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8/17/2019 As condições históricas de produção de O príncipe de Maquiavel e sua organização discursiva.pdf http://slidepdf.com/reader/full/as-condicoes-historicas-de-producao-de-o-principe-de-maquiavel-e-sua 1/23 AS  CONDIÇÕES HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE O PRÍNCI PE DE  MAQUIAVEL  E SUA ORGANIZAÇÃO  DISCURSIVA 1 Arnaldo CORTINA 2  RESUMO:  O  presente trabalho tem como objetivo  fazer  uma breve  apresentação do  contexto  histórico em  que se deu a produção do  texto  O Príncipe  de  Nicolau Maquiavel, destacando  o  aspecto socioeconómico das  cidades italianas durante  o  Renascimento,  com o propósito de  estabelecer  um perfil  do  homem renascentista.  E m  seguida,  fa z  uma  apresentação da  maneira como  foi  organizado  o texto  maquiavélico,  para destacar dois aspectos:  seu caráter de  manual,  que  visa  à construção de u m saber,  e os  procedimentos argumentativos  e retóricos de seu  discurso. • PALAVRAS-CHAVE:  Discurso; texto;  enunciação;  contexto  histórico;  narratividade; argumentação. Introdução Este  trabalho  tem como propósito  explicitar o processo  de organização  discursiva do texto  O Príncipe,  de  Nicolau Maquiavel. Como nossa  investigação  deseja valorizar a  dimensão histórica  da  leitura,  nada mais justo que  trate, inicialmente,  das condições históricas em que se deu a produção do  texto maquiavélico. Num  primeiro momento, entendemos  que  seria importante observar alguns aspectos  do  Renascimento para poder expressar nossa  visão  sobre  o período histórico em que  o  texto  de  Maquiavel foi escrito.  Po r  outro  lado, pretendemos abordar  a questão da  organização socioeconómica das  cidades italianas durante  o  Renascimento, principalmente  o caso de Florença,  onde viveu Maquiavel, para,  em  seguida, traçar um  perfil  do  homem renascentista. Na segunda parte, trataremos especificamente  do  texto  de  O Príncipe  de Maquiavel destacando  três  aspectos. Primeiramente,  por  meio  da observação de  sua estruturação  narrativa, desejamos  discutir  o  valor  de  manual a ele atribuído  pela 1  O  presente trabalho corresponde  a  uma parte  de u m dos capítulos da tese de  doutoramento  do  autor.  Ver  Cortina, 1994. 2 Departamento  de  Letras Vernáculas - Instituto  de Biociências,  Letras e Ciências  Exatas  - UNESP -  15054-000  - São José do Rio  Preto - SP. Alfa,  S ão  Paulo,  39 :  87-109,1995 87

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A S

  C ON DIÇ ÕES H ISTÓRICAS D E PRODU Ç ÃO D E O

 PRÍNCI PE

D E  M A Q U I A V EL  E S U A O R G A N I Z A Ç Ã O   D I S C U R S I V A

1

Arna ldo

 CORTINA

2

  R E S U M O :

  O

 p r e s e n t e t r a b a l h o t e m c o m o o b j e t i v o

  f aze r

 u m a b re v e

  ap r e s en t ação do

 c o n t e x t o

 h i s tór ico

e m

  q u e s e d e u a p r o d u çã o d o

  t e x t o

  O Príncipe

  d e

  N i c o l a u M a q u i a v e l , d e s t a c a n d o

  o

  a s p e c t o

s o c i o e c o n ó m i c o d a s

  c i d a d e s i t a l i a n a s d u r a n t e

 o

  R e n a s c i m e n t o ,

  c o m o p r o p ó s it o d e

  e s t a b e l e c e r

  u m

pe r f i l

  d o

 h o m e m r e n a s ce n t is t a .

 E m

 s e g u i d a ,

  fa z

 u m a

  ap r e s en t ação da

 m a n e i r a c o m o

  f o i

 o r g a n i z a d o

  o

t e x t o

 ma qu i av é l ic o ,

  p a r a d e s t a c a r d o i s a s p e c t o s :

  s eu c a rá t er d e

 m a n u a l ,

  q u e

 v i s a

 à c on s t r u ção d e u m

sabe r ,

  e o s

 p r o c e d i m e n t o s a r g u m e n t a t i v o s

 e r e t ór i c o s d e s eu

 d i s c u r s o .

• P A L A V R A S - C H A V E :

 D i s c u r s o ; t e x t o ;

  e nunc i ação ;

  c o n t e x t o

  h i s tór i co ;

  n a r r a t i v i d a d e ;

  a r gumen t ação .

Introdução

Este  t r aba lho t e m c o m o propós i to  e xp l i c i t a r o processo  de o r gan ização d i s cur s i v a

do t e x t o  O Príncipe,  d e  N i c o la u M aqu ia v e l . Como nossa inves t i gação   dese ja va lor izar

a d imensão his tór ica

 d a

 l e i tu ra ,

 nad a ma is jus t o que

 t r a t e ,

  i n i c i a lm e n t e ,

 das c ond ições

h i s tó ri cas e m que se d eu a produção d o

 t e x t o

  maquiavé l ico .

N u m   p r im e i r o m o m e n t o , e n t e nd e m o s

  q u e

  s e r ia imp o r t an t e obse r va r a l guns

aspec tos   d o  Renasc im en t o pa ra pode r e xp r e s sar n ossa v isão  s ob r e o per íodo h is tór ico

em que

 o

 t e x t o

 d e

 Maqu iav e l fo i e s c r it o .

 Po r o u t r o

 l ado , p r e t ende mos abo rda r

 a ques tão

da

  o r gan ização soc i oeconómica das   c idades i t a l i anas duran t e  o   Renasc imen t o ,

p r i n c i p a lm en t e  o caso d e F lo r ença ,  o nd e v i v e u M aqu i a v e l , p a r a ,  e m  s e g u i d a ,  traçar

u m   per f i l  d o

  homem r enascen t i s t a .

Na s e gunda pa r t e , t r a t a r emos e spec i f i c amen t e  d o   t e x t o  d e  O Príncipe  d e

M a qu i a v e l d e s t ac ando

  três

 a spec t o s . P r ime i r am en t e ,

 p o r

 m e i o

  da obs e r v ação d e

 sua

estruturação

  na r r a t i v a , d e se jamos  d i s cu t i r

  o

  va lor

  d e

  m a n u a l

a e le atr ibu ído

  p e la

1

  O

  p r e s e n t e t r a b a l h o c o r r e s p o n d e

  a

 u m a p a r te

 d e u m d o s c a p ít u l o s d a t e s e d e

  d o u t o r a m e n t o

 d o

 a u t o r .

 V e r

 C o r t i n a ,

1994 .

2 D e p a r t a m e n t o

  d e

  L e t r a s

 V e r n á c u l a s -  I n s t i t u t o  d e B i o c iê n c i a s ,

  L e t r a s

  e C i ên c i a s

  E x a t a s

  - U N E S P -

  1 5 0 5 4 - 0 0 0

  -

S ã o J o s é d o R i o  P r e t o  - SP.

Alfa,

 S ão

 Paulo,

  39 :

  87-109,1995

87

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ma io r i a

 d e

 s eus l e i t o re s . Nu m segundo mo men t o , fa r emos u m l e van t am en t o

  d o s

 p r o

c e d im e n t o s a r g um e n t a t i v o s

 d e

 qu e

 o

 e nunc i a d o r

 se

 u t i l i za

 p a r a

 c ons t ru i r

 s eu d i s cur so .

1 O espaço e o su je i to  do R e n a s c im e n t o

N e s t e

  i t e m p r e t ende mos obse r var do i s a spec t o s

  d o

 R e na s c im e n t o e u r o p e u

  e ,

mais e spec i f i c amen t e ,  d o  Renasc imen t o f l o r en t ino , c o m o  ob j e t i v o  d e  e s t abe le c e r u m

p a n o r a m a

  histór ico a   pa r t i r  d o

  qua l t en t a r emos de l im i t a r

 a form ação ideo lóg ica e

d i scu rs i va   d o   t e x t o m aqu iavé li co  pa r a  qu e  pos samos c ompreend e r  e m q u e  m e d i d a

esses

  a spec t o s in t e r f e r em

 n o

 m o m e n t o

  da produção e s e e l e s são

 l e vados

  e m

  c on t a

n o i n s t an t e

 da r ecep ção .

O   p r ime i r o a spec t o  qu e   t en t a r emos e xam ina r , bas eando -nos  n o   t r a b a l h o  d e

Lar iva i l l e

  (1988),

 é o da o r gan ização soc ioeconóm ica da s

  cidades i t a l i anas dura n t e

 o

Renasc imen t o . Pa r t indo

  da c onc epção

  m a r x i s t a

  de que as r e l ações

  soc ia is

  são

de t e rm inadas pe la  in f ra-es t rutura  e c onôm i c a e qu e  isso  é  r e f le t ido  e   r e f ra tado pe las

formações ideo lóg icas , é que

 j u l g am o s im p o r t an t e d i s c u t i r

 e ssa

 p r im e i r a

 questão.

O   s e gundo aspec t o  qu e  p r opom os abo rda r a inda nes te i t e m  d e   nos so t r aba lho

cons i s t e em , t om an do po r

 b a s e  as cons ide rações d e

 Heller (1980),

 d i s cu t i r a c on c epção

d e h o m e m p r e s e n t e   n o   Re na s c im e n t o , num a t e n t a t i v a d e  p r o c u r a r c o m p r e e nd e r  o

su j e i t o

  i n s c r i t o

 em  O Príncipe  d e

  N i c o lau Maqu iav e l .

1 1 Organização socioeconómica das

 cidades italianas

durante o Renascim ento O  caso de Florença

Segundo La r i v a i l l e ( 1988) , dura n t e  o sécu lo  XV I o co r r e um a g r ande  con cent ração

u r b a n a

  n a   Eu r o pa .  No caso da Penínsu la I tá l ica ,  e m bo r a  a popu lação do   c am po

represente ent re 75%

 e

 9 0%

 d a popu lação ,

 c r e s c em

  as concent rações

  u rbanas , c omo

Ve ne za ,  M i lão ,

  Roma, Pa le rmo, Mess ina

  e Nápo l es , que , ao   f ina l  do sécu lo X VI ,

u l t rapa ssam  200 m i l hab i t an t e s .

Os ant igos feudos

  v ão

 t o rnando - s e ne s sa

  época

  g randes cas te los

  d a

 a r i s t o c r ac ia

e a

 a t i v i d a d e c o m e r c i a l

 qu e s e

 v a i d e s envo lv endo nos bur gos

 é respon sáve l

 p e l o

  ê x odo

do c am po .  São as  a t i v idades  d e c omé r c io qu e  a t r a e m  o s  h ab i t a n t e s d o   c am po , p o i s

e las

 s i gn i f i c am

 a

 pos s ib i l i dade

 d e

 fuga

 das péss imas cond ições de

 v i d a

 a qu e se

 v i a m

s ubm e t i d o s .

Que r

  nas r eg iões

  o nd e

  a

 ar is tocrac ia passa

  t ambém a

 v i v e r

  n a s

 c idades , c om o

e m

  Florença,

  que r

  n a s

 ou t r a s onde c on t in ua is o lada

  e m

  seus cas te los

  n o

  c a m p o ,

  o

m o d o  d e  v i d a d o s  tr aba lhado r e s depen de  d o  d e s e n v o l v im e n t o  d a  bu r g u e s i a m e r c an t i l

que , quan t o ma is en r iquece , ma is a sp i r a

  subs t i tu i r  a

 nob r e za

  o u

 a s s im i l a r -s e

 a e l a

s em r e vo luc iona r as  es t ru turas soc ia is anter io res (Lar iva i l le , 1988, p .193) .

88 Alfa.

 S ão

 Paulo. 39: 87-109,1995

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E m   conseqüência  d isso , ocor re que , n o c a s o  florentino  e em vár ias  o u t r a s r eg iões

da

  Itália, a

 nob r e za

  e a

  a l ta bu r g u e s i a m e r c an t i l p a s s am

  a

  c ons t i tu i r ,

  d e

  fa to ,

 u m a

única c l ass e

 d o m inan t e , s e p a ra da

  d o

 r es to

 da popu lação ,

 s e gund o La r i v a i l le , po r u m

ab i s m o  e c onôm ico , po lí ti c o e cu l tura l , qu e não pára de  c rescer (1988, p .193) . Por e ssa

razão também, o

  au t o r c i t ado p r o cura mos t r a r

  q u e ,

  d i f e r en t emen t e

  d o q u e

  a l g un s

h i s t o r i a do res

  p r e t ende ram a f i rmar s ob r e  o pe r í odo do   Renasc imen t o ,  n ão   a con t e c e

n e n h u m

  n i v e l a m e n t o

 d a s

 c lasses ; pe lo

  contrário, as diferen ças

 c o n t i nua m g rand e s ,

e o qu e s e v a i

 a l t e r ando

 é o

 m o d o

  de r e lação de

 t r aba lho .

Os poderes  po l í t icos qu e const itu íam a repúbl ica  f l o r en t ina dura n t e o   Renasc i

m e n t o e s t a v am

  n a s m ã os d e u m a

 p equena pa r c e la

  da popu lação . A s o c i e d ade d e

Florença, na

 v e rdade , c om preend ia

  u m a d i vi s ão   t r ipa r t i t e :  u m a

 r e s t r i t a

 c l asse

 a l ta ,

u m a

  t ambém   p e qu e na  c l a s s e méd i a (o po v o ) e u m a  i m e n s a  c l asse   paupe r i zada  (a

plebe ) .

  D e

 a co rdo

  c o m

 Lar iva i l le (1988 ) , segun do

  o s

 r e g i s t r o s

 d e

 im po s t o s

 d e F lorença

e m

  14 57 , o núme r o d e p e s s oa s qu e

  n ada p a g a v a

  o u

 p a g a v a m e no s

  d e u m   florim

co r r e spond ia   a 82% da popu lação da   c idade .  Po r  out ro lado , aque les  qu e   p a g a v a m

en t r e

 u m e de z

  f l o r ins c o r r e spon d iam

  a

  1 6%

 da popu l ação e o s qu e

 p a g a v am a c im a

de  d e z  f lo r in s , 2,13%.  Na const i tu ição dos  c onse lhos  da r epúb l ica , po rém,  s o m e n t e

h a v i a par t ic ipação da  res t r i ta c l a s s e

 a l ta

 e d e

 p a r t e

 d o q u e s e

 c h a m a v a p o v o ;

  o

  r es to

dos hab i t an t e s

 da

 c idade e r a c om p le t am en t e a l i jado

 d e

 qua lque r f o rma

 de par t ic ipação

polí t ica.

D u ra n t e  o   f ina l  do sécu lo XV, de

  a co rdo

  c o m

 La r i v a i l l e ,

 F lorença

  p o s s u i

 270

o f ic inas espec ia l izadas

  em lã, 83 em

  seda

  e 33

  b an c o s

  q u e

  r e a l i zam

  ope rações

comer c ia i s

  de câmbio . O comérc i o da lã e da

  seda

  são,

  p o r t a n t o ,

  a s

  p r i n c i p a i s

a t i v idades

  e c onôm i c a s da

 c i d a d e

  e o s

 b an c o s ,

  um a c ons eqüênc i a

  de las .

D e s d e

 a épo ca d e

 G i o v a n n i

 d i

 B i c c i ,

 p a i d e C o s m e d e

 M e d i c i ,

 a família

  M e d i c i

e m

  Florença é

 d o n a

  d e

  um a c o m p anh i a b a s t an t e

  só l ida que

 r ea l iza

  vár ias operações

bancár ias e

  c omer c ia i s en t r e

  as vár ias reg iões da

 Eu r o pa .

 C o m a

 m o r t e

  d e s e u

 p a i ,

Cosme,

  n o in í c io do sécu lo XV,

  am p l i a

  o s ne góc i o s da

  empr e sa , c r i and o duas

companh ias e spec ia l i zadas  na p r odução d e   t e c idos  d e l ã e u m a  e spec ia l i zada  n a

produção de   seda .  C o m  u m a d i reção   e x t r emament e f o r t e  d e  seus n egóc ios , a famí l ia

M e d i c i  c o n s e g u e

 a s s egura r um a

 inegáve l p os ição

  f inance i r a

 e m s u a

 c idade .

U m   go lpe ness e pa tr imônio se rá

  d a d o quando ,

 e m c ons eqüênc ia d e

  d e s e n t e n

d ime n t os en t r e Lo r enzo

  d e

 M e d i c i

  e o Papa

 Sisto

 IV, es te úl t imo   r e t i r a

  daque l e

  não

s o m e n t e  o  c a r go bas t an t e luc r a t i v o de d epos i tár io da Câmara Ap os tó l ica ,  r nas , o qu e

é

 m u i t o m a i s g r a v e,

  o monopó l i o do comérc i o de

 a l u m e

3

 po n t i f ic a l ,

  t r ans f e r indo - o pa ra

os

 Pazz i ,

 o s

 p r i n c i p a i s

  rivais

 po l ít i c os e e conômicos do s

 M e d i c i

 e m F lo r ença , em

 Roma

e e m

 ou t r a s

 praças

 f inance i r a s

 eu ropé ias

(Lar iva i l le , 19 88, p .127) .

