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 ESCRITAS Vol.6 n.1 (2014) ISSN 2238-7188 p. 84-103 84 CULTURA POLÍTICA NO PARAGUAI: A HERANÇA DO GOVERNO DE FRANCIA E DOS LÓPEZ Graziano Uchôa  RESUMO O artigo ora apresentado visa discutir o conceito de Cultura Política, em especial pensando como este pode ser aplicado em um caso específico: os  primeiros anos da República do Paraguai. Os governos de José Gaspar Rodriguez de Francia (1811-1840), Carlos López (1844-1862) e Solano López (1862-1870), deixaram como herança uma forma específica de atuar no campo político. Esses personagens foram à base para a formação dos  partidos políticos paraguaios. Após seus governos, o Paraguai não mais conseguiu fortalecer suas instituições democráticas, o que afundou o país em disputas oligárquicas. Independente do grupo de situação, as organizações  políticas to maram como exemplo seus primeiros governantes, que basearam seus governos em tríade: uma figura forte, o poder centralizado e o fortalecimento da estrutura militar. Palavras-Chaves: Cultura Política, Paraguai, Francia, López. ABSTRACT The present article aims at discussing the concept of Political Culture, analyzing in particular about how it can be applied in a particular case: the first years of the Republic of Paraguay. The governments of Jose Gaspar Rodriguez de Francia (1811-1840), Carlos Lopez (1844-1862) and Solano López (1862-1870), left as a legacy an specific way of acting in the political field. These characters were the basis for the formation of Paraguayan political parties. After their governments, Paraguay did not manage to strengthen its democratic institutions, which  plunged the country into oligarchic disputes. Regardless of the group in  power, political organizations took as an example their first rulers, who  based their governments on a triad: a strong figure, centralized power and the  bstrengthening the military structure. Keywords: Political Culture, Paraguay, Francia, López.  Doutorando do Programa de Pós Graduação em História de Mato Grosso. Professor da rede particular e da rede  pública nas cidades de C uiabá e Várzea Grande/MT.

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    CULTURA POLTICA NO PARAGUAI: A HERANA DO GOVERNO

    DE FRANCIA E DOS LPEZ

    Graziano Ucha

    RESUMO

    O artigo ora apresentado visa discutir o conceito de Cultura Poltica, em

    especial pensando como este pode ser aplicado em um caso especfico: os

    primeiros anos da Repblica do Paraguai. Os governos de Jos Gaspar

    Rodriguez de Francia (1811-1840), Carlos Lpez (1844-1862) e Solano

    Lpez (1862-1870), deixaram como herana uma forma especfica de atuar

    no campo poltico. Esses personagens foram base para a formao dos

    partidos polticos paraguaios. Aps seus governos, o Paraguai no mais

    conseguiu fortalecer suas instituies democrticas, o que afundou o pas em

    disputas oligrquicas. Independente do grupo de situao, as organizaes

    polticas tomaram como exemplo seus primeiros governantes, que basearam

    seus governos em trade: uma figura forte, o poder centralizado e o

    fortalecimento da estrutura militar.

    Palavras-Chaves: Cultura Poltica, Paraguai, Francia, Lpez.

    ABSTRACT

    The present article aims at discussing the concept of Political Culture,

    analyzing in particular about how it can be applied in a particular case: the

    first years of the Republic of Paraguay.

    The governments of Jose Gaspar Rodriguez de Francia (1811-1840), Carlos

    Lopez (1844-1862) and Solano Lpez (1862-1870), left as a legacy an

    specific way of acting in the political field. These characters were the basis

    for the formation of Paraguayan political parties. After their governments,

    Paraguay did not manage to strengthen its democratic institutions, which

    plunged the country into oligarchic disputes. Regardless of the group in

    power, political organizations took as an example their first rulers, who

    based their governments on a triad: a strong figure, centralized power and the

    bstrengthening the military structure.

    Keywords: Political Culture, Paraguay, Francia, Lpez.

    Doutorando do Programa de Ps Graduao em Histria de Mato Grosso. Professor da rede particular e da rede

    pblica nas cidades de Cuiab e Vrzea Grande/MT.

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    Histrico do conceito

    A princpio, identificamos ser necessrio fazer um breve histrico do conceito de

    Cultura Poltica, devido ao seu sentido polissmico. Quando nos referimos Cultura Poltica,

    queremos apontar que alguns elementos so relevantes para a configurao de um imaginrio

    do poltico que influencia de maneira significativa no agir dos atores sociais. Dessa forma, em

    nossa anlise, faremos um levantamento de aspectos que podem ser vistos como parte da

    cultura poltica paraguaia, tomando como base os governos de Jos Gaspar Rodriguez de

    Francia (1811-1840) a de Carlos Antonio Lpez (1844-1862) e a de Francisco Solano Lpez

    (1862-1870).

    Nos anos ps Segunda Guerra Mundial, a historiografia fala de um esgotamento de

    modelos totalizantes, ou globalizantes. Os modelos de correntes de anlise a exemplo dos

    advindos do Marxismo e da Escola dos Annales necessitaram tratar com uma nova

    realidade. Boa parte desse exerccio para novas reflexes deve-se ao contexto da chamada

    Guerra Fria.

    dentro do argumento supracitado que veremos surgir com maior vigor o debate

    sobre cultura poltica. Uma obra considerada basilar para esse feito; The Civic Culture:

    political attitudes and democracy in five countries1, dos cientistas polticos norte-americanos,

    Gabriel Almond e Sidney Verba.

    Os autores propem esse conceito a partir da juno das perspectivas de vrios ramos

    das cincias humanas, como a antropologia, filosofia, histria, sociologia e psicologia.

