pares.

Em que pese a lei ordinária nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 ter sido fruto de uma

intensa pressão popular que atingiu a Europa Ocidental e as Américas1 no século XX,

principalmente na década de 50, as discussões sobre a defesa às normas de consumo

tem origens muito mais remotas. Alguns códigos antigos, como o de Hamurabi, que

trouxe pela primeira vez a idéia de proporcionalidade, ao prever o “olho por olho, dente

por dente”, já traziam em seu bojo alguns artigos protecionistas.

Ao estudarmos os institutos relacionados ao diploma legal que visa tornar nítida a

necessidade do respeito à balança da justiça nas relações de consumo (leia-se Código de

Defesa do Consumidor), analisaremos os aspectos comerciais dos agrupamentos,

sobretudo os relacionados àqueles que de fato configuram excessos nas relações

contratuais.

O contrato se destina concretamente a tornar efetiva a circulação de riqueza. Pressupõe

a igualdade das partes e tem como seu substrato material uma operação econômica. Este

é o elemento objetivo do contrato. Uma parte oferta e a outra compra; uma parte dá

publicidade aos seus produtos e serviços e a outra decide o que lhe interessa. O litígio

surge quando uma delas (o fornecedor, segundo a lei), não cumpre adequadamente sua

parte. É o que o legislador regula e coíbe ao descrever as práticas e cláusulas abusivas.

O Estado, enquanto ente fiscalizador, deve assegurar o tão almejado equilíbrio nas

relações, seja ele no âmbito trabalhista, seja no comercial. Vale ressaltarmos que a

dinâmica na qual vive a sociedade atualmente não permite, de fato, a elaboração de

contratos individuais. Tendo em mente a globalização, o uso destes moldes viabiliza a

1 FILOMENO, José Gerado Brito. Manual de direitos do consumidor. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 60: “Nessa linha de orientações, por exemplo, na Suécia em 1970 surgiram dois diplomas legais distintos, a saber: a chamada ‘Lag Om Otillbürling Marknadsfüring’ (i.e., lei de proteção ao consumidor) e ‘Lag Om Marknadarad’ (lei sobre a concorrência desleal). Também o México tem lei específica a respeito do tema (‘Ley de Proteción Al Consumidor’), o mesmo ocorrendo com Portugal, Espanha, Venezuela, etc”. Soma-se ainda a elaboração de códigos e a evolução normativa em países em todo o mundo, a saber: Itália em 1942, EUA em 1961, Suécia em 1970, Alemanha em 1976, França em 1977, Portugal em 1981 e Espanha em 1984.

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rapidez nas negociações e minimiza os riscos de conflitos de sistemas jurídicos. É a

conveniência e o conforto da sociedade moderna. O fornecedor se vale de um contrato

padrão e o consumidor está sujeito a menos riscos, uma vez que todos a seu redor

celebraram contratos iguais aos seus.

Diferentemente de outros diplomas, o CDC traz conceitos claros que traçam as margens

da relação que visa proteger. Em seus artigos 2º e 3º, o legislador traz os conceitos de

consumidor, fornecedor, produto e serviço. O que se busca apresentar neste artigo tem

como lastro a relação de consumo, qual seja, aquela que liga alguém que se enquadra no

conceito de consumidor2 a alguém que perfaz os dizeres de fornecedor, por meio da

prestação de um serviço ou na aquisição de um produto.

Faz-se mister trazer estes pontos à baila, haja vista que nem toda relação de compra e

venda será abarcada por esta norma. A venda de carros de uma fábrica a uma

concessionária ou a venda de uma televisão usada a um amigo, por exemplo, são

contratos de compra e venda, mas regulados pelo Código Civil. O mesmo Código, em

seu art. 966, prescreve que empresário é “aquele que exerce a atividade econômica

organizada para a produção ou circulação de bens e serviços”. Isto nos permite concluir

que todo empresário é fornecedor, mas por vezes a norma utilizada na lide será outra

que não esta em estudo.

Segundo prescrito no art. 4º, III, CDC, um dos pilares da Política Nacional de Relações

de Consumo é a “harmonização dos interesses dos particulares das relações de consumo

com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico” do país.

Porém, isto não significa dizer que a balança representativa do Direito deve ser

descuidada, sob pena de ver o fornecedor em condição extremamente mais favorável

que o consumidor, tradicionalmente parte mais fraca. No mesmo sentido, sob pena de

impedir o crescimento da indústria e do comércio, o Poder Judiciário não pode tender

para o descumprimento das normas para beneficiar o consumidor. Ao fazê-lo estaria

pré-julgando.

Nessa toada, não podemos ver as práticas comerciais serem tratadas como as

“offshores”, as cooperativas e a terceirização, ou seja, classificadas de abusivas antes

mesmos de serem analisadas.

O presente artigo vem justamente estudar os parâmetros daquilo que é abusivo, os

direitos e deveres das partes, da interpretação do CDC sob luz da nova

empresarialidade, da necessidade de basear a relação como um todo no princípio da

2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. “Consumidor – aquele que compra para gastar em uso próprio”.

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boa-fé e da responsabilização do verdadeiro causador do dano, sem deixar de lado os

reflexos das indenizações descabidas advindas de sentenças judiciais.

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I – HARMONIZAÇÃO: PRINCÍPIOS E DIREITOS BÁSICOS

Dentro deste novo panorama que mescla o consumo em massa, a ética e o marketing,

deve-se parabenizar os comerciantes pelo desenvolvimento constante de técnicas para

melhor tratar seus consumidores e mantê-los fieis a suas marcas, produtos e serviços.

Tais técnicas advêm de constantes análises sobre o comportamento, o perfil psicológico

e sociológico, considerando as diferenças regionais, crenças e hábitos, além das

tendências externas.

Engana-se quem pensa que os desejos do consumidor e o marketing empresarial não

podem conviver. Na verdade, um depende do outro e ambos buscam o bem estar do

consumidor, que através de sua liberdade de escolha, decide o que lhe convém e dá as

diretrizes do mercado.

Conforme enfatiza Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamim3: “A sociedade de

consumo é uma realidade inegável. Mas, muito mais que uma sociedade puramente

acadêmica ou abstrata, é um fenômeno que afeta a vida de todos os cidadãos”.

O CDC visa garantir o equilíbrio na relação de consumo e não desenvolver uma cultura

paternalista que inviabilize o comércio no país. Busca-se exigir do fornecedor critérios

que garantam a qualidade dos produtos e serviços e dar ao consumidor mecanismos de

manter-se em pé de igualdade.

O objetivo maior da lei é incluir na relação de consumo características que permitam os

níveis idéias, sem que se vislumbre ameaça desabusada ao fornecedor. Afinal, para a

plena saúde da economia, é mister que permita um cenário razoável dentro da livre

concorrência. Neste caso, os direitos e deveres, a oferta e a procura, consumidor e

fornecedor são beneficiados.

Ao questionar o suposto caráter excessivamente protecionista da lei, Fabio Nusdeo4

assevera que: “Isto não significa, é claro, que a contrario sensu tal relação deva ser

desfavorável à outra parte: o fornecedor”. É exatamente o ponto que busca, o que

entendemos por equilíbrio inteligente.

3 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 251. 4 CRETELLA, José Junior e outros autores. Comentários ao código do consumidor. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992. p. 20.

12

1.1 Boa-fé, educação e divulgação

Conforme se depreende da leitura dos art. 2º e 3º, consumidor é toda pessoa física ou

jurídica que adquire produtos ou serviços como destinatário final e fornecedor é toda

pessoa física ou jurídica, ainda que despersonalizada, que pratica atos de comércio.

Em que pese o princípio da boa-fé não estar definido no CDC, certamente é o mais

importante. Todas as relações, bem como seus litígios serão analisados à sua luz.

Em alguns pontos o legislador utilizou-se da expressão boa-fé e em outras se valeu de

termos como “que sabe ou deveria saber” e “independentemente da existência de

culpa”. Seja qual for a terminologia e seja explícita ou não, este é o espírito da norma.

Este princípio traduz-se na maneira como as partes agem no contrato, como exigem da

outra suas contraprestações, bem como aquilo que pleiteiam em juízo. É isto que

encontramos no texto da lei, como um dos objetivos da Política Nacional de Relações

de Consumo:

“III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.” (CDC, art. 4º).

