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1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
As Gramáticas Gerais e Filosóficas Tardias do Século XIX
Cristiano Silva Jesuita
Mestrado em Língua Portuguesa
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título de
Mestre em Língua Portuguesa, sob a orientação da
Professora Doutora Leonor Lopes Fávero.
São Paulo
2014
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
As Gramáticas Gerais e Filosóficas Tardias do Século XIX
SÃO PAULO
2014
3
BANCA EXAMINADORA
_________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
4
AGRADECIMENTO
À Profa. Dra. Leonor Lopes Fávero, por acreditar no meu trabalho e no meu potencial
para desenvolvê-lo.
À Profa. Dra. Dieli Vesaro Palma e ao Prof. Dr. Agnaldo Sergio Martino pela leitura e
criticas feitas a este trabalho na etapa de qualificação.
À CAPES pelo apoio financeiro que tornou possível a condução da pesquisa .
Aos meus amigos e familiares por tudo !!
5
RESUMO
Esta dissertação situa-se na linha de pesquisa História e Descrição da língua portuguesa
do programa de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem
por objeto de estudo a Grammatica Portugueza Philosophica, de Ernesto Carneiro
Ribeiro e a Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza, de Charles Adrien
Olivier Grivet ambas publicadas no ano de 1881. Essas gramáticas gerais e filosóficas
publicadas tardiamente demonstram que, ao contrário do que as propostas de
periodização e os trabalhos sobre o período parecem indicar, a produção gramatical
brasileira não vive de rupturas bruscas de orientação, muito pelo contrário, nossa
produção gramatical experimenta um desenvolvimento continuo e com a sobreposição
de diferentes correntes teóricas. Nosso objetivo é observar como o processo de
descrição gramatical presente nas obras reflete o período de transição em que as
orientações da gramatica geral e filosófica começa a dividir espaço nos nossos
compêndios gramaticais com as orientações da gramática “científica”. No que tange à
metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa, apropriamo-nos dos
postulados teóricos da História das Ideias linguísticas formulados por Sylvain Auroux
(1989, 1992).
Palavras-Chave: História das Ideias Linguísticas, Língua Portuguesa, Gramática,
século XIX.
6
ABSTRACT
The present dissertation deals with the research of the History and Description of the
Portuguese Language of the post degree course of "Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo". It mainly consists of an essay about the "Grammatica Portugueza
Philosophica" and the "Nova Grammatica Analytica de Língua Portugueza, authored by
Ernesto Carneiro Ribeiro and Charles Adrien Olivier Grivet respectively, both being
published in 1881. These philosophic and generalist grammar compendia of late
publishing, contrary to periodization methods proposed, are the very proof of the
continuous development and culminates with the suppression of the various theoretical
currents. The main goal is to observe how the process of grammatic description found in
the works reflects the changes in the orientation of general and philosophical grammar
of the modern grammatical compendia of scientific aspect. Regarding the methodology,
the theoretical postulates of "História de Ideias Linguisticas" written by Sylvain Auroux
were used as the basis of research (1989, 1992).
Keywords: History of Ideas Linguistics, Portuguese Language, Grammar, nineteenth
century.
7
SUMÁRIO
Introdução ..............................................................................................................11
Capítulo 1. Fundamentação Teórica
1.1 Considerações Iniciais......................................................................................15
1.2 A escola dos Annales ......................................................................................16
1.3 A história das ideias linguísticas ....................................................................22
Capítulo 2. Século XIX – Reflexão linguística
2.1 Conhecimento linguístico e identidade nacional ..........................................27
2.2 Propostas de periodização dos estudos linguísticos
no século XIX no Brasil .....................................................................................37
2.2.1 A proposta de Antenor Nascentes ...............................................................37
2.2.2 A proposta de Silvio Elia ..............................................................................40
2.2.3 A proposta de Eduardo Guimarães ............................................................41
2.2.4 A proposta de Ricardo Cavaliere ................................................................42
Capítulo 3. Grammatica Portugueza Philosophica
3.1 O autor ........................................................................................................... 45
3.2 A obra ...............................................................................................................48
3.2.1 Visão geral da obra .......................................................................................50
3.2.2 Divisão da obra e definição de gramática ...................................................53
3.3 Lexicologia ........................................................................................................56
Interjeição ................................................................................................................59
Substantivo ..............................................................................................................59
Pronome ...................................................................................................................61
Adjetivo....................................................................................................................63
Verbo ................................................................................................................... ...65
Preposição ................................................................................................................67
Conjunção ............................................................................................................. ..68
8
Adverbio ...........................................................................................................70
3.4 Fraseologia ................................................................................................72
Termos da oração .............................................................................................72
Classificação das proposições ..........................................................................73
Sintaxe de regência e concordância .................................................................75
Figuras ..............................................................................................................75
Capítulo 4. Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza
4.1 O autor ...........................................................................................................78
4.2 A obra .............................................................................................................79
4.2.1 Visão geral da obra .....................................................................................81
4.2.2 Divisão da obra e definição de gramática .................................................83
4.3 Lexicologia
Verbo........................................................................................................................89
Substantivo ..............................................................................................................93
Artigo ......................................................................................................................94
Adjetivo ...................................................................................................................95
Pronome ............................................................................................................... ...96
Particípio .............................................................................................................. ...97
Preposição ................................................................................................................98
Advérbio ..................................................................................................................99
Conjunção ..............................................................................................................100
Interjeição...............................................................................................................101
4.4 Sintaxe
4.4.1 A autonomia da sintaxe na tradição da gramática filosófica ..................101
4.4.2 A sintaxe na Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza ........103
Considerações finais ............................................................................................108
Referências Bibliográficas...................................................................................110
9
Lista de Gráficos
Gráfico 1. Distribuição dos autores citados por Carneiro Ribeiro...........................52
Gráfico 2. Proporção dos autores mais citados na Grammatica Portugueza
Philosophic...............................................................................................................52
Gráfico3.Divisão interna da Grammatica Philosophica Portugueza........................53
Gráfico 4. Proporção da matéria tratada na Lexicologia..........................................58
Gráfico 5.distribuição dos autores citados na Nova Grammatica Analytica da língua
Portugueza................................................................................................................82
Gráfico 6. Proporção dos autores citados na Nova Grammatica Analytica da
LínguaPortugueza....................................................................................................83
Gráfico 7.Divisão interna da Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza.....85
Gráfico 8. Proporção da matéria tratada na Lexicologia.........................................89
Lista de Quadros
Quadro 1.Gramáticos e Filósofos citados por Carneiro Ribeiro..............................50
Quadro 2. Classes de palavras elencadas na obra....................................................56
Quadro 3. Categorias de palavras conforme Carneiro Ribeiro................................57
Quadro 4. Categorias de palavras conforme Augusto Freire da Silva.....................57
Quadro 5. Categorias de palavras conforme Maximíno Maciel..............................58
Quadro 6. Classificação dos pronomes....................................................................62
Quadro 7. Classificação dos adjetivos qualificativos...............................................63
Quadro 8. Classificação dos adjetivos determinativos............................................64
Quadro 9. Classificação dos modos e tempos verbais.............................................66
Quadro 10. Classificação das preposições...............................................................68
Quadro 11. Classificação das conjunções................................................................69
Quadro 12. Classificação dos advérbios...................................................................71
Quadro 13. Classificação das figuras de linguagem.................................................76
Quadro 14. Divisão interna das gramáticas filosóficas............................................84
Quadro 15. Espécies de palavras..............................................................................87
Quadro 16. Classificação das palavras variáveis e invariáveis................................88
Quadro 17. Quadro sinóptico dos modos e tempos verbais....................................90
10
Quadro 18. Classificação dos adjetivos determinativos..........................................95
Quadro 19. Classificação dos adjetivos qualificativos.............................................96
Quadro 20. Relação das preposições constantes e acidentais...................................98
Quadro 21. Funções sintáticas das palavras nas proposições ................................103
Lista de Imagem
Imagem 1. Ernesto carneiro Ribeiro com 78 anos de idade....................................46
Imagem 2. Capa da 2ª edição da Grammatica Philosophica Portugueza................49
Imagem 3. Capa da 1ª edição da Nova Gramática Analytica da língua
Portuguesa................................................................................................................80
Lista de Tabela
Tabela 1. Relação dos gramáticas publicadas no Brasil
no século XIX, por ano.............................................................................................30
11
INTRODUÇÃO
A história do pensamento linguístico no Brasil é concebida como constituindo-se de
períodos de rupturas mais ou menos definidos. No entanto, nos últimos anos, com o
crescimento das pesquisas sobre a produção gramatical brasileira, historiar a nossa
produção gramatical e determinar os momentos de mudanças de paradigmas (KUHN,
2003) ou de epistême (FOUCAULT, 2002 ) tornou-se cada vez mais difícil.
