Artigo Das Moscas Aos Humanos_CH325 (1)

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    O desenvolvimento da pesquisa em genética de populações no Brasil teve forte

    impulso a partir da década de 1940, com a formação de uma geração de especialistas

    e a vinda ao país de importantes geneticistas estrangeiros, em programas apoiados

    por uma fundação norte-americana. Os estudos nessa área, iniciados com as

    moscas-das-frutas, em pouco tempo se deslocariam para as populações humanas,

    envolvendo em especial a variabilidade genética da população brasileira – formada por

    colonizadores portugueses, povos indígenas, negros trazidos da África e imigrantes

    de várias partes do mundo – e a questão da ‘mistura racial’ no país.

    Vanderlei Sebastião de Souza

    Departamento de História,

    Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro, PR)

    Ricardo Ventura Santos

    Departamento de Antropologia,

     Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    e Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz

    >>

    DAS MOSCASAOS HUMANOSA genética e a questão

    da ‘mistura racial’ no Brasil

    N o início do século 20, a ‘redesco-berta’ das leis da hereditarieda-de, propostas quatro décadasantes pelo monge austríaco Gre-gor Mendel (1822-1884), fez com que a ge-nética emergisse como uma promissora áreada biologia moderna, atraindo o interesse decientistas e instituições de pesquisa de diver-sos países. Aplicada de início aos estudos davariação e hereditariedade em vegetais, a ge-nética rapidamente passou a ser usada emestudos voltados ao melhoramento de se-mentes agrícolas e de espécies animais.

    No Brasil, a genética começou a ser usadaainda na primeira metade do século 20, eminstituições como a Escola Superior de Agri-cultura Luiz de Queiroz (Esalq) e o InstitutoAgronômico de Campinas (IAC). No campoda genética de populações, o desenvolvimen - to de pesquisas ocorreria a partir dos anos1940, e teria proeminência, nesse aspecto, aUniversidade de São Paulo (USP), fundada em1934. A principal liderança nessa área de es-tudos foi o médico e biólogo André Dreyfus(1897-1953), pioneiro na disseminação dagenética mendeliana no Brasil.

    As pesquisas sobre genética na USP tive-ram grande impulso em razão do apoio daFundação Rockefeller. Na década de 1940, de-vido à situação gerada pela Segunda GuerraMundial, essa organização norte-americanaampliaria sua influência na América Latina,transferindo parte de seus fundos de coope-ração da Europa, Ásia e África para países la-tino-americanos, em especial em áreas estra-tégicas da ciência e da agricultura. No Brasil,no campo científico, uma das áreas que maisreceberam investimento da Fundação foi agenética, apoiada por mais de três décadas.O apoio incluiu financiamento para formaçãoe treinamento de cientistas, concessão de bol-sas de pesquisas, montagem de laboratórios esuporte para pesquisas de campo, segundo re-latam vários estudos sobre o período.

    Um evento central para essa relação entrea Fundação Rockefeller e a genética brasileiraocorreu em 1943, quando o renomado geneti-cista Theodosius Dobzhansky (1900-1975), deorigem russa e radicado nos Estados Unidosdesde os anos 1920, foi indicado por essa orga-nização para desenvolver um projeto de coope-ração científica com geneticistas da USP – o

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    Genética humana Pelo menos até o final da déca-da de 1950, boa parte dos geneticistas brasileiros traba-lharia com estudos de genética de populações de moscas--das-frutas, ou mesmo com genética animal e vegetal.No entanto, a partir de meados dessa década, a genéticahumana passaria a ocupar um lugar especial na agendade pesquisas de um grupo de geneticistas de diferentesuniversidades do país, formando uma duradoura tradiçãocientífica. Essas pesquisas abordariam em especial a es-trutura genética de populações humanas e envolveriainvestigações sobre fatores evolutivos, casamentos con-sanguíneos, genética médica, carga genética, grupos san-guíneos, polimorfismos genéticos e ‘mistura racial’, comomostraram Salzano e Freire-Maia em trabalho de 1967(ver ‘A genética é meu

    hobby ’, em

    CH   256). Boa parte

    desses estudos seriam feitos pelos próprios geneticistasque vinham trabalhando com drosófilas (chamados de‘drosofilistas’). A partir de então, eles passariam a se de-dicar à genética de populações humanas.

    Desde o surgimento da teoria sintética da evolução edos estudos de populações naturais, como os realizadoscom as moscas das frutas e outros animais, formou-se acompreensão de que era possível analisar o processo deevolução e a estrutura genética do homem da mesmamaneira empregada para estudar populações naturais.Nesse contexto, as investigações sobre os efeitos da ‘mis-cigenação racial’ e os fatores evolutivos (mutação, sele-ção, fluxo gênico e oscilação genética) entre as popula-

    ções brasileiras ganhariam destaque e se transformariamem objetos promissores da genética brasileira.

