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Artigo 1. Introdução; 2. O conceito de cultura; 3. A questão da cultura nas organizações; 4. Cultura e relações de trabalho em uma empresa estatal; 5. As estórias de coragem e o nascimento dos heróis; 6. O mito da grande fam/7ia; 7. Comentários finais. Estórias, mitos, heróis - cultura organizacional e relações do trabalho Maria Tereza Leme Fleury Professora livre-docente na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo Rev. Adm, Empr. 1. INTRODUÇÃO Nos últimos anos, os trabalhos sobre o campo simbólico têm-se multiplicado nas mais diversas áreas do conheci- mento, assumindo importância crescente inclusive na ad- ministração. 1 Na perspectiva mais comumente adotada por adminis- tradores, a cultura é pensada como um sistema de repre- sentações simbólicas que expressam formas comuns de apreender o mundo, possibilitando a comunicação entre os membros de um grupo. Este conceito, a nosso ver, precisaria ser mais traba- lhado em termos das múltiplas significações do universo simbólico e suas relações com outras instâncias da práti- ca social, remetendo ainda às questões das relações de poder internas e externas às organizações. Ao mediar relações e práticas sociais, o campo do simbólico se afigura como uma das instâncias fundamen- tais para definição das relações de trabalho. Na perspec- tiva por nós adotada," as outras instâncias responsáveis pela determinação dos padrões de relações de trabalho seriam: • a instância polftica - que confere à relação o seu marco ssnutural, situando-a no jogo das forças polfticas e eco- nômicas da sociedade; •a instância da organização do processo de trabalho - na qual a tecnologia e as formas de gestão do processo produtivo definem as relações de trabalho; a instância das polfticas de recursos humanos - que mediatizam os termos da relação entre capital e trabalho. A incorporação desta dimensão simbólica prende-se à idéia de procurar desvendar o significado de certas es- tórias, mitos, rituais, de certos comportamentos e artefa- tos que perpassam a vida da organização. A proposta deste artigo é discutir como elementos simbólicos do universo cultural de uma organização ex- pressam e definem padrões de relações de trabalho. Uma breve revisão e sistematização da literatura antropológica e organizacional sobre a temática de cultura foi realizada, visando a elaborar uma proposta conceitual e metodológi- ca que fundamentasse a análise empfrica. 2. O CONCEITO DE CUL TURA Na perspectiva da antropologia, a dimensão simbólica é concebida como capaz de integrar todos os aspectos da prática social. A preocupação fundamental da pesquisa etnográfica era desvendar os significados dos costumes de sociedades diferentes da ocidental; partia-se do pres- suposto da unidade entre a ação humana e sua significa- ção, descartando-se qualquer relação determinfstica de uma sobre a outra." Como o coloca Durhan, os antropólogos tenderam a conceber os padrões culturais não como um molde que Rio de Janeiro, 27(4)7-18 out./dez. 1987

Artigo 1.INTRODUÇÃO · 2013. 6. 21. · Artigo 1.Introdução; 2. O conceito de cultura; 3. A questão dacultura nas organizações; 4.Cultura erelações de trabalho emuma empresa

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Artigo

1. Introdução;2. O conceito de cultura;

3. A questão da cultura nas organizações;4. Cultura e relações de trabalho em uma

empresa estatal;5. As estórias de coragem e o nascimento

dos heróis;6. O mito da grande fam/7ia;

7.Comentários finais.

Estórias,mitos, heróis -

cultura organizacionale relações do trabalho

Maria Tereza Leme FleuryProfessora livre-docente na Faculdade de Economia

e Administração da Universidade de São Paulo

Rev. Adm, Empr.

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, os trabalhos sobre o campo simbólicotêm-se multiplicado nas mais diversas áreas do conheci-mento, assumindo importância crescente inclusive na ad-ministração. 1

Na perspectiva mais comumente adotada por adminis-tradores, a cultura é pensada como um sistema de repre-sentações simbólicas que expressam formas comuns deapreender o mundo, possibilitando a comunicação entreos membros de um grupo.

Este conceito, a nosso ver, precisaria ser mais traba-lhado em termos das múltiplas significações do universosimbólico e suas relações com outras instâncias da práti-ca social, remetendo ainda às questões das relações depoder internas e externas às organizações.

Ao mediar relações e práticas sociais, o campo dosimbólico se afigura como uma das instâncias fundamen-tais para definição das relações de trabalho. Na perspec-tiva por nós adotada," as outras instâncias responsáveispela determinação dos padrões de relações de trabalhoseriam:

• a instância polftica - que confere à relação o seu marcossnutural, situando-a no jogo das forças polfticas e eco-nômicas da sociedade;

• a instância da organização do processo de trabalho -na qual a tecnologia e as formas de gestão do processoprodutivo definem as relações de trabalho;

• a instância das polfticas de recursos humanos - quemediatizam os termos da relação entre capital e trabalho.

A incorporação desta dimensão simbólica prende-seà idéia de procurar desvendar o significado de certas es-tórias, mitos, rituais, de certos comportamentos e artefa-tos que perpassam a vida da organização.

A proposta deste artigo é discutir como elementossimbólicos do universo cultural de uma organização ex-pressam e definem padrões de relações de trabalho. Umabreve revisão e sistematização da literatura antropológicae organizacional sobre a temática de cultura foi realizada,visando a elaborar uma proposta conceitual e metodológi-ca que fundamentasse a análise empfrica.

2. O CONCEITO DE CUL TURA

Na perspectiva da antropologia, a dimensão simbólica éconcebida como capaz de integrar todos os aspectos daprática social. A preocupação fundamental da pesquisaetnográfica era desvendar os significados dos costumesde sociedades diferentes da ocidental; partia-se do pres-suposto da unidade entre a ação humana e sua significa-ção, descartando-se qualquer relação determinfstica deuma sobre a outra."

Como o coloca Durhan, os antropólogos tenderam aconceber os padrões culturais não como um molde que

Rio de Janeiro, 27(4)7-18 out./dez. 1987

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produziria condutas estritamente idênticas, mas antescomo as regras de um jogo, isto é, uma estrutura quepermite atribuir significado à certas ações e em função daqual Ise jogam infinitas partidas. Neste sentido," estiveramsempre mais interessados nas mediações possíveis doque nas determinações da infra-estrutura econômica so-bre a superestrutura ideológica.

Não existe também a preocupação em se estabeiece-rem relações entre as representações e o poder. Segun-do ainda Ourhan , os padrões culturais não são concebi-dos como instrumentos de dominação, a não ser no senti-do genérico de que a cultura é instrumento de domínio dasforças naturais.

nA opacidade da sociedade, a inconsciência dos ho-mens em relação aos mecanismos de produção da vidasocial nunca puderam ser vistas pelos antropólogos, nassociedades essencialmente igualitArias com I:!s quais sepreocuparam, como resultado do ocultamento da domina-ção de uma classe sobre a outra. Obviamente, é possívelanalisar relações de poder nas sociedades primitivas,mas isto não é nem o fulcro nem o centro da concepçãode cultura" (Ourhan, 1984, p. 77).

Entre os sociólogos, uma corrente importante paraanálíse da cultura é a do interacionismo simbólico, cujosautores mais conhecidos são Erving Goffrnan e Peter Ber-gero O trabalho de Berger e Luckmann The $()(J;ialcons-truction of reality, como o próprio trtulo indica. procura ex-plorar o processo de elaboração do universo simbólico.Consideramos importante recuperar certos rnqmentos desua trajetória, pois ele toca (explícita OU implicitamente)em algumas questões centrais para a discuss~ da cultu-ra. Um outro ponto que justifica uma análise mais detidado pensamento deste autor decorre da influência por eleexercida sobre os estudiosos da cultura nas organiza-ções.

Para Berger e Luckmann (1967), a vida cotidiana seapresenta para os homens como uma realidade ordenada.Os fenômenos estão pré-arranjados em padrões que pa-recem ser independentes da apreensão que cada pessoafaz deles, individualmente. Em outras palavras, a realida-de se impõe como objetivada, isto é, constituída por urnasérie de objetivos que foram designados como objetosantes da "minha" aparição (enquanto indivíduo) em cena.

O indivíduo percebe que existe correspondência entreos significados por ele atribuídos ao objeto e os significa-dos atribuídos pelos outros, isto é, existe o' compartilharde um senso comum sobre a realidade.

