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Trip 184 Colunas Antivírus Assuntos: Comportamento Os Gregos e o silicone Depois de séculos preocupada com a alma, agora a humanidade está obcecada com os corpos 15.12.2009 | Texto por André Caramuru Aubert*, Fotos eric yahnker / juanita horsetits Depois de séculos preocupada com a alma, uma herança grega, agora a humanidade está obcecada em turbinar o corpo – sem se dar conta de que um não existe sem o outro Não por acaso, o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, catatau de 1.136 páginas do venerando filósofo francês André Lalande, que consulto para escrever esta coluna, dedica apenas um minúsculo verbete, 14 linhas, para “corpo”. E três generosas páginas para “alma”, páginas em que pululam personagens como Aristóteles, Epicuro, Tertuliano, Descartes, Platão, Berkeley e Diógenes Laércio. Pois somos gregos; somos, querendo ou não, herdeiros deles, do modo de pensar deles. A Igreja católica, para construir um ideário que convencesse os céticos, foi obrigada, com (São) Tomás de Aquino e (Santo) Agostinho, a mesclar a mágica e louca irracionalidade das escrituras com a lógica implacável dos aristotélicos. Como somos gregos, nos acostumamos a separar “corpo” de “alma”, dando status de nobreza à alma e de pobreza ao corpo, como se essa separação, essa hierarquia fossem naturais. Não são. Para os pós-gregos, fôssemos cristãos, judeus ou muçulmanos, a alma sempre teve um status superior, sobrevivendo ao corpo (mesmo quando este, carregado de explosivos, explode) e, eventualmente, herdando paraísos (com ou sem as 72 virgens), purgatórios e infernos ou até reencarnando em novos corpos. De qualquer forma, essa polêmica de corpo versus alma tem origem no simples fato de que a grande maldição humana é nossa necessidade (e capacidade) de pensar sobre a origem e, principalmente, o fim. Nenhum outro animal fica elucubrando sobre o fim. Se você é um peixe e um peixe maior vem te comer, você tenta escapar. Mas não passa as horas vagas pensando no que vai acontecer se, e quando, o peixão te alcançar. Já o Homo “centro do universo” sapiens não apenas pensa, não se conforma. Como é que eu, tão bacana, charmoso e sofisticado, vou morrer? A luz vai simplesmente se apagar? Ah, não! Pode dar trabalho, custar dinheiro e sacrifícios, mas vou inventar Deus, vida pós-morte e ainda gerar empregos para rabinos e pastores. Foi assim que fizemos a alma, sempre fresquinha, sobreviver aos corpos cada dia mais velhos, fracos, enrugados e nojentos. Corpos enciborgados Corta para hoje. Religião não cola mais. No ocidente, muita gente ainda vai aos templos. Mas quantos acreditam mesmo naquilo tudo? Nos rituais? Aposto que muito poucos. A maioria vai por hábito, comodismo ou por um sentimento de “na dúvida, deixa eu me garantir”. Então, se a ideia da vida eterna não convence, a obsessão pelo corpo, em oposição à alma, cresce. Se você não é mesmo imortal, vai tratar de prolongar a vida, começando pela adolescência, que agora vai até os 30 e poucos, e evitar o quanto puder a velhice, antes respeitável e agora desprezível. Será preciso então se cuidar, fazer esporte, se alimentar bem? Sim, mas você pode se agarrar na tecnomedicina, que promete para breve uma quase infinita sobrevida aos corpos, enciborgados pela troca de peças defeituosas por outras, novas, eletrônicas, silicônicas ou “celulastroncamente” criadas. Que tal, por exemplo, trocar suas lentas pernas por um par de Nike Leg Runners, mais fashion e adequadas às demandas atuais? Ou seus olhos cansados por Oakley SightSeekers, com cor customizável e visão noturna? E, quando chegarmos a esse ponto, dê-se o braço a torcer, o que fará falta será um pouquinho de Aristóteles, de Grécia, de alma. Pois será que não estaremos tentando, no fim das contas, basicamente prolongar a vida besta, vazia e consumista dos nossos corpos artificialmente excitados, bronzeados e bem torneados destes tempos contemporâneos? *André Caramuru Aubert, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é[email protected]

Artigos Corpolatria

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Artigos para análise sobre o Corpo - Ens. Médio

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Assuntos: Comportamento

Os Gregos e o silicone Depois de séculos preocupada com a alma, agora a humanidade está obcecada com os corpos 15.12.2009 | Texto por André Caramuru Aubert*, Fotos eric yahnker / juanita horsetits Depois de séculos preocupada com a alma, uma herança grega, agora a humanidade está obcecada em turbinar o corpo – sem se dar conta de que um não existe sem o outro