Isto implica dizer que não apenas o fornecedor deve agir de boa-fé. Para o consumidor

este é um direito e um dever. Ao pleitear a revisão de um contrato, deve-se analisar se o

consumidor usou de boa-fé no momento da contratação, sob pena de vê-lo auferir

vantagem indevida; ao proceder a troca ou o conserto de um produto ou um serviço,

deve-se analisar se não foi o consumidor que deu causa ao problema; ao presumir que o

consumidor é a parte mais fraca, sem instrução ou merecedor da justiça gratuita, deve-se

verificar dados objetivos, deixando de lado o Positivismo Puro de Kelsen.

Ao notar-se a ausência de boa-fé de uma das partes para obtenção de vantagem sobre a

outra parte, de acordo com o CC, o juiz não lhe dará ganho de causa, haja vista que

ninguém pode se beneficiar da própria torpeza.

Há cerca de dois anos foi veiculada uma publicidade5, tema da campanha de uma loja de

eletrodomésticos que trazia a pergunta “Quer pagar quanto?”. Evidentemente que em

razão de ser vaga, a chamada deu margem a discussões.

5 Não devemos confundir propaganda (meio de divulgar idéias políticas, religiosas, etc) com publicidade (meio de incitação ao consumo). Logo, ao questionarmos a maneira como a informação foi dirigida à massa, dizemos que houve publicidade subliminar, enganosa ou abusiva.

13

Se a pergunta deixa a critério do consumidor quanto ele quer pagar, de acordo com a

leitura gramatical da lei, nada impediria que alguém comprasse um aparelho de DVD

por R$ 1,00. E foi isso que ocorreu na Bahia. Um advogado dirigiu-se a uma destas

lojas e exigiu que o aparelho fosse vendido por esta quantia.

Os arts. 36 e 37 trazem os princípios da identificação e da veracidade e cuidam da forma

como a publicidade deve ser feita. Coíbe-se as modalidades subliminar (art.36, caput),

enganosa (art. 37, §1º) e abusiva (art. 37, §2º). No caso em comento, estaríamos diante

de uma publicidade enganosa, pois teria sido capaz de induzir a erro o consumidor a

respeito do preço do produto. Será?

Quando nos deparamos diante de um evento com este, devemos nos perguntar:

considerando o público alvo, a maneira como a informação está disposta seria capaz de

induzi-lo a erro? Parece-nos que a resposta é negativa.

A frase “Quer pagar quanto?” sugere a intenção da loja em negociar até que o cliente

esteja satisfeito com o preço apresentado e não de que o cliente possa levar o que quiser

pelo preço que desejar. Não age de boa-fé o consumidor que se diz enganado ao ouvir

tal chamada. Afinal, o público alvo não eram crianças de 0 a 5 anos.

Acaso este raciocínio não fizesse sentido, certamente os órgãos de defesa e o Ministério

Público já teriam se posicionado no sentido de retirar do ar a publicidade de uma bebida

energética que diz que após ingeri-la o consumidor ganhará asas (frise-se que quando

veiculada na TV, aquele que a ingere o líquido de fato voa). Vez que a bebida não é

autorizada para menores de 18 anos, presume-se que com esta idade o indivíduo tenha

discernimento para entender que a empresa está a se valer de uma metáfora.

A publicidade por si não é ilegal. Na verdade ela é essencial para o desenvolvimento da

economia e do comércio, pois é através dela que a população toma conhecimento dos

produtos que estão no mercado, compara preços e qualidade e se beneficia dos efeitos

da livre concorrência.

Dentro do mesmo espírito, encontramos no art. 4º, IV, os princípios da “educação e

informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com

vista à melhoria do mercado de consumo”.

De maneira ainda mais explícita, o legislador trouxe no art. 6º, II, à título de direito

básico do consumidor “a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos

produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”.

O Banco Central, após reconhecer a aplicação da norma em comento às relações

bancárias, baixou uma resolução (nº 2878/01, chamada por alguns de CDC do Cliente

Bancário), que entre suas principais medidas transfere para o banco o ônus de provar

14

que os clientes foram informados dos detalhes das operações, inclusive com uma cópia

do documento assinado.

Conforme expresso acima, o fornecedor tem a obrigação de informar todos os detalhes

sobre o produto ou serviço que põe no mercado. Em contrapartida, o consumidor tem o

dever de se informar até mesmo para ter garantida sua liberdade de escolha.

No caso do fornecedor oferecer produtos ou serviços que acarretem qualquer risco à

saúde, deverá informar o potencial comprador de todos os seus riscos. Se este produto

for industrial, as informações devem estar de forma escrita.

Após diversas ações judiciais e lides dirigidas ao Poder Judiciário, o legislador impôs às

indústrias tabagistas o ônus de informar em qualquer publicidade televisiva ou

impressa, os riscos que o cigarro causa ao consumidor.

Se um dia esse foi um tema de grande celeuma, talvez pela ausência de dados

comprobatórios sobre os riscos do cigarro, hoje não deveria mais ser. Uma vez que o

fornecedor expôs de forma clara e adequada toda informação devida, educou o

consumidor e fez ampla divulgação dos risos à saúde que seu produto pode causar, cabe

ao consumidor exercer sua liberdade de escolha de fumar ou não.

Ora, após a indústria cumprir tudo o que a lei lhe impôs, recolher a altíssima carga

tributária e não ver seu produto relacionado na lista de substâncias entorpecentes, a que

título seria o fornecedor condenado a pagar indenizações aos fumantes? Não nos parece

coerente.

1.2 Hipossuficiência e ônus da prova

Conforme positivado no art. 333 do CPC, o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao

fato constitutivo do seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo,

modificativo ou extintivo do direito do autor.

Provar, nada mais é, que convencer os envolvidos sobre a verdade respeitante a alguma

coisa. A corroborar este raciocínio, o artigo 818 da CLT afirma categoricamente: “A

prova das alegações incumbe à parte que as fizer”.

Em que pese a falsa interpretação do leigo, o CDC manteve esta regra no inciso VIII do

art. 6º, criando apenas três ressalvas.

Inverte-se o ônus da prova: para facilitação da defesa de seus direitos, quando for

verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente (frise-se ainda que estas

hipóteses estão em nítido confronto com a Carta Magna, que dispõe sobre a

impossibilidade de obrigar o réu a produzir prova contra si).

15

A título de ilustração, se a decisão de uma demanda depender de um teste químico-

industrial, o magistrado pode determinar que o fornecedor o apresente. A complexidade

do teste, seus custos e os segredos industriais que o protegem, impossibilitam que o

consumidor o faça. Nada mais justo que o fornecedor viabilize a prova.

Porém, em uma lide envolvendo um contrato bancário em que a alegação for

simplesmente juros abusivos, descabe a inversão, pois ambos podem arcar com o ônus

de contratar um contador. Bastaria uma simples conta matemática e a prova já poderia

ser apresentada à juízo.

E o que significa verossimilhança? Conforme prescrito no art. 273, I, CPC, nada mais é

do que a qualidade de um fato que indica a verdade de tal forma que justifica que o juiz

antecipe sua decisão ou dispense outras provas. Esta indicação necessariamente precisa

ser clara, objetiva, inequívoca, sendo descabido o uso de situações análogas como

exemplo, bem como leis que não se aplicam ao caso concreto ou ainda o eventual

resultado de uma prova futura a ser produzida.

Nessa toada, v.g., se uma ação estiver em curso e o réu apresentar uma reconvenção, a

simples alegação desta segunda ação não envolve de verossimilhança a matéria alegada.

Deve-se provar todos os argumentos apresentados. É nesse sentido que decidem os

tribunais pátrios6:

“TUTELA ANTECIPADA – alienação fiduciária – revisão contratual – manutenção da posse do bem nas mãos do devedor fiduciário – obstáculo ao exercício do direito de ação do arrendante – descabimento. A manutenção na posse do bem pelo devedor-fiduciante, constituído em mora, implica a ofensa ao preceito constitucional contido no artigo 5º, inciso XXXV, à medida que visa obstar à outra parte o acesso ao Judiciário na defesa de seus direitos contratuais ou legais. (AI 873.458-00/0 – 11ª Câm. – Rel. Juiz ARTUR MARQUES – J.17.1.2005)”.