Um elemento importante neste processo de objetiva-ção é a produção de signos, ou seja, sinais que têm signi-ficações. A linguagem é um conjunto de signos com a ca-pacidade de comunicar significados; ela constrói campossemânticos, ou zonas de significados.

Quando um grupo social,. segundo os autores Bergere Luckmann (1967), tem que transmitir a uma nova gera-ção a sua visão do mundo, surge a necessidade de legiti-mação. A legitimação consiste em um processo de expli-car e justificar a ordem institucional, prescrevendo valida-de cognitiva aos seus significados objetivados; tem, por-

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tanto; elementos cognitivos e normativos e dá origem aouniverso simbólico. Isto porque no processo de legitima-ção se produzem novos significados atribuídos aos pro-cessos institucionais.

A nível das" organizações é possível observar comocertos símbolos são criados e os procedimentos impllcitose explícitos para legitimA-los. O mito da empresa comouma grande famHia, que analisaremos em seguida, exem-plifica esta criação de um mito, integrando vários signifi-cados e os proc~ssos de sua legitimação.

Berger e í..uckmann dedicam-se também a discutir osprocessos de socialização vivenciados pelo indivk:luo,distinguindo entre a socialização primária, em que o indiví-duo se torna membro de uma sociedade, e o processo desocialização secundária, a qual introduz um indivíduo jásocializado a novos setores do mundo objetivo. No primei-ro caso, o indivíduo nasce numa estrutura social objetiva,na qual ele encontra os seus "outros significativos" (namaioria das vezes, os pais e parentes próximos) que seencarregam de sua socialização. Estes "outros significati-vos": que mediatizam o mundo para o indivíduo, apresen-tando-o como uma realidade objetiva, modificam-no nocurso da mediação. Ou seja, selecionam aspectos queconsideram importantes de acordo com sua posição naestrutura social e em função de suas idiossincrasias pes-soais (Berger e Luckmann, 1967).

A socialização primária envolve mais do que simplesaprendizagem cognitiva - ela ocorre em circunstânciasmuito emocionais. A linguagem constitui o mais importanteinstrumento de socialização.

Se a socialização primária acontece com a grandeidentificação emocional do indivk:luo com os valorestransmitidos pelos pais, na socialização secundária aidentificação acontece somente na medida necessáría pa-ra a comunicação entre seres humanos (exemplificando: épreciso amar a mãe, não a professora). Na socializaçãoprimária, o cunho da realidade do conhecimento é interna-lizado quase que automaticamente pelo indivíduo; na so-cialização secundárta, os conhecimentos podem ser ad-quiridos numa seqüência de aprendizagem e reforçadospor técnicas pedagógicas específicas.

A extensão e o caráter da socialização secundária são,determinados pela complexidade da divisão do trabalho e,concomitantemente, pela distribuição social do conheci-mento de uma dada sociedade. As idéias sobre a sociali-zação secundária são fundamentais para a análíse doprocesso de integração dos indivíduos à organização.

Para Berger e Luckmann, o universo simbólico integraum conjunto de significados, atribuindo-lhes consistência,justificativa, legitimidade; em" outras palavras, o universosimbólico possibilita aos membros integrantes de um gru-po uma forma consensual de apreender a realidade, inte-grando os significados, viabilizando a comunicação. Exis-tiria um processo dialético entre as idéias e os processossociais de sustentação e legitimação.

A questão do poder e das relações de dominação emuma dada configuração social constitui uma preocupaçãosecundária no pensamento destes autores. Ao discutirem,

Revista de Administraç~ de Empresas

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por exemplo, como uma determinada definição da realida-de se torna dominante, os autores elaboram o seguinteraciocfnio: em uma sociedade, na medida em que aumentaa divisão do trabalho, o conhecimento vai-se tornandomais especializado: grupos restritos pretendem deter oconhecimento global e teorizam sobre ele. Estes gruposocupam posições de poder e estão sempre prontos a utili-zá-lo para impor as suas definições da realidade àquelessob sua autoridade.· As conceitualizações alternativassobre o universo são se possfvel incorporadas, se nãodestrufdas. Quando uma definição particular de realidadese vincula a interesses de poder concretos, é chamada deicJeologia(Berger e Luckmann, 1967, p. 123).

Em suma, na proposta de sociologia do conhecimentode Berger e Luckmann, a questão do poder é enfocadacomo pano de fundo sobre o qual se tecem as relaçõessociais, e não como eixo central da análise.

Suas idéias sobre a construção do universo simbólico,seus processos de legitimação e socialização primária esecundária são fundamentais a uma proposta de estudossobre a instância simbólica nas relações de trabalho. __

Recolocando a questão de ideologia, brevemente men-cionada por Berger e Luckmann, observamos que a dis-tinção entre cultura e ideologia abre um veio importante aser explorado nesta discussão.

Analisando estes dois conceitos, Eunice Durhan(1984) procura mostrar a relação de complementaridadeexistente entre eles, apontando, entretanto, a inconve-niência da eliminação do conceito de cultura e da investi-gação dos fenômenos culturais em favor da análise daideologia ou ainda a absorção do conceito de ideologia eda problemática que lhe é própria pelo estudo da cultura.Recuperando a anãlise feita por Gramsci, ela mostra co-mo para esse autor todo sistema simbólico é ideologia esendo ideologia é dominação. A autora propõe que se in-corpore a dimensão polrtica ao estudo dos processosculturais, investigando como sistemas simbólicos são ela-borados e transformados de modo a organizar uma práfícapÓlftica, legitimando uma situação de dominação existenteou contestada: "É importante investigar de que modo gru-pos, categorias ou segmentos sociais constroem e utili-zam um referencial simbólico, que lhes permite definirseus interesses especfficos, construir uma identidade co-letiva, identificar inimigos e aliados, marcando as diferen-ças em relação a uns e dissimulando-as em relação a ou-tros. Qualquer elemento cultural pode ser assim politizadosem, entretanto, esgotar seu significado no fato de sereminstrumentos numa luta pelo poder" (Durhan, 1984, p. 87).

A autora faz, entretanto, a ressalva que uma aborda-gem desse tipo, que parte de uma análise "de dentro" dosgrupos ou movimentos sociais, não pressupõe, necessa-riamente, a questão do enfrentamento das classes funda-mentais nem julga a relevância ou legitimidade dos fenô-menos em termos de suas implicações para a repróduçãodo sistema capitalista.

Por outro lado, segundo ainda esta autora, o conceitode ideologia se refere àqueles sistemas amplos, coeren-

Est6ri1ls. mitos. her6is

tes e cristalizados de idéias que fornecem uma explicaçãoe uma justificativa da natureza da sociedade e das rela-ções de poder, em termos de sua legitimidade e ilegitimi-dade. De uma perspectivagramsciana, a ideologia dizrespeito à formulação de projetoshegemônicos, isto é,propostas polfticas de transformação ou manutenção daordem social, no sentido de assegurar a dominação deuma classe sobre as outras. A utilização do conceito deideologia parte necessariamente de uma perspectiva ma-cropolrtica, referente à reprodução do modo de produção edas formas de dominação que lhe são próprias.

Na abordagem antropológica dos fenômenos culturais,segundo Durhan (1967, p. 88) o procedimento é diverso:parte-se das práticas sociais concretas e das representa-ções formuladas por grupos ou categorias sociais, e suarelevância polrtica só pode ser determinada a posteriori.Em suma, parece-nos se possfvel distinguir duas postu-ras teóricas básicas ao se trabalhar o conceito de cultura:

a) de um lado, aqueles que consideram a cultura, os sis-temas simbólicos como a arte, o mito, a linguagem, emsua qualidade de instrumentos de comunicação entre aspessoas e os grupos sociais e elaboração de um conhe-cimento consensual sobre significado do mundo;

b) de outro lado, aqueles que consideram a cultura comoum instrumento de poder e legitimação da ordem vigente.~

. A nosso ver, estas duas posturas não são mutuamenteexcludentes - é preciso perceber o universo simbólico nasua capacidade de ordenar e atribuir significações aomundo natural e social, como elemento de comunicação, eao mesmo tempo perceber a sua função ideológica deocultar as relações de dominação existentes, relaçõesestas que passam a ser percebidas como naturais, o que,por sua vez, contribui para a conservação simbólica. Énesta linha mais abrangente que pretendemos desenvol-ver nossa proposta de anãlise do universo simbólico dasorganizações.