3  O  a l u m e  é , d e s d e a  I d a d e  M é d i a , u m d o s  e l e m e n t o s f u n d a m e n t a i s  d o s u c e s s o e c o n ô m i c o  i t a l i a n o : m e n o s p e l a s

q u a l i d a d e s a d s t r i n g e n t e s r e c o n h e c i d a s  d e   l o n g a d a t a p e l o s  m é d i c o s , o u  p e la v i r t u d e d e  i m p e d i r o a p o d r e c ü n e n t o

d e c e r t a s  m a t é r i a s  a n i m a i s ( d e  o n d e  o   l a r g o  u s o q u e s e f az d e l e n o s  c u r t u m e s )  d o q u e   p e l a p r o p r i e d a d e  d e   f i x a r

o s   c o r a n t e s . U t i l i z a d o c o m o m o r d e n t e ,   e l e é  c o n s i d e r a d o  n a  I d a d e  M é d i a e n o   R e n a s c i m e n t o c o m o   u m a

m a t é r i a - p r i m a i n s ubs t i t u í v e l

  p a r a

  a

  t i n t u r a

  d a l ã e d a

  s e d a

  . . .

( L a r i v a i l l e , 1 9 88 , p . 125 ) .

Alfa,

 S ão

 Paulo,

  39 :

 87-109,199 5

89

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Na v e rdade , po r t an t o ,

 as contínuas

  lu t a s en t r e

  as vár ias reg iões da Penínsu la

Itálica

 t i n h a m

  c o m o

  propós i to

 assegurar

  os mon opó l ios das

 d i fe rentes

  famíl ias,

  donas

de empr esas c omer c ia i s

  e

  f inance iras .

  A própria

 Ig re ja

  é responsáve l

  p e la

  formação

do c a p i t a l i s m o  bancár i o já desde o sécu lo X IV   quando  a t r i bu i  a o s   b an que i ro s  a s

incumbênc ias de

 c o l e t a

  e ad minis tração de

 suas r endas ,

  qu e

 e r am p r o v e n i e n t e s

  da s

diversas

  r eg iões

  o nd e

  t i n h a

  seguidores .

Q u a n d o M a q u i a v e l

 e s c r e v e

 O Príncipe,

  e m

  1513,

 é essa a s i tuação po l í t ico-eco

nôm i ca d a s  d iversas c id ades-es tado   d a Península Itál ica. Seu  t e x t o p r e t e nd e  d i scut i r

a c onc epção d e

 u m pode r c en t r a l izado r ,

  c o m o p r opós it o d e

 es tabe lecer

  a un if icação

de t oda a pen ínsu la . Dessa form a, es tar ia c r iado u m Estad o for t e , capaz  d e se  i gua la r

ao

  francês e ao

  espanho l . Como, nessa

  época ,

  qu e m d e t i nha

  o

  p o d e r

  po l í t i c o de

Florença er a

 Lo r enzo n ,

 é

 pa r a

 e l e qu e

 M aqu i a v e l d e d i c a

  s eu

  t r aba lho .

1 2 Perfil  do h omem   do  Renascim ento

Para e s t abe l e c e rmos u m

 per f i l d o

 h o m e m r e na s c e n ti s ta ,

 s e m

 d e i xa r

 d e

 l a d o um a

pos ição his tórico-ma rx is ta , é impresc ind íve l

 observar

 o

 t r a b a l h o

 d e

 He l le r (1980 ) sobre

essa

 questão.

A

  p r im e i r a

 característica d o

 h o m e m

  n o

 Renasc ime n t o

  é a a l teração da

  p e r spec

t i v a  p e la qua l o   m u n d o é  obs e r vado . Con t r a r i am en t e àquele   h o m e m v o l t a d o p a r a  o

in te r io r ,

  pa r a

  o

  i s o lamen t o , c omo oco r r e

  n a

 I dade

  M éd i a ,

  su r g e

  u m

 h o m e m ab e r t o

pa ra

  o

  m u n d o , p a r a

  a

  r e a l idade , en f im ,

  u m

  h o m e m c o m o

  s e r d inâmico . O que

d e t e r m i n a e ssa op os ição  e n t r e u m  e  ou t r o t i po d e  hom em nas duas d i fe r en t e s  é po c a s

é

 d e co r r en t e da

 pos ição

 r e l ig iosa , da

 fé cristã,

 qu e

 s e

 a l t e ra

 de

 u m p a ra

 o u t r o

  m o m e n t o .

D u ra n t e o pe r íodo d a  I dade M éd ia , o  h o m e m  v ê em  D e u s a razão da ex is tênc ia ,

sua

 v id a na Te r r a

 está

 a t a d a

 a o  p e c a d o

 qu e

 faz

 pa r t e

 d e

 se u

 próprio

 nasc im en t o . Cr i s t o

é o espír ito   c e l e s t e qu e d e s c e do s c éu s e s e

 s u b m e t e

  ao sacr i fí c io d a dor

 par a sa lvar

o s

 hom ens . Es t e s , po r t an t o ,

 não

 d e v e m c o m p r o m e t e r -s e

  c o m a s

 co isas t e r ren as para

pode r r e c ebe r

  o prêmio d a ressurre ição e da

  v ida e t e rna

  n o ju í zo   f ina l .  A tradição

judaico-cr istã   d o m i n a  d e t a l m o d o  a   v i d a  q u e o  h o m e m   só  c o n s e g u e  enxe r ga r  s u a

pequenez . Para  just i f icar o  p o d e r d e

 un s

 sobre ou t ro s , recorre-se às prescr ições  d i v inas .

O  Papa  e o r e i

 e x i s t e m

 e m função do s des ígn ios de

 um De us s up r e m o

  q u e

 t u d o

 vê e

t u d o

 d e t e r m ina .

D u ra n t e o pe r íodo d o  Renasc imen t o , o co r r e um a transformação d ess e  quad r o  e

o   h o m e m   c omeça a  p e r c ebe r  su a  dua l ida de : sua p e q u e n e z e t a m b ém s u a   g r and eza .

Para

  t an t o , v a l e -s e da  cu l tu ra clássica

 que r e t oma

 e  t ransfo rma , d e

 m a n e i ra

 a ada ptá- la

a  s ua tradição cr istã. A

  f i gu ra

 d e

  Cr is to

 é

 hu m an i z a da , d e i x a

  d e se r u m a

 d i v i n d ad e

so fredora

  e

 l i b e r tado ra , pa r a enca rna r , s e gundo

  as r epr esentações de M iche lânge lo e

T in to r e t t o ,  o   i d e a l d o R e i , d o  Senhor ,  d o  p ensado r ,  d o  h o m e m   d e b o m c o r aç ão . C o m

re lação ao  m i t o d e  M ar ia , pas sa  a  e x i s t ir um a d up l i c i d a d e , a o  m e s m o t e m p o  e m q u e

90

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,19 95

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ela  é  v i s t a c o m o  a  R a i nha do céu inat ing íve l , t r ans f o rma- s e n a m ã e q u e  t e m e p o r s e u

f i lho

  o u , m a i s s im p l e s m e n t e ,

 n o

 i d e a l

 d e

 b e l e za f em in ina

 da é po ca .

To da  essa transformação d a  p e r s p e c t i v a  de v i são de s i p rópri o e d o  m u n d o irá

l evar  o  h o m e m r e na s c e n t i s t a  a   a s s um i r u m a  a t i t u d e  de indi ferença com re lação à

Ig re ja . A   m i s s a e as proc issões  p e r d e m  s e u  s e n t i d o d e  c u l t o e m in e n t e m e n t e r e l i g io s o

e

  t o r n am - s e

 u m a c o n v e n çã o .

  Oc o n e , p o r t a n t o ,

 n e s s e

 s e n t i d o ,

  o

  s u r g i m e n t o

 d e u m

ate ísmo prát ico .

A conseqüênc ia inev i táve l desse   c o m p o r t a m e n t o  d o   h o m e m   da R enas c ença

i m p l i c a , t ambém , u m que s t io n am e n t o d as noçõe s d e  b e m  e  m a l , a s soc iado  e s t e  úl t im o

ao pe cado .

  S e a noção d e b em e

 m a l

 é

  e s t abe l e c ida pe la

  relação

 e n t r e

 o

 h o m e m ,

 s e r

in f e r io r ,

 e  Deus , supe r i o r e a b s o lu t o , n o m o m e n to e m q u e os  do i s s e  i g u a l a m  não   p o d e

ex i s t i r  o  m e s m o c o n c e i t o  d o q u e   se ja  bené f i co o u ma lé fi co  p a r a  o   h o m e m .  E m

decorrênc ia   d i s s o  t ambém ,  c o m o  é poss íve l  d izer  q u e o   h o m e m n a s ce  e m p e c a d o ?

Po r  e ssa r azão é qu e o   s e n t i d o  d a  v e r g o nha du r an t e  o  R e na s c im e n t o  é  d i f e r en t e  d o

d a

  I d a d e

  Méd ia .

As causas

  d e

  t o d a

  essa transformação, ou

  m e lh o r ,

  a s

  c ausas

  do própr io

R e na s c im e n t o p o d e m   s er encon t r adas nas novas   cond ições soc i oeconóm icas  c r i adas

n a  Europa . Con fo rme  já  d e m o n s t r a m o s  n o i t e m an t e r io r , a concent ração de pes soas

no s bu r g o s ,

 a a l teração da s re lações

 c o m e r c i a is

  e , conseqüentemente , o

  e s t abe l e c i

m e n t o d e  n o v a s  r e l ações econômicas ,  d e co r r en t e s  da fo rmação de   um a n o v a c l as s e

so c i a l ,  a   bu r g u e s i a ,  serão responsáve is   p e l o s u r g im e n t o d e s s e   n o v o h o m e m , d e s sa

noção de

  i n d i v i d u a l i d a d e

 até então

  d e s c o nh e c i d a .

  É ne s s e

  s e n t i d o

  qu e

  p o d e m o s

r e conhece r   a influênc ia da s re lações econ ômica s n a   l i n g u a g e m . P r i n c i p a l m e n t e

quando o b s e r v am o s

  os

  t e r m o s

  c o m qu e

  d e s i g n am o s

  abstrações , os

  s ub s t an t i v o s

abs t ra to s ,

 o s

 ad j e t i v o s

 e

 c e r t o s v e rbos , f i c am ma is e v iden t e s

  e ssas de te rm ina ções . A s

noções de   bond ade , ma ld ade , v e r gonha , med o , be l eza ,  feiúra,  c e r t o , e r r ado pa ra  o

h o m e m

  d a

 I d a d e

  M éd ia , p o r

 e x e m p l o ,

  não são as

 m e s m as p a r a

 o d o

  R e na s c im e n t o .

D e  u m  p a r a o u t r o pe r í odo   h o u v e  um a mudança i d e o ló g ic a ,  p o r t a n t o u m a m u d an ça

d i scu rs i va .

Se

  c o m pa r a r m o s a i n da

  e sses

  do i s

  per íodos da his tór ia

  p o d e r e m o s p e r c e b e r

al terações de  d i s c u r s o n a  o r d e m   d o  su j e i t o , d o   t e m p o  e d o e spaç o . C o n t r a r i am e n t e

ao  e l e ,  r ep r e s en t ado pe la f i gu ra  d o  Deus t odo -pode r oso ,  ao lá , ao en tão

pr e s en t e s

  n o

  d i s cur so

 d a

 I d a d e

  M éd i a ,

  su r g e

  u m e u , u m   a q u i e u m

  a g o r a

n o

d i scu rso

  d o   Renasc imen t o . Naque l e ,  a   h u m a n i d a d e  e r a   su fo cada  em função da

d i v i n d a d e

  e o  m u n d o p re s e n te  e o   t e m po p r e s e n t e e r am n e g ad o s p e l a  co l ocação de

u m

  o u t r o m u n d o , n u m o u t r o t e m p o

  e m q u e o s

  h o m e ns p o d e r i am v i v e r

  e m

 l i b e r d ad e

e   i g u a l d a d e  (n o paraíso   ce les te ) ; ne s te , surg ia u m  n o v o h o m e m , c o n s c i e n t e  d e s u a

i n d i v i d u a l i d a d e  e

  v o l t a d o p a r a

  o

  t e m p o

  e o e s paç o em qu e

  e s t a va ins e r id o .

  A

construção do  t e m p o  n o  R e na s c im e n t o ,  é b o m  l embra r , c ons i s t e n a r ecuperação da

cu l t u r a  c láss ica se m , no  e n t an t o , n e ga r  o  m o m e n t o p r e s e n t e .  É ne s s e   s e n t i d o  q u e

po d e m o s d i z er

 q u e a  cu l tu ra clássica se

 t r an s f o rma

 n o

 m o m e n to

 e m q u e se

 f und e

 c o m

a

  cu l tu ra

  cristã.

Alfa,

 São

 Paulo,

 39 :

  87-109,

  1995

91

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Isso

 só se  t o rnou poss í v e l

 quando

 e

 p o r qu e

 o

 h o m e m

 s e

 a v e n t u r o u

 e m

 novas de s

cober tas .  C o m o  d e s e n v o l v im e n t o  da navega ção mar ít ima e a   d e s cobe r t a  d e   novos

cam inhos pa ra

  as transações

  c omer c ia i s

  e d e c âmb i o , c o m o

  d e s c o b r im e n t o

  d e

novas

  cu l tu ras  até então

  d e s conhec idas , c omo

  as dos índ ios

  am e r i c an o s

  e a s do s

p o v o s  a fr icanos , co m  a s  novas t e o r i a s da física e, p r i n c i p a lm en t e ,  c o m  a s  novas t e o r i a s

d a

  a s t r o n o m ia ,

  qu e

 qu e s t i o n a v am

  o

  fato

  d e a

  Ter ra

  ser o

  c en t r o

  d o

  un i v e r s o

  ( c o m

Copérnico ,

 G a l i l eu Ga l il e i ) , o c o r r e u m a

 abe r tu ra ,

 u m d e s p e rt a r

  d o

 h o m e m i n t i m i d a d o

pe la  v isão teocêntr ica da  cu l tu ra  judaico-cris tã. É b o m  r essa l tar po rém qu e esse  s a l

t o  não

  a c o n t e c e i n d i s t i n t am e n t e p a r a t o d o s , n o v am e n t e

  d e v e m o s

  l e m b r a r

 qu e e s s e

n o v o h o m e m   é o bu rguês que se e s tá  f o rmando .

Essas  ques tões do   su j e i t o ,  d o   t e m p o  e do espaço es tão   p r e s en t e s  n a  ob r a  d e

M a q u i a v e l u m a

 v e z qu e e s t e

 r epe t e

 o

 d i s cur so

 d e

 su a

 época , a

 i d eo lo g ia

  d e

 s e u t e m po .

E

  m e s m o p o r qu e

 e l e t ambém é

 u m h o m e m

  d o

 R e na s c im e n t o .

  Co m re la ção a o

  t e m p o

e a o e spaç o

 e spec i f i c amen t e , podem os pe r c ebe r

  qu e

 M a q u i a v e l

 i rá

 d e f ende r

  qu e

 t o d o

su j e i t o q u e

 p r e te nd e m an t e r - s e

 n o

 p o d e r

  d e v e

 t e r um a

 v isão

 ma is c l a r a

 da s c ond i çõ e s

his tór icas que

  c ond i c i onam suas a t i t udes , suas

  dec i sões .

 S e g undo

  e l e, n e m

  s e m p r e

a s m e s m as  ações  s u r t e m  os  mesmos e f ei t o s  e m  d i f e ren t e s  s i tuações . É p r e c i s o  q u e o

pr ínc ipe

 t e nha c a pa c i d ad e

  d e

 p e r c ebe r

  as cond ições do

 l u g a r

 e d o

 m o m e n t o

  e m q u e

de s empenha rá d e t e r m i n a d a ação.

Na v e rdade  a questão  t e m p o r a l é f u n d a m e n t a l n o  p e n s a m e n t o  d e  M a q u i a ve l n a

m e d i d a

 em qu e irá

 d e t e r m ina r

 o

 m o d o

  de ação po l í t ica a ser

 ado t ada pe lo g o v e rna n t e ,

no caso ,

  o pr ínc ipe .

  Segundo He l le r (1980 ) , M aqu iav e l

  fo i

 u m g r and e o b s e r va d o r

  d a s

ques tões de  s e u t e m po , p o i s c o n s e g u iu p e r c e b er  o  c on f r on t o q u e s e e s t abe l e c ia en t r e

o

  c o m p o r t a m e n t o

  é t ico cr is tão e a

  n o v a

  ética

  bu r g u e s a

  q u e se

  f o r m a v a .