    Segundo Monique Cittadino:

    Nesta conceituao inicial, era nitidamente presente a perspectiva da incorporao

    dos aspectos subjetivos das orientaes polticas, tanto da parte das elites quanto da

    populao destas sociedades. Para estes autores, cultura poltica seria a expresso do sistema poltico de uma determinada sociedade nas percepes, sentimentos e

    avaliaes da sua populao. Assim, de uma forma bastante simplificada, estaria

    1ALMOND, G.; VERBA, S. The civic culture: political attitudes and democracy in five nations. Princeton:

    Princeton University Press, 1963. Traduo do nome da obra: A cultura cvica: atitudes polticas e da democracia

    em cinco pases (traduo do autor).

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    presente no conceito de cultura poltica a ideia da subjetividade, do posicionamento

    do sujeito frente a um determinado sistema poltico (CITTADINO, 2007, p.52).

    Inicialmente, a proposta de Almond e Verba possua um carter extremamente

    normativo. Os autores procuraram fazer uma classificao de um nmero de sociedades e

    identificaram diferentes culturas polticas; para tal, utilizaram-se do aparecimento de novas

    metodologias de pesquisas, dando destaque s quantitativas.

    Utilizavam um tipo de pesquisa survey2, que consiste na obteno de dados ou

    informaes sobre caractersticas de determinado grupo de pessoas. Com base nesse perfil de

    pesquisa, queriam fazer uma transio do individual para o coletivo, elencando as opinies

    dos vrios sujeitos de uma sociedade em relao poltica e, por fim, encontrar similaridades

    entre estes, entendendo que, assim, seria possvel determinar o que essas sociedades

    concebiam como sendo valores. Karina Kuschnir e Leandro Piquet Carneiro asseveram:

    Na formulao original de Almond e Verba, as avaliaes subjetivas dos sistemas

    polticos podem ser divididas segundo trs tipos de orientao. A orientao

    cognitiva diz respeito ao conjunto dos conhecimentos e crenas relativas ao

    funcionamento do sistema poltico e ao papel dos indivduos e dos grupos sociais no

    interior do sistema no qual esto inseridos. A orientao afetiva determina os

    sentimentos que o indivduo nutre com relao ao sistema poltico e social.

    Finalmente, a orientao avaliativa - julgamentos e opinies sobre os objetos

    polticos - envolve a combinao de informaes, sentimentos e conhecimento sobre

    o funcionamento do sistema poltico, consubstanciados em valores que orientam as

    aes individuais (KUSCHNIR; CARNEIRO, 2010, p.230).

    Os diversos tipos de culturas polticas para Almond e Verba so derivados de duas

    dimenses. Uma a orientao com relao aos objetos polticos, como foi descrita logo

    acima por Kuschnir e Carneiro (2010). A outra seria o tipo de objeto ao qual se relacionam

    essas orientaes, podendo ser o sistema poltico como uma totalidade; as estruturas de

    incorporao das demandas individuais e coletivas; as estruturas executivas e administrativas

    encarregadas de dar resposta s demandas individuais e coletivas e, por fim, a percepo do

    sujeito como ator poltico.

    2 Mtodo de pesquisa amplamente utilizado em pesquisas de opinio pblica, de mercado e, atualmente, em

    pesquisas sociais que, objetivamente, visam descrever, explicar e/ou explorar caractersticas ou variveis de uma

    populao por meio de uma amostra estatisticamente extrada desse universo. Disponvel em:

    http://www.gestrado.org/?pg=dicionario-verbetes&id=203 Consulta: 01/02/2014.

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    Do entrelaamento das dimenses individuais e coletivas, Almond e Verba (1963)

    construram um modelo, identificando trs tipos bsicos de cultura poltica, quais sejam; a)

    cultura paroquial, b) cultura sdita e c) cultura participativa. Henrique Castro e Daniel

    Capistrano assim descrevem essas categorias:

    A primeira seria caracterizada por uma estrutura de valores tradicionais,

    descentralizada, em que os indivduos esto reduzidos esfera particular. A cultura

    sdita caracterizada por uma estrutura autoritria, marcada pela centralizao,

    idealizada como um meio termo entre a completa ausncia do indivduo em relao

    ao sistema poltico, na cultura paroquial, e o sentimento de completa incluso na

    esfera pblica, caracterstico da cultura participativa. No estudo publicado, o arranjo

    mais adequado ao surgimento e manuteno estvel de um regime democrtico

    est na combinao denominada Cultura Cvica, cujos representantes empricos mais

    prximos seriam os Estados Unidos e o Reino Unido (CASTRO; CAPISTRANO,

    2008, p.77).

    Construindo esse tipo de escala, entre os vrios tipos de cultura poltica, os autores

    chegaram concluso que existiam caractersticas que seriam de suma importncia para um

    estado pautado na democracia. Esses elementos estariam presentes nas naes que permitiam

    uma maior participao dos sujeitos de uma sociedade no jogo poltico. Para os autores, os

    EUA eram um bom exemplo de um pas que detinha essa cultura cvica.

    Esse tipo de pensamento deu origem chamada escola desenvolvimentista, que

    tinha como centro de seus estudos os processos de modernizao, destacando-se como

    discusso nuclear o levantamento de caractersticas democrticas. Nessa tendncia, os

    estudiosos acreditavam que, atravs de suas pesquisas, seria possvel auxiliar nos processos de

    transio de modelos polticos atrasados para modelos modernos, tendo como referencial a

    experincia liberal democrtica anglo-sax.

    A principal crtica ao modelo de Almond e Verba (1963) indicava um carter simplista

    da ideia de cultura cvica democrtica. Apontava-se um vis hierarquizante na investigao de

    uma mudana social e das formas de adeso a uma cultura poltica do tipo estadunidense e

    inglesa como sendo as ideais, uma vez que a hiptese era a de fomentar a influncia dos

    padres culturais e estruturas institucionais existentes nessas sociedades e a transposio

    dessas caractersticas para outras. Sobre a problemtica construda pelas Cincias Polticas e

    pela Antropologia, ngela de Castro Gomes afirma que as fundamentais eram as:

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    Naturalizao dos regimes democrticos e a construo de um parmetro de

    cidadania e de definio de poltica no marco institucional liberal-democrtico.