3. A QUESTÃO DA CULTURA NAS ORGANIZAÇÕES

Como já mencionamos, nos últimos cinco anos, o númerode pesquisas sobre o tema cultura organizacional au-mentou consideravelmente, pesquisas estas conduzidassob os mais diversos enfoques teórico-metodológicos."

Uma tentativa de categorização destas pesquisas foifeita por Linda Smircich (1983). A tipologia proposta poresta autora permite sistematizar o conhecimento produzi-do na área.

Smircich distingue duas grandes linhas de pesquisa: aprimeira enfoca a cultura como uma variável, como algu-ma coisa que a organização tem; já a segunda linha con-cebe a cultura como raiz da própria organização, algo quea organização é.. Na primeira linha de estudos é possfvel distinguirem-seainda aqueles que definem a cultura como uma variávelindependente, externa à organização (a cultura da socie-dade em que se insere a organização e que é trazida para

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dentro por seus membros) e aqueles que definem a cultu-ra como uma variável interna (as organizações produzembens, serviços e produtos culturais como lendas, ritos,srmbolos).

O sucesso das empresas japonesas levou muitospesquisadores americanos a estudarem as diferençasculturais entre os dois pefses e sua influência sobre ocontexto organizacional. Exemplos desta linha de pesqui-sa são os trabalhos de Inzerelli e Rosen (1983) e Jaeger(1983) que estudam como o controle organizacional variaem função de fatores culturais, comparando organizaçõesjaponesas, americanas e inglesas.

Por outro lado, as pesquisas realizadas partindo dapremissa da cultura como variável interna procuram enfa-tizar a importância dos fatores culturais para definição deestratégias organizacionais. A cultura, concebida comoum conjunto de valores e crenças compartilhados pelosmembros de uma organização, deve ser consistente comoutras variáveis organizacionais como estrutura, tecnolo-gia, estilo de liderança. Da consistência destes vários fa-tores depende o sucesso da organização.

Um exemplo desta linha de investigação é uma pes-quisa recente conduzida por Robert Ernst, (1985) em 100empresas americanas. O autor define cultura como "umsistema de valores e crenças compartilhados que mode-lam o estilo de administração de uma empresa e o com-portamento cotidiano de seus empregados" (p. 50). Par-tindo da hipótese de que a maneira mais clara de se com-preender a cultura é examinar as práticas administrativasda organização, o autor pesquisa 60 itens que definempráticas administrativas. A partir dos resultados da pes-qi;lisa, ele constrói uma grade, com duas dimensões, quelhe possibilita identificar quatro tipos de cultura. A gradecultural, segundo o autor, pode auxiliar os administradoresno planejamento estratégico da empresa, o qual tradicio-nalmente é feito levando em consideração somente o am-biente externo; a identificação de novas oportunidadesdeve levar em consideração fatores culturais. Da mesmaforma, o planejamento de recursos humanos (seleção,orientação, avaliação e compensação) deve ser consis-tente com a cultura organizacional.

A cultura enfocada como variável parte do modelo sís-têmico de organizações; no primeiro caso, a cultura éparte do ambiente em que se insere a organização; no se-gundo, é' resultado do desempenho e de representaçõesdos indivíduos nas organizações.

É importante ressaltar que essas linhas de pesquisatêm um objetivo claramente normativo; ou seja, elas pro-curam realizar diagnósticos, com análises comparativasque subsidiem a elaboração de estratégias de ação dasempresas.

A segunda linha de estudos sobre a cultura organiza ..cional, identificada por Smircich (1983, p. 342), procura iralém da visão instrumental da organização derivada dametáfora da máquina, da visão adaptativa derivada dametáfora do organismo, para pensar a organização como

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forma. expressiva de manifestação da consciência huma-na. Esta linha deriva o seu conceito de cultura da antro-pologia, adotando a idéia de cultura como um recursoepistemológico que permite enfocar o estudo das organi-zações como fenômeno social, como a metáfora do orga-nismo, segundo a qual a autora embasa a visão sistêmicadas organizações.

A autora procura diferenciar as "árias correntes antro-pológicas - cognitivista, simbólica e estruturalista - queembasariam as pesquisas sobre cultura organizacional.

Segundo a vertente cognitivista, cultura é definida co-mo um sistema de conhecimento e crenças compartilha-dos. A t,arefa do antropólogo nesta perspectiva, é determi-nar quais as regras existentes em uma determinada cultu-ra e como os seus membros vêem o mundo. A autora in-clui nessa vertente autores como Argyris e Schon, Schri-vastava e Mitrof, com a ressalva de que eles não usamo termo cultura em seus estudos; o enfoque cognitivistaos leva a perceber as organizações com redes de signifi-cados subjetivos e quadros de referência compartilhadosque, para o observador externo, aparecem como regras.

Com relação à corrente estruturalista, Smircich reco-nhece que as tentativas de desenvolver o enfoque teórico-metodológico de Lévi-Strauss para o estudo da cultura or-ganizacional são ainda bastante incipientes.

A corrente mais promissora, do ponto de vista deSmircich (corrente.à qual se filia a autora), é a simbólica;esta define cultura como um sistema de srmbolos e signi-ficados compartilhados.

Quando a perspectiva simbólica é aplicada à análiseorganizacional, a cultura é concebida como um padrão dediscursos simbólicos que necessita ser decifrado e inter-pretado. A obra de Berger é fundamental para o embasa-mento te6rico desta linha de pesquisas.

Um trabalho, a nosso ver bastante interessante, reali-zado sob este enfoque é o de Van Maanen (1982) sobre ocorpo de polícia de uma cidade americana. Um dos pontosenfocados pelo autor refere-se ao processo pelo qual aspessoas procuram decifrar a organização em termos depautar e adequar o seu próprio comportamento. No casodas academias de polícia, é estudado o processo peloqual os ne6fitos, recém-graduados, aprendem o sistemade significados mantidos pelo grupo.7

Em outro artigo, Van Maanen (1978) elabora uma tipo-logia sobre estratégias de socialização desenvolvidaspelas organizações, muito na linha de idéia de socializa-ção secundária desenvolvida por Berger e Luckmann;procura mostrar como estas estratégias (em conjugaçãocom outras atividades de administração de recursos hu-manos) substituem em organizações modernas o controlerealizado através dos meios tradicionais como aplicaçãode punições, recompensas, supervisão. O autor identificavários tipos de estratégias de socialização, que podemser combinados em função de se adequar o mais eficien-temente possível o indivfduo aos objetivos e natureza da-quela organização. a Os tipos propostos fornecem pistasinteressantes par? análise da situação empírica pesquisa-da.

Revista de Administração de,Empresas

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A nosso ver, um dos autores que vão mais adiante naproposta de trabalhar a questão da cultura, conceitual emetodologicamente, é Edgar Schein (1985). Para ele,cultura organizacional é o conjunto de pressupostos básí-cos (basic assumptions) que um grupo inventou, desco-briu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os pro-blemas de adaptação externa e integração interna e quefuncionaram bem o suficiente para serem consideradosválidos e ensinados a novos membros como a forma cor-reta de perceber, pensar e sentir, em relação a essesproblemas (Schein, 1984, p. 9).

A cultura de uma organização pode ser apreendida emvários níveis, segundo este autor:

• nrvel dos artefatos visívels: o ambiente construído daorganização, arquitetura, teyou; a maneira de as pessoasse vestirem, padrões de comportamento vlsfveis, docu-mentos públicos: cartas, mapas. Este nrvel de análise,segundo Schein, é muito enganador porque os dados sãofáceis de obter, mas difíceis de interpretar. É possíveldescrever como um grupo constrói o seu ambiente equais são os padrões de comportamento discernrveis en-tre os seus membros, mas, freqüentemente, não se con-segue compreender a lógica subjacente ao comporta-mento do grupo;

• nrvel dos valores que governam o comportamento daspessoas. Como esses são difrceis de se observar direta-mente, para identificá-los é preciso entrevistar os mem-bros-chave de uma organização ou realizar a análise deconteúdo de documentos formais da organização. Entre-tanto, diz o autor, ao identificar esses valores, observa-seque eles geralmente representam apenas os valores ma-nifestos da cultura. Isto é, eles expressam o que as pes-soas reportam ser a razão do seu comportamento, o quena maioria das vezes são idealizações ou racionaliza-ções. As razões subjacentes ao seu comportamento per-manecem, entretanto, escondidas ou inconscientes;

• nrvel dos pressupostos inconscientes: são aquelespressupostos que determinam como os membros de umgrupo percebem, pensam e sentem. Na medida em quecertos valores compartilhados pelo grupo conduzem adeterminados comportamentos e esses comportamentosse mostram adequados para solucionar problemas, o va-lor é gradualmente transformado em um pressuposto in-consciente, sobre como as coisas realmente são. Na me-dida em que um pressuposto vai-se tornando cada vezmais taken for granted, vai passando para o nrvel do in-consciente.