6 “ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – revisão contratual – tutela antecipada – manutenção do bem na posse do devedor – pendência de ação de busca e apreensão com liminar concedida – mora – não descaracterização – descabimento. Simples demanda revisional, quando já em mora o autor, não impede a apreensão liminar do bem litigioso, em ação de busca e apreensão. Ausência de requisito da verossimilhança da alegação (“fumus boni iuris”). Antecipação de tutela indeferida. (AI 880.816-00/4 – 11ª Câm. – Rel. Des. MENDES GOMES – J.21.2.2005)” “TUTELA ANTECIPADA – alienação fiduciária – requisitos – verossimilhança da alegação e fundado receio de dano irreparável – ausência – descabimento. Pedido de antecipação de tutela consistente na manutenção da posse exercida sobre o veículo financiado, objeto da alienação fiduciária em garantia, bem como na expedição de ofícios aos órgãos de proteção ao crédito e aos Cartórios de Protesto, para evitar a anotação de qualquer restrição em nome da autora. Ausência dos requisitos legais. Necessidade de prova inequívoca, demonstrando a verossimilhança das alegações da autora, bem como do risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Exegese do artigo 273 do Código de Processo Civil. (AI 880.823-00/0, 8ª Câm. – Rel. Des. RUY COPPOLA – J.3.3.2005 (quanto à revisão contratual)).”

16

Quanto à hipossuficiência, temos como a característica que reside na qualidade do

consumidor que não possui recursos suficientes para litigar em iguais condições. A

Carta Magna estabelece que aquele que provar a insuficiência de recursos

receberá assistência jurídica integral e gratuita. Do contrário, os menos

privilegiados e as pessoas desprovidas economicamente jamais teriam

seu direito analisado pela Justiça. Tal direito foi regulado pela lei

1060/50, com redação nova pela lei 7110/86.

Ao incluir este direito na Carta Magna, o constituinte tacitamente não recepcionou o art.

4º da lei 1060/50. Enquanto a lei entende como pobre aquele que se

declarar pobre, a CF/88 prevê a necessidade de prova efetiva de

insuficiência de recursos, v.g. , por declaração de movimentação da

Receita Federal. Desta forma, em um processo judicial, por ser uma

declaração individual, o legislador exige declaração do próprio

consumidor. Note que o art. 1º da lei 7110/86 exige que haja uma

declaração provando tal condição. Em seguida, em seu art . 2º a lei prevê

sanções civis, administrativas e penas se a declaração for

comprovadamente falsa.

Deduz-se, portanto, que a mera menção em petição formulada pelo

patrono da parte não tem caráter probante, não atribuindo a ele os

benefícios da lei.

Esse tem sido o entendimento apresentado pelos tribunais nacionais:

“Indefiro os benefícios da Just iça Gratui ta uma vez que a Const i tu ição Federal prevê que o ‘Estado pres tará ass is tênc ia jur íd ica in tegra l e gra tui ta aos que comprovarem insuficiência de recursos’ ( inc iso LXXV, caput , ar t .5º ) . A le i nº 1060/50 parcialmente regulamentou a ques tão, e permi t iu em seu ar t igo 5º , que o Juiz indefira o pedido, se t iver fundadas razões. Certo é que as taxas e cus tas de p rocessos estão atre ladas ao pr incíp io da ret r ibut ividade. Caso não sejam custeadas as despesas pelas par tes interessadas, es tas serão suportadas por toda a sociedade, por meio de pagamento de impostos. Es ta t í s t icas das mais var iadas ver tentes dão conta de que a pobreza no Brasi l não abrange indis t in tamente traba lhadores com menor poder aquis i t ivo, lembrando que tratamos de uma p irâmide socia l , em que os paradigmas têm o va lor re lat ivo de acordo com a renda média. E a renda média, a l iás , do b rasi leiro , não chega a tualmente aos R$ 883 ,00, de acordo com recentes est imativas do IBGE, o que leva em conta todo o plexo de t rabalhadores bras i leiros , inc lusive os mais abastados . De outro lado, a grande maior ia da população arca com taxas de fornecimento de água e de energia elétr ica , que versam serviços essencia is . Tendo em vis ta que o réu não preenche o per f i l desta pessoa pobre, indef iro o pedido de concessão dos benefícios da Jus t iça Gratui ta , p r incipalmente porque não comprovou de forma documental sua pobreza na

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acepção jur íd ica do te rmo e porque não trouxe subsíd ios suficientes que permi t i ssem a ver i ficação do perf i l soc ial do réu. Note-se que deve t razer qua li f icação detalhada no plano processual , o que se torna mais enfát ico ao se tratar de pedido de jus t iça gra tui ta . ( . . . )” (6ª Vara Cíve l de Guarulhos - 224.01.2007.032286-0 – Banco I taú S.A. x André Figue iredo Rodr igues – 10/06 /08)” .

Ausentes estas condições, usa-se a regra também nas relações consumeiristas, qual seja,

o ônus de provar incumbe a que alega.

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II – RESPONSABILIDADE

O conceito de responsabilidade surge em razão da necessidade de atribuir a alguém o

ônus de fazer ou não fazer algo, bem como as conseqüências de uma ação ou omissão. É

como se fosse uma capa que paira sobre os ombros daquele que é encarregado de

determinado ato que não realiza ou daquele que se omite diante de uma obrigação de

fazer. Justamente por ser uma “capa”, a depender da situação, pode ocorrer a mudança

de um sujeito para outro.

Para o CDC, o conceito interessa basicamente quando há uma infração ou desrespeito a

uma norma. O autor do dano deve então responder pelas conseqüências prejudiciais de

suas ações. Nas palavras de Maria Helena Diniz7: “A responsabilidade serviria,

portanto, para traduzir a posição daquele que não executou o seu dever”.

Em suma, traduz-se na estreita relação entre atos, conseqüências e responsáveis. O art.

927, CC, assim dispõe: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a

outrem, fica obrigado a repará-lo”.

No caso da Lei Consumeirista, ao dispor sobre responsabilidade nos arts. 12 e ss, o

legislador optou pela teoria que dispensa a comprovação de culpa para responsabilizar o

fornecedor. Sendo assim, comprovada a participação do fornecedor, o dano e o defeito,

o ônus recairá sobre ele. É o que chamamos de responsabilidade objetiva.

Note que, assim como nos demais institutos jurídicos, o legislador previu um prazo para

que esta responsabilidade fosse questionada e a reparação de danos fosse atribuída a seu

responsável. Conforme disposto no art. 27, o prazo é de 5 (cinco) anos contados do

conhecimento do dano e de sus autoria. Passado este período, fica afastada a

possibilidade do consumidor pleitear seus direitos.

Este prazo prescricional não se confunde com os prazos decadenciais previstos no art.

26, CDC: 30 dias para produtos e serviços não duráveis e 90 dias para produtos e

serviços duráveis, ambos contados da entrega efetiva do produto ou o término da

execução dos serviços.

7 Curso de Direito Civil Brasileiro: v.7: responsabilidade civil. 18ª. ed. rev., aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 39.

19

2.1 Causas excludentes

A responsabilidade, porém, não é absoluta e não haverá atribuição de culpa ao

fabricante se ele conseguir comprovar que houve uma excludente. Se o fizer, as

conseqüências da ação ou omissão não recairão contra si.

A doutrina e a jurisprudência não são pacíficas quanto às hipóteses de excludente, vez

que alguns doutrinadores elencam outras possibilidades além das legais.

Encontramos nos §3º do art. 12 e §3º do art. 14, CDC, as hipóteses legais em que o

fornecedor não será responsabilizado quando. Dá-se a excludente quando o fornecedor

provar:

a) que não colocou o produto no mercado;

Seja a que título for, seja gratuito ou não, em caráter definitivo ou teste, o fornecedor

responderá pelos danos que o produto vier a causar.

Entretanto, esta inclusão do produto no mercado deve, necessariamente, ser voluntária e

consciente. Logo, se o produto foi colocado à disposição do público por ter sido

roubado ou furtado da empresa, por exemplo, descabe falar em responsabilidade.

Em razão do alto índice de desrespeito às normas pertinentes ao direito imaterial,

entendemos que também devem ser incluídos nesta excludente os produtos falsificados

ou pirateados que trazem a marca da empresa. É clarividente que o empresário jamais

desejou participar desta relação de consumo e é estranho a ela. Assim, nas esferas civil e

penal quem deve responder pelos defeitos e danos seria somente o vendedor.

b) que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

Os pressupostos da indenização nesta esfera advêm da relação entre defeito e dano. Por

conseguinte, se inexistir defeito que diminua a quantidade ou qualidade, o que faz

desaparecer o dano, não se fala em indenização.

Se inexiste defeito, então o dano é conseqüência de sua má utilização, desde que o

fornecedor prove, entre outras coisas, que forneceu os devidos esclarecimentos.

Fabio Ulhoa Coelho utiliza-se do seguinte exemplo8: “certo desinfetante pode ser tóxico

para pessoas alérgicas. A rigor o produto não apresenta nenhum problema (defeito ou

vício), mas apenas produz efeitos nocivos em determinados consumidores”. Prossegue o

doutrinador: “não é qualquer característica intrínseca à mercadoria ou ao serviço que irá

torná-los mais ou menos seguros, mas sim a suficiência e adequabilidade das

informações prestadas pelo fornecedor”.