Não por acaso, o Vocabulário técnico e crítico da filosofia, catatau de 1.136 páginas do venerando filósofo francês André Lalande, que consulto para escrever esta coluna, dedica apenas um minúsculo verbete, 14 linhas, para “corpo”. E três generosas páginas para “alma”, páginas em que pululam personagens como Aristóteles, Epicuro, Tertuliano, Descartes, Platão, Berkeley e Diógenes Laércio. Pois somos gregos; somos, querendo ou não, herdeiros deles, do modo de pensar deles. A Igreja católica, para construir um ideário que convencesse os céticos, foi obrigada, com (São) Tomás de Aquino e (Santo) Agostinho, a mesclar a mágica e louca irracionalidade das escrituras com a lógica implacável dos aristotélicos. Como somos gregos, nos acostumamos a separar “corpo” de “alma”, dando status de nobreza à alma e de pobreza ao corpo, como se essa separação, essa hierarquia fossem naturais. Não são. Para os pós-gregos, fôssemos cristãos, judeus ou muçulmanos, a alma sempre teve um status superior, sobrevivendo ao corpo (mesmo quando este, carregado de explosivos, explode) e, eventualmente, herdando paraísos (com ou sem as 72 virgens), purgatórios e infernos ou até reencarnando em novos corpos. De qualquer forma, essa polêmica de corpo versus alma tem origem no

simples fato de que a grande maldição humana é nossa necessidade (e capacidade) de pensar sobre a origem e, principalmente, o fim. Nenhum outro animal fica elucubrando sobre o fim. Se você é um peixe e um peixe maior vem te comer, você tenta escapar. Mas não passa as horas vagas pensando no que vai acontecer se, e quando, o peixão te alcançar. Já o Homo “centro do universo” sapiens não apenas pensa, não se conforma. Como é que eu, tão bacana, charmoso e sofisticado, vou morrer? A luz vai simplesmente se apagar? Ah, não! Pode dar trabalho, custar dinheiro e sacrifícios, mas vou inventar Deus, vida pós-morte e ainda gerar empregos para rabinos e pastores. Foi assim que fizemos a alma, sempre fresquinha, sobreviver aos corpos cada dia mais velhos, fracos, enrugados e nojentos. Corpos enciborgados Corta para hoje. Religião não cola mais. No ocidente, muita gente ainda vai aos templos. Mas quantos acreditam mesmo naquilo tudo? Nos rituais? Aposto que muito poucos. A maioria vai por hábito, comodismo ou por um sentimento de “na dúvida, deixa eu me garantir”. Então, se a ideia da vida eterna não convence, a obsessão pelo corpo, em oposição à alma, cresce. Se você não é mesmo imortal, vai tratar de prolongar a vida, começando pela adolescência, que agora vai até os 30 e poucos, e evitar o quanto puder a velhice, antes respeitável e agora desprezível. Será preciso então se cuidar, fazer esporte, se alimentar bem? Sim, mas você pode se agarrar na tecnomedicina, que promete para breve uma quase infinita sobrevida aos corpos, enciborgados pela troca de peças defeituosas por outras, novas, eletrônicas, silicônicas ou “celulastroncamente” criadas. Que tal, por exemplo, trocar suas lentas pernas por um par de Nike Leg Runners, mais fashion e adequadas às demandas atuais? Ou seus olhos cansados por Oakley SightSeekers, com cor customizável e visão noturna? E, quando chegarmos a esse ponto, dê-se o braço a torcer, o que fará falta será um pouquinho de Aristóteles, de Grécia, de alma. Pois será que não estaremos tentando, no fim das contas, basicamente prolongar a vida besta, vazia e consumista dos nossos corpos artificialmente excitados, bronzeados e bem torneados destes tempos contemporâneos? *André Caramuru Aubert, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é[email protected]

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Homem de Mídia Assuntos: Ativismo, Comportamento, Tecnologia