    O interesse pelos estudos de genética de populaçõeshumanas no Brasil pode ser explicado a partir de algunsfatores específicos. Em primeiro lugar, estava em questãoa própria formação da população brasileira, apontadacomo amplamente miscigenada e, ao mesmo tempo, comgrande diversidade de grupos geneticamente isolados –caso de determinadas populações indígenas. Um segun-do aspecto estava associado às características demográ-ficas e sociais do país, no qual altas taxas de natalidadee mortalidade conviviam com graves problemas de saúdepública. Outro fator foi a existência no Brasil de umalonga tradição intelectual e científica que, ao menos des-de meados do século 19, colocou a questão da formaçãoracial brasileira como o principal dilema para pensar aconstrução da nação e da identidade nacional.

    Um aspecto importante para a emergência da gené-tica de populações humanas no Brasil foi a realização,entre os anos 1920 e 1940, de pesquisas, em populaçõesbrasileiras, sobre grupos sanguíneos (sistema ABO) esobre variações genéticas (polimorfismos) associadas aesses grupos. Nesse período, vários pesquisadores sededicaram a esses estudos, envolvendo populações dediferentes regiões do Brasil, com destaque para os tra-balhos de médicos e hematologistas como Ernani Mar-tins da Silva (1914-1948), Fritz Ottensooser (1891-1974),Carlos da Silva Lacaz (1915-2002) e Pedro Clóvis Jun-

    A ‘mistura racial’  Na área da genética de popula-ções humanas, a questão da ‘mistura racial’ foi uma dasque mais mobilizaram o interesse dos geneticistas brasi-leiros. Em sintonia com o debate promovido logo após aSegunda Guerra Mundial sobre o significado das dife-renças raciais e do próprio conceito de ‘raça’, os estudosde populações humanas procuravam compreender osefeitos da miscigenação, o processo evolutivo e a varia-bilidade genética na espécie humana.

    Nesse período, ocorreu um esforço internacional pararediscutir a questão racial, motivada em grande medidapor iniciativas da Organização das Nações Unidas paraa Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e de outrasagências governamentais no sentido de dar uma respos-ta ao racismo e seus efeitos catastróficos, como os casosque levaram ao chamado Holocausto (o extermínio de judeus pelos nazistas). Sob a coordenação da Unesco, asprincipais autoridades dos campos da antropologia e da

    genética humana seriam convidadas para participar des-se debate, o que resultaria na publicação das quatro De-clarações da Unesco sobre a questão racial.

    Entre os geneticistas de populações humanas, havia acompreensão de que o Brasil era um dos lugares maisadequados para o estudo de ‘mistura racial’, em razão dadiversidade genética e das condições sociais e demográ-ficas do país, como ressaltaram Salzano (em 1986) e Sal-danha (em 1989). Essas características, como já destaca-do, permitiriam que o Brasil fosse visto como um verda-deiro ‘laboratório racial’, o que pode ser constatado notítulo de um dos livros (Brasil: laboratório racial , de 1973)do geneticista Newton Freire-Maia (ver ‘O acaso na vidado pesquisador’, em CH   49). Antes ainda, em 1967, os

    queira (1916-2011). Entre esses traba-lhos estão estudos sobre grupos sanguí-neos e fator Rh em brancos, negros,mestiços e indígenas, pesquisas sobredoenças hereditárias como a anemiafalciforme, além de investigações sobremistura racial.

    Por último, outro fator decisivo parao interesse em genética de populaçõeshumanas no Brasil foi o intercâmbioentre a geração de ‘drosofilistas’ brasi-leiros, quase todos formados em tornode Dobzhansky, e geneticistas norte--americanos como James Neel (1915-2000) e Newton Morton, autoridadesimportantes no campo da genética hu-mana. No início dos anos 1960, tantoNeel quanto Morton vieram ao Brasil

    para desenvolver projetos de pesqui-sas relevantes sobre populações brasi-leiras. Essas pesquisas foram feitas emcooperação com jovens geneticistas doBrasil, muitos deles com treinamentoobtido nas universidades de Michigane do Havaí, onde atuavam Neel e Mor-ton, respectivamente.

    Figura 2. Antonio Rodrigues Cordeiroministrando aula de pós-graduação emgenética na Universidade Federal do Rio Grandedo Sul, possivelmente na década de 1960

    chamado Programa Brasileiro de GenéticaEvolucionária de Populações. Conhecidocomo um dos principais formuladores da‘teoria sintética da evolução’ e respeitadopor suas pesquisas com moscas-das-frutas(drosófilas) em ambientes naturais, Do-bzhansky veio ao Brasil realizar pesquisase treinar geneticistas brasileiros nas novastécnicas da genética evolutiva.

    Estão entre os cientistas treinados porDobzhansky, direta ou indiretamente, no-mes como Crodowaldo Pavan (1919-2009),Antonio Brito da Cunha, Rosina de Barros,Antonio Rodrigues Cordeiro, Antonio Ge-

    raldo Lagden Cavalcanti, Newton Freire--Maia (1918-2000), Francisco Salzano, Os-valdo Frota-Pessoa (1917-2010) e PedroHenrique Saldanha (ver ‘O caçador de dro-sófilas’, em CH  269 e ‘Mestre de mestres’,em CH   207). Esses e outros cientistas for-mariam, a partir dos anos 1950, importan-tes laboratórios e grupos de pesquisa sobregenética em diferentes estados do Brasil.