    Alm disso, apontou para a utilizao macia de metodologias quantitativas, que

    conduziam a um deslizamento do individuo para o coletivo, segundo a lgica

    simplista de que o social um agregado de individuais, o que desconsiderava

    princpios sociolgicos elementares e reduzia a complexidade cultural (GOMES,

    2005, p.28).

    A relao de dependncia entre cultura poltica e estabilidade democrtica apontava

    para um determinismo culturalista, entendendo a vinculao de valores polticos prvios que

    seriam a via para a instaurao de estados democrticos. Essa teria sido a ideia final do

    trabalho de Almond e Verba (1963).

    Aqui, retomamos a conjuntura em que The Civic Culture: political attitudes and

    democracy in five countries foi concebido. O conceito de cultura cvica, que na concepo da

    obra pioneira dos autores est entrelaado com o de cultura poltica, aparece nos anos

    seguintes Segunda Guerra Mundial e tambm em um contexto em que comeam a despontar

    regimes autoritrios. Os Estados Unidos assumiam a posio hegemnica como sendo o

    modelo de democracia. Com isso, possvel entender como Almond e Verba (1963) foram

    influenciados pelo ambiente socioeconmico e poltico em que estavam inseridos: a Guerra

    Fria. O intento dos autores vai ao encontro do interesse norte-americano em difundir seus

    iderios no restante do mundo e aumentar sua rea de influncia.

    Podemos perceber, durante toda nossa exposio, que a obra de Almond e Verba

    (1963) serviram para suscitar vrios questionamentos sobre o que se pode chamar de Cultura

    Poltica. Entendemos, tambm, que a proposta no conseguiu ir alm dos velhos dualismos,

    dos antagonismos, colocando algumas sociedades como atrasadas e outras como

    desenvolvidas. Muito disso explicado pelo lugar social dos autores (de onde escrevem, o lugar

    de formao acadmica, a nacionalidade). Todo esse mosaico acabou deixando brecha para a

    ideia engessada de geradores de valores e receptores destes. Visto dessa forma, esses aspectos

    empobrecem a esfera de anlise da poltica, criando o que deve ser, enxergando de maneira

    linear o processo histrico e construindo modelos que seriam os ideais para as relaes

    poltico-sociais e culturais.

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    Em uma reformulao por parte dos historiadores de Cultura Poltica, eles afastam-se

    dessa proposio inicial, sendo possvel expandir o conceito, dando-lhe novos significados.

    Desse modo:

    A categoria cultura poltica foi definida como um sistema de representaes, complexo e heterogneo, mas capaz de permitir a compreenso dos sentidos que um determinado grupo (cujo tamanho pode variar) atribui a uma dada realidade

    social, em determinado momento do tempo. Um conceito capaz de possibilitar

    aproximao com uma certa viso de mundo, orientando as condutas dos atores

    sociais em um tempo mais longo, e redimensionando o acontecimento poltico para

    alm da curta durao (GOMES, 2005, p.31).

    Com isso, possvel estender o escopo de Cultura Poltica, principalmente levando em

    considerao a existncia de vrias culturas polticas. Entende-se que h competio entre elas

    em alguns momentos, mas tambm existe um jogo de influncia entre elas, contrapondo-se,

    complementando-se em certas conjunturas, podendo em alguns momentos umas

    influenciarem mais que outras; contudo, uma no se sobrepe inteiramente, deixando espaos

    de articulao, de negociao.

    Essa releitura do conceito deve-se ao que a historiografia chama de Nova Histria

    Poltica, que assim descrita por Sandra Jatahy Pesavento:

    Abandonando formas ainda herdadas de uma tradio positivista, linear, seqencial

    e causal de anlise do poltico, ou ainda de um vis marxista, a ver a poltica como

    manifestao superestrutural de uma infraestrutura socioeconmica, ou ainda

    mesmo a uma vertente da cincia poltica, a estudar os comportamentos polticos

    dos grupos, os partidos e as eleies, o renascimento da histria poltica, a

    aproximao com a histria cultural rendeu bons frutos (PESAVENTO, 2005, p.76).

    Nessa nova perspectiva, torna-se de suma importncia analisar como os personagens

    se representam em determinada conjuntura e como esses intrpretes inseridos no cenrio do

    poltico passam do campo das ideias, suas representaes, s prticas polticas que, dentro de

    algo que possamos chamar de realidade, se configuram de maneira muito mais complexa.

    Ainda pensando nas representaes que os vrios grupos que compem a sociedade

    fazem de si, no queremos encontrar a gnese destas, muito menos transp-las de maneira

    mecnica para analisar nosso objeto. Entendemos que:

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    A constituio de uma cultura poltica demanda tempo, sendo um conceito que

    integra o universo de fenmenos polticos de mdia e longa durao. Uma

    postulao que no exclui a existncia de movimentos e de transformaes no

    interior e uma cultura poltica, mas que adverte para o fato de eles no serem nem

    rpidos, nem contingentes, nem arbitrrios, havendo postos mais resistentes e outros

    mais permeveis (GOMES, 2005, p. 31).

    Segundo a historiadora Ceres de Moraes, em seu trabalho intitulado Paraguai: a

    consolidao da ditadura de Stroessner 1954-1963, muitos estudos destacam uma cultura

    autoritria e clientelista no Paraguai. Para isso, procuram razes no processo colonial

    paraguaio e o papel desempenhado pelos jesutas; outros embasam-se na tese do clientelismo,

    sendo que neste caso a relao dos cidados se manteve por uma troca de favores com a elite

    (MORAES, 2008, p.08).

    Consideramos que os acontecimentos so datados, nicos. Em nosso trabalho,

    julgamos ser importante caracterizar a situao do pas em um perodo mais longo, a partir

    das primeiras ditaduras de Francia e dos Lpez. Procuramos no a gnese das ideias polticas

    paraguaias, mas como alguns episdios colaboraram para a construo de uma percepo

    poltica no Paraguai. Uma cultura poltica que foi formada dentro de um cenrio de

    instabilidade poltica e que proporcionou terreno frtil a vrios regimes ditatoriais.