A produção gramatical brasileira nas últimas décadas do século XIX reflete essa
dificuldade pois, como acreditamos, a relação das concepções da gramática geral e
filosófica com as inovações do método histórico-comparativo são mais complexas do
que o desaparecimento de uma e o surgimento de outra.
Se é verdade que em países como, Alemanha ou França1, a ruptura com a concepção
filosófica da linguagem ocorreu ainda nos oitocentos, não é menos verdade que a
expansão do novo método não ocorreu ao mesmo tempo e da mesma maneira em todos
os países.
Na passagem do século XVIII e início do XIX poucas eram as gramáticas que aqui
circulavam e, dentre elas, podemos destacar a Arte da grammatica da língua portuguesa
(1770), de Antônio José dos Reis Lobato, a Grammatica Philosophica da Língua
Portugueza (18222), de Jerônimo Soares Barbosa e o Epítome da Grammatica
Portugueza (1806), de Antônio Moraes Silva.
A partir da publicação da obra de Moraes Silva o Brasil, sobretudo na segunda
metade do século XIX, assiste a uma explosão de publicações de gramáticas,
dicionários, postilas, manuais e livros didáticos.
Os trabalhos que se debruçam sobre a reflexão gramatical do período, como
Cavaliere (2000) e Fávero & Molina (2006) estão de acordo em reconhecer dois
momentos distintos na reflexão gramatical: o período racionalista ou de orientação da
gramática geral e filosófica que tem seu inicio com a publicação do Epitome de Morais
Silva e o segundo marcado pela publicação da Grammatica Portugueza (1881), de Júlio
1 BOURQUIN, J.( org.) Les prolongements de la grammaire générale em France au XIX siècle.
2 A Grammatica Philosophica Portugueza , publicada em Lisboa 1822, foi escrita pelo menos duas
décadas antes.
12
Ribeiro.3 No entanto, no final do mesmo século, algumas gramáticas filosóficas
começam a incorporar no seu processo de descrição gramatical as inovações do método
histórico-comparativo. A esse conjunto de gramáticas damos o nome de gramaticas
gerais e filosóficas tardias.
Essas obras demonstram que, ao contrário do que as propostas de periodização e os
trabalhos sobre o período parecem indicar, a produção gramatical brasileira não vive de
rupturas bruscas de orientação, muito pelo contrário, nossa produção gramatical
experimenta um desenvolvimento continuo e com a sobreposição de diferentes correntes
teóricas.
Como exemplo desse tipo de gramática, neste trabalho, propomos a análise das
seguintes obras: Grammatica Portugueza PhilosoPhica, de Ernesto Carneiro Ribeiro e a
Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza, de Charles Adrien Olivier Grivet,
ambas publicadas no ano de 1881.
Nosso trabalho apresenta os seguintes objetivos:
Geral:
Contribuir para os estudos da história da gramática no Brasil, focalizando um período
importante da história da produção gramatical brasileira.
Específicos:
(A) Analisar a Grammatica Portugueza Philosophica e a Nova Grammatica
Analytica da Língua Portugueza, como exemplos das gramáticas gerais e filosóficas
publicadas no Brasil nas últimas décadas do século XIX.
(B) Observar em que medida o processo de descrição gramatical presente nas obras
reflete o período de transição em que a tradição da gramática geral e filosófica começa a
dividir espaço nos nossos compêndios gramaticais com os preceitos da gramática
“científica”.
Nosso trabalho justifica-se pelo fato de que, a despeito da grande produção de
trabalhos preocupados em descrever o nosso processo de gramatização e trabalhos que
se dedicam à análise de obras específicas, ainda são poucos os trabalhos que se
3 Para uma outra visão do período conferir Parreira (2011).
13
debruçam sobre as gramáticas produzidas neste período de transição. É exatamente aí
que nosso trabalho se insere. Soma-se a isso, o fato de constatarmos a escassez de
pesquisas sobre a obra desses autores. Pouquíssimos são os trabalhos sobre as obras de
Ernesto Carneiro Ribeiro e quase inexistentes os trabalhos que se dedicam à produção
de Charles Adrien Olivier Grivet.
No que tange à metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa,
apropriamo-nos dos postulados teóricos da História das Ideias linguísticas formulados
por Sylvain Auroux (1989, 1992).
Os postulados teóricos que embasaram a pesquisa são os seguintes:
definição puramente fenomenológica do objeto, que subjaz à necessidade de se
ter respeito às terminologias usadas na época em que foi produzido o objeto em
análise;
neutralidade epistemológica, que implica não julgar ou determinar se algo é ou
não ciência;
historicismo moderado, que diz respeito à necessidade de se resgatar os fatos
históricos que permitirão o entendimento do objeto de estudo, sem, contudo,
colocá-los em primeiro plano, sobrepondo-os aos aspectos linguísticos em
análise.
A organização da dissertação se faz em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, procuramos explicitar o referencial teórico em que nos
apoiamos para a análise das obras em questão, isto é, a História das Ideias Linguísticas,
observando sua origem e métodos. Destacamos, também, neste capítulo o conceito de
gramatização formulado por Sylvain Auroux.
No segundo, procuramos traçar um breve panorama do século XIX. Ainda neste
mesmo capítulo fizemos uma revisão da produção gramatical do período e das
principais propostas de periodização dos estudos linguísticos no Brasil para, além de
destacarmos os principais momentos do nosso processo de gramatização, sublinhar o
terminus a quo e o terminus ad quem para a produção gramatical do século XIX.
14
No terceiro e quarto capítulos deter-nos-emos na análise das duas obras,
respectivamente, Grammatica Portugueza Philosophica, de Ernesto Carneiro Ribeiro,
publicada em 1881 e a Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza, de Charles
Adrien Olivier Grivet, publicada no mesmo ano. Embora publicadas no mesmo ano, as
gramáticas apresentam diferenças tanto na estrutura quanto nas fontes explicitadas
pelos autores.
Cumpre-nos esclarecer que para facilitar a leitura, faremos uma atualização
ortográfica em todas as citações retiradas das obras do século XIX e, para os originais
estrangeiros, faremos uma tradução.
Para finalizar, julgamos importante destacar que nosso trabalho, além de lançar mais
uma luz a este período de transição dos nossos estudos linguísticos, contribui, também,
para a história da gramática filosófica no Brasil.
15
1
Fundamentação teórica
Neste primeiro capítulo, faremos algumas considerações sobre o conceito de
História, destacando, sobretudo, as mudanças implantadas no século XX pela escola dos
Annales. Num segundo momento, procuramos explicitar o referencial teórico em que
nos apoiamos para a análise das obras em questão, isto é, a História das Ideias
Linguísticas.
1.1 Considerações Iniciais
A Grécia viu o nascimento de uma certa concepção de história: a narrativa das ações
dos homens e heróis dignas de serem lembradas. Assim sendo, podemos equiparar, pela
antiguidade, a história às demais artes, como à poesia e à filosofia4.
Conforme Novais e Forastieri (2011: 20),
[...] a história é muito antiga (como as artes, ou a filosofia) porque se
vincula à ancestral necessidade de constituição da memória social por
intermédio da narrativa do acontecimento. Quer dizer: esse traço – a
narrativa do acontecimento – é inerente e constitutivo desse tipo de
discurso, e remanesce como ponto de resistência incontornável ao
longo de toda a trajetória da historiografia5, apesar das mudanças das
escolas e dos estilos.
Para os historiadores da antiguidade, como Heródoto, Tito Lívio e Tácito, a história
era concebida como memoria, exemplum e, nos dizeres de Cícero, Historia magistra
vitae est. Essa concepção de história perdurou por toda a Idade Média.
4 Como as demais artes a História também tem a sua musa. As musas eram entidades mitológicas a quem
eram atribuídas, na Grécia antiga, a capacidade de inspirar as criações artísticas ou científicas. As musas
eram nove: Calíope (Musa da poesia Épica), Clio (Musa da História), Erato (Musa da poesia Lírica),
Euterpe (Musa da Música), Melpone (Musa da Tragédia), Polémnia (Musa da Música sacra/cerimonial),
Tália (Musa da Comédia), Terpsícore (Musa da Dança) e Urânia (Musa da Astronomia). 5 Desde o seu nascimento a história aparece sob variadas formas de gêneros: mitos, narrativa dos
grandes feitos, crônicas monásticas, biografias, memória política dentre outras.