Mais África no computador A informática usa pouco as potencialidades do corpo humano; falta ginga à cibernética 15.12.2009 | Texto por Carlos Nader Fotos eric yahnker / abaorption cycle (day time edition) A informática ainda usa pouco as potencialidades do corpo humano. faltam ginga e malemolência à cibernética Antes de se transformar num catálogo tendencioso de consumo tecnológico travestido de revista de tendências tecnoculturais, a Wired catalisou as ideias de uma geração de pioneiros do ciberespaço. Isso foi nos anos 90. Entre as

seções mais interessantes da época havia uma coluna especial, chamada justamente Idées Fortes, assim mesmo, em francês, que eu esperava avidamente para ler, mês a mês. Lembro que um dos textos que mais me marcaram foi assinado pelo Jaron Larnier, um programador rastafári que clamava por “mais África no computador”. A África em questão era metafórica, sinônimo de um uso do corpo mais livre e integral. O colunista lembrava que o computador é uma invenção coletiva de um grupo de nerds norte-ocidentais, essa gente bem pouco bronzeada que tem seu valor, mas que não tem quase nenhuma relação com o próprio corpo e menos ainda com o corpo dos outros. Para Larnier, a falta de ginga da turma do Vale do Silício teve um impacto fundador no manejo frio e cerebral de hardwares e softwares. Não é surpresa então que até hoje a nossa principal interface física com a tecnologia da informação seja a ponta dos dedos. Ainda somos digitais através das digitais. Bom, é verdade, quase todos os adultos sabem, que é possível fazer algumas coisas esfuziantemente físicas com a pontinha de um dedo, em qualquer área. E é verdade também que nesses últimos anos até houve algum progresso na “africanização” da informática, mas ainda me pergunto bastante: por que é que

ainda não mergulhamos de corpo inteiro na virtualidade tecnológica? Guerreiros autômatos Os anos de maturação da TI trouxeram novidades como por exemplo o Nintendo Wii e alguns outros gadgets mais malemolentes, de uso civil ou militar, médico ou esportivo, científico ou sexual, que transcendem a ponta do dedo. Eles são exceção. O fato é que ainda há hoje tanto de África na tecnologia quanto há de tecnologia no continente africano. Ou seja, relativamente pouco. O corpo humano ainda não invadiu a cibernética. A novidade é que é a cibernética que está invadindo o corpo humano. A invasão tecnológica, como sempre, começa pelos campos militar e médico para depois se estender para os outros. Já há microcâmeras percorrendo as entranhas de pacientes em grandes hospitais do mundo inteiro. Marcapassos cerebrais são implantados com frequência. Operações robotizadas não assustam mais ninguém. O que assusta, mas está a pleno vapor no hemisfério norte, é a corrida pela construção de nanoarmas e guerreiros autômatos ou semiautômatos. Nas próximas décadas, o implante de metal eletrificado na carne humana vai virar carne de vaca. Chips, próteses eletrônicas, monitoramento audiovisual etc. A fronteira física entre corpo e máquina tomará contornos novos. O conceito de mestiçagem adquirirá novos significados. Não tão novos assim porque, mesmo ainda não fisicamente invadidos, já somos em parte máquina no que diz respeito à nossa atividade mental. O cérebro contemporâneo é dividido em várias partes, entre elas o hipocampo, o lobo frontal e o Google. Como toda a revolução tecnológica, esta que vai colonizar o nosso corpo não é intrinsecamente boa nem má, desde que o debate ético se mantenha aberto e sempre norteado pela manutenção da liberdade. Nesse sentido, é preciso garantir que a tecnologia, que nunca conseguiu incorporar totalmente a África em sua estrutura, não acabe também por eliminar o que ainda resta de África, em diferentes graus, nos corpos que vivem em todos os continentes. *CARLOS NADER, 43, é diretor do documentário Pan-cinema permanente. Seu e-mail é[email protected]

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Outras Palavras Assuntos: Ativismo e Comportamento