Do ponto de vistadeSchein, se a organização comoum todo vivenciou experiências comuns, pode existir umaforte cultura organizacional que prevaleça sobre as váriassubculturas das unidades. O que se observa freqüente-mente é que os grupos com background ocupacional se-melhante tendem a desenvolver culturas próprias no inte-rior das organizações: a cultura dos gerentes, dos enge-nheiros, do sindicato.

Est6rias, mitos, 1ro6is

IEle atribui, .no entanto, a maior importância ao papéldos fundadores da organização no processo de moldarseus padrões culturais; os primeiros líderes, ao desenvol-verem formas próprias de equacionar os problemas da or-ganização, acabam por imprimir a sua visão de mundoaos demais e também a sua visão do papel que a organi-zação deve desempenhar no mundo. e

Ao discutir técnicas possfvels de investigação dos fe-nõmenos culturais de uma organização, Schein conferegrande relevância às entrevistas com estes membrosfundadores, elementos-chave da organização. Propõetambém outras técnicas que devem ser usadas de formacombinada: análise do processo de socialização de novosmembros; análise das respostas a incidentes crrticos nahistória da organização; análise, junto com uma pessoa dedentro, das caracterfstlcas da organização observadas oudescobertas nas entrevistas.

O grande mérito desse artigo é propor um instrumentalconceitual e metodológico para se trabalhar com culturaorganizacional (segundo a perspectiva te6rica do autor)que procura ir além do nrvel mais aparente do universosimbólico das organizações, tentando penetrar no domíniodos pressupostos inconscientes. Suas idéias e técnicaspara investigação nos sugerem pistas interessantes depesquisa.

Em termos de técnicas de investigação sobre culturaorganizacional, outros trabalhos realizados nesta pers-pectiva simbólica trazem contribuições interessantes. Oestudo, por exemplo, realizado por Joanne Martin e cola-boradores (1983) utiliza como material empírico estóriasdas organizações, construindo uma tipologia de estóriasbastante curiosas. 10

Com isto, os autores pretendem discutir o mito da sin-gularidade da cultura de cada organização, mostrandocomo a recorrência de certos tipos de histórias, define al-guns padrões culturais comuns às organizações.

Retomando a categorização proposta por Smircich pa-ra os estudos sobre cultura organizacional, observamosque esta permite situar a maioria das pesquisas desen-volvidas na última década sobre esta temática. Entretanto,apesar das fortes raízes antropológicas dos estudosmencionados, verificamos que, em suas várias vertentesconceituais, eles assumem os sistemas culturais en-quanto instrumento de comunicação e visão consensualsobre a própria organização. A dimensão do poder, intrrn-seca aos sistemas simbólicos (pelo menos nas socieda-des capitalistas), e o seu papel de legitimação da ordemvigente e ocultamento das contradições das relações dedominação estão ausentes nestes estudos. Parafrasean-do Eunice Durhan no artigo citado, seria necessãrio "poli-tizar" o conceito de cultura, a fim de apreendê-lo comoinstância definidora das relações de trabalho.

Procurando aprofundar essa discussão sobre cultura epoder, consideramos importante introduzir conceitos de-senvolvidos por Max Pagãs e seus colaboradores (1979).

Não pretendemos tentar recuperar a trajetória desen-volvida por esses autores para a construção de sua obra,por razões te6ricas e metodológicas. O objetivo do traba-

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lho é estudar o poder nas organizações a partir de um'quadro teórico que procura aliar o referencial marxista apsicanálise freudiana. Os nossos reduzidos conhecimen-tos sobre psicanálise nos dificultam muito trabalhar com 'certos conceitos e esquemas de análise desenvolvidospelos autores. Por outro lado, a proposta metodológica deconduzir o.estudo segundo uma postura "sistêmica dialé- ,tica", se bem que fascinante, é muito diffcil de ser repro-duzida e pode-se fácilmente cair 'no erro de emprestar àobra' uma linearidade ernpoorecedora, que ela não pos-.suí."

Assim sendo, optamos por incorporar simplesmentealgumas idéias desenvolvidas por Pagàs, que abrem cer-tos caminhos promissores ao nosso t~abalho.

Segundo os autores, o fenOmeno do poder tem sidoestudado sob diferentes perspectivas: '

• do ponto de vista marxista, como fenômeno de aliena-ção econômica (a não-propriedade dos meios de produ-ção) que separa os trabalhadores dos meios de produçãoe dos frutos de seu trabalho;

• como um fenômeno sobretudo polftico de imposição econtrole sobre as decisões e organização do trabalho(são inclufdos nesta perspectiva autores bem diferentescomo Wright Mills e Foucault);

.• ao n(vel ideológico, corno um fenômeno de apropriaçãode significados e valores;

• ao nfvel psicológico, corno um fenômeno de alienaçãopsicológica, de dependência, de projeção e introjeção,como sistemas de defesa coletiva inconsciente (Pagas et

, alii, 1979, p. 8).

Os autores pretendem analisar o fenômeno do poder esuas articulações na vida de uma organização, a partir deum enfoque pluridimensional, levando em consideração asdimensões de ordem econômica, polftica, ideológica e psi-cológica. Para atingir este _pbjetivo, segundo uma pers-pectiva dialética, os autores introduzem o conceito de me-diação, o qual "é indissoluvelmente ligado ao conceito decontradição, no sentido marxista 00 ierrno" (Pagas et alii,1979, p..27). O processo de mediação, como já mencio-namos, transforma a contradição básica entre capital etrabalho em uma contradição intema às pollticas da orga- ,nização.

Os autores desenvolvem sua pesquisa na filial euro-péia de uma empresa multinacional americana, por elesqualificada de empresa hipermoderna, a qual conjuga altatecnologia de fabricação com técnicas de administraçãoas mais sofisticadas. 12

A organização hipermodema caracíenza-se pelo desen-volvimento "fantástico" dos processos de mediação, emconsonância com as transformações do aparelho produti-vo: a intelectualização das tarefas, o papel alcançado pelaciência e pela técnica em todos os escalões da produção,

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a crescente divisão técnica do trabalho e a interdepen-dência das tarefas, a mudança e a renovação constante.O aparelho produtivo exige trabalhadores instrufelos, ca-pazes de compreender os princfplos de sua ação (e nãosimplesmente de realizar tarefas rotineiras), capazes deiniciativa, comprometidos com seu trabalho, adaptados àmudança. Isto pode torná-los mais Uvres para organiza-rem a produção, para interrogarem-se sobre os objetivosda organização. Por sua vez, a orgànização hipermodemadeve assegurar seu controle sobre as transformações dosistema produtivo, mantendo também o controle sobre astransformações por que passam seus empregados. Isto

'requer um alto desenvolvimento do sistema de media-ções.

Os autores identificam ainda quatro grandes categoriasde mediações nas empresas hipermodernas:

1. Mediações de ordem econOmica: altos salários, carreiraaberta, contribuindo para destruir os vestfgios da socieda-de feudal: castas, diplomas, ligações familiares que sub-sistem na sociedade capitalista clássica.

2. Mediações de ordem polftica: desenvolvimento de umsistema decisório, que assegure o governO a distância desegmentos vastos e complexos da empresa matriz; subs-tituem-se para -tanto as ordens e interdições por regras eprincfpios interiorizados conforme a lógica da organização.Desaparece a figura do chefe tradicional, "pequeno sobe-rano local das empresas capitalistas clássicas", substituf-do pelo chefe intérprete das regras da organização.