16
Nos séculos XVIII e XIX, o Iluminismo e o Romantismo enfatizaram o aspecto
político como assunto predominante na produção historiográfica. O primeiro
aperfeiçoou as críticas das fontes e, o segundo, com as noções de povo, nação e estado
promoveram a hegemonia da história política.
Conforme Falcon (1997:65),
A promoção do Estado à condição de “objeto por excelência da
produção histórica” significou a hegemonia da história política. Daí
porque, no século, poder é sempre poder do estado – instituições,
aparelhos, dirigentes; os “acontecimentos” são sempre eventos
políticos, pois são estes os temas nobres e dignos da atenção dos
historiadores.
A historiografia predominante no final do século XIX é a construída pela escola
metódica . Essa escola constituída, sobretudo, pelos membros da Revue Historique,
lançada por Grabriel Monod6 em 1876, concebia a história como uma ciência positiva e
o historiador, para alcançar a objetividade e se afastar das influências da filosofia e da
literatura, deveria submeter as fontes a uma crítica rigorosa a fim de comprovar a
veracidade dos fatos.
No entanto, as tendências historiográficas românticas e positivistas não resumem a
totalidade da produção historiográfica dos oitocentos. Podemos destacar algumas
exceções que influenciaram de forma marcante a reflexão historiográfica do século XX.
1.2 A escola dos Annales
Os historiadores dos Annales realizaram feitos admiráveis e a bibliografia sobre o
impacto e os desdobramentos das propostas desses historiadores não para de
aumentar. Porém, a tomada de consciência de que existem outras dimensões além da
história política não foi uma novidade inaugurada pelos fundadores dos Annales.
Ainda no século XVIII, Voltaire (1694-1778) propunha uma nova maneira de pensar
6 Gabriel Monod ( 1844 – 1912 ) historiador francês considerado o “ pai ” da historiografia positivista.
Fundou a Revue Historique que anunciava os novos rumos da historiografia. A revista simbolizava o
rompimento entre a geração romântica e surgimento de um método rigoroso de pesquisa.
17
a história. É o que podemos perceber pela leitura de um trecho de uma carta escrita
para o seu editor de Genebra:
Vejo a cronologia e as sucessões de reis como meus guias e não
como objetivo de meu trabalho. Este trabalho seria bem ingrato
se me limitasse a querer aprender em que ano um príncipe
indigno de sê-lo sucedeu a um príncipe bárbaro. Parece-me,
lendo as histórias, que a terra tenha sido feita senão para alguns
soberanos e aqueles que serviram suas paixões ; quase o resto
fica abandonado. Os historiadores se assemelham nisto, a
alguns tiranos dos quais nos falam; sacrificam o gênero humano
a um só homem.
(VOLTAIRE, apud FORASTIERI, 2001: 231-232)
Jacques Le Goff, no seu artigo A Nova História, busca refletir sobre as propostas e os
caminhos trilhados pela Nova História e reconhece, além da importante contribuição da
escola dos Annales, uma influência mais antiga do que comumente se imagina.
Destacamos aqui, como o faz Le Goff, duas influências, no século XIX, de uma nova
maneira de pensar a história: o historiador Jules Michelet7 e o economista e sociólogo
francês Françoise Simiand.8
Profeta da nova história, como diz o próprio Le Goff, Michelet, no prefácio da sua
Histoire de France (1869), faz a recusa de uma história essencialmente política e, ao
mesmo tempo, aspira a uma história total, além de defender algumas propostas caras à
terceira geração dos Annales: uma história mais material, anunciando uma história da
cultura material, uma maior atenção ao clima, aos alimentos e, ao mesmo tempo, uma
história mais “espiritual”.
Ela [a História] possuía anais, e de modo algum uma história. Homens
eminentes a tinham estudado, sobretudo do ponto de vista político.
Ninguém havia penetrado nos infinitos detalhes dos diversos
desenvolvimentos de sua atividade (religiosa, econômica, artística
etc.). Ninguém a havia ainda abarcado na unidade viva dos
elementos naturais e geográficos que a constituíram. Fui eu o
primeiro a vê-la como uma alma e uma pessoa... Mais complicado
7 Jules Michelet (1798–1874) historiador francês, maior representante da tradição romântica na
historiografia francesa. 8 François Simiand (1875–1935) sociólogo e economista francês, considerado um dos fundadores da
escola de sociologia francesa.
18
ainda, mais amedrontador, era meu problema histórico colocado como
ressurreição da vida integral, não em suas superfícies, mais, sim, em
seus organismos interiores e profundos... Em suma, a história, tal
como eu a via naqueles homens eminentes (e muitos admiráveis) que
eram seus representantes, parecia-me ainda fraca em seus métodos:
muito pouco material, levando em conta as raças, e não o solo, o
clima, os alimentos e tantas circunstancias físicas e fisiológicas. Muito
pouco espiritual , falando de leis, de atos políticos, e não de ideias e
costumes, e não do grande movimento progressivo e interior da alma
nacional. (MICHELET apud LE GOFF, 2011: 150 )
O nome do economista François Simiand merece o destaque de Le Goff sobretudo
pela contribuição de seu artigo Método histórico e ciência social. Neste fecundo artigo
Simiand denuncia os “ três ídolos da tribo dos historiadores”:
1. “O ídolo político’, isto é, o estudo dominante, ou pelo
menos, a preocupação perpétua da história política, dos fatos
políticos, das guerras etc., que chega a dar a esses
acontecimentos uma importância exagerada...”
2. “ O ídolo individual’, ou o hábito inveterado de conceber a
história como uma história de indivíduos, e não como um
estudo dos fatos, hábito que leva ainda comumente a ordenar
as pesquisas e os trabalhos em torno de um homem, e não
em torno de uma instituição, de um fenômeno social, de uma
relação a estabelecer...”
3. “O ídolo cronológico’, isto é, o hábito de se perder nos
estudos de origem, nas investigações de diversidades
particulares, em vez de estudar e compreender inicialmente o
tipo normal, buscando-o e determinando-o na sociedade e na
época em que ele se encontra... (SIMIAND apud LE GOFF ,
op. cit.: 151-152)
19
Os “ídolos” elencados por Simiand representavam o que era mais nefasto na produção
historiográfica do século XIX. E demolir o “ídolo político”, o “ídolo individual” e o “ídolo
cronológico” foi o objetivo principal da primeira geração dos Annales
A Escola dos Annales, como ficaram conhecidos os membros da revista, durante
muito tempo foi vista por muitos estudiosos como um grupo uniforme. Porém, por seus
membros apresentarem divergências entre si que modificaram a direção do movimento
durante os mais de sessenta anos de existência da revista, Burke (1997) prefere falar em
um movimento dos Annales e não em uma escola .
As ideias veiculadas pela revista dos Annales promoveram uma nova maneira de
pensar o fazer historiográfico (BURKE 1997, FORASTIERI 2001, DOSSE 2003 e
NOVAES e FORASTIERI 2011), pois propunham substituir a história tradicional
calcada na narrativa de acontecimentos, por uma história-problema, em construir uma
história que alcançasse todas as atividades humanas e não somente a política.
O corolário da história metódica “a história se faz com documentos” e os seus
respectivos conteúdos, predominantemente a história politica, provocaram reações
muito negativas, especialmente em Lucien Febrvre, a julgar pelo tom muitas vezes
“irritado” de seus textos contra o que denominava histoire historisante 9.
Muitos historiadores, e dos bem formados e conscientes, o que é pior,
muitos historiadores se deixam ainda perder pelas pobres lições dos
vencidos de 1870. Ah, eles trabalham muito bem! Eles fazem história
do mesmo modo que suas avós se dedicavam à tapeçaria. Pontinho por
pontinho. Eles são aplicados. Mas quando lhes pergunto por que esse
trabalho todo, a melhor resposta que conseguem dar com um sorriso
de criança, é a palavra cândida do velho Ranke : “ para saber como é
que as coisas aconteceram”. Com todos os detalhes naturalmente.
[....]