8 COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito da empresa. 18ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 96.

20

Deduz-se que cabe ao fornecedor informar as possíveis reações. No caso de riscos

considerados normais e previsíveis (ex: uma faca), não há esta necessidade.

c) a culpa exclusiva do consumidor ou terceiro.

Note que o legislador inseriu a expressão exclusiva, que não se confunde com a

concorrente, ou seja, aquela que rompe o nexo de ação e reação, desaparecendo a

causalidade.

Quiçá parte do folclore das faculdades de direito, citemos o exemplo da senhora que

teria colocado um gato para secar no forno de microondas, que resultou na sua explosão.

Estamos diante de um excludente, vez que o aparelho foi usado pela suposta vítima de

forma indevida para fins não recomendados.

O mesmo se aplica aos chamados surfistas de trem. O contrato de transporte de

passageiros é perfeitamente enquadrado no CDC, recaindo sobre passageiros e

transportadora seus direitos e obrigações. Considerando que a empresa espera que o

passageiro viaje do lado de dentro do trem, todo aquele que clandestinamente se

aventura a viajar do lado de forma está a atrair para si toda e qualquer responsabilidade.

O Código de Proteção suscita a dúvida na doutrina sobre a taxatividade das excludentes.

Grande parte da doutrina defende a tese de que, assim como em outras situações, aplica-

se subsidiariamente o CC. Passemos as teses defendidas:

a) culpa concorrente: o julgador pode se valer da culpa concorrente quando a vítima

conhecia o eventual defeito do produto e mesmo assim fez uso dele. Em razão de o

consumidor ter agido de forma consciente e voluntária, o nexo de causalidade não foi

alterado, mas indubitavelmente houve cooperação para a ocorrência do dano.

Sobre a culpa concorrente, há dois entendimentos. O primeiro no sentido de mitigar a

responsabilidade do fornecedor, pois a própria vítima concorreu para que o resultado

ocorresse, e outro no sentido de isentar o fornecedor de qualquer responsabilidade, sob

pena de se instituir o enriquecimento ilícito.

Possivelmente movido pelo inenarrável espírito paternalista, o magistrado, caso se filie

à primeira corrente, poderá mitigar o quanto da indenização por esta intervenção do

consumidor.

b) caso fortuito e força maior: "a regra no nosso direito é que o caso fortuito e a força

maior excluem a responsabilidade civil. O CDC não os elenca entre as causas

excludentes de responsabilidade, mas também não os nega. Logo, parece-nos que o

21

sistema tradicional não foi afastado neste ponto, mantendo-se então, a capacidade do

caso fortuito e da força maior para impedir o dever de indenizar"9.

E de fato estas hipóteses não poderiam ser descartadas. Conforme o regime

constitucional vigente, a proibição somente advém de lei. Na omissão desta, a regra

conduz à lícitude.

Sobre esta possibilidade, encontramos na doutrina o exemplo da empresa de leite em pó

que tem suas embalagens violadas por um maníaco que inclui veneno ao pó.

Inegavelmente, estamos diante de um exemplo de culpa de terceiro, mas por ser um

acontecimento inevitável e imprevisível, também pode ser classificado como força

maior.

Outra ilustração se refere à responsabilidade do fornecedor de eletrodoméstico.

Contraria o bom senso atribuir-lhe culpa no caso de um raio que gera uma explosão no

aparelho e conseqüente incêndio no apartamento. Não há elo entre o efeito e o dano.

c) normas imperativas e exercício regular de direito: seguindo a linha majoritária dos

exegetas, acreditamos não ser coerente punir o empresário se este agiu exatamente

como determina a lei, ainda que ele causa danos ao consumidor.

Nos limites estabelecidos em lei, encontramos o exercício regular de direito do credor

ver a contraprestação do devedor cumprida. Os eventuais inconvenientes por vezes

pleiteados pelos consumidores, v.g., em indenizações por dano moral em razão da

cobrança de dívidas, são sem dúvida abrangidos por esta excludente.

d) risco do desenvolvimento: inserida nesta gleba de teses não previstas, encontramos a

teoria do risco do desenvolvimento (também conhecido pela sua expressão inglesa

“development risk”).

Nos dizeres de James Marins10:"(...) consiste na possibilidade de que um determinado

produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda

que exaustivamente testado, ante o grau de conhecimento científico disponível à época

de sua introdução, ocorrendo, todavia, que, posteriormente, decorrido determinado

período do início de sua circulação no mercado de consumo, venha a se detectar defeito,

somente identificável ante a evolução dos meios técnicos e científicos, capaz de causar

danos aos consumidores".

Em poucas palavras, representa aquele risco desconhecido mesmo após diversos testes

quando o produto foi colocado no mercado. As conseqüências somente foram

9 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Op. cit., p. 67. 10 MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto. São Paulo: RT, 1993, p. 128.

22

conhecidas após um certo período de uso do produto e do serviço, pois a tecnologia da

época não possibilitou sua descoberta.

Pelo fato de o empresário ter prestado todas as informações de forma adequada e pela

impossibilidade da potencialidade dos riscos ter sido antevista, entendemos que esta

seria uma causa excludente de responsabilidade, pois ultrapassa a ciência e a pesquisa.

Ressalta-se que a infração penal tipificada no art. 64, CDC (“deixar de comunicar à

autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos

cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado”), não colide com a tese

apresentada.

Somente se busca punir aquele empresário que descobriu o defeito após a colocação no

mercado e se calou. Não é esta a linha que estamos a defender.

Ainda que tais fatores não foram prevenidos, afinal eram desconhecidos, o art. 12, § 3o,

CDC não adotou a teoria do risco do desenvolvimento como causa eximente de

responsabilidade civil.

e) previsão contratual: consiste na livre disposição das partes de eximir a outra da

responsabilidade de prejuízos decorrentes da obrigação. Os riscos ficam a cargo da

vítima.

Há grande discussão sobre a validade desta cláusula. Todavia, em respeito ao princípio

da autonomia da vontade, excluídas as situações em que houver vício, ilicitude do

objeto ou conflito com ordem pública, defendemos sua viabilidade, ainda que contrarie

o interesse social.

23

III – PRÁTICAS COMERCIAIS

A livre concorrência é mais do que apenas não impedir a abertura de novas empresas ou

impedir o surgimento de cartéis. É na verdade permitir que o mercado construa suas

próprias regras e somente admitir a intervenção estatal quando houver dano ainda que

potencial. A prática comercial é lícita, alimenta o mercado de consumo, divulga bens e

serviços e distribui a riqueza.

Ao nos depararmos com seu exercício, devemos analisar a abusividade sob a ótica da

transparência e liberdade para que se evidencie se realmente há vício. Isso inclui, entre

tantas outras, a maneira de expor e negociar um produto ou um serviço, a forma de

cobrar uma dívida e a administração dos registros de devedores inadimplentes.

O art. 39, talvez a parte mais importante do capítulo V do CDC, tem um rol aberto, pois

seria impossível prever todos os abusos que o comerciante pode cometer. Essa é a razão

para encontrarmos em seu caput a expressão “dentre outras”.

Para que não corramos o risco de mover uma demanda sem pedido ou sem interesse de

agir, façamos uma leitura mais ampla das hipóteses previstas no dispositivo

mencionado.

É o que encontramos, v.g., no inciso I do artigo, que prescreve ser proibido “condicionar

o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço,

bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

Ao condicionar a venda, o fornecedor retira do consumidor um de seus direitos básicos:

a livre escolha, o que torna o negócio anulável11.

Recentemente a maior empresa de computação do mundo sofreu um processo sob a

alegação de que estaria a fornecer produtos condicionados a outros. Ocorre que, em

razão da tecnologia usada ser de ponta, não há outra empresa que consiga produzir

produtos compatíveis. Logo, caso o consumidor compre o computador ‘z’ terá que

comprar o programa ‘z’. Caso contrário, seu aparelho não irá funcionar.

Em uma simples exegese do inciso lemos que se houver uma justa causa, não é vedada a

venda condicionada. O exemplo acima expressa exatamente isto.

O que se busca coibir é, por exemplo, a situação em que ‘X’ precisa contratar a abertura

de uma conta-corrente, mas para fazê-lo o gerente lhe impõe, como condição a

11 Encontramos igual disposição na resolução BACEN 2878/01: art. 17 - É vedada a contratação de quaisquer operações condicionadas ou vinculadas a realização de outras operações ou a aquisição de outros bens e serviços.