    Culturas polticas exercem papel fundamental na legitimao de regimes, sendo seus

    usos extremamente eficientes. Em todos os casos, as culturas polticas articulam, de

    maneira mais ou menos tensa, ideias, valores, crenas, smbolos, ritos, mitos,

    ideologias, vocabulrio (GOMES, 2005, p. 32).

    Com essa reflexo sobre o conceito e pensando como podemos utiliz-lo em nossa

    apreciao dentro de uma perspectiva histrica, procuramos apontar alguns traos do fazer

    poltico no Paraguai. A partir disso, possvel perceber que a sociedade paraguaia esteve

    imersa em um processo bastante conflitivo e instvel da sua organizao, o que proporcionou

    uma militarizao do governo e gerou uma ideia de governabilidade com bases ditatoriais.

    Essa situao mostrou que durante longos perodos as aes dos que detiveram o

    poder estiveram aportadas em uma trade, utilizada para a manuteno dessa forma de

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    governar, composta por: Foras Armadas, Partido nico e um s Governante frente destes

    outros setores. No queremos dizer que isso seja uma frmula matemtica que possa

    explicar a situao do Paraguai, mas que o imaginrio muda de maneira vagarosa e que isso

    influenciou de maneira significativa o imaginrio poltico paraguaio.

    Cultura poltica: Paraguai em perspectiva

    O Paraguai um pas mediterrneo sem sada para o mar, localizado no centro do

    corao da Amrica do Sul, o que constituiu um grande problema para sua histria como

    estado independente. Ao contrrio dos seus vizinhos maiores, Argentina e Brasil, isso

    limitava sua insero no cenrio geopoltico no Cone Sul.

    Por muito tempo, o Paraguai foi administrado por um governador indicado pela Coroa

    Espanhola, tendo de dirigir-se diretamente ao vice-rei do Peru. A situao muda depois que a

    provncia comea a responder ao novo Vice Reinado de La Plata (1776), com sede em Buenos

    Aires. Historicamente o acesso ao oceano dava-se por meio fluvial via navegao nos rios do

    Prata, implicando, assim, que todas as embarcaes que rumassem para o Paraguai fossem

    autorizadas por Buenos Aires (SILVA, 2006, p. 24).

    Isso proporcionou uma relao de atrelamento no comrcio martimo, descontentando

    uma parcela da oligarquia paraguaia, deixando-a dependente dos portos Argentinos. Com esse

    acontecimento, repartiam-se as influncias entre os grupos dentro do Paraguai, o que obrigou

    parte da elite a se revoltar, culminando na independncia do pas.

    Quando o Paraguai se declarou independente da Espanha, em 1811, poucos dos seus

    habitantes tinham realmente alguma experincia em governar. Parte do problema

    dessa pequena repblica decorreu da prpria estrutura extremamente centralizada e

    suspeitosa do imprio hispnico. De tal modo que os membros da elite nativa,

    criollos, espanhis nascidos na Amrica, eram excludos das posies importantes

    no governo colonial. Cargos de confiana eram preenchidos por oficiais enviados da

    metrpole, tais como vice-reis, governadores, juzes e coletores de impostos, que

    freqentemente eram transferidos para outras partes do imprio, impedindo que

    criassem laos mais estreitos com as provncias (SILVA, 2007, p. 24).

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    Da sua independncia em 14 de maio de 1811 at o trmino da Guerra da Trplice

    Aliana3 em 1870, o pas teve frente de seu governo trs homens e trs grandes ditaduras: a

    de Jos Gaspar Rodrguez de Francia (1811-1840), a de Carlos Antonio Lpez (1844-1862) e

    a de Francisco Solano Lpez (1862-1870). Fatos que nos mostram uma particularidade da

    nao paraguaia, qual seja: a de governos longos e o poder centralizado.

    O perodo Francista

    Aps a independncia, a administrao do pas assumida provisoriamente por um

    triunvirato que governou por um curto perodo (1811-1813). Este ltimo foi composto por

    Juan Caballero e Fulgencio Yegros, militares do incipiente Exrcito paraguaio, e ainda

    Fernando de La Mora e Francisco Bogarim, homens letrados da poca; no entanto, destaca-se

    a figura de um advogado oriundo de Assuno, Jos Gaspar Rodrigues de Francia, o famoso

    Dr. Francia.

    No ano de 1813, Francia eleito pela maioria dos que podiam votar. Desse pleito,

    foram excludos os inimigos da liberdade, que se dividiam entre espaolistas (espanhis

    residentes no Paraguai) e os porteistas (parte da elite local favorvel a poltica de Buenos

    Aires). Essa oposio ligada aos interesses da Coroa espanhola criava uma resistncia aos

    interesses da direo instaurada no Paraguai nesse momento.

    No Congresso de 1816, Francia tornou-se o ditador vitalcio e conseguiu o ttulo de

    El Supremo, acarretando, segundo Paul Lewis, o incio de uma longa e dura tirania e

    tambm um fatdico incio para o desenvolvimento poltico paraguaio (LEWIS apud Silva,

    2007 p. 24). Francia intensificou a perseguio aos monarquistas logo aps chegar ao poder,

    caando direitos, confiscando bens, expulsando os que iam contra os interesses do novo

    governo paraguaio.

    Com isso, anulava tambm foras de antigos aliados que poderiam oferecer algum

    risco a sua hegemonia; entre eles, Pedro Juan Caballero e Fulgencio Yegros, importantes

    nomes no processo de independncia. Os planos caminhavam para que no existisse qualquer

    oposio.

    3 Os Paraguaios chamam de Guerra Grande ou Guerra Guau

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    A igreja teve as ordens expulsas do Paraguai e o estado apropriou-se dos seus bens.