  A o i n v é s ,

po r ém , d e

  b r ada r c on t r a

 e ssa

 n o v a

  ética (a

 p r o c u r a

 d o

  d i nh e i r o

 a

  qua lque r cus t o ) ,

  o

au to r

  f l o r en t ino

 p r opôs

 u m p r og r a m a

  e m

 f o rma

 d e

  a l t e rna t i v a s :

 o u se

 v o l t a v a

  à

  v e lha

noção d e

  po l i s

  d a An t i gü idade e à sua é t ica comuni tár ia ou se

  r e j e i t a va tudo i s s o ,

a c e i t a nd o  a idé ia da  m o n a r qu i a a b s o lu t a un i fi c a d a na Itá lia e a s i tuação ét ica q u e o

c a p i t a l i sm o c on t empo râneo

  t r oux e r a . Segundo

  a

 a u t o r a ,

 essa é a

  chave

  da po l êm i c a

qu e

  s e e s t a b e l e c e e m

 t o r n o

 da s vár ias interpretações d o

 p e n s a m e n t o

  d e

  M a q u i a v e l.

4

2

  Princípios  es t ruturadores  d e

 

Prín ci pe

N u m   p r im e i r o m o m e n t o , p r e te nd e m o s   d i s cu t i r

  a ques tão da

 n a r r a t i v i d a d e ,

p r e s en t e   e m O Príncipe  d e   M aqu i a v e l , p a r t i n d o d o p o n t o  d e  v i s t a d e qu e e s s e  t e x t o

4   . . . A c on t r o v é r s i a ,   v e l h a  d e s é c u l o s , e o s   m u i t o s m a l - e n t e n d id o s  q u e   r o d e a r a m   a   figura  d e   M a q u i a v e l d e c o r r e m

d e s t a m a n e i r a

  d e

  c o l o c a r

  o

  p r o b l e m a

  e m

  t e r m o s

  d e

  d o i s r u m o s a l t e r n a ti v o s .

  É p o r

  i s s o

  q u e

  a l g u n s v i r a m n e l e

exclusivamente  u m a d v o g a d o d a   m o n a r q u i a a b s o l u t a  e , a l ém   d i s s o ,  o a p ó s t o lo d e u m a é t ic a  b u r g u e s a  c í n i c a , d o

m a q u i a v e l i s m o po l í t i c o ,  e n q u a n t o o u t r o s apenas  v i r a m  o  r e p u b l i c a n o e p l e b e u q u e ( c o m o  R o u s s e a u , p o r e x e m p l o ,

p e n s o u )  t r a t o u  o   t e m a  d ' 0  P ríc i p e   d e m a n e i r a p u r a m e n t e  s a t í r i c a (H e l l e r , 1 9 80 , p . 256 ) .

92

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,19 95

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a s s um e

  a s caracter ís t icas de u m

 m a n u a l

  de ins t ruções . Num

 s e g u n d o m o m e n t o

t r a t a r emos

 d a

 s in t axe

 d o n í vel

 d i s cu rs i vo ,

 d e s t a cando

  o s

 m e c an i s m o s a r g um e n t a t i v o s

ut i l i zados  pa r a , e m  s e gu ida , a bo rda r o s  r ecursos d a  n g u r au v i d ad e p r e s e n t e s  n o  t e x t o .

2 1   O  M anua l  de instrução e a construção do objeto valor

Nosso propós i to

  ne s t e sub i t em

 d o

 t r aba lho c ons i s t e

  e m  d i scut i r a denom inação

m a n u a l  d o

  p o d e r

qu e

  c o s t u m a

  ser atr ibuída ao

  t e x t o  O Príncipe.  Essa expres

são , manua l do pode r , r eme t e -nos  a  out ra ,  m a n u a l de instrução , cu jo s en t ido está

impl íc i to na  p r i m e i r a . D e s s e

 m o d o ,

  a

 o b r a

  d e

 M aqu i a v e l c o r r e sp o nd e

  a u m

  m a n u a l

de  instruções   pa r a a  c o nqu i s t a e manu tenção do  p o d e r  d e  u m  p r ínc ipe e , c o m o t a l ,

constró i-se por

 m e i o

  d e

 u m a

 es t rutura caracter ís t ica dess e

 t i p o

 d e

 d i s cur so ,

 q u e t e m

por ob je t ivo levar

  o enunciatár io a

  e x ec u t a r um a performance

  em c ons eqüênc i a do

que Gre imas (1983) chama /saber - fazer/ , adquir ido  po r in te rméd io d a r eve lação d o

enunc iado r .

Pa ra pode rmos abo rda r

  essa questão,

  t o m a r e m o s c o m o i n t e r l o c u t o r a

 d e

  nosso

d i s cur so

  a

  ob r a c i t ada

  d e

  Gre imas (1983) ,

  i n t i t u l a da  L a

  s o u p e

  a u

  pistou

  ou la

construction  d'un  objet  de  valeur.  O ob j e t i v o  d e  Gr e imas ,  e m s eu  t e x t o , c ons i s t e  e m

ana l isa r  e

  observar

  a organização

  n a r r a t iv a

 d e u m a

 r e c e i t a

  d e

  c o z inha

  (A

  s opa

  a o

pes t o ) ,

5

  t o m ando - a c o m o

  u m

 d i s c u r so p r o g r am ado r

  qu e

  v i s a

  à cons trução d e u m

ob je to ,  a   s opa ,  q u e , n a  t e r m in o l o g i a  de sua sem ió ti ca ,  f i gu ra t i v i za u m  ob je to va lor ,

fi m  úl t imo d e

 u m p r o g ra m a  n a r ra t i vo

 (PN). Ness e

 PN, u m suje i t o ,

 n o caso o des t ina tári o

do d i s cur so  cu l inár io , es tá em dis junção c o m u m  ob je to  (a   s opa  a o p e s t o ) e   quer,

através das instruções d e

 um a r e c e i ta , en t r a r

 em con junção co m e la . É ,

 p o r t a n t o ,

 p o r

m e i o

  da sucessão de

  do i s enunc iados

  d e

  es tado

  ( o que   c on s t i t u i  u m

 e nunc i a d o

  d o

fazer)

 qu e se dará a construção do  ob j e t o gus t a t i v o s opa  a o  p e s t o , ob j e t i v o

  f ina l

  d o

su je i to   destinatário.

Segundo Gre imas (1983) ,

  o enunciatár io da

 r e c e i t a

  culinária é

  m o d a l i za d o

  p o r

u m

  /saber-fazer/ na medida em qu e e s t e é o f im  ún i co des se  t i p o de  d i s cur so . Quando ,

p o r t a n t o ,  u m

 su je i t o ,

  d e p o s s e d e u m a

 r e c e i t a ,

  com eça a execu tá- la , o u então u m

o u t r o

  su j e i t o , quando  d e p o s s e d e u m   c a d e m i n h o  de instruções ,  prepara -se para

m o n t a r

 s eu

 r ad i o t ran sm isso r , já

 f o r am m oda l i zados po r u m /que re r/

 e

 u m

 /dever-fazer/

anter io r

 ( c om o é o c a s o do

 p e r cur so

 d e au tomanipu lação , po r

  e x e m p l o ) .

6

5 O p t a m o s p e l a p a l a v r a   i t a l i a n a  d e s s e v o c á b u l o  p o r q u e  n ã o  e x i s t e  u m  t e r m o c o r r e s p o n d e n t e  n a lí n g u a  p o r t u g u e s a ,

j á q ue a   f o r m a  i t a l i a n a  é a   m a i s u s a d a  n o B r a s i l .

 Pesto

  é u m  c o n d i m e n t o  t í p i c o d a  c o z i n h a  g e n o v e s a , u m  m o l h o

p r e p a r a d o

  c o m b a s i l ic ã o e

  a l h o s o c a d o s , a c r e s c i d o

  d e

  q u e i j o f e i t o

  c o m

 l e i t e

 d e

 o v e l h a

  e a z e i t e

 ( c o n f o r m e Z i n g a r e l l i ,

N .

  II

  novo  Z i n g a r e l l i . B o l o g n a : Z a n i c h e l l i , 1 9 8 8 , p . 1 3 8 5 ) .

6 A i n d a  q u e o   t e x t o  d e  r e c e it a c o m p o r t e n u m e r o s o s e l e m e n t o s  d e fa z e r p e r s u a s i v o ,  e s t e n ã o   c o n s t i t u i  a r a z ã o

d e c i s i v a

  d a a c e i t a ç ã o d o

  c o n t r a t o .

  A a c e i t a ç ã o ,

  c o m o

  a s s u n ç ã o d o

  /s a b e r -f a ze r / , i n t e g r a - s e

  n u m P N

  ( p r o g r a m a

n a r r a t i v o )  já   e la b o r a d o , s u s c i t a d o q u e r  p o r u m   /que re r - faze r/  -  c o n v i t e  e n d e r e ç a d o a o s  a m i g o s ,  p o r e x e m p l o  - ,

q u e r  p o r u m / d e v e r - fa z e r / -  n e c e s s i d a d e  d e  a l i m e n t a r  s ua f a m í l ia . O d e s t i n a t á r i o d a  r e c e i t a  d e   c o z i n h a  é ,

c o n s e q ü e n t e m e n t e , u m   s u j e i t o  já   m o d a l i z a d o  ( S i ) d e p o s s e d e u m   p r o g r a m a  a   r e a l i z a r .  O f a z e r   p e r s u a s i v o

Alfa, São  Paulo,  39 :  87-109,  1995

93

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Nes s e   aspec to ,  po rém, o   t e x t o  d e   Maqu iav e l d i f e r e  d o   d e n o m inado d i s c u r s o

p r og r amado r e s tudado

  p o r

 Gr e imas , po i s , c on t r a r i am en t e

 àqu e l e, d e s e nv o l v e

 n i t i d a

m e n t e u m c o n t r a to

 d e m an ipu lação em qu e

 u m su j e i t o enun c iado r p r e t ende l e va r

 s e u

enun ciatário a  /querer/ e a  / dever-fazer/  aqu i l o qu e e le pr opõe   c om o v e rdade .

Esse

  processo  de manipu lação pode se r   obs e r vado  e m   d o i s m o m e n t o s  d a

organização do

 d i s cur so

 d e O Príncipe.

  Em p r im e i r o l u g a r,

 n o

 decor rer

  d e

 t o d o

 o

 t e x t o

em

 função d o

 p r o c e s so a r gu me nta t i v o

 p o r

 m e i o

 d o

 qua l

 se constró i seu

 d i s c u r s o , um a

vez qu e o  enunc iad o r p r e c i s a p r ime i r am en t e p r o va r ao en unciatár io qu e as idé ias que

está

 ap r e s en t ando s ob r e

 a s

 fo rmas

 d e

 c o nqu i s t a

 e man u tenção

 do pode r

 são

  e f ic ientes .

Para

  t an t o ,  apresentará

 c o m o

  ilustração

 fa tos ocor r idos ta nt o na

 An t igüida de Cláss ica

quan to   fatos  qu e  o co r r e r am   em su a épo ca . No   i t e m s e g u in t e , p r e t e nd e m o s  d i scut i r

m a i s d e t i d am e n t e

  e sses

  p r o c e d im e n t o s a r g um e n t a t iv o s

  e m   O Príncipe,  p o r

  isso

não no s

 o cupam os d i s so ago ra .

  Só

 pre ten dem os ressa l tar com o

  esse

 aspec to d i fe ren

c ia  o

 t e x t o

  d e

 M a q u i a v e l

  d o

  t e x t o p r og r amado r , po i s um a r e c e i t a ,

  p o r

 e x e m p l o ,

  não

pr e c i s a a r gum enta r sua

 compe tênc ia ,

 t am po uc o u m l i v r e to

 qu e

 ex p l i c a c o m o m o n t a r

u m

 rádio  p r e c i s a fazê- lo. Conforme mo st ro u Gre im as (1983) , o  t e x t o da r e c e i t a culinária

não

 p r e c i s a a r gum enta r sua v e r ac idade , u ma

 v e z qu e o

  su je i t o

 qu e executará o fazer

já está

 pre v iam ent e mod a l izado pe lo /querer/

 e

 pe lo

 /dever/.

E m   s e gundo luga r , embora  n ão   d e i x e  também de f aze r   p a r t e  d o   processo

a r g um e n t a t i v o

 d e O Príncipe,  há

 dua s

 s i tuações

 p o n t ua i s

 qu e

 d e i x am c la r a

 a ação do

enunc iado r s ob r e

  o enunciatár io do

  d i s cur so .

  A

  p r im e i r a apa r e c e

  n a

  c a r t a

  q u e

M a q u i a v e l e s c r e v e a  Lorenzo  n  p a r a l h e  d ed i ca r sua ob ra , a  s e gunda o co r r e  n o úl timo

capítulo, o

 XX VI .

N o

  s e g undo

  parágrafo de sua

  c a r t a

  ao pr ínc ipe

  Lo r enzo , M aqu ia v e l

  d i z o

s egu in t e :

E

  conquanto julgue indigna esta obra  da presença d e Vossa  Magnificência, não   confio

menos  em  que, por sua hum anidade, deva  se r aceita, considerado  que não lhe po sso fazer maior

presente

  qu e

 lhe dar a faculdade de poder  em   tempo muito breve aprender tudo aquilo  que,

 em

tantos anos e à custa de tantos incômodos e perigos, he i conhecido.  (1987, p.3 -  grifos nossos)

Nes s e

  t r e cho f i c a e xp l i c i t ado

  o

  processo

  de persuasão,

  pelo /querer/

  e

  pe lo

/dever/, q u e

 i n i c i a

 u m p r o g ram a na r r a t i v o

 qu e oferece ao d est inatár io

 u m /saber/,

 p o r

m e i o

  d o

  q u a l

  e l e pode rá

  e x e cu t a r

  a ação

  p r opos t a pe l o de s t inado r -man ipu lado r .

E m b o r a

  essa m anipu lação se dê po r sedução,

 po i s

  o

 d e s t inado r de s t a ca

  a

 m a g n a n i

m i d a d e ,  a   supe r i o r idade d o dest inatár io e m   d e t r im e n t o d a   p e qu e n e z d a  o b r a c o m

que p r e t ende

  t r ansmi t i r - l h e u m

 /saber/,

  é

  in t e r e s san t e no t a r c omo ,

  p o r

 m e i o

  d e u m

c i r cuns tanc i ado r

  t e m p o r a l

 e

 o u t r o m o d a l ,

 há, ao

  m e sm o t e m p o , u m a

  va lor ização do

fazer   d o

 d e s t inado r :

  e m

 t an t o s anos

  e à

 cus t a

 d e

 t a n t o s

 i n cômodos e

  p e r i g o s .

desempenha um pape l

 secundário, n o

 m om e n t o

  d e

 escolher

  essa ou

 aquela receita;

  além

 disso

 e le se

  si tua

 e m

um  outro

 nível, o

 do programa

 d o

 autor preocupado em

 fazer

 vender seu livro

 de cu linária

(Greimas, 1983,

 p.

 160).

94

Alfa,

 S ão

 Paulo,

  39 :

  87-109,

  1995

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D o

  capítulo

 XX VI de s t a camos

  os

  s e gu in t e s t r e cho s :

a s s im , p r e s e n t e m e n t e , q u e r e nd o - s e c onhe c e r

  o

  v a l o r

  d e u m p r ín c i p e

  i t a l i a no , s e r i a

  n e c e s sá r i o

q u e

  a I tá li a ch e g as s e ao

  p o n t o

 e m q u e s e

  e n c on t r a a g o r a .. . . A s s im , t e n d o f ic ad o c o m o

  s e m

 v i d a ,

e s p e r a

  a Itália

 a q ue l e

  q u e

 p o s s a c u r a r

 a s

 f e nd a s

  e

  p o n h a f i m

 a o

  s aq ue

  d a

 L o m b a r d i a ,

 a o s

  t r i b u t o s

d o r e i n o

  d e Nápo l e s e da

 T o s c a n a ,

  e q u e

  c u r e

  a s

  s ua s c ha g a s

  ]á há

  m u i t o t e m p o a p o d r e c i d a s .

V ê- s e qu e e l a   r o g a  a   D e u s e n v i e  a l g u é m q u e a  r e d i m a  d e s s a s  c r u e l d a d e s  e inso l ênc i as dos

e s t r a n g e i r o s . . . .

  E não s e v ê ,

 a t u a l m e n t e ,

 e m

 q u e m

  e la

 p o s s a e s p e r a r m a i s

 d o q u e n a

 v o s s a i l u s t r e

c a s a ,

  a

 q u a l ,

 c o m a

 f o r t u n a

 e

 v a l o r , f a v o r e c i d a

  p o r

 D e u s

  e

  p e l a I g r e j a

  - a

 c u j a f r e n t e

  es tá

  a g o r a

  - ,

p o de r á

  c o n s t i t u i r - s e

 c abe ça

 d e s t a

  r e d enção .