3. Mediações de ordem ideológica: desenvolvimento daorganização corno lugar autônomo de produção ideológi-ca, articulada a todas as práticas da empresa: polftica de :pessoal, financeira, comercial. A empresa capitalista clás-sica é o local privilegiado das relações econOmicas - "tra-balha-se para ganhar a vida". Ela se apóia sobre certosaparelhos ideológicos da sociedade global como a famnia,a escola, a religião, os quais ela reforça e é por eles refor-çada; não produz, porém, por si mesma uma ideologiaprópria. A empresa hipermoderna investe também nosaparelhos ideológicos da sociedade global (notadamente.através da intermediação do Estado) procurando influen-ciar suas orientações e torna-se ela mesma um dos locaispor excelência da produção ideológiea conservadora. Isto'porque ela necessita justificar suas práticas junto,a seusempregados, clientes e o público de um modo geral. ElaambiCiona; e em larga medida o consegue, tornar-se umlugar dàprÓdução de significado e valor.

4. Mediações de ordem psicológica: desenvolvimento dainfluência psicológica da organização sobre os trabalhado-res. Ao nfvel psicológico, o par: vantagens/restrições se

. transforma no par prazer/agonia. A organização funcionacorno 'uma imensa máquina de prazer e angústia - a an-gústia, provocada pela onipresença dos controles, pelocaráter ilimitado e inatingfvel das exigências, é compensa-da pelos múltiplos prazeres oferecidos pela organização,principalmente os prazeres de tipo agressivo: o prazer de

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conquistar, de dominar clientes~ colegas, de vencer. O in-divrduo introjeta a n(val do inconsciente as restrições im-postas e os tipos de satisfação oferecidos. Cria-se ummecanismo de reforço circular, entre agonia e prazer, queassegura a manutenção do sistema psicológico em con-sonância com a estrutura da organização e os reproduz.

Evidentemente, as categorias propostas não são es-tanques, mas se configuram antes de tudo, como cortesepistemológicos, que permitem interpretar a realidadepesquisada pelos autores. Interessa aos objetivos donosso trabalho explorar mais detidamente as mediaçõesde ordem ideológica e suas articulações com as demais.

O conceito de ideologia desenvolvido pelos autoresaproxima-se do conceito de cultura organizacional, talcorno este foi trabalhado até aqui. Os autores descartam adefinição marxista tradicional (ou vulgar, como queremoutros) de ideologia corno um sistema coerente e monolfti-co de idéias, atendendo aos interesses da classe domi-nante. A ideologia deve oferecer uma interpretação do realrelativamente coerente com as práticas sociais dos mem-bros da organização, fornecendo-Ihes uma concepção demundo conforme suas aspirações.

Segundo Pagãs e colaboradores (1979. p. 80), na em-presa pesquisada, os empregados partilham fortementeda ideologia, na medida em que participam de sua elabo-ração, num processo de autopersuasão, que lhes permitecontribuir para sua própria subjugação. Isto significa queela não reside apenas no discurso dos dirigentes, mas éelaborada pelo conjunto dos empregados.

Os autores ressaltam ainda que a contribuição dos in-dvfduos à produção depende muito de sua integraçãoideológica. A função essencial da ideologia não é apenasmascarar as relações sociais de produção, mas reforçar adominação e conseguir a exploração dos trabalhadores.

Existiria, assim, na empresa hiperrnoderna a elabora-ção de uma nova "religião", que é colocada em práticanos dispositivos da poIftica de pessoal.

Utilizando a metáfora da religião, os autores analisamos dogmas, os mandamentos da empresa (consubstan-ciados nos seus princrpios e poIfticas de pessoal), os ritos(a confissão: as entrevistas para avaliação de pessoal, amissa: as reuniões, o batismo: os programas de integra-ção dos novos funcionários, a catequese: os programasde treinamento, a liturgia: as regras).

A obra de Pagãs traz, a nosso ver, algumas contribui-ções bastante significativas à discussão proposta nestetexto.

A primeira delas se refere ao enfoque teórico metodo-lógico adotado pelos autores, que procuram trabalhar aquestão do poder na empresa capitalista, em suas váriasinstâncias e múltiplas mediações. A introdução do con-ceito de mediação, que transforma a contradição básicaentre capital e trabalho em uma contradição interna às po-Ifticas .da organização, parece-nos fundamental para aapreensão "das relações de trabalho no interior da organi-zação.

Em segundo lugar, a análise emp(rica realizada pelosautores, enfocando o sistema de normas e as práticas

Est6rias, mitos, hodis

administrativas de pessoal como elementos essenciaismediatizando as contradições da empresa, abre interes-santes pistas de investigação. Esta proposta vai além da-quela feita por muitos autores americanos 13 que observamnas práticas administrativas elementos da cultura.

Estas práticas constituem-se tanto como elementosdefinidores, como mediadores de relações de poder. no '.interior das organizações.

Em suma, ao recuperar o trabalho de cientistas so-ciais, de psicólogos e administradores sobreesta temá-tica, procuramos ir além da proposta clássica, que definecultura <:orno representações simbólicas que expressamformas comuns de apreender o mundo, possibilitando acomunicação entre os membros de um grupo. A nossover, é preciso "politizar" o conceito de cultura (na linhaproposta por Durhan), investigando éomo o universo sim-bólico expressa relações de poder, oculta-as e instru-mentaliza o pólo dominante da relação.

. O estudo de caso sobre relações de trabalho realizadoem uma empresa estatal propiciou o material empírico pa-ra refletirmos sobre as questões propostas. Nesse estudode caso, a temática das relações de trabalho foi pesqui-sada em suas várias instâncias definidoras, sob umaperspectiva histórica. Não nos é possfvel recuperar, noslimites deste texto, toda a análise realizada; procuraremosassim pinçar alguns elementos que nos parecem interes-santes à discussão proposta.

Focaremos o perfodo inicial da história da empresa, pe-rooo este fundamental para a construção de sua identida-dee para a definição dos padrões de relações de trabalho.A análise, ainda que rápida, de suas relações com o Es-tado, com o mercado, de suas práticas administrativas edas relações entre as categorias de trabalhadores possi-bilita o encaminhamento da discussão sobre o universosimbólico, destacando-se certas estórias, mitos, heróis,que expressam este duplo significado da cultura organi-zacional.

4. GULTURA E RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMAEMPRESA ESTATAL

A empresa pesquisada foi criada na década de 40, sendo-contemporânea à primeira geração das empresas estataisbrasileiras.

Os seus primeiros anos de vida foram bastante ditrceis,marcados pela insegurança financeira e fragilidade técnicae administrativa; foram também anos de luta para consoli-dar sua posição no mercado nacional e intemacional.

Superados os obstáculos de financiamento, operação,e assegurado o seu posicionamento no mercado, a em-presa começou a adquirir formato empresarial próprio. Emfunção de caracterrsticas de suas atividades produtivas(produtora, transportadora e exportadora de insumos bá-sicos) e de sua inserção no mercado internacional, con-seguiu definir suas estratégias de crescimento com umcerto grau de autonomia em relação às polfticas govema-mentais.10

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o crescer, vencendo sempre desafios e obstáculos,que surgiu como meta prioritária na primeira década, foi-setornando um objetivo permanente, incorporado à sua prá-tica cotidiana. A eficiência em todas as etapas do proces-so de produção e transporte foi sempre processada atra-vés das mudanças no processo de trabalho, através dainovação tecnológica e qualificação de seus quadros téc-nicos.

Paralelamente, as práticas para administração de pes-soal eram simples, pouco formalizadas, atendendo às ne-cessidades mais imediatas do processo produtivo. O pro-cesso de recrutamento e seleção era feito de maneira in-formai pelas chefias intermediárias, acionando sempreque possfvel as redes de parentesco e amizade entre osempregados. A indicação constitufa em primeiro critériopara seleção do novo empregado; o outro requisito fun-damentai era a força ffsica do trabalhador, necessária pa-ra agüentar o ritmo e as condições de trabalho. O proces-so de qualificação era feito de forma pontual, segundo asnecessidades mais imediatas de preenchimento dos pos-tos de trabalho e segundo critérios bastante personaliza-dos (os supervisores transferiam seus empregados de umposto para outro, facilitando ou, em certos casos, impe-dindo o processo de qualificação). Ao se diversificarem astarefas, surgiam as funções, os cargos especiaHzados eesboçavam-se os projetos de carreira. 15

As práticas administrativas de pessoal se resumiamaos processos formais de admissão e demissão dos tra-balhadores: o fichar o empregado. É importante ressaltarque, do ponto de vista do trabalhador, ser fichado e ter osseus direitos constitura um dos principais atrativos para seempregar na empresa. O relato de um empregado apo-sentado é a esse respeito significativo: "Naquele tempo,não tinha escolha. Era a empresa ou o Banco do Brasil. Amaioria entrava para a empresa, o filho do ferroviário iatrabalhar na estação, pegava um treinamento trabalhandode graça e depois era admitido. O ambiente era muito fa-miliar: pai e filho trabalhavam juntos."