    Essa medida foi uma reao do Ditador Perptuo ordem do papa Leo XII, em 1824, de

    que arcebispos e bispos na Amrica apoiassem os esforos de Fernando VII, rei da Espanha,

    para restabelecer sua autoridade sobre as antigas colnias (DORATIOTO, 2002, p. 25).

    Para garantir a eficincia de suas aes, Francia criou ferramentas para estabelecer as

    linhas de defesa de seu governo. Para isso:

    Imps rgidos parmetros comportamentais sociedade, numa espcie de estado-

    caserna, no qual tudo era direcionado manuteno de um exrcito forte. Homens

    entre 17 e 60 anos eram recrutados ao servio militar, ndios ou criollos, chegando o

    exrcito a contar com 5.500 homens nas tropas regulares e mais de 25.000

    reservistas, numa populao estimada de 375.000 almas (SILVA, 2007, p.26).

    Identificamos aqui medidas que fortaleceram uma das instituies que foram

    protagonistas na vida poltica paraguaia, o Exrcito. Entretanto, com uma especificidade,

    tendo frente um homem que no necessariamente precisava ser um militar, como mostra o

    caso de Francia, mas que governava com a ideia vertical - que existe uma hierarquia

    inquestionvel - contida nesse setor (militar).

    Para manter o status quo de seu governo, Francia manteve muito pouco contato com

    os pases vizinhos. E conservava sob controle do Estado o pequeno comrcio paraguaio, que

    mantinha uma tmida relao com a regio de Corrientes na Argentina e pela Vila de Itapa e

    com o Brasil. Isso, temporariamente, colocou o Paraguai longe das contendas da regio.

    Segundo Doratioto, o afastamento do Paraguai em relao s disputas platinas:

    Implicou o estabelecimento de um tipo de economia no qual o Estado se tornou

    regulador de todas as atividades e detentor do monoplio do comrcio de erva-mate,

    da madeira e do tabaco, os produtos mais significativos da economia nacional. Ao

    confiscar terras da elite tradicional, o poder econmico do Estado paraguaio

    fortaleceu-se (DORATIOTO, 2002. p. 25).

    Dessas terras, Francia organizou as Estncias da Ptria, que poderiam ser arrendadas

    aos camponeses ou exploradas pelo prprio Estado. Preferiu arrend-las, para manter um

    maior controle sobre os camponeses. Nas palavras de Guido Rodriguez Alcal:

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    Ele (Francia) preferiu arrendar as terras fiscais para assegurar uma renda, em vez de

    ter os arrendatrios submissos. Outra parte das terras fiscais foi destinada s

    fazendas da ptria, operadas, na sua maioria, com mo-de-obra escrava. Com o monoplio da propriedade da terra, com o produzido pelas fazendas da ptria, com o controle do comrcio exterior e o estabelecimento dos armazns do Estado, Francia conseguiu cobrir os gastos da administrao e do Exrcito e, ao mesmo

    tempo, governar sem a participao, nem o apoio popular (ALCAL, 2005, p. 46).

    Ainda no perodo, o Paraguai sofria com a possibilidade de uma invaso por parte da

    Confederao Argentina, originria de antigas disputas entre os pases. Teve como

    desdobramento a tentativa de irrupo ocorrida em 1830 sob o comando de Juan Manuel

    Rosas, com o intuito de se impor sobre as antigas provncias do vice-reino do Prata. O xito

    em conter essa incurso contribuiu com o discurso de proteo ptria e fortaleceu ainda mais

    o governo de Francia.

    Nesse sentido, foi possvel estabelecer um sistema militarizado e centralizado. O

    problema era que no dispunha de um sistema burocrtico racionalmente organizado e, nesse

    sentido, era inferior ao da colnia, que contava com corpo de funcionrios eficientes (Alcal,

    2005).

    Era preciso fomentar as relaes comerciais para que o Paraguai pudesse novamente

    oxigenar sua economia, o que s se daria com uma maior abertura ocorrida logo aps a morte

    de Francia em 1840. Da herana deixada pelo Supremo, identificamos o aparecimento de um

    corpo militar mais organizado como sendo, para ns, a mais importante.

    O Paraguai dos Lpez

    Com o fim da era Francista, duas juntas militares ostentaram seguidamente o poder,

    mostrando que at certo ponto, o exrcito era a nica fora organizada do pas (ARCE,

    1977, p.330). Depois disso, um triunvirato e, logo em seguida, uma assembleia composta por

    pessoas da elite paraguaia, que nomeou dois cnsules; Mariano Roque Alonso, militar, e o

    advogado Carlos Antonio Lpez.

    Em 1844, Carlos Lpez eleito presidente do Paraguai; com ele, o pas estende sua

    abertura comercial com os pases vizinhos e com a Europa. Dois anos antes, em 1842, o

    Imprio do Brasil reconheceu a independncia do Paraguai. Essa nova conjuntura demandava

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    uma modernizao da economia. Essa necessidade encontrava obstculos no governo de Juan

    Manoel de Rosas, governante de Buenos Aires, que dificultava o escoamento da produo

    paraguaia com medidas que limitavam a navegao pelo esturio do Prata. Alm disso, existia

    uma disputa pelo Uruguai que foi rea de litgio entre Brasil e Argentina por muito tempo, e

    isso tornava Rosas um governante muito mais cauteloso nas relaes estabelecidas com seus

    vizinhos.

    Era interessante para o Brasil neutralizar as foras de Rosas e a influncia que tinha no

    Uruguai, governado nessa poca por Manuel Oribe, alinhado com o governo argentino; assim,

    eram desfavorveis as pretenses brasileiras em relao navegao pelo Prata. Para

    contornar essa situao, o Brasil deu apoio aos opositores de Rosas, culminando em sua

    derrubada em 1952. As diversas contendas internas no Uruguai e na Argentina (relativa

    adeso de Buenos Aires Confederao) permitiram que o Brasil expandisse sua rea de

    influncia na regio.