O prazer dos limites É necessário erotizar a sustentabilidade e despertar o desejo das pessoas pela moderação 15.12.2009 | Texto por Ricardo Guimarães* Fotos eric yahnker / war & piece of ass Para que as pessoas se conscientizem da importância de salvar o planeta – o corpo da humanidade –, é necessário erotizar o conceito de sustentabilidade, despertar o desejo das pessoas pela ideia de moderação Caro Paulo, Ultimamente tenho experimentado certo sentimento de gratidão ao meu corpo. Cada vez que vivencio algo gratificante que me faz mais feliz, mais alegre, mais satisfeito ou mais rico em algum aspecto, eu me surpreendo incluindo meu corpo na lista de agradecimento aos que viabilizaram aquela experiência. Isso nunca tinha acontecido antes. Fico pensando por que agora. Provavelmente porque os limites do meu corpo não são mais os mesmos de anos atrás e eu percebo o esforço que ele faz para me levar a essas experiências. E não se trata só de mobilidade. É sono, digestão, humor, circulação, tudo o que me proporciona um mínimo de bem-estar para usufruir da realização dos meus desejos. Isso tem me levado a estudar e conhecer mais intimamente o meu corpo e a cuidar dele cada vez melhor. Com certeza essas descobertas têm a ver com o meu processo de amadurecimento, o que tem me ajudado muito a ter uma boa vida e, o mais importante, a entender a relação entre o meu corpo e os meus desejos. Por mais estranho que pareça, essa conscientização forçada tem me ajudado a aprofundar a tese de que é necessário erotizar (ato de provocar desejo) a sustentabilidade, para que as pessoas queiram efetivamente utilizá-la como inspiração para criar um estilo de vida mais integrado, harmônico, prazeroso e, portanto, de maior satisfação. Vejamos: o planeta é o corpo da humanidade. É ele quem proporciona a satisfação de nossos desejos. E, assim como nosso corpo, o planeta tem limites. Então fica a questão entre os limites do planeta e a satisfação dos nossos desejos. Como na nossa civilização ocidental a satisfação dos desejos está relacionada à liberdade ilimitada para fazer o que se quer com o corpo, a noção de limites do planeta é um grande estraga prazeres. É aí que mora a dificuldade da sustentabilidade: entusiasmar as pessoas. Porque, infelizmente, ela chegou à nossa cultura com a noção de restrição/culpa e não de potencialização do prazer. A noção de limite do planeta e do nosso corpo nos chega por meio do mundo concreto da ciência, que revela nossa identidade e tem impacto fundamental no nosso amadurecimento e na nossa felicidade. É essa noção de limite que viabiliza o prazer, a evolução e a realização do ser humano. O resto é ignorância. Ou manipulação de interesses políticos e econômicos para manter o status quo – a Dilma e o Lula sabem do que estou falando. SUSTENTABILIDADE ERÓTICA O tema é grande, e neste espaço só vai dar para pautar o assunto. Mas fica a sugestão para os estudiosos da relação limite/prazer fazerem sua contribuição para refundarmos a sustentabilidade com o sedutor erotismo que permitirá sua reapresentação à sociedade como estágio de evolução e amadurecimento da nossa civilização. Para tanto, recomendo fortemente a leitura do riquíssimo artigo “The Joy of Less”, de Wendy Steiner, publicado na edição de novembro/dezembro da Adbusters e na edição primavera/verão da Harvard Design. Reconhecer o prazer dos limites, parodiando o maravilhoso O poder dos limites (editora Mercur), de Gyorgy Doczy, vai nos levar a experiências sensoriais com mais significado e menos predatórias; evolução necessária principalmente se nossos desejos nos levam a impor ao corpo e ao planeta uma agenda muito maior do que eles podem sustentar. Hora do almoço. Vou retribuir ao meu corpo o prazer que ele me proporcionou de redigir este texto. Abraço saudoso do amigo, Ricardo *Ricardo Guimarães, 60, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é [email protected]