  Isso

 n ão se rá

 m u i t o

 di fíc i l se vo s

 v o l t a r d e s

 a o e x a m e

d a s

  açõ e s e

  v i d a d aq ue l e s

  d e

  q u e m a c i m a

  s e f e z menção .

  (1987, p . 107-8)

No v am e n t e ,

  n e s s e

 s e g undo m o m e n t o ,

  o

 d e s t in ad o r m an i pu l a

 o dest inatár io p or

sedução, r e to m and o a s  m o da l id a d e s  d o  /querer/ e d o

 /dever/.

 A diferença  a go r a é qu e

o   su je i t o  responsáve l  p e la  manipu lação   r epor ta-se para  o qu e f o i  a n t e r i o r m e n t e

ap r e s en t ado :

  o

 d i s cur so

 qu e propõe

 mos t r a r

 a

 m ane i r a m a i s

 e f i caz de

 c o n qu i s ta r um

no v o p r i n c i p ad o

  e d e

  m a n t e r

  esse

  pode r .

  No c a s o

  anter io r ,

  o

  des t inador faz ia

  a

promessa

  d e

  in v e s t i r

  o des t ina tár io de u m

 /saber/, ago ra

  e l e s e

  v a l e

  d o

  /saber/

apr e s en t ado pa ra , ind i r e t am en t e , c onv ida r  o de stinatário a u m /fazer/. A s s i m   estará

rea l izada  a transformação e   c u m p r i d o o p r og r am a na r r a t i v o .

A o

  j un t a r

  e sses   d o i s m o m e n t o s ,  o que pr ecede os cap í tu los da   ob r a  (a   car ta

introdução) e o que a

  ence r r a

  (seu capítulo

  f ina l ) , perceberemos

  u m a s eqüênc i a

narra t i va  q ue es tá

  c en t r a l i zada

  n a

 p r ime i r a e t apa

  d o

  p e r cur so na r r a t i v o

 canón ico : a

manipu lação. O

  su je i t o

  não

  real iza

  a

 performance  p o r qu e

  e l a só pode rá

  ocor rer

  n a

m e d i d a

 e m qu e o dest inatário

  adqu i r i r

 a com pe tênc ia , po r

 j u l g a r

 q u e o

 p r o g r a m a

  d e

construção d o

  objeto valor /saber/ presente

  no s 25

 p r im e i r o s

 capí tu los fo i

 c u m p r i d o .

Há  aqu i , p o r t an t o , duas na r r a t i v a s d i s t i n t a s a  pa r t i r d a s  qua i s O Príncipe  é constru ído:

u m a  no n íve l da enunc iação,

  o u t r a

 no n í ve l do

  enunc iado .

O q u e  just i f ica  o

 fato

  d e o

 d i s cur so

 d e O Príncipe

  prec isar enfa t izar

  o

  p r o g r am a

de

 manipu lação,

 d i fe renc iand o-se , ass im, das

 várias

 fo rmas

 d e

 d i s cur sos

 d e instrução,

res ide  n o  e s t a t u t o e spec í fi c o d e seu  ob je to va lor . Di fe rente me nte  d a  r e c e i t a  culinária

(que pre tende  f aze r qu e  u m su j e i to - rea l i zado r c on s t ru a u m de t e rm inado p r a t o  c o m

o

 qua l

 a l imentará a s i própr io e a

 s eus c on v idados )

  o u d o

 l i v r e t o

 (que

 e n s i n a um o u t r o

su je i to  a

  c o n s t r u i r

 u m

 apare lho

  de transmissão de

  ondas sonoras , como

  o rádio ) , o

t e x t o

 m aqu iavé li co

 p r e t ende c on vence r s eu

 dest inatár io d e

 que lhe

 es tá

  ap r e s en t ando

a m e lh o r m ane i ra d e  c onqu is t a r e  m a n t e r o  p o d e r po l ít ico de  u m Es t a d o . Ao contrár io

dos ou t r o s t ipo s d e  d i s cur so que , pa r t in do d o ob je to já cons truído, p r o cur am desc r e v er

as e tapas para

 su a reprodução, o

  t e x t o

  d e

 M a q u i a v e l

  a t r i bu i a s i própr io a

  tarefa

  d e

idea l izar

  u m

 m o d e l o

  d e

  Es t ado p r inc ipe s co . Pa r t indo

  d o q u e

  e x i s t e

  o u

  e x i s t i u

  (os

gov e rnos

  d e su a é po ca e o s da

 Roma an t i g a ) ,

 p r op õe -se

 c r i a r

 o

  n o v o .

Re t omemos ,

  po rém, o

 t e x t o

 d e

 M aqu i a v e l ,

 n o q u e se

 refere, agora ,

 a o

 e nu nc i a d o ,

para  observar com o

  se dá o

 processo n arrat ivo

 d e

 sua

 constituição.

 An t e s ,

  porém,

 apre

sentamos a seguinte divisão  para os

 26

 cap ítulos  qu e con s t i tu em  O Príncipe:  1 . as  d iversas

formas   d e  p r i n c i p ad o s e o m o d o  através do  qua l p o d e m   s e r a dqu i r i d o s e   m a n t i d o s  -

Alfa,

 S ão

 Paulo, 39: 87-109,1995 95

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capítulos I a  X I ; 2. organização   mi l i t a r  d o Es t ado  - capítulos XE a  XIV;  3.  c o n d u t a d o

pr ínc ipe - capí tu los X V a XLX; 4 .

  a s sun t os

  d e

  espec ia l in te resse para

  o pr ínc ipe -

capí tu los X X a

 XXH1;

 5. situação

 i t a l i a n a

 n a épo ca d e

 M a q u i a v e l

  - capítulos

 XXTV

  a

X X V .

7

Par t indo

 da obse r vação temát i ca de

  c a da um a

 d as d i v i sões

  p r opos t as ,

 v e r e m o s

qu e  e l as  c on s t i t u em d i f e ren t e s mod a l idades  da confi gu ração d o   objeto valo r /saber/.

O

  p r o g r am a n a r r a t i v o

 bás ico d o

 d i s c u r s o e nunc i a d o

  no s 25 cap ítu los d e  O Príncipe,

t o m a d o

  na su a re la ção c om o

  p r o g r am a n a r r a t i vo

 da man ipu lação ,

  i n s t au r ad o p e l a

carta  a   Lorenzo  n e conc lu ído no capí tu lo   XXVI ,  d e v e ,  p o r t a n t o ,  o f e r ece r a s eu

destinatário

 u m saber

  c o m o

 qua l

 e l e pode rá

  e x e cu t a r

 o fazer

  reque r ido pe l o p r im e i r o

p r o g r am a . E s s e  saber  é , n o níve l do  enun c iado , ap re s en t ado c o mo   f aze r es co m  v is tas

a

  d o m i n a r

 o u a

 m a n t e r

 o

  poder .

E m

  p r im e i r o luga r , podem os pensa r

  e m

  dua s

  d iv isões poss íve is

  p a r a

  os 25

capí tu los qu e

 c o r r e s p o nd e m

  ao

 p r o g r am a

 de construção do

 saber .

 A  p r i m e i r a

  c ons i s t e

n a apr esentação de ques tões de

 o rd em gera l (par t es

  1 , 2 , 3 e

 4 ),

 q u e

 c o r r e s p o nd e r iam

à discussão   sobre  té cn i cas de   c o nqu i s t a  e de o r gan ização do exé r c i to , bem   c o m o

cons ide rações

 s ob r e

  a

 me lho r f o rma

 d e o pr ínc ipe

 r e lac ionar-se

  c o m o

 p o v o ,

  c o m

 seus

aux i l ia res ,

  c o m

 s eus am igos

  e c o m

  se u s i n im i g o s .

 A e s s a s qu e s tõe s , o põe - s e u m a

questão e spec í f ica   (par t e  5 ),  c o n c e r n e n t e  às  d i f i cu ldades qu e se   ap r e s en t a r i am pa ra

u m   p r ínc ipe que

 t enc ionass e c onqu is t a r

  a Península Itálica

  p a r a

 u nificá-la

  n u m a

 só

nação.

A

  s e g unda

  d iv isão é responsáve l

  pe la

  conf iguração de

  do i s t i po s

  d e

  saber :

  d e

u m

  l ado , um sabe r  q u e  p r e s ide  à esco lha ,  o  querer (partes 1  e 2) e, d e  ou t r o , u m sabe r

que p r e s ide

  à ação

  (par t es

  3 , 4 e 5 ) . No

  p r ime i r o c aso ,

  o

  d e s t inado r ,

  p o r

 m e i o

  d a

ut i l i zação d e

  d i fe rentes

  i lustrações que reforçam

  s eus pon t os

  d e

  v i s t a , mo s t r a

 a s e u

dest inatár io as

  v an t a g e n s

  d e

  e s co lhe r c o nqu is t a r

  u m

  p r i n c i p ad o n o v o

  e d e

  pode r

c o n t a r  c o m u m e xér c it o p r óp r io ; no

  s e gundo , p r e t ende ap r e s en t a r

  a s a çõe s qu e o

pr ínc ipe dev e   r ea l izar para manter -se  n o   poder .

A l ém

  d isso ,

 é

 im po r t a n t e re s sa lt a r

 o

 p r o c e d i m e n t o

  de o r gan ização esquem át ica

e m p r e g ada p e l o e nunc i a d o r

  d o

  t e x t o du r an t e

  a rea l ização dessas

  c inco pa r t e s

  q u e

c o n s t i t u em

  o

  p e r c u r s o

  de construção do

  saber .

  E s s e

  processo

  s e dá po r

  m e i o

  d a

se l eção de tóp i cos a  s e r em des envo l v idos o r a e m  u m  só cap í tu lo , o ra n u m a seqüência

de les . Para exp l icar mais c laramente como ocor re  essa organização   m a i s p a r t i c u l a r

d a e s t ru tu ra

  d i s cur s i v a

 qu e r e v e s t e o

 e squema na r r a t i v o

 da cons t rução do

 ob je to va lor

d e

 O Príncipe,

  obs e r va r emos

  a

 p r im e i r a

 d i vi são que

  p r opusemos .

A o   t ra ta r d a s

 d iversas form as

 d e

 p r i n c i p ad o s

 e o

 m o d o

  p o r

 m e i o

  d o

 q u a l p o d e m

se r adqu i r id os  e  m a n t i d o s, o   e nunc i a d o r d o  t e x t o ap r e s en t a ,  e m  p r im e i r o l u g a r,  u m a

opos ição  en t r e do i s r e g imes  d e   g o v e r n o :  o s   p r i n c i p ad o s p r o p r i am e n t e d i t o s  e as

repúbl icas . Esses são os

  do i s r amos

  d e u m

 e s qu e m a

  e m q u e s e

  s u s t e n t a t o d a

  a

7  Excluímos

  propos i tadamente

  o capítulo

 XX VI dessa

  quinta

 par te porque

 o incluímos no

  programa narrat ivo

 de

manipulação do

 sujeito

 d estinatário que se

 inicia

  c o m a

 car ta

 e s e

 c onc lu i

 ness e último capítulo.

96

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,19 95

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propos t a

 d a

 p r im e i r a p a r t e

 d e

 sua ob ra . Como

  o

 au t o r ,

 po rém, se p ropõe

  fa lar apena s

dos p r inc ipados , abandona

  a

 p r opos t a

  d e

 g o v e rno r epub l i c ano , usando c om o

  jus t i f i

ca t i va o   fato d e já t e r abo rdado  esse   a s sun t o e m  ou t r a  ocas ião .

8

 Estão   ap r e s en t ados

  do i s

  tóp i cos em função dos

  qua is ser iam organizados out ros

  que a e l e s s e

s u b o r d i n a r i a m .

 A o e l e g e r

 t ra ta r

 dos p r i n c i p a d o s , o na r r ado r de t e rm ina s eu t ema c en t r a l

e

  i n t e r ro m p e

 o

 o u t r o ,

 qu e não será

  ma is abo rdado .

N o

  m o m e n t o

  e m q u e o

  n a r r a d o r d e t e r m in o u

  s e u

  t e m a

  p r i n c i p a l ,

  c omeça a

descrever

  o s

 t e m a s

  secundár ios que a e le es tão

 l i g ados .

 Por esse

 m o t i v o

 ir á

 d izer

 q u e

ex i s t em  três  t i p o s d e  p r i n c i p a d o s : os hered itár ios, os  novos  e os ec les iást icos . De sses

três,  o

  e nunc i a d o r

  destacará o

  s e g undo

  t i p o ,  o s

  p r inc ipados novos , chegando

  a

d iv id i - lo s   e m   d o i s s ub t i p o s :  o s   t o t a lm e n t e n o v o s  e o s   m is t o s . Quando p r ocura

descrever

  o s

 d i v e rs os t ipo s

 d e

 p r inc ipados , ap r e s en ta s em pr e

  i lustrações

 c o lh idas

 d a

histór ia da

  Roma a n t i g a

  ou d e su a épo ca .

  Essas

  i lustrações,

  c omo p r ocura r emo s

most ra r n o  i t e m  a  seguir , fazem par te  d o  p r o c e s so a r gu me nta t i v o d e s e u  t e x t o .

Se  t o m a r m o s a  p r im e i r a d iv isão  p r opos t a pa ra a  ob r a d e  M a qu i a v e l c om o m o d e l o

de

  es t rutura

  d i s cur s i v a

 qu e s e

  r epe t e

  e m

 t odas

  as

  d ema is pa r t e s ,

  v e r em os qu e e l a s

se   o r gan izam   n a   f o rma  d o   m a n u a l  de instruções .  Q u a n d o

  t ra ta ,

  p o r t a n t o ,  d o s

p r i n c i p a d o s  novos ,  o   e nunc i a d o r f az um a subca tegor i zação : os  p r i n c i p ad o s já   a cos

t u m a d o s

 à sujeição d e

 u m

 pr ínc ipe , qu e

 p o d e m

  s e r da

 m e s m a

 prov ínc ia e

 fa lantes

 d a

m e s m a  l íngua d o pr ínc ipe   c onqu is t ado r o u de prov ínc ias e línguas   d i fe rentes  d a s d o

conqu is t ado r ;

 o s

 p r i n c i p ad o s h ab i t u ad o s

 a r e g e r - s e po r

 le is

 própr ias e e m

 l i b e rdade .

Para cada

  u m d e s s es

 s ub t i p o s ,

 serão

  apresentados

  os

 me io s m a is

  e f icazes

 p a r a

 q u e

u m

  pr ínc ipe   pos sa me lho r  dominá- los e   pa r a  qu e   t enh a ma io r e s t ab i l i dade  d e s u a

possessão . A demon s t ração de

  c ada

  u m d e s se s

  me io s

  d e

  c o nqu i s t a , n o v am e n t e ,

  é

s e m p r e a co m panh ada p o r

 i lustrações

 que r

 d a his tória contem porânea do

 enunc iad o r ,

quer d o p e ríodo d a  Roma an t i g a .

Toda

  essa descr ição da organização

 d i s cur s i v a

 qu e r e v e s t e o

 p r og r ama na r r a t i v o

de

 construção do

 saber

  d e O Príncipe  n o s

 p a re c e im po r t an t e p o r qu e

 n os faz

  en t ende r

qu e

  esse

  t e x t o

  está

  m o n t a d o

  a   part i r  de ope rações

  t a n t o

  parad igmát icas

  quan t o

s intagm áticas . O  a spec t o  parad igmát i co po de se r obs e r vado pe la s e l eção dos  d i f e r en

t es assuntos apresentados  e m   c ada  tópico   abo rdado  p o r  c ada  u m a d a s  c inco

subd iv isões . O

 a spec t o

  s in tagmát ico , po r sua vez ,

  c o r r e sponde

  às com binações qu e

o

 en unc iado r r ea l i za

 d os vários tópicos

 p a r a m o n t a r

 s eu

 d i s cur so .