    O Paraguai, dentro desse contexto, tinha como preocupao maior as diversas

    discusses sobre os limites e sobre a navegao no Prata. Em 1862, morre Carlos Antonio

    Lopez. Doratioto descreve assim o ltimo anseio de Carlos ao seu sucessor, seu filho

    Francisco Solano Lpez:

    Momento antes de expirar alertou Solano Lpez tem muitas questes pendentes, mas no busque resolv-las pela espada, mas sim pela caneta, principalmente com o

    Brasil. Carlos agiu para obter um lugar para o Paraguai no plano internacional, mas tinha conscincia da debilidade do seu pas, da o pragmatismo de sua poltica

    externa, pautada nos limites possveis. O falecido presidente no era um aventureiro,

    nem um teimoso, e como bom administrador tradicional, conhecia os limites do seu poder. Bem diferente seria a atuao de seu filho mais velho, ao ocupar a

    presidncia paraguaia (DORATIOTO, 2002.p.41).

    No governo de Francisco Solano Lpez, legatrio da famlia Lpez e General das

    Foras Armadas paraguaias, tem incio a Guerra da Trplice Aliana, conflito envolvendo

    Brasil, Argentina, Uruguai contra o Paraguai.

    Osmar Daz de Arce coloca que o Paraguay mantena una economia propia, un estado

    nacional independiente marco e instrumento a su vez de la nacionalidad que surgia bajo la

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    accin enrgica del Doctor Francia (ARCE, 1977, p. 330)4. Oscar Creydt, concordando com

    essa ideia, assim descreve a situao do Paraguai nesse perodo:

    En el Paraguay se estaba operando un rpido proceso de desenvolvimiento nacional

    independiente, sobre las bases echadas por la dictadura revolucionaria de Francia.

    Por esta va economica nacional lleg a adquirir un nivel de productividad que

    planteaba, con mayor intensidad que antes, la necesidad y la tarea de abrir nuevos

    mercados externos, de vincular al pas dirctamente a Europa. Los progresos de la

    navegacin a vapor suministraban nuevas posibilidades tcnicas para tal

    vinculacin. Un importante centro comercial y portuario haba surgido en

    Montevideo. Se abri la perspectiva de utilizar este como una base para las

    comunicaciones de ultramar, con independencia de Buenos Aires (CREYDT,2007,

    p. 101).5

    Essa ideia, de que o Paraguai antes da guerra era um pas que caminhava para o

    progresso com grandes chances de se modernizar e que tentava fugir da influncia capitalista,

    criou a tese de que Brasil e Argentina, manipulados pela Inglaterra, queriam acabar com o

    desenvolvimento do autnomo Paraguai.

    Esses argumentos se popularizaram com os trabalhos de autores como o historiador

    argentino Len Pomer e, no Brasil, Jlio Jos Chiavenato (os dois escreveram na dcada de

    1960). Ambos tentaram se contrapor imagem construda por uma historiografia tradicional

    que colocava Solano Lopez como um chefe sanguinrio e pssimo estrategista, e que, com

    suas decises, ocasionou a morte de milhares de cidados paraguaios em uma guerra que foi

    causada pelos interesses de um s homem.

    Segundo Francisco Doratioto:

    Na verdade, tanto a historiografia conservadora como o revionismo simplificaram as

    causas e o desenrolar da Guerra do Paraguai, ao ignorar documentos e anestesiar o

    4 O Paraguai mantinha uma prpria economia, uma estrutura de Estado nacional independente marco e

    instrumento por sua vez da nacionalidade que surgia sob a ao enrgica do Doutor Francia (ARCE, 1977, p. 330). (traduo do autor) 5 No Paraguai estava ocorrendo um rpido processo de desenvolvimento nacional independente, com base

    lanada pela ditadura revolucionria da Francia. Por esta via, a economia nacional adquiriu um nvel superior de

    produtividade. A intensidade do plantio era maior que antes, o que gerou a necessidade e a tarefa de abertura de

    novos mercados externos, que ligasse o pas diretamente a Europa. Os progressos da navegao a vapor

    fornecido pelas novas possibilidades tcnicas tornava isso possvel. Um centro comercial importante e porturio

    havia surgido em Montevidu. Abriu-se a perspectiva de usar isto como uma base para a comunicao no

    exterior, independentemente de Buenos Aires (Creydt, 2007, p. 101) (traduo do autor).

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    senso crtico. Ambos substituram a metodologia do trabalho histrico pelo

    emocionalismo fcil e pela denncia indignada (DORATIOTO, 2002, p.20).

    A forma de representar o Paraguai dentro desse conflito ocorrido no sculo XIX

    insere-se na situao poltica vivida na Amrica do Sul, no perodo em que os chamados

    revisionistas escreveram. Durante o perodo das ditaduras militares do Cone Sul, alguns

    personagens, inclusive Solano Lopez, ganharam um status de heri. No Paraguai, a figura de

    Solano foi enaltecida pelo governo de Alfredo Stroessner (1954-1989), que reforou a ideia

    revisionista.

    Os interesses do Paraguai tambm existiam. Havia a necessidade de escoar seus

    produtos e participar do jogo comercial e poltico do Prata. Embasamo-nos em Luiz Alberto

    Moniz Bandeira:

    Os interesses comerciais, sediados no porto de Montevidu, e as dificuldades

    econmicas no Paraguai [...] que precisava de sada para o mar e obter recursos a

    fim de manter seu desenvolvimento, convergiram no sentido de formar um s

    estado, ao qual as provncias argentinas de Entre Rios e Corrientes tambm se

    juntariam. Esse projeto, porm, no s se contraps aos esforos da burguesia

    mercantil de Buenos Aires, lutando ainda para unificar e integrar o territrio da

    Confederao Argentina, como colidiu com as polticas do Imprio do Brasil na

    bacia do Prata. E abortou. O Brasil interveio manu militari no Uruguai, onde apoiou

    a instalao de um governo favorvel aos seus desgnios. O Paraguai, em represlia,

    invadiu-lhe o territrio, na provncia de Mato Grosso, bem como o da Argentina, a

    fim de avanar sobre o Rio Grande do Sul (BANDEIRA, 2002, p.46).