A estrutura hierárquica da empresa nos seus primeirosanos era muito simples, composta basicamente de trêscategorias: engenheiros, supervisores (os chamados fei-tores) e os trabalhadores (os peões). As relações de po-der entre as categorias emanavam não só das posições epapéis assumidos no processo de trabalho, mas tambémde caracterfsücas pessoais e eram exercidas das mais di-versas formas, desde as mais coercitivas, às remunerati-vas e simbólicas.

A primeira instância do poder era representada pelosengenheiros, que acumulavam funções técnicas e direti-vas. Representavam a autoridade suprema e legitima porseu conhecimento diferenciado, adquirido nas escolas su-periores. Na estratégia da empresa de formação de umquadro técnico-gerencial altamente. capacitado, investia-se na formação dos engenheiros, visando-se a obter nãosó um grupo qualificado, mas, também coeso e compro-metido com a própria empresa. A alta cúpula administrati-va, diretores e presidentes, era designada pela Presidên-cia da República, por um períooo delimitado.- Eles guarda-

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vam semelhanças com os engenheiros, no sentido de queambos tinham a possibilidade de imprimir à empresa a vi-são própria do seu vir-a-ser, do seu espaço, da sua mis-são. Mas, por outro lado, o seu distanciamento do cotidia-no da empresa, da relação direta com os outros emprega-dos diferenciava-os dos engenheiros. Estes últimos as-sumiam integralmente a ambigüidade do seu papel: eramempregados exercendo as funções de patrões, corporifi-cando a seus olhos e aos dos demais a própria empresa.

A segunda instância era representada pelas chefiasintermediárias: os feitores, administradores que passarama ser chamados encarregados, supervisores. Estes deti-nham a autoridade necessária para disciplinar, em certoscasos organizar e exigir produção, e até mesmo para re-compensar, na medida em que a não-formalização dosprocedimentos de administração de pessoal lhe conferiapoder sobre as possibilidades de carreira de seus subor-dinados. As relações entre os dois grupos eram revesti-das de forte dose de ambigüidade: ora eles constitulamum "nós coletivo", ora se colocavam como pólos opostosda relação de trabalho.

A nossa proposta para a análise do universo simbólico·desta empresa estatal pesquisada leva em consideração,portanto, esses três pontos: o processo de definição desua identidade empresarial; as condições de trabalho eelaboração de suas práticas administrativas; e as rela-ções de poder entre as categorias de empregados. Essasdimensões são, ao mesmo tempo, elementos estruturan-tes e estruturados pelos padrões culturais vigentes.

Na perspectiva adotada, as várias categorias de em-pregados participam do processo de construção do uni-verso simbólico. As categorias dominantes, diretores, ge-rentes, imprimem,. mais do que outras, a sua visão demundo sobre a empresa, porém sem o peso, sem a ex-clusividade que lhes é atribufda por autores corno Schein(1983). Segundo este autor, os fundadores (notadamenteos fundadores de empresas privadas) desempenham umpapel fundamental na criação da cultura da organização;na medida em que eles têm uma visão total do que deveser a organização, procuram estruturá-Ia, desenvolvê-Ia,elaborando elementos simbólicos consistentes (pelo me-nos no seu próprio ponto de vista) com esta visão. Se aorganização é bem-sucedida, o seu fundador sente-sereforçado em seus valores e princlpios, imprimindo, comcada vez mais segurança, a sua "verdade" sobre os des-tinos da organização. Na empresa estatal, em função desua especificidade, este processo ocorre de forma maisdispersa, e alguns dirigentes desempenham este papel,porém sem a continuidade temporal que acontece na em-presa privada.

Procuraremos, portanto, tentar penetrar no universosimbólico da organização pesquisada. O primeiro passonesta direção será o de recuperar estórias sobre certosincidentes crlticos na vida da organização; a análise destematerial permite explicitar certos valores caros aos mem-bros da empresa, valores estes fundamentais ao proces-so de construção dos heróis.

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o passo seguinte será no sentido de tentar desvendaro significado dos mitos. Partimos do conceito de Lévi~Strauss (1970, p. 140) de que "o mito é, ao mesmo tempo,uma estória contada e um esquema l6gico que o homemcria para resolver problemas que se apresentam sob pIa-nos diferentes, integrando-os. numa construção sistemáti-ca". Procuramos recuperar um mito que é bastante ca-racterístico do período estudado: o mito da "grande famí-lia." A tentativa de interpretar este mito é crucial para acompreensão do papel assumido pelo sistema simbólico,tanto como elemento integrador, definidor da identidade daempresa, como revelador dos mecanismos de poder nelaengendrados.

5. AS ESTÓRIAS DE CORAGEM E O NASCIMENTODOS HERÓiS

o período inicial da história da empresa pode ser caracte-rizado como um período de sobrevivência; tanto a nível daorganização, como em termos individuais, era preciso en-frentar uma luta cotidiana para vencer em condições ad-versas.

Neste contexto, um valor que apareceu subjacente àmaioria dos depoimentos, de forma mais explícita ou impli-citamente, é o da coragem.

Esta coragem era percebida e trabalhada como umvalor a ser desenvolvido em todos os níveis hierárquicosda empresa. Eram os diretores que negociavam com oscredores e compradores internacionais com coragem, as-sumindo atitudes consideradas arriscadas, para colocar aempresa no mapa; eram os engenheiros que realizavamfeitos considerados heróicos e arriscados para cumprir ousuperar suas metas de produção; eram os trabalhadoresque assumiam riscos até de vida para conseguir realizaras tarefas que lhes eram propostas."

Das estórias sobre os atos de coragem, nascem osheróis, que personificam os valores e provêem modelosde comportamento para os demais.

Na estatal, como não existem claramente os pais fun-dadores da empresa, os heróis não têm existência a priori,mas vão sendo consnuídos em momentos de conjugaçãode forças significativas.

Eles são, geralmente, empregados da própria empresa(os presidentes raramente são apresentados como heróis,em função da sua transitoriedade no cargo - as exceçõessão dadas por aqueles que realmente se destacaram poralguma situação muito especial ou aqueles presidentesoriundos do quadro de empregados). Ao praticar o ato"heróico", que evidencia não só a sua coragem pessoal,mas também seu comprometimento com a organização,eles vão-se tornando legítimos portadores de uma verda-de sobre o destino da empresa, sobre o perfil adequadode seus empregados, sobre os padrões de. relações de-sejados.

Há um episódio da história da empresa pesquisada(relatado em depoimentos, e não em documentos oficiais)que, a nosso ver, exemplifica bem este processo de cons-

Estôrias, mitos, her6is

trução do herói. A empresa havia negociado um contratointernacional vultoso com um novo comprador e necessi-tava transportar e embarcar com urgência o produto. A li-nha férrea estava interrompida e se fosse desobstruldapelos métodos normais perder-se-iam dias preciosos paracumprir o contrato; o gerente toma, então, algumas deci-sões drásticas para desimpedi-Ia. Ele pede autorização ádiretoria no Rio de Janeiro para efetuar o desimpedimento,mas não espera a resposta e realiza o que acha necessá-rio ser feito. A operação toda é bem-sucedida, a empresacumpre o seu contrato e, quando a resposta negativa doRio chega, o produto já estava embarcado, a caminho docomprador.

Esta estória, a nosso ver, exemplificà bem os valoressubjacentes à construção do sistema simbólico e ao nas-cimento do herói. Um parêntese explicativo inicial sobre oseu personagem principal é, em nossa opinião, necessá-rio: o engenheiro em questão entrou para a empresa re-cém-formado e teve um rápido crescimento profissional,chegando a ocupar altos postos executivos. São inúme-ras as biografias a seu respeito em documentos e jornaisda empresa e da grande imprensa, ou seja, existe umprocesso de criação "oficial" do mito. Entretanto, esta es-tória, assim como outras, envolvendo a sua pessoa, foicoletada em depoimentos verbais, o que nos parece signi-ficativo em termos metodológicos; ou seja, a tradição oralé um caminho fundamental para se penetrar, no universocultural, em valores e símbolos que, por razões éticas oude coerência com as práticas organizacionais, não podemestar explicitados na história oficial.