M a s ,

  af inal ,  O Príncipe  p o d e o u não se r

  cons ide r ado u m t e x t o

 d o

 t i p o

 d o

 m a n u a l

de  instrução? Com re lação a esse   aspec to ,  d i r íamos qu e o   t e x t o  d e   M aqu i a v e l

8   N o i n í c i o d o c a p í t u l o I d e  O Prí c i pe M a q u i a v e l  d i z : T o d o s o s   E s t a d o s , t o d o s  o s d o m í n i o s q u e t ê m  h a v i d o  e q u e

h á  s o b r e  o s h o m e n s f o r a m  e s ã o r e pú b l i c a s ou  p r i n c i p a d o s ( 1 9 8 7, p . 5 ) . No i n í c i o d o   s e g u n d o , a f i r m a :  N ã o   t r a t a r e i

d a s   r e pú b l i c a s ,  p o i s  e m   o u t r o s lu g a r e s f a l e i  a   r e s p e i t o d e l a s ( 1 9 8 7 , p . 7 ) . E s s e  s e g u n d o  p e r ío d o t e m  s i d o m o t i v o

d e m u i t a s e   d i f e r e n t e s  i n t e r p r e t a ç õ e s . U n s q u e r e m   v e r n e l e  u m a r e fe r ê n c ia à s u a  o u t r a  o b r a , Come n táí s

  sobie

  a

p r im e i r a déada de

 Tito

 Lí i o

o u t r o s i n s i s t e m

 e m

  d i z e r

  q u e e s s a i n t e r p r e ta ç ã o é

  e r r a d a , p o i s M a q u i a v e l

  n ão

  h a v i a

a i n d a e s c r i t o  e s s e  t e x t o , e l e o   e s c r e v e u d e p o i s  d e O   r í c i p e.   E s s e s o u t r o s t e x t o s  e n t ã o  s e r i a m   r e l a tór i os e   t r a b a l h o s

e s c r i t o s d u r a n t e  o p e rí o d o e m q u e M a q u i a v e l o c u p o u  o   c a r g o  d e s e c r e t á r i o d a Re pú b l i c a   florentina.

Alfa,

 S ão

 Paulo,

  39 :

  87-109.

  1995

97

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co r r e sponde

  a um a subve r são do g êne r o do

  m a n u a l

 de instruções ,

  po i s , c on fo rme

p r o c u r am o s m o s t r a r a n t e r io r m e n t e , foge dos padrões desse  t i p o d e  t e x t o . N a   v e rdade

podem os d i z e r que

 e le é

 u m

 m a n u a l

 n o

 níve l do

 e nunc i a d o , m a s

 n ão

 no

 d a enunc iação .

Essa

  distinção   p o d e  s er

  obs e r vada qua ndo

  se

  v e ri fi c a , c on fo rme p r ocu ramo s

most ra r ,

 que , no n í ve l da enunc iação , o

 t e x t o de s t a ca

  a instânc ia da man ipu lação do

e squema na r r a t i v o canón ico ,  e nquan t o ,  no n í ve l do   e nunc i a d o ,  p r opõe   r ea l izar u m

fazer: a construção de  um saber . Essas d uas  instânc ias estão, po r ou t r o lado , ba s t an t e

a r t i cu l ada s

 en t r e

 s i e se

 c o n s t i t u e m

 n o

 s up o r t e a r g um e n t a t i v o

 d o

 d i s cur so

 maqu iavé

l i c o .

  A intenção

 p r im e i r a

 d o

 d e s t inado r

 é

  levar

  seu dest inatár io a

 u m

 fazer

  ( t o rnar -se

o pr ínc ipe

 un i f i c ado r

 d o terr itório i ta l i ano ) .

 Para

 t an t o , é

 p r e c i s o doa r um a

 compe tênc ia

a  esse destinatário   po rque  s em e la não pode rá se r r ea l izada  a   performance.

Co m

  esse

 ob j e t i v o

  o

 d e s t inado r

 p r opõe

 e x e cu t a r u m ou t r o pe r cur so

 na r r a t i v o ,  o

da

  construção do   saber  qu e invest irá o dest inatár io d a comp etênc ia n ecessár ia   pa r a

a

  rea l ização da

 performance;

  esse é o

  p e r cur so

  d o

  m a n u a l

 de instruções . A

  conse

qüência desse

  fato

  é qu e , no

  se g undo p r o g r am a ,

  o

  d e s t i n ad o r m an i pu l a d o r

  e o

destinatário

  c o r r e spondem

  a

 u m mesm o a c t an t e ( fi gu ra t i v izados pe l o enunc iado r

 d o

p r im e i r o  p r o g r am a

 -

  Maqu iav e l ) , enquan t o

  o

 d e s t inado r ju l gado r

 d o fazer

  e x e cu t ado

pe lo su je i t o  da transformação corresponderá ao dest inatár io do   p r im e i r o p r o g r am a

(Lorenzo  H).  Isso s ig n i f ica d izer  q u e , pa r a  o   su j e i t o de s t inado r c onsegu i r man ipu la r

seu

 destinatário

 n o p r im e i r o p r o g r am a

 na r r a t i v o , deverá ser

 s an c i o nado p o s i t i v am e n t e

p o r

 e l e no

  s e gundo .

E m

  r azão do que

  a cabamos

  d e

  expor ,

  pode r í amos

  a i n d a

  fazer  um a supos iç ão

e m   relação a  O Príncipe.  Ta l v ez , a  p e cu l i a r idade d e  s u a construção, qu e  c o n s i s t i u n a

subve r são do gênero d o  m a n u a l de instrução, t enha s ido r e sponsáve l p e la  impor tânc ia

qu e

 o

 t e x t o

 maqu iavé l ico

 a dqu i r i u

 a i n d a

 du ran te

 o

 Renasc imen t o , d e s t a cando - s e en t r e

os vários

  ma nua is s ob r e

 o

 p o d e r d o s

 príncipe s, tão

 c o m u ns n aque la

 época ,

  c on fo rme

af irmação d e

 0 'D ay (1979) .

Para t r a t a rmos , ma is c o mp le t am en t e ,

  a m ani festação

  d i s cur s i v a

 d o

  t e x t o

 m a

quiavé l ico é

 p r e c is o r e cupe ra r c e r to s a spec t os de t e rm in an t e s

 d esse níve l d a sup er fí cie

l ingüística do  t e x t o . É po r essa razão  que , n o  i t em s egu in t e , nos p r opom os  a  e x am ina r

os   p r o c e d im e n t o s  de a r gumentação em   O Príncipe,  i n c l u i n d o  a í o  e m p r e g o  d o s

m e c an i s m o s

  retór icos.

2 2

  Recursos lingüísticos util izados n a construção do  discurso

de

 

Prínci pe

A argum entação e os

 recursos

 retóricos

O  Príncipe,

  c onqua n t o s e ja v i s t o c om o u m t e x t o

 f ilosóf ico, p olí t ico, l i terár io, u m

m a n u a l ,  o u

 qua lque r o u t r a

 denominação qu e se

 p r e t e nda

 da r a e l e ,

 assenta-se sobre

u m a b ase t emát i ca ,

  va lendo-se

  d o

 m o d o

  de organização

 d i s s e r t a t i v o

 d e s e u

 d i s cur so

pa ra  a r gumenta r s eus pon t os  d e   v is ta . Par t indo  da s af irmações d e   Pe r e lman  &

Olbrechts-Tyteca (1976 ) , observamos  qu e e s s a a r gumen tação , qu e t e m po r  ob j e t i v o

98

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,1995

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e s t abe l e c e r uma re lação d e   v e r d ad e e n t r e o  d i s c u r s o e a   r ea l idade , organiza-se ,  n o

d e c o n e r

  d o

 t e x t o

 maquiavé l ico ,

 po r me io

 d e

 d o i s p r o c e d im e n t o s ,

 o da fundam entação

pe lo c a s o  pa r t i cu l a r e o  da ana lo g ia . O p r o c e s so  de fundam entação p e l o

 c a s o

 p a r t i cu l a r

p o d e  s er  p e r c e b i d o  a o   l o n g o  d o   t e x t o quando  s e   c o n s t a t a q u e o   enunc iado r , pa r a

just i f icar

  suas

  af irmações,

  r e c o r r e

  ao

 t e s te m u n h o

 d e

  fatos

  h i s tó ri cos d a An t i gü idade

Cláss ica o u então d e sua époc a. Já a funda men tação analóg ica é u m  p r o c e s so  d e

raciocínio   p e l o qua l o en unc iad o r p r o cura f azer  o enunciatár io  c o m p r e e nd e r  o que e l e

está

 p r e t e nd e ndo

 i n f o rmar ,

  u t i l i zando - s e

 d e

 p r o c e d im e n t o s

 q u e

 c a m i n h a m

 d e s d e

 u m a

s im p l e s com paração a té a ut i l ização d e  u m r e c u rs o retór ico  ma is e l abo rado .

Co m

  o propós ito de

 me lh o r de f in i r nos sa p r op os t a

 de inves t i gação d o

  p r o c e s so

a r g u m e n t a t i v o d o  t e x t o maquiavé l ico , e n t e n d e m o s  ser neces sár io exp l i c i t a r , d e  f o rma

m a i s

  c lara  e   c omp le t a , c omo Pe r e lman   &  O lb r e ch t s -Ty t e ca ( 1976 ) de s envo l v em   as

noções qu e a e les atr ibu ímos  a c im a . D e iníc io é prec iso d izer q u e o s au t o r e s p r opõem

t ratar

 a ques tão da a r gumentação do  p o n t o d e  v i s t a d o  d i s cur so  filosófico.

Se g undo

  o s

 au t o r e s ,

 a fundamentação do

 r ea l pe lo

  c a s o  pa r t i cu l a r

  c o m p r e e nd e

três  d i fe r e n te s p r o c e d im e n t o s a r g u m e n t a t i v o s : o e x e m p l o ,  a ilustração e o m o d e l o .  A

argumentação p e l o e x emp lo pa r t e d e  u m  caso esp ec í f ico  pa r a chega r  a  u m a p ro p o s i

ção,

  é u m

 p r o c e s so

  de gen e ra l ização ; a a r gumentação

  p e la

  i lustração, ao contrário,

pa r t e

  d e u m a a fi rmação ( ou u m a  r e g r a ) , in i c i a lm en t e dada , pa r a  reforçá-la, é u m

proc e s so  de par t icu lar ização; a argumen tação  p e l o mode lo  i n c i t a à imitação,  i s t o é,

p ro cu ra  levar

  o

 su j e i t o

 a

 t o m a r a lg o c o m o m o d e l o

  a ser

 s e g u i d o

  o u

 r e j e i t ado qu and o

de le quiser se  v a l e r pa r a c onvence r s eu r e c ep t o r  (enunciatário, destinatário, l e i t o r e t c . )

a

  r e spe i t o

  d a

 v e r d ad e

  o u d a

 fa ls idade

  d e

 u m dado f a t o

 o u rac ioc ínio .

Pe r e lman   &  O lb r e ch t s -Ty t e ca (p . 481 ) d e s t a cam   que a di ferença   en t r e  o s   do i s

p r im e i r o s t i p o s d e  p r o c e d im e n t o s a r g um e n t a t i v o s é  i m p o r t a n t e e  s i gn i f i c a t i v a , po i s a

uti l ização do

 e x e m p l o

  e da i lustração

  r eve la

  q u e o

  e nunc i a d o r

 se

  v a l e

  d e

  d i fe rentes

critérios  pa r a

 e x p r i m i r

 s e u p o n t o d e  v i s t a . E n q u a n t o o  e x e m p l o  dev e se r incontes táve l,

do p o n t o d e  v i s t a d e  su a eficácia   c o m o e fe i to a r g um e n t a t i v o , a i lustração, d a  q u a l não

d e p e nd e  a adesão à  r e g r a , pode  se r  m a i s i n c e r t a , e m bo r a d e v a c h o c a r v i v am e n t e  a

imag inação p a r a c h am a r a a ten ção . Na  v e rdade ,  a i lustração é u m t i p o a r g u m e n t a t iv o

ut i l i zado

 e m razão da ressonância

 a fe t iva

  c o m a

 qua l p r o cu ra envo l v e r

  o

 su j e i t o

 a q u e

se

 d e s t ina .

A

  pa r t i r

  dessa  distinção, os  a u t o r e s d e s ta c am d e t e r m inada s p o s s i b i l id a d e s  d e

uso da i lustração. P r im e i r am e n t e é m u i t o c o m u m  o e m p r e g o d a ilustra ção p a r a faci l i tar

a

  c ompr e ensão d e uma

 r e g r a

  qu e

  ap r e s en t a a l t e rna t i v a s

 p o r

 m e i o

  d e u m c a s o d e

apl icação indiscutíve l . É poss íve l

  a i n d a

  ut i l izar

  e sse

  t i p o a r g um e n t a t i v o quando

  s e

p r e t e nd e m o s t r a r  a impor tânc ia , o   v a l o r  d e u m a  r e g r a , r e c o r r endo , p a r a t an t o ,  à

ilustração

  su rp r e end en t e , in e spe r ada , f a s c inan t e .

 Se , po r

 o u t r o l a d o ,

 a i lustração não

fo r  u t i l i zada p a r a u m  d e s s e s

 f ins ,

  será  c ons ide r ada inadequada .

Co m

 relação

 a i n d a

 à inadequ ação da i lustração,

 s e g undo P e re lm an

 &

 O l b r e c h t s -

Ty t e ca ,

  d e v e m - s e

  observar duas d i fe rentes

  situações. A   p r i m e i r a ,  e m q u e el a é  fruto

da

 incompreensão , do  d e s c o nh e c im e n t o  q u e o  e nun c i a d o r t e m  d a  r e g r a q u e  p r e t e nd e

Alfa,

 São

 Paulo,

 39 :

  87-109,

  1995

99

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i lustrar ;  e m

  s e gundo luga r ,

  a i lustração

  v o l un t a r i am e n t e i n a d e quada

  q u e p o d e

cons t i tu i r - se

 nu m a f or m a

  d e

  i ron ia .

 Nes se ú l timo caso o

 e nunc i a d o r

 es tá

  c onsc i en t e

de  qu e   e m p r e g a  u m a   es t rutura  a r g um e n t a t i v a  qu e   c ons i s t e  n u m j o go   ent re do is

d i scu rso s :  o

  e nunc i a d o

  e o

  man i f e s t o ;

  e l a é

  p e r t i n e n t e t o d a

  v e z qu e s e

  p r e t ende

con t e s t a r  o  v a l o r d a  r egra .

A l é m d o u s o d o s

 p r o c e d im e n t o s

  de a r gumentação o ra

 ap r e s en t ados , ju l gam os

qu e  é poss íve l  a p r o x im a r  out ra  característica do  d i s cur so d e   M a q u i a v e l  à noção de

ilustração

  fo r jada , most rada

 p o r

 Pe r e lman

  &

 O lb r e ch t s -Ty t e ca .

  Vár ios são os

  le i t o res

que acusam

  o

  escr i t o r f lo rent ino

  d e

  fa ls if icar

  o s

  e x e m p l o s

q u e

  ap r e s en t a

  e m O

Príncipe.  D e   a co rdo  c o m  Pe r e lman  & O lb r e ch t s -Ty t e ca  e s s e é u m  r e cur so u t i l i zado

t o d a  v ez qu e se

  pre tende es tabe lecer

  um a l ig a ção

  ma is d i r e t a

  e incontes táve l em

relação à

 r e g r a , emb ora ju l gu em

 qu e e s s e

 t i p o

 de a r gum entação

  ap r ox ima- s e ma is

 d o

m o de l o ,

  qu e

 p r o p r i am e n t e

 d a i lustração.

9

Co m

 re lação ao

 t e r c e i r o t i po

 de a r gum entação , os

 au t o r e s a f irma m

 qu e

  quando

se

  t ra ta

  d e   c o ndu t a ,  u m  c o m p o r t am e n t o  par t i cu lar  pode ,  n ão   s omen t e s e r v i r pa r a

fundar  o u

 pa r a

  i lustrar  u m a

 r egra gera l ,

  m a s t a m b ém

  pa r a

  i n c i t a r

  u m a

  ação que se

insp i ra

  ne le (1976, p .488 ) .

 O

 m o d e l o ,

  então, é

 c r i ado pa ra va lo r i za r u m

 indiv íduo (ou

u m

  g r u p o de indiv íduos ) , u m m e i o o u u m a época ; e sse  t i p o de a r gum entação  t e m  p o r

o b j e t iv o i n d i c a r um a c o ndu t a

 a

 s e gu i r . Qua ndo u m

 indiv íduo é

 t o m ad o c o m o m o d e l o ,

c o l o cam-se

  em ev idênc ia

 d e t e r m inada s

 características

 ou a t o s , adap t an do sua

 própria

i m a g e m o u  s i tuação c om o propós ito de  m e lh o r

 in fluenc ia r

 o enun ciatár io do  d i s cur so .

M u i t o

  c o m u m e n t e ,

  os s e r es

 c ons ide r ados supe r i o r e s , c om o deuses , m i t o s ,

 t êm

  suas

im ag e n s   construídas a

 part i r

 d e  suas qua l idades pos i t i v a s pa ra q u e  pos sam s e r v ir d e

m o de l o

  a s e r

 s e gu ido , c op iado .