    Percebemos que muitas foram as causas da Guerra da Trplice Aliana: os

    desentendimentos sobre questes fronteirias entre os pases envolvidos, a liberdade de

    navegao dos rios platinos, o interesse de expandir reas de influncia (em especial Brasil e

    Argentina), o anseio paraguaio em escoar sua produo. Essa gama de interesses culminou em

    um conflito que marcou a histria e deixou um saldo negativo para o Paraguai. Sobre o

    desfecho da guerra, uma das melhores snteses feita por Tlio Halpern Donghi:

    O Paraguai tornou-se um pas desmembrado e devastado; as conseqncias de sua

    derrota foram limitadas pelas divises que surgiram entre os vencedores. A

    Argentina protegia no Paraguai os que haviam regressado do exlio; o Brasil, na

    condio de obter os territrios contestados, deu seu aval a um governo dominado

    pelos generais de Lopez, incitando-o a resistir s reivindicaes territoriais

    argentinas. Afirmou-se assim o predomnio brasileiro, enquanto os novos

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    governantes organizavam a liquidao das terras pblicas; a reconstruo do

    Paraguai, muito lenta, tem lugar sob a gide da grande propriedade; o pas

    continuar mantendo seus traos econmicos, sobretudo com a Argentina, que

    absorve a maior parte de suas exportaes e de cujo sistema de navegao fluvial

    depende para a comunicao ultramar (DONGHI, 1975, p. 146).

    Vemos aqui um Paraguai com dificuldades em influenciar politicamente nas decises

    tomadas por seus vizinhos maiores; Brasil e Argentina.

    Falamos dos interesses dos pases vizinhos, mas importante destacar que existiu o

    interesse do capital estrangeiro nas relaes econmicas dos pases sul-americanos (a exemplo

    da Inglaterra e, posteriormente, dos Estados Unidos).

    Citando novamente Omar Diaz de Arce com relao ao capital estrangeiro:

    [...] El pas se abri al capital extranjero, sobre todo ingls, primero por la va de

    emprstitos, depus outorgndole concesiones territoriales e ferrocarrileras.

    Destruida gran parte de la produccin agrcola y renacido el latifundio en gran

    escala, sobre todo a partir de 1885, cuando el rgimen conservador legaliz las

    ventas masivas de los benes nacionales para cubrir las deudas del fisco, el sector

    fundamental de la economa paraguaya pas a ser el de las estancias y plantaciones

    orientadas a la exportacin. A ello se agreg a finales de siglo la extraccin del

    tanino de quebracho y el aprovechamento de los bosques de maderas duras por

    empresas extranjeras. Hasta la yerba mate, el cultivo tradicional, qued bajo el

    control de firmas inglesas, brasileas y argentinas (ARCE, 1977, p. 332).6

    Com o avano das relaes capitalistas, faz-se mister o interesse das potncias

    estrangeiras em adotar uma dinmica de auxlio para seus aliados e, assim, garantir seus

    interesses no restante do mundo. O caso da Guerra da Trplice Aliana mostra como o

    desenvolvimento internacional do capital mudou profundamente a dinmica nas relaes

    poltico-econmicas e culturais da regio platina.

    6O pas abriu ao capital estrangeiro, especialmente ingls. Primeiro, por meio de emprstimos, dentro de quatro

    meses, outorgando-lhe concesses territoriais e da estrada de ferro. Destruiu grande parte da produo agrcola e

    assim renasceu o latifndio em grande escala. Especialmente depois de 1885, quando o regime conservador

    legalizou a venda macia de bens nacionais para cobrir as dvidas do Tesouro. O setor-chave fundamental da

    economia paraguaia passou a ser as estncias e plantaes voltadas para a exportao. A isto se soma, no final do

    sculo, a extrao de tanino de quebracho e aproveitamento de florestas de madeira por empresas estrangeiras.

    At a erva mate, de cultivo tradicional, passou a ser controlada por empresas estrangeiras, brasileiras e argentinas

    (ARCE, 1977, p. 332).

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    Antes mesmo da morte de Solano Lpez em Cerro Cor em 1870, Brasil e Argentina

    j se articulavam para garantir um governo paraguaio mais favorvel aos seus interesses. A

    historiadora Ceres Moraes escreve sobre a data de 22 de junho de 1869:

    Com a presena do diplomata Paranhos, representante do Imprio do Brasil, e do Dr.

    Jos Roque Prez, representante do governo argentino, reuniu-se em Assuno uma

    assemblia que elegeu um triunvirato para governar o pas. Esse triunvirato era

    formado por Cirilo Antnio Rivarola, Jos Diaz de Bedoya e Carlos Loizaga. Um

    ano depois, em 13 de agosto de 1870, Rivarola e Loizaga renunciaram, sendo ento,

    no mesmo dia eleito Facundo Machain, presidente provisrio. No dia 14 de agosto,

    apenas um dia depois da escolha de Machain, Rivarola e Cndido Barreiro apoiados

    pelas tropas brasileiras, deram um golpe e Rivarola assumiu a presidncia

    (MORAES, 2000, p. 15).

    A instabilidade poltica da sociedade paraguaia abre espao para a interveno do

    Brasil e da Argentina:

    Entre 1870 e 1876 una fuerza de ocupacin brasilea en Paraguay, representaba el

    orden trado por los aliados. Como la contienda se llev a cabo bajo las banderas del

    liberalismo mitrista y la mayora de los repatriados estaban refugiados en Argentina,

    los primeros gobiernos fueron presididos por legionarios liberales, aunque la vicepresidencia se reservaba a alguno de los antiguos colaboradores de Solano

    Lpez que haba preferido colocarse bajo la preotecin brasilen (ARCE, 1977, p.