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No mundo encantado dos corpos Lúcio Alves de Barros* Não deve causar espanto a procura desesperada que hoje assistimos em relação ao corpo perfeito. Penso que a discussão chega a ser ridícula, mas é incontestável que boa parte das pessoas tem o sonho, o desejo e tentam de tudo para frear o tempo e, por extensão, a finitude da estrutura corporal. É claro que esta empreitada não passa de um grande engano, afinal duas coisas são inexoráveis: (1) caminhamos para morte e (2) nosso corpo jamais será como de outrora. Como qualquer ser vivo, nascemos, amadurecemos, damos frutos e morremos. Este é o grande espetáculo da vida. Este é o grande segredo de Deus, caso realmente Ele exista. É impossível chegar a 120, 130 ou mais anos. E vamos supor que esta obra de arte poderia ser feita. Viveríamos entre monstros, com cabelos fracos e caídos, peles secas, olhos ofuscados e órgãos a desejar. Não, nosso corpo foi programado para um determinado tempo, nossa cadeia evolutiva nos legou algo entre 70 e 80 anos. Alguns chegam a 90 e poucos ou mesmo a 100, o que já é muito bom. Alcançar a serenidade na envelhescência gozando de lucidez e boa saúde é o que realmente interessa. Obviamente, não é o que acontece, o culto ao corpo, a corpolatria que vigora - principalmente entre as mulheres - é no mínimo alienante. Homens e mulheres, que carregam a duras penas os seus 40, 50 ou mesmo 60 anos, andam puxando tudo, tudo mesmo. E nesse puxa prá cá e para lá acreditam visceralmente que podem estar um pouco mais novos, com uma pele melhor, mais corada, uma "bundinha" mais lisa ou um sorriso e uma boca “melhor trabalhada”. É o fim do bom senso. Na luta pela eterna juventude, até porque não existe o desejo de voltar a ser criança, tudo indica que os humanos querem permanecer jovens e, para isso, vale tudo: de botox a cocô de galinha pelo rosto à fora o importante é aparecer “estar bonito”, nem que por dentro continue tal como o lugar que as galinhas dormem. A busca da inexistente perfeição pode até ser compreensível para aqueles que fazem da estética o seu ganho pão. O mesmo para aqueles que por má sorte nasceram com deficiência. Mas creio que existe um claro exagero na onda de ajeitamento do corpo. Nessa procura frenética, alguns corpos estão ficando na mesa dos hospitais, outros tem aparecido com um nariz meio torto, boca encurvada, sobrancelha exaltada e perfil de máscara. Muitos chegam a repetir a dose por vezes, pois sempre acham o que tirar, haja vista a existência da lei da gravidade. Mas o fato é que não somos perfeitos e não nos cumpre fazer o tempo parar. O que está latente, na sociedade do consumo do próprio corpo, é uma aparência falsa, mercantilizada, “de massa”, injusta, pois é forjada e todos sabem como a "coitada" ou o “coitado” foram puxados. Mais que isso, é notório que tanto homens como as mulheres perderam a referência do próprio corpo, apesar de acreditarem morar dentro dele. Explico-me melhor, é duvidoso que o indivíduo não entre numa forte espiral de autoengano e pense que está em uma época e em uma fase que não é a dele. Homens e mulheres, neste sentido, perdem a referência, a historicidade corporal, a noção do espaço, a experiência adquirida e, inconsciente, ou conscientemente operam em uma frequência que não é a deles. Deve ser justamente por isso que aumentam os encontros de casais de gerações diferentes e de valores controversos. A perda da própria história de vida deve ser uma experiência angustiante diante do espelho, mesmo que demore um pouco para cair o resto que foi levantado. A questão é que na sociedade do consumo, o famigerado consumidor não se contenta somente em ter, ele deseja aparecer. E aparecer significa “estar bem”, “mostrar-se o tempo todo”, “saber fazer o marketing pessoal”, “ficar em evidência”, em uma vergonhosa e histriônica rede de relações sociais. O corpo torna-se uma mercadoria e, como tal, deve ser vendida. Vender melhor a estrutura corporal é estar apto a entrar de nova cara na cultura da estética midiatizada e “em massa”, por isso é crucial “trabalhar o produto”, seja ele o rosto, as pernas, os braços, uma barriga, ou uma... não interessa, o mundo da corpolatria é o da esfera do poder da barganha e da mercadoria recauchutada: é o mundo das relações do “semi-novo”, “pouco usado”, “do novinho”, que "rodou muito, mas ainda está bem", “que agora está durinho”, “tem quarenta, mas cara de dezoito” e hipocritamente, “ficou mais jovem 20 anos”. Vamos ser claros esse conflito entre o “velho” e o “novo” pode ser complexo e delicado, mas é por demais desnecessário. O leitor pode argumentar sobre o direito do ser humano sobre o próprio corpo, inclusive, o de fazer o que bem entender com ele. A discussão é tão interessante que sempre existe aquele ou aquele quem diz “claro que aquilo é dela (e), foi ela (e) quem pagou”. Risível para não dizer outra coisa, porque é difícil (ou fácil, depois da plástica) não abrir os olhos para o exacerbado culto ao corpo, o qual, por natureza merece ser envelhecido, maturado e encantado pelo sabor da poesia, do respeito, da dignidade e da experiência. Infelizmente, estamos perdendo as referências daqueles que caminharam no tempo e no espaço, do exemplo a ser seguido e do mundo tal como ele nos apresenta em rugas, vozes rocas, passos lentos, cicatrizes, hematomas, olheiras, cabelos brancos, raízes tortas e pele com mancha e seca. Optamos pelo autoengano e já não causa surpresa quando vemos a criança chamando a avó de mãe e a mãe de irmã, mesmo sabendo que trata-se uma grande mentira. * é professor, sociólogo, licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em sociologia, doutor em ciências humanas:

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sociologia e política pela UFMG, autor do livro, Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba, SP: Ed. UNIMEP, 2005 e organizador da obra, Polícia em Movimento. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.