E m

 opos ição ao

 mode lo , Pe r elman

  &

 O lb r e ch t s -Ty te ca e s t abe l e c em

  a ex is tênc ia

do an t imode lo c r i ado a

 pa r t i r

 d e  u m e f e i to  d e repu lsão. À  p r im e i r a v i s t a , t u d o q u e f o i

d i t o  a

 r e spe i t o

  d o

  m o d e l o

  p o d e

  equiva le r

  ao

  a n t im o d e l o ,

  se se

  t oma r pe l o a spec t o

nega t i v o . Segundo

  os

 au t o r e s ,

 po rém, há

 u m

 traço

 i m p o r t a n t e

 qu e

 d i s t i n g u e um t i p o

d o o u t r o . Enquan t o p a r a  o   m o d e l o  o  su je i t o  enunciatár io é  i n d u z i d o  a   c op ia r u m a

c o n d u t a

  d e t e r m inada ,

  n o ca s o d o

  a r g um e n t o p e l o a n t im o d e l o ,

  e le é

  i n c i t a d o

  a s e

d i s t i ngu i r d o ind i v íduo qu e  fun c i o na c o m o an t im o d e l o , s e m q u e s e pos sa  infer ir d e l e

u m a

  c ondu ta de t e rm inada . Somen t e

  p or referência im plícita a

 u m m o d e l o

  é qu e

 u m a

ce r ta de te rm inação da

 c o n d u t a

 a s e r

 n e g ada

  será poss íve l

 (1976, p .493-4 ) .

 E m

 ou t r a s

pa la v r as , u m  a n t im o d e l o só po de se r cons t ru ído  quando e x i s te u m m o d e l o  qu e a e le

se

  oponha .

9

  O

 a u t o r

 d a  Rhéor i que à

  erennius  e x p l i c a

 p o r q u e

 j u l g a

 p r e f e r í v e l

  c o m p o r

  e l e

 m e s m o

  o s

 t e x t o s

  q u e

 d e v e m   i l u s t r a r

s u a s r e g r a s  d e r e tó r i c a a o in v és d e t om á - l o s  e m p r e s t a d o s , c o m o f a z ia m   o s g r e g o s , d o s  g r a n d e s e s c r i t o r e s .  O c a s o

f o r j a d o   e s tá  l i g a d o m a i s e s t r e i t a m e n t e   à  r e g r a  q u e o c a s o   o b s e r v a d o ;  e l e   i n d i c a m e l h o r  q u e o   r e s u l t a d o  e s t á

c o n f o r m e

  a

  r e g r a

  e e m q u e e l a

  c o n s i s t e . E n t r e t a n t o

  e s s a

  g a r a n t i a

  é , e m

  p a r t e ,

  i l u s ó r i a . Os c a s o s

  f o r j a d o s

  s ã o

s e m e l h a n t e s  a u m a e x p e r iê n c i a  m o n t a d a n u m  l a b o r a t ó r i o   e s c o l a r .  M a s é p o s s ív e l q u e e l e  s e j a f o r j a d o  b e m   m a i s

à m a n e i r a  d e u m  m o d e l o p r e s t i g i o so  q u e  c o m o  a p l i c a ç ã o d a   r e g r a q u e s u p ô s  i l u s t r a r ( P e r e l m a n  &  O l b r e c h t s - T y

t e c a , 1 9 76 , p . 4 87 - 8 ) .

100

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,1 995

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E m   O Príncipe  d e

 M a q u i a v e l

 h á

 u m a

 utilização

 c ons t an t e

 d a a rgum entação

 p e la

i lustração.

 Obse r vando

  o

  t e x t o t o d o ,

  é poss íve l

  encon t r a r ma is

  d e

  dua s

  d e z enas d e

casos   e m q u e

 d e t e rm inad os enunc iados a s sum idos c omo r e g r as

  são

  i lu s t r ados

 p o r

fatos p a r t i cu l a r es . A l g u m a s

 de s sas  i lustrações são

 ma is s imp le s

 e

 l ige i ras ,

 ou t r a s ,

 m a i s

m inu c i o s a s e  l o n g a s. U m e x e m p l o  d o  p r im e i r o t i p o p o d e s e r e n c o n t r a d o já no ca pí tu lo

n

  quando

 o

 enunc iad o r , pa r a

 just i f icar

 su a

 af irmação

 s ob r e

 o s

 p r i n c i p ad o s

 heredi tár ios

- q ue são

 m a i s

  fáceis de

 m an t e r p o is

  são afe içoado s à famí lia d e se u pr ínc ipe - ,   c i ta,

l o g o  e m  s e gu ida ,  o c a s o do  D u q u e d e  Ferrara qu e  res i s t iu a o s  a taques  d o s   venez ianos

em 1484

 e ao s d o Papa Júlio n em

  1510, exata me nte pe lo fa to

 d e s e r

 a n t i g o

 o dom ín io

de  su a família  naque l e Es t ado .

U m

  e x e m p l o

  do caso da a r gumentação

  pe la

  i lustração que se

  e s t ende

  n a

narração de  d e t a lhe s p o d e s er e n c o n t r a d o n o capí tu lo D I, e m q u e o   e nunc i a d o r

  t rata

dos p r inc ipado s m is t o s . Pa ra mos t r a r c omo um

 pr ínc ipe

 a t e n t o

 a o s

 ma le s

  qu e

 p o d e m

afligir

 s eu

 território

 c onqu is t ado p r ocu ra s empr e

 s e

 an t e c ipa r

 ao s

 a con t e c im en t os pa ra

ass egura r po r ma is t empo sua p ossessão , c i ta o caso de Lu í s

 XI I

 da França, qu e  i n vad iu

e

  m an t e v e

  o domínio de vár ias reg iões

  i t a l i anas

 p o r

 b a s t an t e t e m po . E nquan t o

  o

enunc iado r

  v a i

 n a r r ando

 os

  a con t e c im en t os , ana l i s a

 as ações

  cor re tas

  e

  in co r r e t a s

des envo l v idas po r aque l e monar ca , c on f i rmand o e até e x p a n d i n d o a  re g r a in i c i a lm en t e

propos ta .

No capí tu lo   vm o

  e nunc i a d o r

  e s t abe l e c e

  duas f o rmas

  d e

  c o nqu i s t a r

  u m

p r in c ip ado   s e m o   a t r i bu t o  d a   f o r tuna  ou do mér i to . A  p r im e i r a f o rma cons i s t e  e m

chegar

  a o

  p r i n c i p ad o p e l a m a l d ad e ,

  p o r

 m e i o

  d e

  a tos

  de v io lênc ia e

  r a p a c i d ad e ;

  a

s egunda ,

  e m

 valer-se

  d o s

 favores

  d e

  seus

  conter râneos ,

  is to

 é, ser

 e le i t o pe lo pov o .

Para

 i lustrar

 a

 p r i m e i r a

 f o rma d e  c onqu is t a p r opõe  mos t r a r

 um

 e x e m p l o d a An t i güi dade

Clássica e

 o u t r o m o d e r n o .

 A

  p r im e i r a

 i lustração é a de Ag átoc les

  S ic i l iano ,

 qu e

 m a t o u

todos o s  senadores  e  hom ens ma is r icos d e  S iracusa para tornar -se re i daque la c ida de ;

a

  s e gunda

  é a de

  O l i v e r o t t o ,

  q u e ,

  para tornar -se senhor

  d e

  Fermo, assass inou

  s e u

próprio

  pad ras t o

  e

  t odos

  o s

  homens in f luen t e s

 d a

  c id a d e du r an t e

 u m a

 g ran de fes ta

oferecida   e m s u a hom enag em . Pa ra

  i lustrar

  a   s e gunda f o rma  d e   c o nqu i s t a  d e u m

p r in c ip ado ,

  pe lo favor

  dos conc idadãos ,

  M a q u i a v e l

  c i ta  o caso de Náb is , p r ínc ipe

espar tano ,

  qu e só

  c onsegu iu supo r t a r

 o

 l o n g o

  asséd io d o exé r c ito

 r o m ano p o r qu e

 e r a

am i g o  d o   povo .

A o

  l o n g o

  d e

  t o d o

  o

  t e x t o , ou t r o s

  casos de i lustração se

  r epe t em , u t i l i zando

sempre   o   m e s m o e s qu e m a . I n i c i a lm e n t e  u m a a fi rmação é  fe ita  e , em   s e gu ida ,  o

enunc iado r ap r e s en t a um fa t o o co r r ido duran t e

 o pe r íodo da Ant i gü idad e C lássi ca e

outro

 du r an t e

 su a épo ca , qu e

 s e r v em pa ra c on f i rmar

 o conteúdo de

 v e r d ad e

  d a

 r egra

por  e le   e nunc i a d a .  O  efe ito  d e   s en t ido qu e as i lu s t rações de u m a  m e s m a r e g r a p o r

me io

  d e

 fatos

  d o

 m u n d o a n t i go

 e d o

 m o d e r n o c r i am

 é o de que a

 v e rdade

  d o

  h o m e m

renascen t i s t a

 e s tá n a sua r e lação co m o

 h u m a n i s m o

 da Ant i gü idade C lássi ca e não

no t e o c en t r i smo  d a  I dade  Méd ia .

Oxiapítulo

 IV ,

 po rém,

 ap r es en t a um p r oc ed im en t o d i f e r en t e

 d o

 p r e d o m i n a n t e

 n a

argumentação do   d i s cur so  d e   M aqu i a v e l ;  e le   c o r r e sponde  a u m   a r g um e n t o p e l o

Alfa,

 São

 Paulo,

  39 :

  87-109,

  1995

101

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e x e m p l o

  e não

 p e la

 i lustração. No capítulo

 TH

o

 e nunc i a d o r v i nha m o s t r ando

 a s vár ias

fo rmas

  d e

  c onqu is t a

  e manu t enção d e u m

 Es t ado .

  U m d os

 a spec t o s abo rdados

  é a

d i f i cu ldade  qu e

 u m

 p r ínc ipe po de

 encon t r a r pa r a mant e r u m r e ino

 r e cém-conqu is tado

quando  e s t e   fala u m a lín gua e t e m  c o s tumes d i f e ren t e s  d o s   seus . Par t indo d o c a s o

espec í f ico d e

 A l e x and r e ,

  qu e

 c o nqu i s t o u

 o

 r e ino

 d e

 Da r i o , mo s t r a c omo

  e sse

 p r o b l e m a

fo i

  c o n t o r n ad o

 e

  c om o a inda , mo r t o es t e,

  o po v o não s e

  r ebe lou c on t r a

 s e u

  sucessor .

Na verdade ,  n e s s e   caso,  o  e nunc i a d o r  não   ap r e s en t a  u m a  r e g r a pa ra ,  e m   s e gu ida ,

ilustrá-la;

  pa r t e

 d e

 u m

 caso esp ec í fico

 pa r a chega r

  a

 um a r e g r a .

A o

  e laborar

  su a

  r egra ,

  p o r

  ou t r o l ado , u t i l i za - s e novamen t e

  d o

  r e cur so

  d a

i lustração,

  po i s pa r a  just i f icar

  o êx ito de

 A l e xan dr e , e xp l i c a

 q u e u m

 Es t ado

  e m q u e

os  m in i s t r o s do pr ínc ipe   s e j am como  qu e  seus  s e r vos é  m a i s fa c i lm e n t e m a n t i d o  d o

que aque le

  em qu e o p r ín c ip e d e v e  d i v i d i r  s e u

 pode r

  c o m ba rõ e s. O

 p r im e i r o t i p o

  é

i l u s t r ado

  através do grão- turco e o   s e gundo ,  através do   r e inado  da França . O que

podemos pe r c ebe r

  é

 u m a

  hierarquização de

 e squemas a r gum enta t i v o s

 e m q u e

 duas

i lustrações  aux i l i am   o u s o d e

 u m a

  exempl i f icação.

O   t e r c e i r o t i po  de fundamentação   p e l o  caso   par t i cu lar ,  a a r gumentação   pe lo

m o d e l o ,

  t ambém pod e s e r

  encon t r ado

  n o

 d i s cur so

 ma qu iavél ico .

 Essa

 última

  m o d a

l i dade a r gumenta t i v a apa r e c e

  n o capí tu lo

 v n ,

 e m q u e o

  au t o r

 t ra ta  d o s

 p r i n c i p ad o s

novos   qu e se   c o nqu i s t am   c o m   a rmas  e   v i r t udes  d e   o u t r e m .  Ness e ca pí tu lo , o

e nunc i a d o r

  va l e - se da

 f igura

 d e César Bórgia

  ( chamado pe lo

  p o v o

 du que V a l e n t i n o ,

e m   função do t í tu lo de   d u q u e  d e   Va l en t ino i s c onced ido pe l o  r e i da França )  pa r a

const ru i r   o

  m o d e l o

  de pr ínc ipe

  idea l , capaz

  d e   c u m p r i r  c o m

  m a i o r

  e f icác ia seu

propós i to de

 c o nqu i s t a

 e manu tenção do

 p o d e r

  e m

 um Es t a d o .

  A desc r i ção de

  suas

qua l idades rea l iza-se  n o decor rer  d a  na r r a t i v a d e   suas  ações   c o m o c o nqu i s t a d o r  d e

novos Es t ados ,

 qu e

 d em ons t r a , s e gundo

  o

 au t o r , e x t r ema hab i l i dade na

 condução dos

ne góc i o s d e

 in te resse

  d e

 s eu Es t ado .

 César Bórgia é

 a m a d o

  e

 t em ido , duas qua l idades

que ,  n o  en t ende r  d e  M aqu i a v e l , são impresc ind íve is a  u m  p r í n c i p e .

1 0

Em bo r a e n t e nda q u e César Bórgia   t e nha c o m e t i d o  u m  g ran de er ro a o  apo ia r a

e l e i ção do Papa Jú l i o n , que , no

  pas sado ,

  t i nha

  s ido

  s eu

  i n i m i g o ,

  n ão

  d e i x a

  d e

r e conhece r

  s eu

 g r ande va lo r

  e

  t a l en t o c omo gov e rnado r . Segun do M aqu ia v e l ,

 n ão é

poss íve l  a c r e d it a r c o m p l e t am e n t e  qu e  u m e x - in i m i g o n ão  possa ,  e m  a l g um m o m e n t o ,

t en t a r

 v i n g a r

 a

 o fensa so f r id a .

1 1

 M u i t o s l e i t o re s

 d e

 M aqu i a v e l c o s t u m am d i z e r qu e ,

 a o

im a g i n a r  u m p r ínc i p e  capaz  d e   un i f i car  a Itália, o   escr i t o r f lo rent ino  n ão

  t i nha

  e m

10   N a s a ç õ e s d o   d u q u e ,  d a s   q u a i s e s c o l h i  a s q u e   e x p u s a c i m a ,  n ã o  e n c o n t r o m o t i v o  d e  c e n s u r a ; p a r e c e - m e , p e l o

c o n t r á ri o , q u e s e d e v e p r o p ô - lo

  c o m o e x e m p l o

  a

  t o d o s

  o s q u e p o r

 f o r t u n a

  e c o m as

  a r m a s

  d e

  o u t r e m a s c e n d e r e m

a o p o d e r .

  .. .

  P o r t a n t o ,

  s e

  j u l g a s

  n e c e s s ár i o, n u m

 p r i n c i p a d o n o v o , a s s e g u r a r - t e c o n t r a

  o s

  i n i m i g o s , c o n q u i s t a r

a m i g o s , v e n c e r  o u  p e l a  f o r ça ou  p e l a  as túc ia ,  f a ze r - t e a m a d o   e  t e m i d o  d o   p o v o ,  s e r  s e g u i d o  e   r e s p e i t a d o p e l o s

s o l d a d os , e x t i n g u i r

 o s q u e

  p o d e m

  o u

 d e v e m o f e n d e r , r e n o v a r

  a s

 a n t i g a s

  i n s t i t u i çõ e s p o r

  n o v a s l e i s ,

  s e r s e v e r o e

g r a t o ,  m a g n â n i m o e  l i b e r a l ,  d i s s o l v e r  a m i l í c i a

  i n f i e l ,

  c r i a r u m a n o v a , m a n t e r a m i z a d e s   d o s  r e i s  e d o s p r í n c i p e s ,

d e m o d o

  q u e t e

  s e j a m

  s o l í c i to s n o b e n e f í c i o e

  t e m e n t e s

  d e

  o f e n d e r - te , r e p i t o

  q u e n ã o e n c o n t r a r á s

  m e l h o r e s

e x e m p l o s   q u e a s a ç õ e s d o  d u q u e ( M a q u i a v e l , 1 9 8 7 , p . 3 2) .

1 1   E n g a n a - s e q u e m a c r e d i t a r  q u e n a s g r a n d e s p e r s o n a g e n s   o s  n o v o s  b e n e f í c i o s  f a z e m   e s q u e c e r a s a n t i g a s  in júr ias .

O   d u q u e e r r o u , p o i s , n e s s a  e l e i çã o , e f o i e l e  m e s m o  o   c a u s a d o r  d e s u a ru í n a  d e f i n i t i v a ( M a q u i a v e l , 1 9 8 7 , p . 3 3 ).

102

Alfa,

 São

 Paulo, 39: 87-109,

  1995

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m e n t e  out ra p e s s o a que não  ésar Bórgia. Com su a m or te , e le passou a ser a referência

mod e lar que dever ia ser observada pe lo

 príncipe

 qu e

 e s t i v e s s e

 d i spos t o a em pr eende r

a

 formação

  do Es t ado

  i ta l i ano ,

  im a g i n ada p o r M aqu i a v e l .