24

contratação de um seguro de vida. Em juízo, ‘X’ pode requerer a declaração de nulidade

do contrato de seguro, pois foi contratado em razão de uma venda casada.

Sobre este segundo exemplo há ainda divergência quanto à devolução de todos os

valores pagos pelo seguro de vida, vez que foi obrigado a assiná-lo. Se o cliente tivesse

sofrido algum dano no período assegurado certamente exigiria o recebimento da

indenização. Logo, ao rescindi-lo, não seriam devidos os valores do período em que

gozou do benefício.

Outro inciso muitas vezes mal-interpretado é o III, que se refere ao que denominamos

mala direta. Afirma ser vedado “enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação

prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”.

Mais adiante no art. 40, parágrafo único, lemos que “os serviços prestados e os produtos

remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se

às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento”.

Daí conclui-se que a abusividade não está em enviar produtos ou fornecer serviços sem

que haja solicitação. O problema surge no momento em que o fornecedor tentaria

obrigar o consumidor a pagar por ele. Esta sim é a conduta que se visa coibir.

A lei equipara este produto ou serviço à amostra grátis, inexistindo obrigação de

pagamento por ausência de vontade do cliente. Isto vale para cartões de natal, produtos

de estética, revistas periódicas, etc.

Entretanto, ao tomarmos como exemplo o envio de um cartão de crédito, vislumbramos

uma situação diversa. Aquele que o recebe não está obrigado a pagar a anuidade, mas ao

fazer uso dele expressa sua vontade. Neste momento o contrato se perfaz e nasce uma

contraprestação, qual seja, o dever de pagar os débitos nos termos do contrato.

3.1 Dano moral na cobrança de dívidas

Novamente partindo de uma premissa lícita, o legislador restringe um direito ao

descrever seus limites. Da mesma forma que a publicidade, os contratos de adesão e as

práticas comerciais, a cobrança de dívidas é lícita e autorizada pelo ordenamento. Não o

fosse, por que razão os devedores adimplentes honrariam seus compromissos se não

pudessem ser compelidos a fazê-lo?

O Código de Proteção do Consumidor não proíbe a cobrança em si, conduta legítima do

credor. Ele apenas veda a cobrança vexatória, indevida, abusiva cujos limites estão

previstos no art. 160, I do CC/1916, trazidos pelo Novo Código no art. 188, I, que

prescreve: “não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício

regular de um direito reconhecido”.

25

Tal qual no direito constitucional de permanecer calado (art. 5º, LXII, CF), ninguém

pode ser punido por exercer um direito, neste caso o de cobrar. A punição só é justa

quando fica provado que houve excesso em seu exercício.

Rotineiramente nos deparamos com casos de inadimplentes que se sentem ameaçados,

constrangidos, com seus direitos violados quando recebem uma comunicação de dívida.

As proibições legais referem-se às exposição ao ridículo (ex: recados com colegas de

trabalho), constrangimento (ex: aluno ser impedido de fazer prova) e ameaça física ou

moral (ex: ver fechado o balão de oxigênio que mantém vivo o paciente sem recursos).

As demais formas de cobrança são lícitas e não geram justificativa para reparação por

danos morais. Ademais, a mesma Constituição que prima pela proteção do consumidor

(art. 5º, XXXII), garante ao fornecedor o direito de ver apreciado pelo Judiciário as

demandas que exigem a intervenção estatal (art. 5º, XXXIII e XXXIV).

O Diploma Consumeirista, na verdade, apenas exige do credor lisura e discrição. É

prudente que antes de iniciar um processo de cobrança, o fornecedor tome alguns

cuidados como, por exemplo, não cobrar dívida indevida, sob pena de ter que restituir o

valor pago em dobro, com correção e juros, salvo hipótese de engano justificável, v.g.,

homônimos que fizeram uma compra de valor semelhante no mesmo local.

No ato de informar o devedor a existência de débitos, não se admite, v.g., o envio de

correspondência com dizeres em vermelho na parte de fora do envelope “cobrança -

urgente”. Os demais passos judiciais são públicos e dispensam quaisquer delongas. Uma

vez que se tornou inadimplente, o consumidor deu causa à cobrança, tornando-a justa e

devida.

Uma outra ferramenta colocada à disposição do credor é a inclusão do nome do devedor

nos órgãos de proteção ao crédito. A depender dos valores da dívida, os efeitos de uma

inadimplência podem prejudicar diversas entidades financeiras ou creditícias do

mercado. Justamente para evitar este risco, permite-se que a inclusão no SPC (Serviço

de Proteção ao Crédito) e a SERASA (Centralização dos Serviços dos Bancos).

Registre-se que ainda que o devedor ingresse com uma ação judicial e pleiteie em

caráter liminar a exclusão de seu nome, o pedido somente será plausível se a ação

questionar o valor cobrado tiver lastro em sólida jurisprudência dos tribunais superiores

e vier acompanhada do depósito do valor considerado incontroverso.

Este entendimento vem acompanhado da majoritária jurisprudência, a saber:

“EMENTA: Civil. Serviços de proteção ao crédito. Registro no rol de

devedores. Hipóteses de impedimento. A recente orientação da Segunda Seção

26

desta Corte acerca dos juros remuneratórios e da comissão de permanência

(Resp’s nº 271.214-RS, 407.97-RS e 420.111-RS), e a relativa freqüência com

que devedores de quantias elevadas buscam, abusivamente, impedir o registro de

seus nomes nos cadastros restritivos de crédito só e só por terem ajuizado ação

revisional de seus débitos, sem nada pagar ou depositar, recomendam que esse

impedimento deve ser aplicado com cautela, segundo prudente exame do juiz,

atendendo-se às peculiaridades de cada caso.

Para tanto, deve-se ter necessária e concomitantemente, a presença desses três

elementos: a) que haja ação proposta pelo devedor contestando a existência

integral ou parcial do débito; b) que haja efetiva demonstração de que a

contestação da cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em

jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal ou do Superior

Tribunal de Justiça; c) que, sendo a contestação apenas parte do débito, deposite

o valor referente à parte tida por incontroversa, ou preste caução idônea, ao

prudente arbítrio do magistrado.

Código de Defesa do Consumidor veio amparar o hipossuficiente, em defesa de

seus direitos, não servindo, contudo, de escudo para perpetuação de dívidas.

Recurso conhecido pelo dissídio, mas improvido”.

E justamente por ser um direito do credor, é infundada a tese de indenização por danos

morais. Como dissemos, é o exercício regular de seu direito. Faz-se mister transcrever o

entendimento já pacificado nos tribunais pátrios:

“INDENIZAÇÃO –Dano moral – inadimplência – execução – ato ilícito. A execução de título vencido e a denúncia ao serviço de proteção ao crédito constituem exercício regular de direito do credor, o que obsta a propositura de pedido reparatório, já que não há ato ilícito. TAMG, Ap. Civ.nº 126.630-0, 4ª Câm.Cív., Rel. Juiz Ferreira Esteves, ac. Unânime de 13.5.92, in JUIS – Jurisprudência Informatizada Saraiva, CD-Rom nº 9 – 3º trimestre/97”.

A palavra indenizar deriva do latim “dene”. Busca restaurar a situação ao momento

anterior ao ato ilícito, ao dano. Como não se pode voltar no tempo, compensa-se a

ofensa por dinheiro. Contudo, se não houve ato ilícito, não há o que ser compensado,

indenizado.

27

IV – CONTRATOS

Segundo a doutrina mais clássica, contrato é acordo de vontade. Nas palavras de

Aurélio Buarque de Holanda, “é o acordo entre duas ou mais pessoas que entre si

transferem direito ou se sujeitam a uma obrigação”.

As pessoas se obrigam a cumprir uma determinada ação ou omissão em razão de lei ou

de contrato. Aqui se incluem os contratos de adesão e, assim como os demais, depois de

acordado, resulta em ato jurídico perfeito.

Na hipótese de uma das partes discordar das condições oferecidas pela outra parte, cabe

àquela não aceitá-las. Afinal, ninguém está obrigado a contratar. A Carta Maior é

taxativa neste sentido ao incluir no rol do art. 5º, XX, que “ninguém poderá ser

compelido a associar-se ou permanecer associado” e art. 8º, V, “filiar-se ou manter-se

filiado”. Valemos-nos de simples analogia para corroborar o raciocínio exposto.