Método histórico, método filológico, método crítico: belas
ferramentas de precisão. Eles honram seus inventores e essas gerações
de usuários que as receberam de seus antecessores e as aperfeiçoaram,
utilizando-as. Mas saber manejá-las gostar de manejá-las - eis algo
que não é suficiente para ser historiador. Apenas aquele que se lança
na vida inteiramente – com o sentimento de que mergulhando nela,
banhando-se nela, deixando-se impregnar, assim, pela humanidade
presente – é digno deste belo nome; ele multiplica por dez suas
forças de investigação, seus poderes de ressurreição do passado. De
9 Conforme nos lembra Novaes e Forastieri (2011:39 ) “ Nos vários momentos da história da história, as
“escolas” que sempre se apresentam como novas tendem a exagerar na crítica aos antecessores, chegando
às vezes à deformação. A crítica cerrada da história historizante empreendida pelos Annales na sua
primeira fase não discrepa dessa inescapável tendência (...)”.
20
um passado que detém e que, em troca, lhe restitui o sentido secreto
dos destinos humanos.
(FEBRE, 2011 : 82-84)
Se, para os historiadores da escola metódica praticada no final do século XIX, não
havia história sem documentos, paras os historiadores dos Annales, não poderia haver
história sem problemas. Os fatos não estavam à disposição para serem colocados,
empilhados pelo historiador, como se estivessem materializados nos documentos.
Muito pelo contrário, era necessário interrogar e problematizar o passado com base em
hipóteses e conceitos, e, a partir daí, buscar a documentação para comprovar ou refutar
as hipóteses.
Conforme define Burke (1997), a escola dos Annales apresenta três fases distintas;
a primeira, 1920 a 1945, inaugurada por Lucien Febvre e Marc Bloch. Essa primeira
fase é caracterizada principalmente por um ferrenho combate à história tradicional e de
propostas para se construir uma nova história.
A segunda fase, liderada por Braudel quando em 1956 assumiu a direção da revista.
Braudel, com o seu Mediterrâneo, transformou as noções de tempo dividindo-o em:
tempo de longa duração – retrata a relação do homem com o meio geográfico; tempo
de média duração – história das conjunturas econômicas, sociais e políticas, e, por fim,
o tempo curto- o tempo dos acontecimentos. Essa visão tripartite do tempo mascara a
hierarquia das temporalidades pensadas por Braudel e o seu “desprezo” pela história
do tempo de curta duração.
[...] Tanto na teoria quanto na prática Braudel não parece disposto a
aceitar tal igualdade [das temporalidades]. Basta ver as imagens mais
depreciativas com as quais ele expressa sua hostilidade com os
eventos. Eles são vistos (o que não deixa de ser irônico em se tratando
de um historiador do mediterrâneo) como “distúrbios de superfície ,
cristas de espuma que as mares da história carregam em suas costas
poderosas”. São evanescentes como fumaça ou vapor, como flores
solitárias que florescem por um dia para logo desaparecerem;
repousam como poeira sobre objetos mais sólidos do passado.
(CLARK, 2011:187)
21
A era Braudel, conforme Burke, além da ênfase na história de longa duração10
foi
caracterizada também pela preocupação com uma história total, enfatizando os aspectos
socioeconômicos e as suas relações com o meio geográfico. Por conta disso, a história
das mentalidades, muito presente na geração anterior sobretudo pelo trabalhos de
Febvre, permaneceu praticamente ausente neste segundo momento.
A negação do aspecto político do horizonte do historiador, objetivo número um das
primeiras gerações dos Annales, permite aos historiadores se aventurar cada vez mais a
novos campos e novos objetos de pesquisa. A história, portanto, se desloca das
hierarquias para as relações, das posições para as representações.
Com a terceira geração dos Annales11
, liderada por Le Goff, a história das
mentalidades entra em cena como uma das principais linhas de pesquisa. “As
mentalidades não são mais apreendidas como formações discursivas desvinculadas do
real, mas são parte integrante do estudo da sociedade.” Com esse envolvimento entre a
estrutura social e a estrutura cultura, a história das mentalidades observa não só as ideias
vigentes em um determinado período, mas suas interpretações, construções e relações.
Philippe Ariès sintetiza desta maneira o impacto da História das mentalidades na
historiografia francesa:
No decorrer dos anos 60, o reaparecimento da problemática das
mentalidades pôs de cabeça para baixo a historiografia francesa.
Trata-se de um acontecimento capital. Os índices das revistas
importantes, inclusive as mais conservadoras, passam por uma
mudança, bem como os temas das dissertações de mestrado e as teses
de doutorado. Observam-se, então, no ano de 1970, um declínio dos
assuntos relacionados à sócioeconomia, um desinteresse relativo pelos
temas demográficos da década anterior e, ao contrário, a invasão de
temas outrora desconhecidos ou muito raros. (ARIÉS, 2001:277-278)
Devido à mudança de curso empreendida pela terceira fase dos Annales, a segunda
metade do século XX viu frutificar a história das ideias. Conforme Fávero & Molina
(2006:24), “surgiram, por exemplo, as da pedagogia, da psicologia, das ciências sociais
10
Conforme Burke (op. cit. :55 ) “ A distinção entre curta e longa duração era comum ao vocabulário do
historiador – e mesmo da linguagem comum- antes de 1949. Estudos e temas particulares que se
estendiam por vários séculos não eram incomuns na história econômica, especialmente na história dos
preços. [... ] Contudo, permanece uma conquista pessoal de Braudel combinar um estudo na longa
duração com o de uma complexa interação entre o meio, a economia, a sociedade, a politica, a cultura e
os acontecimentos”. 11
Burke considera mais difícil traçar um perfil para esta terceira geração pelo fato de que ninguém
dominou esse período com o fizeram Febvre e Braudel nas fases anteriores.
22
e da linguística. Foi nesse momento que se deu, de forma tão produtiva a aproximação
dessa com a história”.
Seguindo os passos de Auroux (1989,1992), Fávero & Molina (op. cit.:24) definem
deste modo o conceito de ideia linguística: ideia linguística “ é todo saber construído
em torno de uma língua num dado momento. Como produto quer de uma reflexão
metalinguística, quer de uma atividade linguística não explícita”. Compreender o
processo de construção e difusão desse saber é o objetivo da História da Ideias
Linguísticas.
1.3 A História das Ideias Linguísticas
Conforme Auroux (1989, 1992), foram muitas as tentativas de contar a história das
ideias linguísticas. De fato, podemos organizar essas tentativas em três categorias
distintas; a) as que visam construir uma base documental para a pesquisa empírica; b)
as que estão em continuidade com uma prática de conhecimento da qual derivam (por
exemplo, o trabalho de um filólogo das línguas clássicas sobre a gramática e a filologia
grega) e, por fim, c) as que têm um papel fundador, e se voltam ao passado com a
finalidade de legitimar uma prática científica contemporânea .
Auroux, sem negar as importâncias dessas iniciativas12
, observa que todas essas
tentativas de contar a história das ideias linguística partilham de uma ideia errônea que
é a de “ querer fazer a história da linguística concebida como uma ciência , isto é, como
uma forma de saber cuja organização e cujas propriedades formais seriam estáveis (...)”
(Auroux 1992:12). O que autor procura com as suas críticas é a negação de uma história
das ciências da linguagem única, universal e linear.
O que Auroux propõe é historiar o processo de construção e difusão dos saberes
sobre a língua a partir do conceito de gramatização , ou seja, “o processo que conduz a
descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os
pilares do nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário.” (Auroux 1992:65).
12
Para Auroux (1992) as obras da primeira e da segunda categoria são de grande interesse pela sua
riqueza factual. As da terceira teriam um valor epistemológico.
23
A gramática e o dicionário são os instrumentos linguísticos que tornaram possível o
processo de gramatização massiva das línguas do mundo.
Vamos nos dar o longo prazo da história e considerar globalmente o
desenvolvimento das concepções linguísticas europeias em um
período que vai da época tardo-antiga (século V de nossa era) até o
fim do século XIX. No curso desses 13 séculos de história vemos o
desenrolar de um processo único em seu gênero: a gramatização
massiva , a partir de uma só tradição linguística inicial ( a tradição
greco-latina) das línguas do mundo. (AUROUX op.cit.:35)
O processo de gramatização corresponde a uma transferência de tecnologia de uma
língua para outras línguas, transferência que não é, ressalta o autor, nunca totalmente
independente de uma transferência cultural mais ampla.