A

  argumentação

  p e la

  fundamentação analógica  o b e d e c e

  a u m p r oc e s so de

raciocínio lógico  em que s e r e l a c i onam e l emen t os c o l o cados em qua t r o pos ições :  A

está

  pa r a B as s im com o C

 está

  para D. Os do is pr ime iros

 estão

  c o l o cados n o p lano

hor izon ta l super ior e os do is

 últimos,

  no in fe r io r . Pere lman & Olbrech ts-Tyteca (1976,

p.501)  propõem  c h am a r t e m a  thème)  as un idad es A e B, que cor res pon dem à

conc lusão,

  is to é , ao verdade iro sent ido a que se pre tende chegar quando se

  u t i l i za

u m a

  ana log ia , e supor te  (phore)  as un idad es C e D, encar regad as d e apo ia r o

rac ioc ínio ,  is to é , de func ion ar com o e lem ento cata l isador que , por u m processo de

seme lhanças ,

  l e va o in t e r l o cu t o r a pe rc ebe r o t em a .

A i n d a  s e gundo o s au t o r e s , o t ema e o supo r t e de v em e s t a r d i spos t o s numa

relação

 assimétrica,

 ao mes mo t e mp o em que de v em pe r t ence r a

 domínios

 d i s t in t o s .

Qu ando o s do i s e l emen t os que se c on f r on t am pe r t en cem ao mesm o

  domín io ,

  e

p o d e m s er s ubm e t i d o s a um a   es t rutura  c o m um , a ana lo g ia dá luga r a u m raciocínio

pe lo e x emp lo ou pe la

  i lustração,

 t em a e supo r t e f o rnec em do i s

  c asos

 pa r t i cu la r e s de

u m a

  m esm a regr a (Pere lman & Olbrech ts-Tyteca , p .502) . Pelo  fa to de e x is t i r u m a

diferença

  tão

  específica

  ent re o processo

  analógico

  d e um lado e o e x em p lo e a

ilustração

 de

 ou t r o ,

 o s au t o r e s c ons ide r am que

 m u i t a s vezes

 as

 p e s s o a s

 se c o n fund e m

o u

  d e i x am

  f lutuar  essa

 distinção.

Para

  i lustrar ,  po rém,

  c om o en t endem os o p r o c es so

  analógico

  e xpos t o pe l o s

au t o r e s, c i t a r emos u m t r e cho do d i s cur so

 maquiavélico

  que empr ega a ana lo g ia em

sua construção

 pa r a de t e rm ina r o t ema e o su po r t e .

 Obse rv e -s e

 a s e gu in t e passagem

que apa r e ce na ca r t a po r me io da qua l Ma qu iav e l

  o ferece

  O

 Príncipe

  pa r a o

 príncipe

Lor enzo de Med ic i :

N e m q ue r o q u e s e r e p u t e presunção o fa t o d e u m h o m e m d e b a i x o e ínfimo  e s t a d o d i s c o r r e r

e r e g u l a r s ob r e o g o v e r no d o s

 p r í n c i p e s ;

  p o i s o s qu e d e s e n ham o s c on t o r n o s d o s países s e c o l o c a m

n a  planície  p a r a c ons i d e r a r a na tu r e z a d o s m on t e s , e p a r a c ons i d e r a r a d a s  planícies  a s c e n d e m

a o s m o n t e s , a s s i m  também  p a r a c onhe c e r b e m a na tu r e z a d o s  p o v o s  é  necessário  se r

 p r í n c i p e ,

  e

p a r a

  c onhe c e r a d o s  príncipes é  necessário  s er do povo . ( 1 987 , p .3-4 )

Como s e

  p o d e

  observar , o processo

  analógico

  e m M aqu i a v e l é b a s tan t e c o m

p l e xo , po i s no t r e cho ac ima r ep r oduz ido podemos pe r c ebe r uma ana lo g ia ma t r i z

c omp le t ada po r duas ana lo g ia s  secundár ias . C o m e c e m o s  a  examiná- las , porém,  d e

ba ixo para c ima, is to é , das

 secundárias

 pa r a a

  p r inc ipa l .

P r im e i r am e n t e

  diríamos

  que o s do i s t e rmos c o r r e sponden t e s ao supo r t e da

pr ime i r a

  ana lo g ia s e r i am

  p r ínc ipe

e pov o ( t e rmos C e D ) que se r e l a c i on am

s ime t r i c amen t e c om s eu t ema , que   p o d e  se r expresso pe la oposição  en t r e supe r i o

r idade e in fe r io r ida de ( t e rmos A e B).

  Obter íamos,

  a s s im , o s e gu in t e e squema : o

Príncipe está

  pa r a o

  P o v o ,

  a s s im como a Supe r i o r idade

  está

  para a In fe r io r idade .

Obv i am e n t e  essa   ana log ia , como todas e las , expressa uma posição ideológica  d o

su je i to

  que a

  constrói.

Alfa, São Paulo, 39: 87-109,1995

103

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A o   lado dessa ana log ia ,  po rém, podem os pe r c ebe r um a ou t r a  qu e s e  e s t r u t u r a

através do   supo r t e  Car tógrafo e   M apa ( t e r m o s  C e D ) qu e r e v e s t e o   t e m a

M a q u i a v e l

e   O Príncipe

( t e rmos

  A e B ) . Nesse

  s e n t i d o o b t e m o s

  o

  s e gu in t e

e squema :

  o Cartógrafo está

 pa r a

 o

 M a pa a s s im c o m o M aqu i a v e l

 está

 p a r a

 O Príncipe.

A r e lação de dependênc ia qu e se e s tabe l e ce  en t r e  esses   do i s e squemas  n o s

parece levar

 a

 t o m a r

 o

 p r im e i r o c om o s upo r t e

 e o

  se g undo c o m o t e m a

 d e

 u m a

 re lação

analóg ica

  en t r e ambos ,

  qu e

 d e s i gnamos como an a lo g ia ma t r i z . As s im ,

 o q u e

 es tar ia

po r ba ixo d e  t o d o e sse j og o ana lóg ico  ser ia

 u m

 a r g u m e n t o através d o  q u a l o e nun c i a d o r

esta r ia

  mos t r ando - s e pa ra

 s eu enun ciatár io

  c o m o u m a

 p e s s o a q u e

 c onhece~ t an t o

  o

povo ,  p o r s e r d e   o r i g em s imp le s  (não   nob r e ) , quan t o  as ques tões do   pode r ,  e m

decorrênc ia de  suas exper iênc ias à f r ente d o  g o v e rno  d e  Sode r in i . Esses   p r e c eden t e s ,

p o r t a n t o ,  torná-lo-iam

  ap t o

 a

 p r o d u zi r u m m a p a

(O Príncipe)  qu e

 pode r ia o r i en t a r

 o

pr ínc ipe n as d i r eções qu e   d e v e r ia t om ar pa ra  alcançar  seus  p r opós itos .  E s sa a r g u

mentação é

  p lane jada c omo f o rma

  d e

  levar

  seu dest inatário a

  ace i tar

  u m

 c on t r a t o .

Nesse

 s en t ido , con fo rme p r ocuram os mos t r a r

 n o

 s u b i t e m  an ter io r ,

 a

 c a r t a

 d e

 M a q u i a

v e l a  Lorenzo  n  func iona c om o  o  instan te e m  qu e s e  ins taura o  processo d e ma nipu lação

do

  destinatário

  pa r a

 levá- lo a u m fazer .

 Essa

  é também a

  r e spost a , po r t an t o ,

 a o

  fato

que l e van t amos  n o   i t em an t e r i o r  desse capí tu lo   quando v e r i f i c amos  q u e e m   t o d a

ed ição de   O Príncipe,  t a n t o em por tuguês   quan t o  em francês e   i t a l i ano , e ssa   car ta

apa r e c e s empr e c omo

  u m a espéc i e de in t rodução do

  t e x t o

  m aqu iavé li co . E la e o

capítulo  XXV I

 i n d i c a m

 a n arrativ ização  d a enun ciação a qu e éstá i n t e r l i gado ,  c on fo rme

 d e m o ns t r am o s ,

  o

  d i s cur so enunc iado

 n os 25 capí tu los d o

 t e x t o

  m aqu iavé li co .

A

  ana lo g ia

  é,

  c on fo rme p r e t endem os m os t r a r a c ima ,

 u m

 e x c e l en t e e xped i en t e

a r gu m en t a t i v o , n a

 m e d i d a

  e m

 que ,

 a l ém d e  p e rm i t i r a ve icu lação de

 u m p e n s am e n t o ,

c h a m a

 a atenção

 pa r a

 a expressão l ingüística po r

 m e i o

  d a

 qua l

 e le é

  man i f e s t ado .

  O

Príncipe  d e

 M a q u i a v el

 é

 um t e x t o c o nce i t ua i que ,

 a l ém de  d i s cu t i r

 u m te m a d e t e r m i

nado , ocupa-se  também das es tr a tég ias d i s cur s i v as , qu e são l ingüíst icas p or exce lên

c ia ,

 para es tabe lecer sua

 b a s e

 p r o p o s i c i o n a l:

 a força d o

 a r gum ent o pe la pa la v r a .

Con fo rme a f i rmam Pe r elman   &  Olbrech ts-Tyteca (p .535) ,  a   ana lo g ia  é a ba s e

sobre

  a

 qua l

 s e

  c r ia

 a m etáfora.

  Para

  o s

 autores , es ta

  última

  c ons i s t e numa ana lo g ia

condensada , r e su l t an t e

 da fusão de u m

 e l emen t o

  d o

  supo r t e

 c o m u m

 e l e m e n t o

  d o

t e m a . É ne s s e  s en t ido qu e  podem os en t ende r  q u e o  r e su l t ado d o e s qu e m a a r g um e n

t a t i v o n o

 t r e c h o

 d a

 c a r t a

 q u e p r e c e d e  O Príncipe,

  an t e r i o rm en t e r ep r odu z ido , s e r ia

 a

construção de u m a metáfora: a fusão  dar -se- ia ent re  o s   t e r m o s B e D , O Príncipe  é

i gua l  a

  M ap a .

É poss íve l

 d e s t a ca r a inda mu i t o s ou t r o s tr e chos

  d o

 d i s cur so

 d e

 O Príncipe

  q u e

fazem uso d o  r e cur so a r gum enta t i v o da ana lo g ia . A l g un s são  s imp le s ana lo g ia s , ou t r o s

têm a metáfora

  c om o f ina l idade . Pa ra mos t r a r a l guns , c i ta r emo s s emp re

  o

  t e x t o

  n o

o r i g i na l  e m

  i t a l i ano , po i s , m u i t a s

 v e z e s , u m a t radução po de

  d e s t ru i r

 e sses

  r ecursos

a r gu m en t a t i v o s ,

  e m bo r a ,

  a

 nosso

  v e r ,

 u m a

 b oa t r adução

  se ja aquela

  qu e

 p r e s e r va

  o

recurso  l ingüíst ico d e  um t e x t o , m e s m o  q u e , para isso , pre c ise  adaptá- lo à  es t rutura

da  língua  pa r a a  qua l o  t e x t o  está  s endo t r aduz ido .

104

Alfa,

 São

 Paulo,

  39 :

  87-109,

  1995

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(1) [uno nomo pm dentel fare come li aicieri piudenti, a' quali, paiendo el loco dove

disegnano feriie troppo lontano, e conoscendo fino a quanto va la

  virtú

  dei loro arco, pongono la

mira

  assai

  piú alta che il loco destinato, non per aggiugnere con la loro freccia a tanta altezza, ma

per  potere, con lo aiuto di si alta mira, pervenire al disegno loro.

  ( s . d . p . 7 6 )

1 2

(2) Dovete, adunqu e, saperecomo sono dua generazione di comba ttere: 1'uno con le leggi;

1'altro

  con la forza; quel primo è próprio  dello

  uomo,

  q uel secondo è delle bestie: ma perche  il  primo

molte volte non basta, conviene ricorrere a l secondo... Sendo, dunque, uno   príncipe  necessittato

sapere  bene  usare  la bestia, debbe di quelle pigliare la golpe e ü lione; perche il lione non si defende

da'lacei, la golpe non si defende da'lupi. Bisogna, adunque,   essere  golpe a conoscere e lacei,  e

lione a sbigottire e lupi.

  ( s . d . , p . 1 36-7 )

1 3

(3) E assom iglio quella lia fortuna] a uno di questi fiumi rovinosi, che, quando s'adirano,

allagano epiani, ruinano li alberi e li edifizii, lievano da questa parte terreno, pongono da queW altra;

ciascuno fugge loro dinanzi, ognuno cede alio  ímpeto  loro,  sanza  potervi in alcuna parte obstare.

E

  benché

  sieno cosi fatti, no

  resta

  però

  che li uom ini, q uando sono tem pi qu ieti, non vi potessino

fare  prowediementi e con ripari e argini, in modo che, crescendo poi, o egli andrebbano per uno

canale, o

  1'impeto

  loro non sarebbe né si licenzioso né si dannoso. Similmente interviene delia

fortuna; la quale dimonstra la sua potenzia dove non è ordinata  virtú  a resisterle; e quivi volta  e s ua

im pe ti dove la sa che non sono   fatü  li argini e li ripari a tenerla.  ( s . d ., p . 1 7 2 - 3 )

1 4

E m

  ( 1 ) o enunc iado r

  e s tabe l e c e

  uma ana lo g ia en t r e o

  fazer

  do arque iro e o do

pr ínc ipe .

 Es t e

 último d e v e

 s er p rude n t e c o m o  aque le para

 alcançar

 s eus  ob je t ivos . Da

m esm a m ane ira que o arque iro faz sua

  m i r a

  u m pouco ac im a do a l v o a s er a t ing ido ,

M aqu i a v e l a c o n se l h a o

 príncipe

 a que p r o c ur e

 fazer além

 do que hav ia p lane jado p a ra

consegu i r , ma is s e guram en t e , a t ing i r s eu ob j e t i v o .

E m

  (2) ocor rem d uas ana log ias que , in te r l igad as , dão or ige m a um a te rce i ra . A

p r i m e i r a

 r e l a c i ona o ho m em e o s an ima is ; o p r ime i r o

 d e v e

 c omba t e r s e gu indo l e i s po r

e le me sm o es tabe lec idas , e nqu anto o segun do só

  s a b e

  c o m ba t e r u s ando d a

  força.

Poderíamos

 r eduz i r a p r im e i r a

 relação analógica

 à s e gu in t e

  expr essão :

 o Ho m e m

 está

pa ra  a Le i  c o m o o A n i m a l está pa r a a Força.

12 [um homem prudente ]  procede como  os sete iros pruden tes que, querendo at ing ir um ponto m uito d is tante , e

conhecendo a capac idade do arco, fazem a

 mira

 em

 altura

 superior à do pon to visado. Não o fazem, eviden teme nte,

para que a flecha  atinja  t a l

 al tura: valem-se

 d a mi ra e levada  apenas para ferir com segurança o lugar des ignado

mui t o mais abaix o (Maqu iavel, 1987, p.23).

13   Deve is saber, porta nto , que existem duas formas de se com bater: u ma pelas leis, outra , pela

 força.

 A pr imeira é

própria do homem ; a segunda, dos animais . Como,

  porém,

 mu i tas

 vezes

 a prim eira não seja suficiente , é preciso

recorrer à segunda (...)

  Sendo,

 por tanto , um

 príncipe

 obr igado a bem serv ir -se da natureza da besta,

  deve

  dela

tirar  as qualidades da raposa e do

  leão,

 pois

  este

  não tem

 defesa

  a lguma contra os

  laços,

  e a raposa, contra os

lobos. Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos (Maqu iavel, 1 987, p.73).

14 Comparo-a [a for tuna] a um  desses r ios impetuosos que, quando se encoler izam, alagam as

  planícies,

 destroem

as

 árvores,

 os

 edifícios,

 ar rastam montes de ter ra de um lugar para outro :  tudo foge d iante de le , tud o

 cede

 ao seu

ímpeto,

  sem poder obstar-lhe e, se bem que as   coisas  se passem ass im, não é menos verdade que os hom ens,

quando vol ta a calma, podem

  fazer

  reparos e barragens, de modo que , em outr a cheia, aqueles r ios correrão por

u m  can al e o seu ímpeto não será tão l iv re nem tão danoso. Do mesmo modo  a con tece c om a  fortuna; o seu poder

é manifesto onde não existe resistência  organizada, dir igindo ela a sua violência  só para onde não se fizeram

diques e reparos para contê-la (Maqu iavel, 1987, p.103).

Alfa, São Paulo, 39: 87-109,1995

105

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A   s egunda ana l o g i a r e l a c i ona  o leão e a r apo sa ;  o  p r im e i r o s im b o l i za a força, a

segunda ,

  a

 e spe r t eza .