Todavia, o que a lei, o Direito e a sociedade não podem conceber é a instabilidade de

um acordo em que o consumidor solicita os serviços de uma empresa, por entender que

eles são interessantes, cômodos e viáveis e, após receber a prestação, questionar a

validade da contraprestação. Isso seria admitir e oficializar o enriquecimento ilícito, ou

seja, o acréscimo de bens em detrimento de outrem sem que haja fundamento jurídico.

Em que pese alguns juristas defenderem a idéia de que a Teoria da Imprevisão (a ser

abordada neste capítulo) se contrapõe à obrigatoriedade do contrato firmado e daria

lastro aos direitos do consumidor, tais como a revisão, entendemos que ela na verdade

somente confirma a sua responsabilidade.

Não seria justo que o consumidor se vinculasse a um contrato que não assinou, seja pela

alteração de cláusulas e índices, seja pela alteração da situação em que foi formalizado.

Ele somente se vincula àquele que desejou. Logo, caso não haja qualquer destas

situações e o contrato seja executado exatamente nos moldes iniciais, não há que se

falar em alteração.

Talvez o tipo de contrato mais discutido sobre sua obrigatoriedade, descumprimento de

seus termos e abusividade é o descrito no art. 54 e §§, CDC. Diz a lei:

“Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.

28

Em suma, contrato de adesão é aquele cuja elaboração das cláusulas compete à apenas

uma das partes. A outra somente o assina e, ao fazê-lo, demonstra sua vontade e ratifica

o ato.

Entendemos que se esta espécie de contrato fosse ilegal, o legislador teria prescrito. Se

não o fez, presume-se legal. As partes o assinam e após sua celebração estão vinculas a

ele, somente se excepcionando se for comprovado que houve alguma espécie de vício:

erro, dolo, coação, lesão, fraude, etc.

Esta obrigatoriedade irreversível em razão da palavra dada é traduzida na máxima latina

“pacta sunt servanda” – o contrato faz lei entre as partes. Sua revisão por meio de um

processo judicial é um contra-senso, vez que sua adesão foi de livre e espontânea

vontade. Por esta razão o pedido de revisão carece de interesse processual.

A título de exemplo, verifiquemos um contrato de arrendamento mercantil (“leasing”).

O consumidor escolhe o carro, procura uma instituição financeira e o indica para a

arrendante (banco). Este lhe oferece as condições, tais como valores e datas de

pagamento para a contraprestação. O cliente analisa e aceita, retira o carro e o mantém

em posse direta, enquanto o banco detém a propriedade e a posse indireta.

Teria sido a vontade do legislador dar a este consumidor o direito de obter uma liminar

para discutir judicialmente a validade deste contrato, para não pagar as parcelas até que

haja transito em julgado? Enquanto isso, como fica o crédito e o capital disponibilizado

pelo banco? O Código Civil não isenta o consumir de agir de forma correta, senão

vejamos: “Art. 422, CC. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão

do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Nesse sentido decide a jurisprudência:

“CONTRATO – Cláusulas contratuais – Pedido judicial para modificação de seu conteúdo – Inadmissibilidade – Justificação da Intervenção Judicial para decretação da nulidade ou resolução da avenca. O princípio da intangibilidade do conteúdo dos contratos significa impossibilidade de revisão pelo juiz, ou de liberação por ato seu. As cláusulas contratuais não podem ser alteradas judicialmente, seja qual for a razão invocada por uma das partes. Se ocorrerem motivos que justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação da nulidade ou da resolução do contrato, nunca para a modificação de seu conteúdo. (RT 714/163)”

Soma-se ainda o disposto no art. 51, incisos X e XIII, que considera nulas as cláusulas

que “permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira

unilateral” ou que “autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a

qualidade do contrato, após sua celebração”. A contrário senso, as tentativas de

alteração unilaterais por parte do consumidor também devem ser consideradas nulas.

29

As hipóteses de excepcionar o “pacta sunt servanda” não podem ser banalizadas.

Parece-nos que não foi essa a intenção do legislador. Admitir esta alteração unilateral

infundada é rasgar todo o Diploma Consumeirista e sobretudo distorcer o princípio

regulador do código, qual seja, a boa-fé.

4.1 A validade do “pacta sunt servanda” e a teoria da imprevisão

O“pacta sunt servanda” é um marco regulador das relações contratuais. Se por um lado

ele somente atinge os contratantes, por outro ele cria uma obrigação que vale como lei

para as partes.

Este conceito é refletido no princípio de que o contrato é intangível, a menos que ambas

as partes o rescindam voluntariamente ou haja a escusa de caso fortuito ou força maior.

Leciona Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro12:

“Fora dessas hipóteses, ter-se-á a intangibilidade contratual. Esse princípio da força obrigatória funda-se na regra de que o contrato é lei entre as partes, desde que estipulado validamente (RT 543:243; 498:93), com observância dos requisitos legais. Se os contratantes ajustarem os termos do negócio, não se poderá alterar seu conteúdo, nem mesmo judicialmente, qualquer que seja o motivo alegado por uma das partes, e o inadimplemento do avençado autoriza o credor a executar o patrimônio do devedor por meio do poder judiciário, deste que não tenha havido força maior ou caso fortuito”.

Segundo Orlando Gomes13, o direito contratual deve ser visto à luz de quatro princípios:

autonomia da vontade, consensualismo, força obrigatória e boa-fé. Se os contratantes

aceitaram livremente as condições, ainda que desvantajosas, não cabe ao Judiciário a

libertação desta obrigação.

A liberdade na contratação na forma de contratação é elemento essencial, com mais

importância quando nos deparamos com relações particulares. Assevera o criador do

projeto do CC de 1916:

“O modo, pelo qual se manifestam as partes não tem forma rigorosa, em geral. Qualquer que seja a forma, o contrato gera obrigações salvo se a lei exige forma especial, ou as partes convencionam estabelecê-la. A manifestação da vontade pode ser tácita, quando a lei não exige que seja expressa. A expressão poderá constar de algum escrito, de palavra oral ou de gesto. Qualquer porém, que seja o modo de manifestar a vontade, nos contratos, deve ser inequívoco. O consentimento não se presume. É tácito, quando se induz, claramente, de atos que não seriam praticados, sem o ânimo de aceitar a situação criada pelo contrato” (Clóvis Beviláqua - Código Civil dos Estados Unidos do Brasil).

12 Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º volume, 8ª ed. aum. e atual, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 57. 13 Contratos, 7ª ed. São Paulo: Forense, p.144

30

As cláusulas estão para o contrato como os parágrafos estão para a lei. As partes devem

honrar com sua obrigação exatamente da maneira como foi acordado. Justamente para

que o fornecedor, dito parte mais forte na relação, não obtivesse vantagem sobre o

consumidor, o legislador descreveu como nulas as cláusulas que: “Art. 51 - XIII -

autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do

contrato, após sua celebração.”

Se a alteração unilateral é nula para o fornecedor, também o é para o consumidor.

Qualquer modificação deve passar pela manifestação volitiva das partes para que possa

integrar o contrato, sob pena de ser uma alteração arbitrária.

A atribuição típica do Poder Legislativo é criar normas, ao passo que a do Poder

Judiciário é executá-las. Para que se possa garantir a segurança jurídica das relações

comerciais de maneira séria e equilibrada, faz-se mister que estas parcelas do Poder

coexistam de forma pacífica. Os magistrados não devem ignorar os contratos celebrados

conforme a lei vigente. Certamente haverá prejuízo na confiança e na expectativa do

meio social.

Diante deste quadro, qual seria a aplicação da relativização do “pacta sunt servanda”?

A resposta inicia no estudo do art. 104, CC, que dispõe:

“A validade do negócio jurídico requer:

I – agente capaz;

II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III – forma prescrita ou não defesa em lei.”

Se houver desrespeito a estes elementos, o contrato não irá gerar efeito para as partes,

independentemente do que foi acordado. Neste ponto se enquadram, por exemplo, os

contratos celebrados com menores de idade, aqueles que tenham como objeto

substâncias entorpecentes ou que negociem herança de pessoas vivas.

Também não obrigará os contratantes aquelas obrigações que forem alteradas por razões

externas a ponto de torná-las inviáveis. Esta correção é um direito básico do consumidor

previsto no art. 6º, V, CDC, a saber: “V - a modificação das cláusulas contratuais que

estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos

supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Encontramos na doutrina o exemplo dos contratos celebrados na década de 90 que

tinham como lastro a moeda americana. A variação ocorria em razão do dólar. Em

janeiro, v.g., o consumidor pagava R$ 300,00 (o equivalente a U$ 100,00). No mês

31

seguinte poderia pagar R$ 290,00 ou R$ 310,00. A oscilação respeitava uma margem

admissível.