O que torna operante o conceito de gramatização formulado por Auroux, é a
consciência da sua estrutura em rede:
Falar da constituição em rede do conhecimento linguístico no
processo massivo da gramatização é mais do que uma simples
imagem. É essa estrutura que torna eficaz o acúmulo de
conhecimentos – ou, se quisermos, a acessibilidade generalizada de
todos os pontos da rede ao menor custo, para os que se situam em
alguns pontos (alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, português)
que têm entre si uma relação fortemente conexa, ou, mais
simplesmente para aqueles que conhecem o latim (id. : 45)
Os princípios metodológicos que embasam o programa de investigação proposto por
Auroux são três : definição puramente fenomenológica do objeto, que subjaz à
necessidade de se ter respeito às terminologias usadas na época em que foi produzido o
objeto em análise; neutralidade epistemológica, que implica não julgar ou determinar se
algo é ou não ciência; e por fim, historicismo moderado, que diz respeito à necessidade
de se resgatar os fatos históricos que permitirão o entendimento do objeto de estudo,
sem , contudo, colocá-los em primeiro plano, sobrepondo-os aos aspectos linguísticos
em análise.
24
O programa de investigação de Auroux, portanto, nos leva a ressignificar a imagem
que fazemos da gramática e, também, nos leva a observá-la tendo como parâmetros não
os conhecimentos sobre a língua que temos hoje, mas considerando os conhecimentos
disponíveis quando da produção da obra.
Nos últimos anos, no Brasil e em Portugal é comum o emprego de termos como
Historiografia Linguística, História das Ideias linguísticas, História da Linguística,
para representar correntes e enfoques possíveis nos estudos historiográficos sobre a
língua portuguesa. Gonçalves (2006) observa que em Portugal, durante um determinado
período, cada denominação representava a influência de uma linha de pesquisa francesa
ou inglesa .
Em la segunda mitad del siglo XX, los estúdios de naturaliza
historiográfica suelen ser reconocidos como “historiografia
linguística”, “ideas linguísticas” e historia de la linguística”,
denominaciones concorrentes que transcienden la mera
variedade denominativa, llegando a denunciar la afiliacion de
los autores a ciertas escuelas o perspectivas dentro del ámbito
historiográfico. Ejemplo cabal de ello es la evidente polarización
entre, por um lado, el modelo anglosajón, que impulso y dio
preferencia a la “historiografia linguística”, (...) y, por outra
parte, el modelo francófono ( si no francófilo ), decantándose
por uma de las expresiones siguientes: “pensamento linguístico”
(...), y por último, “ gramaticografia”, este sí, geneticamente
vinculado a la producción del género metalinguístico conocido
como gramática. (GONÇALVES, 2006: 734) 13
Nas investigações historiográficas no Brasil, nos últimos anos, parece haver uma
tendência ao apagamento da distinção entre os termos história das ideia linguísticas e
historiografia linguística. É o que podemos depreender deste trecho de Altman ( 2009:
129 ):
13
Tradução nossa: Na segunda metade do século XX, os estudos de natureza historiográfica costumam
ser frequentemente reconhecidos como “Historiografia Linguística”, “Ideias Linguísticas” e “História da
linguística” denominações concorrentes que transcendem a mera variedade denominativa, vindo a
denunciar a filiação dos autores à determinadas escolas ou perspectivas dentro do campo historiográfico.
Exemplo cabal disto é a evidente polarização entre, por um lado, o modelo anglo-saxão, que impulsionou
e deu preferência à “Historiografia Linguística”, (...) e, por outra parte, o modelo francófono (para não
dizer francófilo) preferindo uma das seguintes expressões: “pensamento linguístico” e por último,
“Gramaticografia”, este sim, genericamente veiculado à produção do gênero metalinguístico conhecido
como gramática.
25
No Brasil, ao lado do termo historiografia da linguística, duas outras
designações relativas ao campo têm ocorrido com certa frequência :
historiografia linguística e história das ideias linguísticas,
aparentemente representativas de orientações diferentes que se tem
procurado imprimir ao nosso incipiente trabalho e prática
historiográficas. A oposição entre historiografia e historia das ideias
é, entretanto, uma falsa questão.
Por outro lado, Eni Orlandi (2001: 16) parece ir na contramão no que diz respeito à
aproximação entre História das Ideias Linguística e Historiografia e procura traçar uma
linha divisória entre as duas linhas de pesquisa.
Antes de prosseguirmos é preciso explicitar um ponto fundamental de
nossa pesquisa: nós fazemos história das ideias linguísticas e não
historiografia. Essa é uma diferença com consequências importantes.
Fazer história das ideias nos permite: de um lado, trabalhar com a
historia do pensamento sobre a linguagem no Brasil mesmo antes da
Linguística se instalar em sua forma definida; de outro, podemos
trabalhar a especificidade de um olhar interno à ciência da linguagem
tomando posição a partir de nossos compromissos, nossa posição de
estudiosos especialistas em linguagem. Isto significa que não
tomamos o olhar externo, o do historiador, mas falamos como
especialistas de linguagem a propósito da história do conhecimento
sobre a linguagem. Não se trata de uma história da linguística feita,
externa, o que poderia ser feito por um historiador das ciências
simplesmente . Trata-se de uma história feita por especialistas da área
e portanto capazes de avaliar teoricamente as diferentes filiações
teóricas e suas consequências para a compreensão do seu próprio
objeto, ou seja, a língua.
Assim , nessa concepção, dois enfoques podem ser distinguidos :
(1) O que privilegia uma história “externa” ao pensamento linguístico, enfatizando o
contexto socio-cultural no qual as teorias se desenvolvem.
(2) O que privilegia uma história “interna” enfatizando o estudo da evolução das
correntes linguísticas.
26
Privilegiaremos, neste trabalho, a “história interna”, isto é, buscaremos historiar os
termos e os conceitos empregados pelos autores no seu trabalho de descrição gramatical .
No entanto, sabemos que muitos dos “fatores internos” só são plenamente
compreendidos se ampliarmos o nosso campo de visão e buscarmos explicações no
contexto sócio-cultural em que a obra se insere. E é isto que pretendemos fazer sempre
que necessário.
27
2
Século XIX – Reflexão Linguística
Neste segundo capítulo, procuramos apresentar um breve panorama do século XIX.
Em seguida, faremos uma revisão da produção gramatical do período e das propostas de
periodização dos nossos estudos linguísticos, para além de destacarmos os principais
momentos do nosso processo de gramatização, sublinhar o fato de que, ao contrário do
que essas propostas indicam, nossa produção gramatical não vive de rupturas bruscas de
orientação.
2.1 Conhecimento linguístico e identidade nacional
A produção cultural e a reflexão intelectual brasileira no século XIX está
estritamente ligada às mudanças políticas e sociais desse agitado período. O
romantismo, a campanha abolicionista e a criação das primeiras instituições de ensino
superior14
traçam um interessante quadro cujo pano de fundo é a preocupação com a
constituição de um ideal de nação.
No Brasil foi uma elite branca, letrada que se imbuiu da difícil tarefa de delinear uma
nova imagem para uma nação que a todo custo procurava se desvencilhar do incomodo
papel de colônia.
Conforme José Murilo de Carvalho (2003:65) a formação superior da elite brasileira
foi a grande responsável por criar um grupo homogêneo:
Elemento poderoso de unificação ideológica para a elite imperial foi a
educação superior. E isto por três razões. Em primeiro lugar, porque
quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com
pouca gente fora dela. A elite era uma ilha de letrados num mar de
analfabetos15
. Em segundo lugar, porque a educação superior se
14
O ensino superior no Brasil ganha impulso em 1808 com a chegada da corte portuguesa. Uma Real
Academia dos Guardas-Marinha e uma Academia Real Militar foram logo criadas respectivamente em
1808 e 1810, seguidas pelas Escolas de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador criadas em 1813 e
1815. Porém, escolas preocupadas com a formação de uma elite política só foram criadas após a
Independência. Trata-se dos cursos de direito criados em 1827 nas cidades de São Paulo e Olinda. 15
José Murilo de Carvalho (2003: 80) sintetiza deste modo os dados sobre a instrução fornecidos pelo
censo de 1872 “ De acordo com o Censo de 1872, somente 16,85% da população entre 6 e 15 anos
frequentava a escola. E havia menos de 12.000 alunos matriculados nas escolas secundárias numa
população livre de 8.490.910 habitantes. Os dados de ocupação fornecidos pelo Censo de 1872 permitem
calcular o número de pessoas com educação superior no país em torno de 8.000. No que se refere à
educação não há dúvida de que a elite política não podia ser menos representativa da população em geral.