No episódio descrito, o engenheiro revela uma certadose de coragem ao enfrentar os riscos de tomar uma de-cisão difrcil que poderia ter repercussões extremamentenegativas para a sua própria carreira. Esse risco ele as-sume para conseguir cumprir as metas propostas, solidifi-cando a posição da empresa no mercado internacional;em outras palavras, ao assumir o risco, ele revela o seugrau de comprometimento com a organização. corno umherói, ele não só é repositório das qualidades desejáveisnos empregados, como também é considerado um líderlegrtimo para imprimir o seu modelo, a sua visão do quedeve ser a empresa.

Um outro episódio: uma greve ocorrida no final dosanos 40, que uniu feitores e peões contra a administração,parece-nos significativa para exemplificar o nascimentodos anti-heróis. A greve, detonada por questões salariaise de condições de trabalho, assumiu um caráter extre-mamente violento, tanto em termos de ação dos trabalha-dores (depredações, intimações para que todos aderis-sem) como em termos da reação da empresa (demissõese prisões). Os responsáveis pela eclosão do movimentopermaneceram na memória coletiva como figuras muitocontrovertidas: s~ avaliados por uns como heróis quelutaram por melhores condições para todos os emprega-dos ("Este pessoal que está ar tem que lembrar que elestêm (00') a mais no salário à custa do sacrifício dos ho-mens que foram demitidos.") e por outros, como falsos Ir-deres, sem organização, sem nada, que exigiam da em-

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presa algo que ela não podia conceder (NA empresa' nãotinha condição de atender - ela era pobre, igual a n6s").

Da mesma forma que no outro episódio, os Ifderesdesse movimento revelaram uma forte dose de coragempessoal, enfrentando os riscos da repressão,. da demis-são em nome do interesse coletivo. Entretanto, corno oseu comprometimento é com a causa dos trabalhadores,e não com a empresa, eles são punidos e transformadosem anti-heróis; "A greve é uma coisa perigosa - todomundo saiu perdendo, tanto a empresa, como n6s."

Os episódios analisados explicitem os valores da cul-tura da empresa e mostram o nascimento dos heróis quecorporificam estes valores. Os heróis tornam-se her6is epassam a ser valorizados como tal, simboficamente,quando seus atos revelam o comprometimento com a em-presa. Senão, eles tornam-se anti-her6is, ou heróis de umgrupo dominado que procura encontrar as brechas paradefinir sua identidade.

6. O MITO DA GRANDE FAMíLIA

"A·empresa antigamente era como uma grande famOia."

Esta colocação apareceu freqüentemente nas entre-vistas e discussões realizadas com os empregados daempresa.

Desvendar o mito da grande famOia - como ele foi sen-do construido, que significado assumiu para cada catego-ria de empregado - parece-nos um passo importante paraa análise do universo simb6lico.

Uma ressalva inicial faz-se, entretanto, necessária.A imagem da grande famOia é freqüentemente utilizadapelas organizações para reforçar o clima de camarada-gem e confiança que se pretende e o comprometimentodas pessoas com os objetivos organizacionais. Na "gran-de famOia" da empresa, o conflito entre capital e trabalho ésubstitufdo pela cooperação (cooperação esta pontuadapor algumas situações de conflito interpessoal).

A imagem da grande famOia não é absolutamente uma1magem original e exclusiva da empresa em questão." Oque nos levou a crer que ela é uma imagem significativapara os nossos pesquisados foi a sua recorrência nosdepoimentos individuais e de grupo e o fato de ela reme-ter-se sempre ao passado: "A empresa era como umagrande famOia."

Na tentativa de apreender o mito da grande famnia alémdas explicações mais ou menos óbvias de que era umaempresa menor, em que todo mundo se conhecia (emboraisto nunca fosse verdade, pois desde os seus prim6rdiosa empresa contava com cerca de 6 mil empregados geo-graficamente dispersos), procuramos investigar os pres-supostos básicos que formariam o tecido simbólico da or-ganização.

A nosso ver, a proposta de trabalhar o mito da grandefamOia parte de dois eixos que fundamentam concepçõesantagônicas, porém complementares, da idéia de famnia.

O primeiro refere-se à concepção mais clássica, vi-sual, de famnia como célula elementar da sociedade, fun-damentai para reprodução e sobrevivência da espécie

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humana.18 NA ajuda mútua é um elemento caracterizadorda famnia, desde as suas origens. Essa reciprocidade écondição da própria sobrevivência dos indivfduos (Cane-vacci, 1984, p. 31).

A idéia de uma célula de cooperação, solidariedade,afetividade, numa visão a-histórica do fenômeno da famf-lia, constitui a sua face mais evidente, mais exaltada emtodas a instâncias da vida social, das manifestações ar-tfsticas ao discurso polrtico.

Rebatendo para o plano da empresa, é esta a imagemevocada quando se coloca: "A empresa é uma grandefamnia." E, realmente, recuperando o seu processo deconstituição, de formação de sua identidade organizacio-nal, observados como a cooperação e a solidariedade, pa-ra vencer condições adversas, para alcançar metas pro-postas, para crescer, foram importantes. Ou seja, a ima-gem da famOiatem razão histórica de ser, por partlciparernde sua elaboração mútua todos os empregados, e nãoapenas os profissionais de recursos humanos, tentandovender uma imagem positiva da empresa.

O outro eixo para compreensão da idéia de família fun-damenta-se no binômio dominação-submissão. Lévi-Strauss, ao construir o "modelo ideal" de famOia, já aten-tava para os vínculos e sentimentos que ligam os seusmembros. 1. A percepção e elaboração teórica sobre rela-ções de dominação/submissão existentes na famOia foramdesenvolvidas fundamentalmente pela Escola de Frank-furt, com a proposta de aliar o conhecimento psicanalrticoà interpretação marxista de sociedade. 20

Analisando a famnia por uma perspectiva histórica, ob-servaram como esta desenvolve em seu interior as rela-ções autoritárias que se articulam dialeticamente com oautoritarismo social, além de ser reprodutora do consensoacrftico. As relações de autoridade assumem a funçãoessencial de fixar, desde a infância, a necessidade objeti-va do domfnio do homem sobre o homem (Canevacci,1984, p. 211; Horkheimer & Adorno, 1973, p.132). 21

A famnia torna-se assim a terrível matriz dos mecanis-mos de dominação e submissão.

A imagem de grande famnia para os empregados daempresa assume sob esta perspectiva contornos dife-rentes. A análise do mito propicia assim o desvendar dasrelações de dominação, presentes no cotidiano da empre-sa permeando as interações entre categorias de empre-gados.

O mito da famOia revela, assim, as duas faces presen-tes nas relações de trabalho: a face visfvel de solidarieda-de, de cooperação, e a face oculta da dominação e sub-missão.

7. COMENTÁRIOS FINAIS

As tentativas de apreensão dos elementos simbólicos deuma organização implicam assumir a postura do antropó-logo, de "imersão na vida organizacional visando a des-vendar o seu universo de significações". Segundo Schein,(1985, p.47) "nós precisamos ser cuidadosos em não as-sumir que a cultura se revela facilmente; em parte, porque

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raramente sabemos pelo que estamos procurando, emparte, porque os pressupostos básicos são difíceis dediscernir e são tão taken for granteéJ que aparecem comoinvisíveis para estranhos".

A adoção de uma abordagem multidisciplinar, procu-rando articular categorias e técnicas de investigação dediferentes áreas de conhecimento, das ciências sociais àpsicologia, à administração, possibilita ao pesquisadoridentificar e interpretar os elementos simbólicos à luz deum referencial mais abrangente.

Neste sentido, a proposta desenvolvida neste artigo,de recuperar conceitos elaborados inicialmente pela an-tropologia e retomados pela teoria organizacional, procu-rou avançar em termos de apreender a instância do sim-bólico de uma organização, não apenas em sua capaci-dade de ordenar, atribuir significações, construir a identi-dade organizacional, e agir como elemento de comunica-ção e consenso, como em sua capacidade de ocultar einstrumentalizar relações de dominação.

A análise de elementos simbólicos pesquisados emuma empresa estatal procurou rebater esta proposta parao plano empírico. No processo de desvendar os significa-dos das estórias, dos mitos e heróis, este duplo caráter douniverso simbólico foi-se desvelando. E para isto foi es-sencial recuperar a história da empresa, a sua inserçãono cenário político e econômico, o seu processo de tra-balho, as relações de poder entre categorias de emprega-dos, as suas práticas de gestão de pessoal. A discussão(ainda que muito rápida neste texto) destes pontos propi-ciou o referencial necessário à interpretação do seu uni-verso simbólico.