Devido a fatores político-econômicos, em menos de 24 horas, o dólar aumentou de R$

1,00 para R$ 2,00, o que fez com que milhares de pessoas tivessem seu orçamento

absolutamente prejudicado. Não é plausível exigir de alguém que pagava sua

contraprestação entre R$ 290,00 e R$ 310,00, passar a pagar no mês seguinte R$

600,00, ou seja, o dobro.

Para garantir os interesses coletivos14, o Ministério Público e o Poder Judiciário

relativizaram as conseqüências geradas nestas obrigações. Todos os envolvidos se

beneficiaram: os bancos não ficaram à mercê de inadimplentes e da enxurrada de

mandados de segurança e liminares, os consumidores puderam cumprir com suas

obrigações e o Estado interveio para garantir a segurança jurídica necessária.

Note que a variação mencionada acima estava prevista no contrato e foi aceita pelas

partes. Em um mês o cliente bancário lucrava R$ 10,00 e no outro quem lucrava era o

banco. A relativização se faz necessária quando ocorram “fatos supervenientes que as

tornem excessivamente onerosas”. Foi o que houve.

Uma outra situação em que o legislador suavizou a maneira de cumprir com o

compromisso é a descrita no art. 46, CC. Prescreve a lei:

“Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.

Nas duas hipóteses citadas acima, a não obrigatoriedade do consumidor advém da má-fé

do fornecedor que por alguma razão tenta tirar proveito ilícito da relação. Logo, ainda

que tenhamos um contrato válido, o consumidor somente estará obrigado a responder

pela parte lícita ou pela que teve conhecimento e anuiu.

14 Interesses ou direitos coletivos são os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (art. 81, parágrafo único, II do CDC).

A lei indica como titulares desses interesses ou direitos coletivos pessoais determináveis. Isto quer dizer que as pessoas podem até não ser determinadas em um dado momento, mas existe a possibilidade de serem. Não é como nos direitos difusos, que como acabamos de estudar, esta possibilidade de identificação, ainda que “a posteriori”, inexiste.

Estas pessoas estão solidariamente relacionadas por um liame, uma ligação, de ordem formal, jurídica. É a chamada relação jurídica base. Elas estão ligadas entre si ou com a parte contrária, como veremos logo a seguir.

A situação a que estas pessoas estão expostas é indivisível, é coesa, ou seja, o resultado será igual para todo o grupo.

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Este é o alcance da relativização do “pacta sunt servanda”. Se não houve boa-fé de

uma das partes ou se não se respeitou a lei, o contrato não obriga as partes. Contudo,

fora estas hipóteses, a revisão contratual imposta por uma das partes traduz-se em

abusividade.

A obtenção do lucro é absolutamente legal e inerente à atividade comercial. Por esta

razão que os bancos entregam um valor e recebem outro maior. Essa diferença é o

próprio espírito da atividade creditícia e a revisão, por vezes requerida pelo particular e

concedida pelo Judiciário, vai de encontro a esta lógica, criando enormes prejuízos à

economia e à sociedade.

Diferentemente do exemplo mencionado acima, muito se discute sobre o reajuste sobre

os valores de planos de saúde frente o estatuto do idoso (Lei 10.741/03). Alguns

consumidores pleiteiam isenção do reajuste da mensalidade de cerca de até 185% do

contrato firmado após o cliente completar 60 anos.

Note que a cláusula que prevê esta alteração está expressa no contrato. Seu termo não

deve ser visto como fato superveniente, pois de fato não é. Em recentes julgamentos, os

ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros defenderam esta posição.

Os contratos desta natureza são de risco e este deve ser suportado pelas partes de igual

maneira. Cabe ao consumidor pagar e dispor (usando ou não) dos serviços de saúde, ao

passo que a empresa vê aumentados os seus custos e recair sobre si o ônus de manter

inalterada a prestação do serviço. Neste sentido têm decidido os tribunais pátrios:

“(...) Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei (retroativa mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva (...) - (STF – ADI 493 – DF Tribunal Pleno – Rel. Min. Moreira Alves – Publ. em 4-9-92)” “ESTATUTO DO IDOSO – EFEITOS RETROATIVOS – IMPOSSIBILIDADE. Os reajustes das mensalidades do plano de saúde, em razão de mudança de faixa etária, desde que expresso no contrato, não configuram abusividade, nos termos da Lei nº 9.656/98. Não verificada abusividade ou ilegalidade da cláusula de reajuste por faixa etária, os pedidos anulatório e consignatório devem ser julgados improcedentes. O Estatuto do Idoso não pode produzir efeitos retroativos para alcançar situação já consolidada sob a égide de uma ordem jurídica anterior. (TJ – MG – Ap.Civ. 1.0024.04.261889-2/002 – 14ª Câm.Civ. - Rel. Des. Renato Martins Jacob – Publ. em 30-3-20007)”

As empresas questionam a validade da revisão, face o disposto no art. 6º da LICC,

diante do princípio da retroatividade das normas, e art. 15 da lei 9.656/98 c/c art. 1º da

Resolução 6/98 do CONSU, vez que os reajustes estavam previstos.

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Esta alteração unilateral requerida pelo consumidor é arbitrária e fere o ato jurídico

perfeito e o negócio jurídico, pois, por amor ao argumento, ainda que houvesse qualquer

correção a ser feita, os contratos foram celebrados nos termos da legislação vigente e a

esta ordem jurídica é que eles devem respeito.

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V – A NOVA EMPRESARIALIDADE

5.1 O CDC à luz da nova empresarialidade

Das lições recebidas do professor Adalberto Simão Filho15 notamos que houve uma

sensível mudança na maneira como a atividade empresarial deve (ou deveria) ser vista.

Em uma análise que ultrapassa as linhas frias da lei, vislumbramos na expressão

“empresarialidade” a atividade empresarial em movimento.

Ao mesmo tempo em que a empresa atrai para si a responsabilidade de seus atos perante

terceiros, sua atividade gera renda para si e para outros, diversos negócios são feitos em

razão de sua existência e não só o empresário, mas toda a comunidade ganha com o

comércio desenvolvido.

Em um simples paralelo com o Direito Trabalhista, valemos-nos dos dizeres de Cássio

Mesquita de Barros, que comenta sobre a visão equivocada de parte da magistratura16:

“O juiz trabalhista é rígido na aplicação da lei e quer dar razão ao reclamante de

qualquer jeito. Vê um sujeito poderoso e diz: 'Esse tem que pagar'”.

Esta postura que anteriormente classificamos de extremamente protecionista, vem na

contramão da justiça (do latim “juris dicta” – dizer o direito) e retira da relação

justamente aquilo que se propõe: a imparcialidade e o equilíbrio.

A Carta Magna de 1988 trouxe alguns aspectos subjetivos sobre a propriedade, cujo

conceito é refletido nos estudos de Roberto Senise Lisboa, que leciona: “... a

propriedade, inclusive a empresarial, deverá realmente atender a sua função social,

sendo exercida a atividade de fornecimento de produtos e serviços no mercado de

consumo em um sistema econômico no qual prevalece a livre concorrência sem o abuso

da posição dominante de mercado, proporcionado-se meios para a efetiva defesa do

consumidor e a redução das diligências sociais”17.

Sob pena de se tornar um país demasiadamente intervencionista, a Constituição prevê a

livre concorrência no mesmo ato em que impede que o empresário utilize sua

propriedade de maneira maléfica.

Nesta inclusão no ordenamento jurídico, o constituinte reconheceu a importância da

atividade para toda a população local. Em que pese o lucro estar associado à

empresarialidade, a finalidade maior que se busca é a da atividade econômica de

15 Dir.: Curso de Dir. Cent. Univ. Fac. Metrop. Unidas – UniFMU, São Paulo, a.17, 2003, passim. 16 Revista Visão Jurídica n 27, ISSN 1809-7170, p. 10. 17 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.16.

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maneira organizada. Frise-se que ainda que a finalidade fosse o lucro em si, não haveria

irregularidade alguma, haja vista não se tratar de uma atividade vedada.

Da mesma forma que os diplomas modernos são dotados de aspectos humanísticos,

cabe uma interpretação mais ampla do CDC, sob pena de inviabilizar a atividade

comercial. Esta compreensão tem reflexos quando nos deparamos com a idéia

preconcebida da hipersuficiência do fornecedor, que, por vezes, gera indenizações

demasiadamente desproporcionais e incompatíveis com o mercado.