28
concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um
núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar,
porque se concentrava, até a independência, na universidade de
Coimbra e, após a independência, em quatro capitais provinciais ou
duas, se considerarmos apenas a formação jurídica.
Os gramáticos do século XIX, em sua maioria membros dessa elite cultural e
política, também desempenharam um importante papel no processo de constituição da
nossa identidade. Esses intelectuais foram os responsáveis por articular o processo de
gramatização16
da língua portuguesa, isto é, a produção de um saber metalinguístico
sobre a língua ao processo de constituição da língua e identidade nacional. Eni Orlandi
(2002:203) sintetiza muito bem esse longo processo :
[Com a nossa independência ] a relação com a língua deixa de ser uma
questão da relação com os portugueses para ser de brasileiro para
brasileiro. Começamos, então, a produzir os nossos instrumentos
linguísticos (gramáticas, dicionários, antologias), nossos programas de
ensino (Fausto Barreto), nossas instituições (Colégio Pedro II,
Academia de letras, Bibliotecas) o que muda sobre maneira a relação
do brasileiro com sua língua. Ao mesmo tempo criam-se normas de
estabilização de uma escrita nossa (acordos ortográficos) e uma
escritura (literatura) legitimamente nacional para a nossa língua.
Na busca pelo reconhecimento de uma literatura e uma escrita brasileira surgiram
algumas polêmicas17
entre autores brasileiros e portugueses. Dentre elas, destacamos,
aqui, a troca de farpas entre o romancista brasileiro José de Alencar e o escritor
português Pinheiro Chagas.
No momento em que Alencar lançou o seu romance Iracema em 1865, surgiram
uma série de críticas vindas de brasileiros puristas e classicizantes, como Henrique Leal,
e de alguns portugueses dentre os quais Pinheiro Chagas.
No seu pós-escrito de Iracema (1870), Alencar cita textualmente as críticas que
Pinheiro Chagas teceu sobre a sua obra:
16
Entendemos por gramatização o processo que conduz a descrever uma língua na base de duas
tecnologias: a gramática e o dicionário. ( Auroux , 1992 ) 17
A imprensa brasileira no século XIX foi o palco privilegiado de disputas acerca de questões literárias e
gramaticais. Além da troca de farpas entre José de Alencar e Pinheiro Chagas, recordemos, também, a
polêmica entre o jornalista e político Carlos Laet e o escritor português Camilo Castelo Branco, motivada
pelas críticas do autor português aos poetas brasileiros. A questão da língua portuguesa também gerou
polêmicas entre autores brasileiros, como a polêmica entre Ernesto Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa,
motivada pela revisão do código civil.
29
Não, esse não é o defeito que me parece dever notar-se na Iracema,
o defeito que eu vejo em todos os livros brasileiros e contra o qual não
cessarei de bradar intrepidamente é a falta de correção na linguagem
portuguesa ou antes a mania de tornar o brasileiro uma língua
diferente do velho português por meio de neologismos arrojados e
injustificáveis, que (tenham cautela) chegarão a ser risíveis se se
quiserem tomar as proporções de uma insurreição em regra contra a
tirania de Lobato. (ALENCAR, apud PINTO, 1978:73)
Sobre a corrupção do velho idioma e a acusação de excesso de neologismos em sua
obra, Alencar responde desta maneira ao ilustre escritor português:
Acusa-nos o sr. Pinheiro Chagas a nós escritores brasileiros do
crime de insurreição contra a gramática de nossa língua comum. Em
sua opinião estamos possuídos da mania de tornar brasileiro uma
língua diferente do velho português.
Que a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas
para a formação profunda do idioma de Portugal, existe no Brasil, é
fato incontestável. Mas em vez de atribuir a nós escritores essa
revolução filológica devia o senhor Pinheiro Chagas, para ser corrente
com a sua teoria buscar o germe dela e o seu fomento no espírito
popular no falar do povo, esse “ignorante sublime” como lhe chamou.
( id : ibid)
A polêmica de Alencar e Pinheiro Chagas demonstra que nesse momento a literatura
e a gramática são lugares de construção e representação da nossa identidade nacional. E,
portanto, o gramático e o escritor estão ambos participando ativamente na busca de uma
identidade linguística e cultural para o Brasil.
Não é por acaso que podemos descrever o século XIX como “o século da gramática”
no Brasil. A partir da publicação da obra de Moraes Silva o Brasil, sobretudo na
segunda metade do século XIX, assiste a uma explosão de publicações de gramáticas,
dicionários, postilas, manuais e livros didáticos. Gally (2013) traz uma amostra não só
da quantidade, mas também da variedade dos trabalhos publicados no período e que
transcrevemos a seguir:
30
31
32
33
34
Do conjunto das obras elencadas por Gally, podemos destacar como representantes
das gramáticas produzidas sob a orientação da gramática geral e filosófica o Breve
compendio de grammatica portuguesa ( escrito em Salvador entre os anos de 1817 e
1819 ), de Frei Caneca, o Compendio de língua nacional (1835 ), de Antônio Álvares
Pereira Coruja, obra que, segundo Antenor Nascentes (1939) , inaugura os nossos
estudos gramaticais, a Grammatica portuguesa (1866 ),de Francisco Sotero dos Reis,
obra “ que reinou nos bancos escolares brasileiros antes do programa de Fausto Barreto”
(Fávero & Molina 2006:92).
A grande maioria dos trabalhos historiográficos que se debruçam sobre este período
está de acordo em reconhecer os momentos que marcaram uma mudança de orientação
na produção gramatical brasileira. O primeiro momento corresponde à publicação da
gramática de Júlio Ribeiro (1881).
O que se nos afigura é que se apressurou o Sr Júlio Ribeiro a de
chofre quebrar a rotina, fosse como fosse, embora ainda não houvesse
assimilado o quanto lera nos filólogos estrangeiros .
Entretanto, remasnesce-lhe certo mérito de haver sido o primeiro a
transladar para o compendio didático a nova orientação, invertendo os
alicerces da rotina e servindo de norma para algumas Gramáticas que
se publicaram em S. Paulo (MACIEL, 1928 :500)
A censura de Maciel ao fato de Júlio Ribeiro “de chofre quebrar a rotina fosse como
fosse embora ainda não houvesse assimilado o que lera nos filólogos estrangeiros”
reflete um comportamento recorrente nos gramáticos do século XIX: a busca de, se
inteirar, a todo custo, das inovações que se iam consolidando no período:
A leitura mais perfunctória dos textos mais representativos do
pensamento brasileiro sobre a língua nos cem anos que vão de 1820 a
1920, já faz emergir esta verdade que é a raiz de muitas outras: - A
falta de formação e de informação linguística , não só – o que seria
justificável – por parte dos leigos, aos quais coube,
predominantemente o tratamento do assunto, mas também por parte
dos especialistas. (....)
Além disso, ainda entre os que conseguiram manter uma linha segura
ou pelo menos una de pensamento, de maneira que não se pode
acompanhar com facilidade uma trajetória até as fontes da influência
ou filiação a esta ou àquela teoria linguística. O que ressalta à
primeira vista é a afoiteza e o ecletismo, na adoção e aplicação de
doutrinas estrangeiras: as citações de obras e autores, que começam
a surgir depois de 1880, com maior frequência , embora não com
35
método, comprovam a leitura, mas nem sempre a assimilação de
conhecimentos: e consequentemente, a perfilhação de teorias às vezes
reciprocamente excludente18
s. (PINTO, 1978: XLV-XLVI).
A retórica “polêmica”19
e o tom muitas vezes “agressivo” de Júlio Ribeiro
ajudaram a marcar a sua ruptura teórica com a tradição da gramática filosófica e fez eco
nas obras publicadas posteriormente. Essa retórica de ruptura aponta para duas
direções: primeiro para uma ruptura com as concepções antigas e, num segundo
momento, para a aclamação da nova tradição de pesquisa. Assim, após Júlio Ribeiro, à
tradição da gramática geral e filosófica são atribuídos alguns juízos de valor: “estudos
abstratos e metafísicos”, “velha tradição”, “velho modelo”.