    Figura 1. Primeiro laboratório de genética daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, localizadono porão da Faculdade de Direito, em 1949

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    próprios Freire-Maia e Salzano escreveram que, “devidoà extrema variabilidade de seus grupos étnicos originais,à sua elevada taxa de miscigenação e sua distribuição portoda uma gama de condições ambientais”, as populaçõesbrasileiras “apresentam ao geneticista e ao antropólogouma oportunidade ímpar para o estudo de problemas dosmais fascinantes e complexos”.

    Para esses geneticistas brasileiros, além da diversi-dade de grupos indígenas que habitavam o território na-cional, os próprios colonizadores portugueses, bem comoos escravos trazidos da África a partir do século 17, tam-bém tinham origens geográficas bastante distintas. So-mam-se a isso as variadas correntes de imigração que oBrasil viveu entre os séculos 19 e 20, compostas em es-pecial por alemães, italianos, suíços, espanhóis, france-ses, belgas, austríacos, poloneses, russos, árabes e japo-neses. Todas essas diferentes populações, segundo Sal-zano e Freire-Maia, “intercruzaram-se com intensidadevariável e sofreram influência dos mais diversos climas,desde as zonas temperadas do Sul até a úmida florestatropical e as regiões áridas do Nordeste”. Os geneticistasacrescentam que esses contingentes humanos ainda te-riam enfrentado “ponderáveis problemas médicos e sa-nitários”, criando também “pressões seletivas de mag-nitudes diversas”.

    Interpretações semelhantes, comuns nos trabalhos dageração de geneticistas brasileiros formados no pós-Se-gunda Guerra, serviam de justificativa para seus projetosde investigação sobre a formação racial brasileira, temaque tanto inquietava intelectuais e cientistas do país des-de o final do século 19. Em diálogo com a história – dacolonização e da ocupação do território nacional, dos pro-cessos migratórios e da própria realidade social brasilei-ra –, a genética de populações procurava compreender aformação do Brasil com base em aspectos genéticos, an-

    tropológicos e demográficos. Com a introdução de novos

    Sugestões para leitura

    PAVAN, C. e CUNHA, A. B. ‘Theodosius Dobzhansky and the development ofgenetics in Brazil’, em Genetics and Molecular Biology , v. 26-3, p. 387, 2003.

    SALDANHA, P. H. ‘Mistura de raças, mistura de genes’, em Ciência Hoje , nº 59,p. 48, 1989.

    SALZANO, F. M. ‘Em busca das raízes’. Ciência Hoje , nº 25, p. 48, 1986.

    SALZANO, F. M. E FREIRE-MAIA, N. Populações brasileiras: aspectosdemográficos, genéticos e antropológicos . São Paulo, Cia Editora Nacional,1967.

    SOUZA, V. S. E SANTOS, R. V. ‘The emergence of human population geneticsand narratives about the formation of the Brazilian nation (1950 e 1960)’,em S tudies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences ,v. 47, p. 97, 2014.

    NA INTERNET

    ROSENBERG, K. R. e TREVATHAN, W. R. ‘The evolution of human birth’,em Scientific American , v. 13, p. 80, 2003 (tradução em portuguêsdisponível em www.icb.ufmg.br/lbem/aulas/grad/evol/humevol/ evol-nasc-humano.html).

    feita pelo antropólogo norte-americano Charles Wagley(1913-1991), entre os estudos de populações de Salzanoe Freire-Maia e os trabalhos sociológicos sobre raça erelações raciais produzidos em meados do século 20 porFlorestan Fernandes (1920-1995), Octávio Ianni (1926-2004), Oracy Nogueira (1917-1996), Fernando HenriqueCardoso, Thales de Azevedo (1904-1995) e outros cien-tistas sociais. Wagley chegou a afirmar que as pesquisasem genética de populações, apoiadas em instrumentos,técnicas e teorias recentes, vinham sendo usadas paraconfrontar dados e teorias sociológicas, colaborando parao conhecimento do Brasil e das populações brasileiras.

    Figura 3. Theodosius Dobzhansky (à esquerda),Antonio Rodrigues Cordeiro (ao fundo) e FranciscoSalzano (à direita), na década de 1960

    instrumentos e perspectivas cientí-

    ficas, os geneticistas buscavam, aci-ma de tudo, entender os efeitos doamplo processo de miscigenaçãoocorrido no Brasil desde a chegadados primeiros colonizadores.

    Pode-se dizer, então, que os estu-dos genéticos de ‘mistura racial’ nãoapenas se conectavam às visões econcepções formuladas pelo pensa-mento social brasileiro, mas tambémse assemelhavam aos próprios en-saios de interpretação sobre o país

    publicados no início do século 20.Isso talvez explique a aproximação,

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