Das lições de Alfredo Rocco extraímos que o estabelecimento comercial não se limita a

uma simples soma do capital e trabalho, mas sim da soma capital e trabalho com a

finalidade produtiva. Afirma o autor18 que “a organização dos vários elementos da

produção atinge um certo grau de eficiência, o valor do complexo organizado é superior

ao da soma dos diferentes elementos que o compõem”.

Entre estes elementos encontramos os bens incorpóreos (marca, sinais, direito ao ponto,

serviços prestados), aviamento19, clientela, nome, reputação, etc. Muito embora esses

elementos não possam ser expressos em números, ao medirmos a dimensão da empresa,

certamente eles estão incluídos. O mesmo se dá com o passivo.

Ocorre que, ao decidir pelo pedido por vezes infundado e desmedido feito pelo

consumidor em juízo, o magistrado não considera o que é patrimônio, o que é líquido e

qual dimensão do dano. Simplesmente soma os valores apresentamos, os confronta com

a dimensão conhecida da empresa e, distanciando-se de sua função típica ao se esquivar

da possibilidade de flexibilização da norma, presenteia particulares com indenizações

volumosas. Esse seria o objetivo da norma?

O protecionismo do Diploma em estudo não pode desconsiderar os princípios éticos, de

boa-fé e de bons costumes, quiçá mais subjetivos, mas não menos importantes. O

mesmo se dá quando indagamos sobre a possibilidade de se pedir indenização de um ato

de ente público. Ora, se o ato foi da entidade, não é plausível que toda a sociedade seja

punida. Afinal, o dinheiro que o ofendido receberá advém dos cofres públicos.

Ademais, se o dano foi causado por ato do administrador enquanto pessoa, a disciplina

deveria recair sobre este e não sobre a sociedade. Frise-se que não estamos a defender a

deturpada tese da desconsideração da personalidade jurídica, que por sinal nos opomos.

Diversos são os casos em que esta matéria é levantada como preliminar. O legislador foi

claro ao prever as suas hipóteses, quais sejam, quando houver abuso de direito, excesso

18 ROCCO, Alfredo. Princípios de direito comercial. Campinas, LZN, 2003. p.310. 19 Aviamento é a aptidão para a lucratividade que é gerada pela organização pontual do complexo de bens materiais e imateriais e dos fatores de produção pelo empresário.

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de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou do contrato social

ou falência. Na ausência destas hipóteses, o afastamento da personalidade jurídica é

indevido.

A discussão que se busca provocar refere-se ao nascimento da política do dano moral

amplamente difundida na América do Norte. Já se pagou indenizações para um

assaltante que pulou o muro da casa e bateu a cabeça no chão em razão de não haver

piso antiderrapante, também para a para-normal que perdeu seus poderes em um exame

de raio-x em uma clínica médica, entre outros absurdos.

Se houve crime, que o Judiciário aplique a pena ao culpado; se houve infração

administrativa, que se proteja a sociedade de eventuais danos futuros; se houve dano

material, que se corrija os efeitos do ato. Porém a sociedade brasileira deve refletir sobre

a forma equivocada que o fornecedor ainda é visto.

Debrucemos-nos por um instante sobre o conceito de indenizar. Do latim “dene”, o

instituto traz a idéia de reparar a situação ao momento anterior ao dano. Todavia, a

culpa presumida que acompanha o fornecedor por vezes dá ao consumidor um direito

que ele não tinha ou o coloca em clara oportunidade de enriquecimento sem causa.

5.2 A valoração da ética e da moral

Com maestria e em poucas linhas Renato Nalini define ética como “a ciência do

comportamento moral dos homens na sociedade”20.

Ao discorrer sobre o tema, o jurista Brito Filomeno traz à baila: “a preocupação com a

Ética, seja em sua conotação filosóficos-social, seja profissional, deve permear e

delimitar os objetivos globais e parciais de um programa de marketing social de forma

que, entre os instrumentos adequados, possa encontrar-se a constante informação sobre

a empresa”21.

Uma prova de que o legislador primou pelo respeito à dinamicidade das relações é o

chamado “recall”. Se para o consumidor ele é um direito, para o fornecedor trata-se de

uma oportunidade de corrigir eventuais desconformidades, manter a qualidade de seus

produtos e serviços, ratificar sua imagem e marketing e, claro, garantir a segurança do

negócio jurídico.

20 Ética geral e profissional, 3ª ed. São Paulo: RT, 2001, p.36. 21 FILOMENO, José Gerado Brito. Op.cit., p. 38.

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Dentro deste conceito denominado Nova Empresarialidade, a falta de ética, a

despreocupação com o meio ambiente e com a imagem da empresa são exceções. O

empresário competente, comparado ao bom pai de família (“bonus pater familiae”),

não pode ser equiparado ao mero comerciante de não prima pelo desenvolvimento

social e finge desconhecer sua função social.

Nas palavras de Javier Fernandez Merino encontramos que: “la empresa es el elemento

fundamental de la economia moderna, al haberse convertido em instrumento

imprescindible para la realización de las actividades mercantiles e industriais em masa

o em serie. La empresa es um elemento de la organización económica sometida a um

régimen jurídico integrado por várias disciplinas (laboral, hipotecario, fiscal, etc).22”

Fatos recentes como o desmoronamento de um prédio no Rio de Janeiro em 1998 (no

qual se usou areia da praia), o rompimento do piso nas obras da estação de metro

Pinheiros em São Paulo (no qual se suspeita que houve supressão dos critérios de

segurança em nome de uma pressa por fatores políticos) e a fraude nos prédios

prometidos e pagos que não foram construídos na capital paulista, não devem cair no

esquecimento na nação.

Aquele fornecedor de produtos e prestador de serviços que tenta esquivar-se do ônus

que lhe compete e pratica atrocidades sociais deve ser punido severamente. Essa é a

justiça que se busca.

Em contrapartida, a empresa que celebra um contrato com um particular, expõe todos os

fatores, obrigações e contraprestações, fornece uma via dos termos e vê sua proposta ser

ratificada pelo consumidor, não pode ficar ao acaso e aos desmandos do Judiciário.

Tal qual a ética nas relações particulares, o respeito pelo ato jurídico perfeito válido e

desprovido de vício, deve ter suas exceções reduzidas ao limite plausível. Do contrário,

todos os negócios jurídicos dependerão de homologação judicial para se ter validade, o

que geraria prejuízos para o comércio e a sociedade.

22 apud MERINO, Javier Fernandez. “Temas de derecho mercantil”, Madrid: Dykinson, 1997, p.35.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realidade mudou. O consumidor conhece e exige seus direitos. O empresário já não

comete erros primários, não se sujeita a qualquer irregularidade em nome do lucro e

respeita a sociedade, o meio ambiente e o consumidor. Nessa nova ótica, o Judiciário

deve dar à empresa o valor que de fato tem, sob pena de colocar toda a sociedade em

risco.

A expressão efeito dominó se faz mais clara no exemplo de uma empresa tabagista que

é condenada a pagar uma indenização milionária, mesmo tendo apresentado todos os

riscos normais do consumo do produto.

A depender do valor da condenação e da situação financeira da empresa que, frise-se,

cumpriu com sua obrigação legal, pode haver a falência. Neste quadro, o empresário vê

seu negócio descarrilar, o comércio vinculado a ele segue no mesmo sentido, seus

vendedores não tem para onde destinar o estoque, os empregados são demitidos, etc. Os

fatos exigem de nós uma visão macro.

Com a realidade trazida pela função social da empresa, o lucro deixou de ser o único

elemento norteador, que, aliás, é sensivelmente maior quando o empresário agrega

atividades sociais, culturais e outras relacionadas ao meio ambiente.

Por todo o estudo apresentado, concluímos que a compreensão sobre o princípio da boa-

fé objetiva deve permear toda e qualquer relação contratual. Este é o padrão de conduta

que se espera dos contratantes.

O respeito à ordem jurídica se dá quando as partes negociam pensando no outro lado da

relação como um parceiro, que da mesma forma se esquiva de atos não leais, abusivos e

que possibilitem desvantagens excessivas.

Logo, aquele que violar a boa-fé objetiva (o padrão de comportamento esperado pelo

parceiro contratual) ou qualquer um dos deveres anexos ao contrato criados por ela

(dever de cuidado, de cooperação e de informação), está atuando com abusividade, seja

ele consumidor ou fornecedor.

Concluindo o raciocínio, sem a pretensão de esgotar a matéria, mas apenas no desejo de

somar elementos para a discussão, acreditamos ter conseguido dar nossa contribuição

para uma mais ampla compreensão sobre o tema. Quiçá a nomenclatura mais correta

seria Código de Defesa da Relação de Consumo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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