    333).7

    H que se levar em considerao que a Argentina detinha um nmero significativo de

    exilados paraguaios nesse perodo, na sua maioria, antigos opositores de Solano Lpez. Para a

    Argentina, era interessante que esses exilados voltassem ao Paraguai, assim teriam aliados

    importantes nesse momento. Em contrapartida, o Brasil instigava outra parcela que disputava

    o poder a se contrapor s ideias argentinas. Para isso, conservou antigos aliados de Solano, a

    fim de poder influenciar no processo de reestruturao do estado paraguaio.

    7 Entre 1970 e 1876, uma fora de ocupao brasileira no Paraguai representava a ordem trazida pelos aliados. Como a contenda foi realizada sob as bandeiras do liberalismo mitrista e as maiorias dos repatriados estavam

    refugiados na Argentina, os primeiros governos foram presididos por legionrios liberais, ainda que a vice presidncia se reservasse a alguns dos antigos colaboradores de Solano Lpez, que havia preferido colocar-se

    sob a proteo brasileira (ARCE, 1977, p.333) (traduo do autor).

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    Findado o perodo de Francia e dos Lpez, o Paraguai encontrava-se totalmente em

    migalhas. As oligarquias locais agora procuravam sobreviver e estabelecer um novo cenrio

    poltico. Para tanto, era essencial que tivessem o apoio de pases vizinhos mais fortes; no

    caso: Brasil e Argentina.

    Como herana de Francia e dos Lpez, chamamos a ateno para o fortalecimento dos

    militares. Isso com constitutivas do que Alain Rouqui designou como um militarismo sem

    militares. Nesse modelo, os chefes no conhecem a existncia de um exrcito regular, com

    uma formao militar especfica; e, ainda, como singularidade, observa-se a participao de

    civis sua frente, que adquirem alguma experincia militar nas rebelies que eles mesmos

    promovem (o caso de Francia e Carlos Lpez) ou como participe de um incipiente exrcito

    que tenta estabelecer o embrio de um militarismo (como Francisco Solano Lpez)

    (ROUQUI, 1984, p. 76-77).

    A interveno dos militares paraguaios comea a ser fator corriqueiro no panorama

    poltico, o que um fator dissonante ao seu papel. Segundo Jacques Lambert, diferente do

    mundo europeu, em que o exrcito tem a funo de defesa nacional contra o estrangeiro, na

    Amrica Latina:

    As funes que os exrcitos so o mais das vezes chamados a executar no so

    funes de defesa nacional contra o estrangeiro. Apesar de ter conhecido no sculo

    XIX verdadeiras guerras internacionais, - em 1847, a dos Estados Unidos contra o

    Mxico; de 1864 a 1870, a Trplice Aliana entre o Brasil, Repblica Argentina e

    Uruguai contra Solano Lpez, o ditador do Paraguai, e de 1869 a 1883, a do Pacfico

    entre o Chile, Peru e Bolvia -, a Amrica Latina viveu, a este respeito, muito menos

    perigosamente que a Europa. A partir dos anos 1880, no houve, na Amrica Latina,

    seno uma nica e verdadeira guerra, a que de 1932 a 1935 ops a Bolvia e o

    Paraguai (LAMBERT, 1979, p. 74).

    A citao acima valiosa, pois, apesar de entendermos que o exrcito tinha muito

    mais um carter de polcia militar que resguardava a segurana do chefe de estado, o Paraguai

    teve experincias de guerras contra seus vizinhos, contra o estrangeiro. Uma identidade

    nacional Paraguaia comea a ser construda, em especial, a partir desse momento histrico da

    Guerra da Trplice Aliana e, no sculo XX, com a Guerra do Chaco. Um nacionalismo em

    que as figuras de Francia e dos Lpez aparecem como sendo as de grandes heris. Uma

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    construo que aponta esses personagens como os defensores da ptria se cristaliza no

    imaginrio paraguaio.

    Considerao finais

    Olhando para trs, no corredor do tempo, podemos identificar que alm dos elementos

    externos, como, por exemplo, o interesse do Brasil e da Argentina em expandir suas

    influncias polticas sobre seus vizinhos menores, o Paraguai esteve no centro desse jogo

    pendular. Para se articular dentro dessa conjuntura, o Paraguai baseou-se em uma cultura

    poltica instaurada em um processo histrico que, desde a reorganizao do Estado paraguaio

    ps Guerra da Trplice Aliana, fez com que o Paraguai tivesse frente de sua administrao

    governantes com vocao para ditadores.

    As primeiras ditaduras constituram no Paraguai um modo especfico de fazer poltica

    que o difere do restante dos outros pases do Cone Sul. Suas condutas defensivas e ofensivas

    em relao aos seus vizinhos Brasil e Argentina que comearam com Jos Gaspar

    Rodrigues de Francia, o Supremo, que, posteriormente, deixou de herana ao governo de

    Carlos Antonio Lopez e que teve seu desfecho no governo de Francisco Solano Lopez

    deixaram tambm como legado uma cultura poltica que tinha como base um Estado

    militarizado e que tinha frente desse setor um homem forte, um ditador.

    No processo de reorganizao poltica paraguaia, que se deu logo aps o trmino da

    Guerra da Trplice Aliana, a sociedade paraguaia se viu imersa em conflitos, causados pelos

    interesses de grupos que detinham o poder local. Com isso, era possvel que outros

    candidatos a ditadores surgissem nesse contexto.

    O palco poltico desse pas se desenhou de forma catica, fruto de um cenrio de

    instabilidades, e que, por muitas vezes, deixou margem para a ascenso de ditaduras. A

    condio para o estabelecimento dessa cultura remonta ao processo de reorganizao poltica

    paraguaia aps a Guerra da Trplice Aliana (1864-1870), deste conflito sobrou a essa nao

    uma herana bastante amarga. O pas no conseguiu, depois desse perodo, dar um carter

    democrtico a suas instituies representativas, o que permitiu o estabelecimento de regimes

    longos baseados na fora. Um ciclo constante de golpes, sublevaes em um circuito de

    constante desordem poltica.

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