A recepção positiva à nova orientação científica nos estudos da linguagem é
confirmada mais uma vez por Maciel no seu Breve retrospecto sobre o ensino da língua
portugueza. Nesse trabalho, ele aponta o segundo momento de mudança de orientação
na reflexão gramatical brasileira o programa de ensino (1887) de Fausto Barreto:
Mas no vetusto arcabouço das doutrinas de então foi Fausto Barreto ,
quem de vez e definitivamente vibrou o golpe de morte, proferindo-as
por incompatíveis com o grau da nova cultura filológica (...)
Nomeado catedrático do Colégio Pedro II e depois da então Escola
Normal, ascendera à culminância do magistério oficial, de onde
poderia definitivamente difundir e firmar as novas doutrinas; e, com
êxito mais do que todos, orientar o ensino da língua vernácula.
(MACIEL:1928:501)
O programa de português para os exames preparatórios organizados por Fausto
Barreto, professor do Colégio Pedro II20
, mudou o cenário da nossa produção
gramatical.
18
Grifos nossos. 19
Recordamos aqui um artigo publicado no Diário de Campinas em 1879 que iniciou uma polêmica entre
Júlio Ribeiro e Augusto Freire da Silva “Com efeito à parte os trabalhos monumentais de Adolpho
Coelho, de Theophilo Braga e de Pacheco Junior (trabalhos desgraçadamente pouco vulgarisados) o que
vem à luz em Portuguez sobre grammatica é repetição do que disse Sotero dos Reis, que repetiu o que
disse Soares Barbosa, que repetiu o que disse Lobato, que repetiu o que disse padre Bento Pereira, que
repetiu o que disse Amaro de Roboredo [...]”
Para a réplica de Freire da Silva sobre as criticas de Júlio Ribeiro conferir a coletânea de artigos reunidos
pelo próprio Júlio Ribeiro no volume “ questão gramatical” (1887). 20
O Colégio Pedro II, criado em 2 de dezembro de 1837 pela transformação do Seminário São Joaquim,
foi a grande referência do ensino secundário do período.
Como bem diz Haidar ( 1972, p.95 ) “A história do ensino público secundário na Corte reduz-se, durante
o Império, à história do Colégio de Pedro II, o único estabelecimento público dessa natureza existente na
cidade do Rio de Janeiro. Em tais condições o conhecimento das intenções que nortearam as inúmeras
36
Eni Orlandi (2001: 25), traz um breve resumo sobre o conteúdo do programa:
O programa se organiza em torno de 46 itens. Os 5 primeiros tratam
de “observações gerais sobre o que se compreende por gramática
geral, por gramática histórica ou comparativa e por gramática
descritiva ou expositiva. Objeto da gramática portuguesa e divisão de
seu estudo. Fonologia: os sons e as letras; classificação dos sons e das
letras; vogais; grupos vocálicos; consoantes; grupos consonânticos;
sílaba; grupos silábicos; vocabulários; notações lexicais. O item 6
compreende: “Morfologia: estrutura da palavra; raiz; tema;
terminação; afixos; do sentido das palavras deduzidos dos elementos
morfológicos que os constituem; desenvolvimento dos novos sentidos
das palavras”. Os itens 7 a 11 dizem respeito às classes de palavras. O
item 12 trata do “ Grupos de palavras por famílias e por associação de
idéias. Dos sinônimos, dos homônimos e dos parônimos”. Os itens de
17 a 20 têm por objeto a formação das palavras e os itens 21 a 28 a
etimologia portuguesa. Os itens 30 a 41 tratam da sintaxe. O item 41
trata da colocação dos pronomes pessoais ( este é um elemento
constante das discussões que incidem sobre as diferenças entre o
português do Brasil e o de Portugal). Os itens 42 a 46 tratam da
retórica e da estilística .
Inspirado nas ideias positivistas, Barreto desenvolveu um programa de ensino que
serviu de base não só para os exames preparatórios, mas também para a elaboração de
gramáticas. A partir desse momento, tornou-se obrigatório nos nossos compêndios
gramaticais a presença de autores como Adolfo Coelho, Diez, Littré, Whiteney dentre
outros.
Após esse breve percurso pela produção gramatical do século XIX, podemos perceber
uma mudança de orientação a partir da década de oitenta. No entanto, acreditamos que
devemos observar também um período de transição, pois, nesse período há autores que
contestam as mudanças, há os que aceitam novas propostas com os pés ainda fincados
nas antigas e os que abraçam as novas propostas para se alinharem às novidades do
momento. Por tudo isso, a dificuldade de organizar a nossa produção gramatical em
períodos mais ou menos delimitados torna-se uma tarefa cada vez mais complexa.
reformas sofridas pelo colégio criado por Vasconcelos equivale, de certo modo, ao conhecimento do
pensamento oficial acerca da natureza e dos objetivos do ensino secundário.
37
2.2 Proposta de periodização da produção gramatical do século XIX no Brasil
A história do pensamento linguístico normalmente é concebida como constituindo-se
de períodos de ruptura mais ou menos bem definidos. No entanto, nos últimos anos, a
crescente pesquisa sobre a produção gramatical brasileira multiplicou a complexidade
das questões a serem respondidas e, consequentemente, historiar a nossa produção
gramatical e determinar os momentos de mudança de paradigma ( KUHN, 2003 ) ou
de epistême ( FOUCAULT, 2002 ) tornou-se cada vez mais difícil. A produção
gramatical brasileira nas últimas décadas do século XIX reflete essa dificuldade, pois,
como acreditamos, a relação das concepções da gramática geral e filosófica com as
inovações do método histórico-comparativo são mais complexas do que o simples
desaparecimento de uma e o surgimento de outra.
No Brasil não foram muitos os autores que empreenderam a difícil tarefa de tentar
organizar a nossa produção gramatical em períodos mais ou menos definidos. A
maioria destas propostas se fundamenta em fatos políticos, econômicos, sociais ou
culturais que acompanham o desenvolvimento da gramática brasileira, por exemplo, a
influência da gramática lusitana, o sentimento nacionalista, a independência política do
país ou a criação de instituições educativas.
O primeiro autor que traçou uma visão retrospectiva sobre os estudos filológicos e
linguísticos no Brasil foi Antenor Nascentes (1975), a segunda proposta foi a Silvio
Elia (1975), a terceira a de Guimarães (1996) e a quarta, talvez a mais divulgada nos
últimos anos, é a proposta de Cavaliere (2001). Na sequencia, examinaremos com mais
atenção cada uma dessas propostas.
2.2.1 A proposta de Antenor Nascentes
Uma das primeiras tentativas de traçar um panorama retrospectivo da produção
gramatical brasileira aparece com Antenor Nascentes (1939)21
. Nessa proposta
Nascente reconhece quatro períodos distintos na nossa produção gramatical.
21
Antes de Antenor Nascentes outros autores se aventuraram a historiar a nossa produção gramatical. O
primeiro foi Maximino Maciel no seu Breve retrospectiva sobre a língua portuguesa que aparece em
apêndice a sua gramática descritiva. Lembramos ,também , de Laudelino Freire nas suas Breves notas
para a historia da literatura filológica nacional (1923). Nesse trabalho Freire traz pequenas notas
biográficas e uma relação das obras dos autores selecionados por ele em ordem cronológica. Alguns anos
depois, Leite de Vasconcelos, em mais ou menos duas páginas e meia do seu A filologia portuguesa que
38
1) Embrionário: Início da cultura brasileira e se estende até o ano de 1835, ano
da publicação do Compêndio da Gramática da Língua Nacional, de
Antônio Álvares Pereira Coruja. Conforme Nascentes, esse período é
marcado pela influência da gramática portuguesa.
2) Empírico: Inicia-se com a obra de Coruja , segundo Nascentes , a primeira
obra de valor escrita por um brasileiro e se estende ao ano de 1881, data da
publicação da Gramática Portuguesa de Júlio Ribeiro. Esse período
também assiste à inauguração dos estudos de dialetologia no Brasil, com a
publicação da Coleção de vocábulos e frases usados na província de S.
Pedro do Rio Grande do Sul, da autoria de Coruja.
3) Gramatical: inicia-se em 1881 e se estende até 1939. Período marcado pela
intensa produção gramatical e a fundação da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil.
4) A partir de 1939, inicia-se uma nova fase na nossa produção gramatical.
Nascentes, num tom otimista, faz a seguinte previsão para o futuro dos
nossos estudos filológicos:
Com a criação da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do
Brasil no corrente ano de 1939, considero inaugurado o quarto período
científico. A Filologia, que já havia deixado o empirismo, que já
passara pela fase das gramáticas normativas, vai agora assentar em
bases científicas. [...]