As possibilidades de trabalhar esta proposta não serestringem apenas ao plano das análises acadêmicas,mas podem também propiciar o embasamento necessárioà elaboração de projetos de intervenção, notadamenteaqueles que envolvem mudanças nas relações de, po-der.22 A potencialização de mudanças esbarra, muitasvezes, em resistências advindas de valores, de padrõesculturais dominantes na organização. É preciso pesquisareste universo cultural, desvendar suas origens, seus ele-mentos definidores, para conseguir transformá-lo.

No campo das relações de trabalho, mais especifica-mente, qualquer proposta visando a potencializar novospadrões de relaçÕes de trabalho deverá recriar e teceruma nova cultura organizacional.

1É interessante observar que em obras recentes sobre teoria organi-zacional, como o Livro Modem approaches to understanding andmanaging organizations (1985), de Lee Bolman e Terence Daal, oenfoque simbólico é considerado urna das quatro correntes-funda-mentais para o estudo das organizações. As outras três seriam: a es-truturai, a de relações humanas e a polftica.

2Para uma discussão mais aprofundada de cada uma destas instân-cias, ver Fleury, M. Tereza. O simbólico nas relaç6es de tratialhO-

Estôrias, mitos,her6is

um estudo sobre relações de trabalho na empresa estatal. fese de li-vre-docência, São Paulo, FEAlUSP; 1986. Mimeogr.

3Para uma discussão mais cuidadosa da posição da antropologia emface das antigas polêmicas entre os cientistas sociais, a respeito dodeterminismo do econômico sobre a instância do simbólico, das re-presentações, ver o artigo de Durhan, Eunice, Cultura e ideologia.Revista de Giéncias Sociais. Rio de Janeiro. 27(1), 1984.

4Berger e Luckmann citam o exemplo dos brâmanes. na índia, queconseguem impor a sua definição da realidade social, o s~a decastas, sobre todo o território hindu, durante séculos.

5Sergio Micelli, na introdução a uma coletânea de textos de PierreBourdiex, A economia das trocas simbólicas. ao recuperar a trajetó-ria intelectual deste autor. coloca que ele é um dos que procuram su-perar estas duas posturas em seus estudos sobre a reUgião, educa-ção.6Em 1984. foi realizada uma conferência sobre Organizational cultu-re and the meaning of life in the work place, en Vancouver. Canadá.Os papers apresentados e discussões realizadas foram condensadosem um volume Organizational culture. publicado em 1985, que. decerta forma. sintetiza as principais tendências do estudo nesta área,na América do Norte.

7Assumindo integralmente a postura do antropólogo. Van Maanenempregou-se durante alguns anos no corpo policial de uma cidadeamericana.

eAs análises de Van Maanen sobre esse processo tomam corno pon-to de partida a discussão do processo de socialização secundária fei-ta por Berger.

9Em outro artigo,lSchein (1983) desenvolve mais este tema.

IDA maioria das histórias pode ser enquadrada nos seguintes tópi-cos: "Quebrando as regras - o chefe pode ser humano?" "Umjoão-ninguém pode chegar ao topo?" "Eu posso ser despedido?""Como a organização lida com obstáculos?" "Como o patrão reageaos erros?"

"Tivemos a oportunidade de ler alguns trabalhos orientados pelaequipe de Pagês. e muitos deles, apesar de se proporem o métododialético para condução de sua pesquisa e adotarem o quadro con-ceituai de Pagês desenvolvem o trabalho segundo a métodologia po-sitivista.

12Segundo Pagês e seus colaboradores (1979, p. 13), "a empresahiperrnodema e a sociedade neocapitalista em seu estado maisavançado têm por característica constuír um sistema quase perfeitode ocultamento das contradições.

13Nesteponto, a proposta de Schein diferencia-se das demais. aoexplorar a idéia de cultura como o conjunto de pressupostos básicosque um grupo descobriu ou inventou e que vão gradualmente pas-sando para o inconsciente coletivo da organização.

14Éinteressante observar a valorização constante de seu formatoempresarial autónomo. em todos os momentos da vida da empresa.O discurso de posse de um presidente da empresa, em 1952. é. aesse respeito, significativo: "No que concerne à atual diretoria daempresa. fortemente apoiada por toda equipe de trabalho. cujo penosamento se afirma e se homogeneiza na rotina diária e nas reuniõessemanais dos diretores e chefes de serviço, para debate dos proble-mas da administração. ficou estabelecido que o remédio tlefÓico parao êxito das sociedades de economia mista e mesmo para as socie-dades estatais seria a adoção. sem nenhuma transigência. da ne-cessidade de administrá· las com mentalidade igual à que se empre-ga na direção das empresas privadas, não se permitindo que setransformem em ninho de parentes. nem cabides de emprego e muitomenos não consentindo jamais e intransigentemente que se tornemfontes de negócios particulares. "150 depoimento de um trabalhador antigo é. a esse respeito. ilustra-tivo: "O trabalho era ruim demais. não aguentei e saí. Na segundavez que eu voltei, já tinha condição. mas as condições de trabalhoainda não eram boas; a gente chegava a ficar 72 horas direto. Eu eraamigo do encarregado, uma pessoa que eu respeito e que é o me-lhor e o mais justo dos homens e ele me ajudou a me transferir para amecânica."

16M. Cecnia Minayo (1985) comenta como os trabalhadores nas mi-nas se autoclassificavam corno "homens" e "mulherzinhas", segun-do sua capacidade de produção.

17Christopher Lasch, em seu livro A cultura do narcisismo (1983),analisa como a Escola de Relações Humanas foi responsável pelacriação do mito de fábrioo como uma famaia.

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Page 12: Artigo 1.INTRODUÇÃO · 2013. 6. 21. · Artigo 1.Introdução; 2. O conceito de cultura; 3. A questão dacultura nas organizações; 4.Cultura erelações de trabalho emuma empresa

"Citando um manual de antropologia cultural funcionalista (1984, p.24) Canevacci expOe bem esta definição clássica de famOia: "Assimcomo o problema de sobrevivência é resolvido mediante a consti-tuição do sistema produtivo e dos instrumentos para o trabalho e parao conforto e a proteção ffsica, do mesmo modo o problema de repro-dução encontra a sua solução no instituto da famRia, nooleo elemen-tar do parentesco e, portanto, da sociedade. De fato, como é conhe-cido, o recém-nascido humano é quase totalmente privado de dotesinstintivos e exige ser modelado durante um longufssimo perfodo detempo, quando comparado com os outros animais, a fim de ser capazde enfrentar os problemas que a natureza e a sociedade em que elevive irão colocar-lhe. Para cumprir essa função e para emprestaruma certa regra às relações sexuais entre os membros do grupo, demodo que eles não constituam, pelas tens6es e rivalidades que po-dem criar no interior do grupo, um elemento -desagregador de suasolidariedade, constitui-se a famRia enquanto instituição."

IOLévi-Strauss descreve a famOia como um grupo social que: 1. temsua origem no casamento; 2. consiste no marido, mulher, filhos nas-cidos de sua união, mesmo se podemos admitir que outros parentesse integrem a esse mlcleo essencial; 3. os membros da famOia sãoligados entre si por:a) vrnculos legais; b) vínculos econOmicos, religiosos e outros tiposde deveres e direitos; c) uma precisa rede de direitos e produçõessexuais e um conjunto variável e diferenciado de sent\mentos psico-lógicos como o amor, o temor, o ódio, etc. Apud Canevacci, 1984.

lIDOs estudos sobre a autoridade e famOia realizados na Escola deFrankfurt, na década de 30, envolveram pesquisadores como Marcu-se, Fromm, Adorno e Horkheimer.

21Na coletânea organizada porCanevacci~1984, p. 169), o texto deErich Fromm aborda a questão da autoridade e do superego, colo-cando que o pai, no processo de interiorização da estrutura autoritá-ria, não encontra em si a base do seu papel de autoridade constitui-dora do superego, mas antes reflete o autoritarismo repressivo dasrelações sociais e das estratificações objetivas da classe.

22Neste momento, o velho refrão "organizações fortes devem ter cul-turas fortes" pode revelar a sua face negativa, pois certos padrõesculturais obstaculizam projetos de mudança.

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Revista de Administração de Empresas