 Essa ana log ia

  po de se r então

 r eduz ida

 à

 s e gu i n t e

  ex pr essão : o

Leão está p a ra a Força   c o m o a  Raposa está p a ra a   Esperteza .

O   r e su l t ado  d e s s e s   d o i s  p r o c e s s o s  analóg icos   c o n d u z  à conc lusão de que o

homem, pa ra me lho r comba te r , p r ec i sa t an to  da s caracter ís t icas própr ias d a  n a tu reza

h u m a n a

 qu a n t o d a  a n im a l . Po r ou t ro l a do , ao se  a sseme lha r  c o m o s  an ima i s , a dqu i r e

t a n t o

 a  e spe r t eza qu a n t o a força, qua l i d ad es  e ssas  meta fo r izadas  n a  f i gu ra d a  r apo sa

e d o

 leão,

 r e s p e c t i v a m en t e .  Nesse  s en t i d o , o  con se lh o  d e  M a qu i a v e l c o n s i s te  em faze r

o pr ínc ipe

  p e r ceb e r que , p a ra p oder d e r ro ta r

 o

  i n im igo , n ecess i t a

  se r

 e sp e r t o

  n o u s o

das le is  e   d e s t em i d o  no u s o da f o r ça .

15

  N e s s e p r o c e s s o  a r gu m en t a t i v o , a m etáfora é

o  su p o r t e d o  p r o c e s s o  analóg ico   f undamen ta l .

E m   (3) o   p r o c e s s o   a r gu m en t a t i v o  é o contrár io do que   o co r r e  em (2 ) .  A g o r a

de s e n v o l v e - s e

  u m a c ondensação da

  ana l o g i a d ando o r i g em , segu ndo Pe re lman

  &

Olb rech ts -Ty t eca ,  à m etáfora; u m it e m  d o  supo r t e é idênt ico a  o u t r o d o  t em a . A s s im ,

essa  ana l o g i a  p o d e s e r d esc r i t a d a  s egu in t e m ane i ra : a  F o r t u n a é tão  V i o l en ta quan to

u m  R io que  ex t ra va sa  em função de  u m a ch e i a  (A está p a ra B

 c o m o

 C está p a ra B).

A metáfora   expressa  em (3 ) é amp l i a da , ma i s ad i an t e , p o r um a ou t r a q u e  con s i s t e

em re l a c i ona r  a Itália à f o r tuna . N e s s e   s en t i d o , o   enunc iado r es tar i a cons t ru ind o s eus

a r gu m en t o s ,  qu e s e f o rm a m  p o r m e i o  d a uti l ização retór ica d a  l i n gu age m , pa ra d i z e r

qu e  a Itália está

  c o m o

  u m r io qu e   ex t ra va sou  n a   ch e ia , co r r endo  s e m   r u m o ,  s e m

direção. É  p r ec i so  qu e u m p r ínc ip e   p r o p o n h a a construção de   d iques para cana l iza r

suas  águas, r eo rgan i zando , a ss im , o  E s tado i t a l i ano .

Ou t ro

 r ecu rso r e tór ico qu e ve m  a m p l i ar a ef icácia  a r g u m e n t a t iv a d o  d i s cu r s o d e

O

 Príncipe

  é o

 qu i a sm o .

  E m

 d e t e rm in a d a s

  p a s s a g e n s

 cer tas ana log ias

  o u metáforas

são re forçadas por  m a i s  esse   exp ed i en t e .  I sso  p o d e s e r c l a r a m en t e  o b s e r v a d o n o s

segu in t es t r echo s d e s eu  t e x t o :

(4 )  E  interviene  di  questa come dicono  e

 Ssici

  dello  ético, che, nel principio  dei suo   male,

è íacile a   curare  e  difficile  a  conoscere,  ma , nel  progresso  de i  tempo,  no n  1'avendo  in  principio

conosciuta  né   medica ta, diventa facile  a  conoscere  e difficile  a  curare,

  ( s . d ,

  p . 6 5 ) .

1 6

(5 )  E principali  fondamenü che  abbino tutti  li  stati, cosi nuovi come vecchi  o  misti, sono  le

buone legge  e l e  buone arme. E perche  e'nonpuò  essere  buonelegge dove  no n  sonobuone arme,

e dove sono buone a rme conviene sieno buone legge,  io lascerò  indrieto  el ra0onare delle legge  e

parlerò   delle arme  (M a c h i a v e l l i , s . d ., p . 1 1 0 ) .

1 7

.

15 É

 possível

 observar que essas analogias util izadas por Maqu iavel nâo sâo

 or ig ina is.

 Esopo

 e

 Fedro, era suas

 fábulas,

 hav iam re lacionado

  o leão à força e a

 raposa

 à astúcia. Os

 fabul is tas inc lus ive mostram co mo,

 e m

 determinadas

situações,  vale

 mais

 a

 esperteza

 que a força.

16

  D a tísica

 dizem

  os médicos

 que,

 a p rincípio, é fácil de

 curar

 e difícil d e

 conhecer,

  mas c om o

 correr

 d os

 tempos,

se não foi

 reconhec ida

  e

  medicada, torna-se

 fácil de

 conhecer

  e difícil de

 curar (Maquiavel, 1987, p.12).

17   E as  pr inc ipais bases que os  Estados  têm,  sejam novos, velhos   o u  mistos , s ão  boas leis  e boas armas. E

 c o mo

não

  podem exis t i r

  boas

  leis onde

  não há

  armas boas,

  e

  onde

  há  boas

  armas

  convém que

 exis tam

  boas

  leis,

referir-me-ei apenas

  às

 arma s (Maquiavel, 1987, p.49).

106

Alfa,

  São

 Paulo, 39: 87-109,

  1995

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Os recursos

 retór icos,

 t a i s c omo

 a metáfora e o

 qu ia smo , fa zem pa r t e

 d o

  e s qu e m a

a r g um e n t a t i v o

  d o

  t e x t o

  d e

  M aqu i a v e l ,

  n a

  m e d i d a

  em que são r esponsáve i s

  p e l o

e s t abe l e c imen t o

  d e

  d e t e rm in ados e f ei t os

  d e

  s en t ido .

  A metáfora, que

 c o n s is t e nu m

processo   de cond ensa ção analóg ica, é responsáve l p e l o reforço, expresso  n o  e n u n c i a

d o , d e  um a d e t e r m inada caracter ís tica qu e está na intersecção d o t e r m o  subs t i tu i do r

c o m

  o subst i tu ído.

  As s im , d i z e r

  qu e a   f o r tuna  é u m ri o qu e

 e x t r a vasou

  n a

 c h e i a

  e

d e s c e  d e s t r u i nd o t ud o  qu e   encon t r a pe la f r en t e  é u m a  m ane i r a  d e   des tacar ,  d e

enfa t izar

 a idé ia d e qu e a f o r tuna é a l go

 qu e

 não po de s e r

 c on t r o lado

 e

 qu e

 p o d e

 causar

sérios

 d ano s .

 Po r

 m e i o

  d a ut il i zação dess e

 r e cur so

 retór ico, o

 e nunc i a d o g anha

  força

a r gu m en t a t i v a   po rque t r a v e s t e  d e u m a  i m a g e m   o   c once i t o  qu e  p r e t ende

  t ransmi t i r

pa ra o enun ciatár io .

 Isso

 é

 u m a p ro v a

 t ambém d e qu e o s

 r e cur sos

 retór icos

 n u n c a

 t êm

a  função ingênua d e   a d o r na r u m t e x t o .

O

  qu ia smo , c omo p r e t endemos demons t r a r ,

 é

  um p r o c e d im e n t o a r g um e n t a t i v o

que ,

 p or sua caracter ís t ica d e

 c r u z am e n t o

  d e

 t e r m o s

 n o

 e nunc i a d o ,

  t e m

 com o e fe i to

de s en t ido reforçar u m con t r as t e e xp r e sso  n o  p l a n o do conteúdo .

E m   ( 4 ), po r

 e x e m p l o ,

  o

  enunc iado r pa r t e

 d e u m a e s p éc i e d e

  d i t ad o , is t o

  é , de

u m

 p e n s am e n t o qu e t e m  a  f o rma d e  v e r d ad e c on s e n s ua l : u m m a l d e v e s e r e l im in ad o

l o g o  n o seu in íc i o ,

 po rque , depo i s

  d e

 p r o p a g ad o ,

  t a l

 empr e sa

  p o d e

  to rna r - s e impos

s í v e l . Ao invés de

 d izer

  c o m es s as

 pa la v r as ,

 po rém, seu

 d i s cur so

 v a i se

 va le r

  d e

 u m a

construção l ingüística específ ica (o   quiasmo) para enfa t izar como  é  i m p o r t a n t e q u e

u m   pr ínc ipe

  s e j a p ruden t e

 n a s

 suas

 ações .

 Pr ime i r amen t e ,

  p o r

 m e i o

  d e

 u m p r oc e s so

ana lóg i co , elege

 c o m o m o d e l o

 d e

 m a l

 a t í s ica ,

 pa r a ,

 e m

 s egu ida , j o ga r c o m

 o s

 va lores

f a c i l i d a d e e   d i f i c u l d ad e d e  cu ra r e  perceber ,  e m   d i f e r en t e s moment os  n o   t e m po :

n o

  início é fácil

  cu ra r ,

 m as d ifíc il

 p e r c ebe r ;

  c o m o

 t e m p o ,

  fácil

 p e r c ebe r ,

  m as di fí c il

cu ra r .

Da m e s m a f o r m a ,

 e m (5 ) ,

 para de s tacar

 a impor tânc ia da s

 a r m a s

 e m

 u m Es t ado ,

o  e nunc i a d o r a contrapõe às  le is para  const ru i r o  qu i a s m o :  s ó  e x i s t em boas l e i s ond e

 boas a rm as

  e

  o nd e

  há

  boas a rmas

 é necessár io que

 e x i s t am boas l e i s .

Conclusão

Para perseguir nosso ob je t ivo

  p r i n c i p a l ,

  qu e   c o n s i s t i u  e m   e xp l i c i t a r c e r t o s

processos

  de o r gan ização

  d i s cur s i v a

 d e u m

 t ex to escr i t o , e laboram os

  e s t e

  t r aba lho

c o m d o i s

 propós i tos .

E m

  p r im e i r o luga r , p r e t endem os ap r e s en ta r

  u m

 p ano r am a

 h i s tó r ico e m qu e se

d e u

 a construção d o  d i s cur so d e O Príncipe,  po rque ac r ed i t amos qu e t odo t e x t o r e fl e t e,

d e um a fo r m a m a i s

 o u

 m e no s i n t e n s a ,

 as formações

 d i s cur s i v as

 qu e

 c o r r e s p o nd e m

  às

formações ideo lóg icas

  d o m i n a n t e s

  n o

  am b i e n t e

  cu l tu ra l  d e qu e e l e é  fruto .

  Essa

pos ição, po r t an t o , le va  em cons ide ração a d imensão sóc io -h i s tór ica das con d ições de

produção d o

 t e x t o .

E m   s e gundo luga r , e s te  t r a b a l h o p r opôs  ve r i f icar  os  m e c an i s m o s d i s c u r s iv o s , a

m a n e i r a

  c o m o

  é

  e laborada

  a organização

  na r r a t i v a

  d o

  t e x t o

  maquiavé l ico

  pa r a

  a

Alfa,

 S ão

 Paulo,

  39 :

  87-109,1995

107

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produção d o

  m a n u a l

e os

  re cu rso s a rgum en ta t i vo s u t i l i z ado s pa ra

 a construção de

seu d iscurso .

D o p o n t o d e  v i s t a da evo lução do  p en sa m en t o o c i d en t a l , O Príncipe  r ep resen ta

u m  d o s  idea is b ás icos do  Renasc imen to , i s t o é , a recupera ção do  p e n s a m e n t o  pa gão

d a An t igüidade Cláss ica qu e está  c en t rada n o  h o m e m ,  c a pa z a té de  human i za r sua s

d i v indades .   I sso p o d e s er con s ta tado  p o r m e i o  d a  p ropo s ta qu e  M a q u i a v e l f a z em s eu

t e x t o  d a fundação d e u m   E s tado cu j o d i r i g en t e t en ha   u m   p od e r  qu e não d e v e

submete r - se  a o d a  Igre ja .  I sso não  s ign i f i ca , po rém, qu e e le  n e g u e os  d o g m a s d a  Igre ja

Católica; apenas d e f e nd e qu e o pr ínc ipe , p a ra conduz i r com au ton om ia s eu s  ob je t i vos ,

n ão p o d e

 submete r - se

  a

 n en h u m o u t r o po d e r m a i o r.

 A rel igião

 d eve r i a

  c u m p r i r o

 p ap e l

d e d i s c ip l i n ado ra do indiv íduo.

D o p o n t o  d e  v i s t a da sua o r gan ização t e x tua l , O Príncipe  apresen ta -se  n a  f o rma

d e u m m a n u a l

 de instrução qu e

 t em po r ob j e t i vo f orn ece r

  a seu en unciatário

 u m saber

pa ra qu e e s t e rea l ize  u m fa z e r. D i f e r en t emen te ,  po rém, dos  m a n u a i s c o m u n s ,  c o m o

u m a r e ce i t a d e  co z inha ou um t ex to  q u e  en s in e

  c o m o

  con s t ru i r d e t e rm inado apa re lh o ,

p o r ex emp lo ,  o  d i s cu rso maqu iavé l ico   p r ec i sa cons t ru i r s eu  o b j e t o co gn i t i vo   ( o sabe r )

pa ra convence r  s eu enunc ia tár io de qu e e le d i z um a ve rdade . Para t an to  d e s e n v o l v e

u m

 p r o c e s s o

 a r gu m en t a t i v o b a s t a n t e s im p l es  qu e  con s i s t e  n a apr esentação de   u m a

série de i lustrações   para con f i rmar suas p r opos ições . Sua  es t rutura ,  p o r t a n t o , é a de

u m   t e x t o  d o  t i p o não-l iterário d e caráter  d i s se r ta t i vo .

U m a  úl t ima cons ideração que  p o d e m o s  fazer n es ta  conc lusão r e fe r e - se a u m a

po ss ib i l i d ad e  d e  a b o r d a g em   qu e não c h e g a m o s a  d e s en v o l v e r a qu i , m a s  que ,  fu tura

me n te , t en c i onam os r ea l iz a r. S egundo M a in gu ene au ( 1989) ,  o p r o c e s s o  d e

  c on s t i t u i

ção d e um   d i s cu rso  é  s em p r e  he te r ogêneo ,  i s t o  é,   t o do d i scu rso  constró i-se em

opos ição a  o u t r o . O c a m i n h o a

 t r i l har

  part i r ia d e  u m l e v a n t am e n t o  da s caracterís ticas

do d i scu rso d a  I d ad e  Méd ia  p a ra , e m  s egu ida ,  contrapô-las às de  O Príncipe.  Po r m e i o

do e x a m e d a  h e t e r o g en e i d a d e c o n s t i t u t i v a  d o  d i s cu rso a c r ed i t amos  q u e  e s ta ri a m a i s

b em es tab e l ec id o

  o e l o

  en t r e

  o   a sp e c t o  l ingüíst ico e o his tór ico na

 p e r s p e c t i v a

  d a

anál ise d o  d i s cu rso .

CORTINA,

 A . The  h istoric cond it ions of generation o f The Prince  by Niccolò Mach iavel l i and

it s  discursive organization.

  lf a  (São Paulo),

  v.39, p.87-109,199 5.

•  ABSTRACT:  The aim of  this  essay

  is

  to  briefly present  th e historic context  in  which

  Niccolo

  Machiavelli's

The  Prince

w as

  produced.

  The

  socio-economic aspect

  of the

  Italian cities during Renaiss ence

  was

focused,  in  order  to  stablish

  a

 profile  of  t h e Renaissance person. Then,  th e  organization  of  Machiavelli's

text  is presented,  stressing  tw o  aspects:  its  characterization  a s a manua l, aiming  th e  construction  of   a

knowledge,

  and the

  argumentative

  and

  rhetoric procedures  of

  its

  discourse.

•  KEY WOR DS: Discourse; text; enunciation; historic context; narrativity, argumentation.

108

Alfa,  ao  Paulo, 39: 87-109,  1995

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Referências b ib l iográf icas

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 compreensão

 e de

 interpretação

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seus leitores.  São   Paulo,  1994.

 Tese

  (Doutorado  em   Letras  - Área de Semiótica e

Lingüística   Geral)  -  Faculdade  de   Filosofia, Letras e Ciências  Humanas, Universidade

de São  Paulo.

3 GREIMAS,

  A .  J

La soupe

 au pistou ou

 la

 construct ion d'un

 objet de valeur.

 I n :  .

Du

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Neto.

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  Trad. Freda Indursky.

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Cultural,

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 (Os  Pensadores).

10

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 Guia

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 José da

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 M .

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N.  O

 príncipe

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 Sérgio

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 Bruxelles: Editions

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Alfa,

 São

 Paulo,

  39 :

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  1995

109