Vai cessar o autodidatismo. A mocidade terá a seu dispor mestres
experimentados, livros, revistas e outros elementos de estudo. Tudo,
por conseguinte, se poderá esperar dela. (NASCENTES, 2003: 204)
Em um artigo publicado na revista Confluência (2006), Estudos historiográficos de
Antenor Nascentes, Ricardo Cavaliere faz uma revisão crítica sobre a “produção
aparece no vol. IV dos seus Opúsculos, traz apenas os nomes de alguns autores representativos da nossa
produção gramatical.
39
historiográfica”22
do autor e tece alguns comentários sobre o seu seminal texto de
1939.
Não obstante, a coerência sistêmica , alguma crítica se pode conferir a
certos critérios norteadores desse quadro periódico. Primeiro, é
controverso definir em que época começou a cultura brasileira , razão
por que igualmente controverso o termo a quo do denominado
período embrionário. Se considerarmos a produção literária no Brasil
- e basta ficarmos por aqui – como critério norteador para o
estabelecimento do início da cultura nacional, não seria coerente
incluir em seus domínios a obra de Anchieta? E a produção nacional
dos setecentos não terá sido nacional ? [...] No entanto, a postura de
Nascentes com respeito a esse primeiro período é de flagrante
menosprezo , sob a constatação de que “obedece exclusivamente a
orientação portuguesa”
Ao cuidar, por exemplo, do Epítome da gramática da língua
portuguesa, de Antônio Moraes Silva , concebido em 1802 e
publicado em 1806, Nascentes opta por desconsidera-lo como obra
genuinamente brasileira: “ rigorosamente falando , se pode considerar
um livro português ,pois não se detém nas diferenças que já
apresentava o falar brasileiro” ( Nascentes 2003:188) . Dessa
observação abstrai-se um conceito de nacionalidade textual imiscuído
com o de compromisso nacionalista que traz severas consequências
historiográficas. (CAVALIERE, 2006: 69/70)23
Além de excluir a obra de Moraes Silva da produção gramatical do século XIX ,
causa uma certa estranheza o fato de Nascentes considerar a obra de Antônio Pereira
Coruja “ como a primeira obra de valor escrita por um brasileiro”. A rigor acreditamos
que a obra de Coruja não difere muito dos outros compêndios publicados no Brasil
sobre a orientação da gramática filosófica.
22
Sobre a reflexão historiográfica de Nascentes, Cavaliere destaca os seguintes textos : A Filologia
Portuguesa no Brasil ( 1939 ), Panorama atual dos estudos filológicos no Brasil (1939) Études
dialectologiques aux Brésil (1952 ), Diretrizes atuais da Filologia , A Filologia Românica no Brasil
(1961 ). Poderíamos destacar outros textos, tais como, Adolfo Coelho e a Etimologia ( 1949 ),
Figueiredo, esse mal julgado ( 1955 ), Leite de Vasconcelos e o Brasil ( 1958 ) e o memorialístico O
Colégio Pedro II e a Filologia Portuguesa ( 1939 ). Todos esses textos encontram-se reunidos na nova
edição de Os estudo filológicos (2003 ) organizado pela Academia Brasileira de letras. 23
Se a influência da gramática portuguesa fosse um critério para excluir obras e autores da nossa
produção gramatical, teríamos que considerar como portuguesas, a maioria das obras produzidas no
século XIX.
40
2.2.2 A Proposta de Silvio Elia
A segunda proposta de periodização coube a Silvio Elia (1976) que, seguindo
Antenor Nascentes, considera que a nossa produção gramatical começa apenas no
século XIX “o primeiro período conforme A. Nascentes observa exclusivamente a
orientação portuguesa e, por isso vamos aqui pô-lo de parte para melhor nos determos
nas fases que os estudos filológicos ganham progressivamente autonomia entre nós”.
Por esse motivo, Elia reconhece apenas dois grandes períodos na nossa produção
gramatical.
1) Vernaculista: Inicia-se em 1820 data aproximada da nossa independência
política e se estende até 1880 data aproximada da publicação da Gramática
portuguesa de Júlio Ribeiro.24
Segundo Elia, esse primeiro grande período é
marcado sobretudo pela contradição entre, por um lado, as preocupações
puristas e classicizantes de alguns autores e as reivindicações de uma nova
geração que ansiava por mudanças .Conforme Fávero & Molina (op.cit.: 48)
“(...) foi o momento bipolar de encontro da corrente classicizante – dos que
queriam a língua portuguesa colada no modelo lusitano – com a dos reformistas
– dos que aceitavam os vários falares que começavam a constituir a língua
portuguesa do Brasil”.
2) Científico: esse segundo período se inicia em 1881 e se estende até o ano de 1960.
O autor divise este período em duas fases:
A) De 1881 a 1900. Fase caracterizada como um momento de transição, “ em
que a renovação prevalece sobre o conservadorismo da época anterior”
(Fávero & Molina 2006:48). Cabe destacar que este também foi o
momento da implantação do programa de língua portuguesa do Colégio
Pedro II , cujo conteúdo, como sabemos, norteou a orientação de muitas
gramáticas.
24
Aqui percebemos claramente a heterogeneidade de critérios que muitas vezes norteiam a periodização
dos nossos estudos linguísticos.
41
B) De 1900 a 1960. Fase caracterizada pelo combate à orientação normativa.
Elia reconhece três diferentes gerações de filólogos e gramáticos nesse
segunda fase. Fávero & Molina (2006:48) sintetizam bem as principais
características dessas diferentes gerações nos seguintes termos :
A primeira [geração] ,que vai de 1900 a 1920, inicia-se com o
combate à base normativa de direção vernaculista, por Heráclito Graça
e Mario Barreto e tem como representantes: Pacheco Junior, Said Ali
e Otoniel Mota. A segunda geração , de 1920 a 1940, é formada pelos
estudiosos que aprenderam nas lições dos grandes nomes da filologia
portuguesa: Augusto Magne, Antenor Nascentes, Silva Ramos e Silvio
de Almeida. A última geração, de 1940 a 1960, contemporânea de
Silvio Elia, representa a transição entre o didatismo das gerações
anteriores e a formação universitária.
Vale destacar que Silvio Elia faz referência unicamente ao trabalho de Antenor
Nascentes passando em silencio outros autores que se dedicaram a traçar um olhar
retrospectivo sobre a nossa produção gramatical, como, Maximino Maciel no seu
Breve retrospecto sobre o ensino de língua portuguesa e Mattoso Câmara Junior no seu
breve artigo publicado na revista Vozes (1969 ) Os estudos de Português no Brasil
mais tarde reunido, com outros ensaios, no volume Dispersos organizado por Carlos
Eduardo Falcão Uchoa (1975) .
2.2.3 A proposta de Eduardo Guimarães
O terceiro modelo de periodização corresponde à proposta de Eduardo Guimarães
(1996) que, do mesmo modo que Nascentes, reconhece quatro períodos distintos na
nossa produção gramatical. Guimarães constrói a sua proposta de periodização baseado,
sobretudo, em dois critérios: o Político e o Institucional.
1) O primeiro período inicia-se com o “ descobrimento” e estende-se até
meados do século XIX, momento em que, segundo o autor, é marcado pelas
42
polêmicas acerca da língua falada no Brasil e caracteriza-se por não ter
ainda estudos sobre a língua portuguesa falada em nosso país.
2) O segundo período se inicia em 1881, ano da publicação da Grammatica
portugueza de Júlio Ribeiro, e se estende até o ano de 1939 ano da fundação
da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade Brasil. Esse segundo
momento também é marcado por uma intensa produção gramatical ,
destacando-se , por exemplo, os Estudos de Língua Portuguesa, de Mario
Barreto e Dificuldades de língua Portuguesa , de Said Ali.
3) O terceiro período tem seu início no final dos anos 1930 e se estende até
meados da década de 1960, ano em que a linguística se torna obrigatória no
Brasil. Nesse período aparecem algumas obras de referência para a nossa
produção gramatical, tais como, A formação histórica da Língua
Portuguesa , de Silveira Bueno e Princípios de linguística Geral, de
Mattoso Câmara Junior.
4) O quarto período se inicia em 1965 e se estende até os dias atuais. Esse
período conhece o desenvolvimento de diversas correntes de investigação
linguística: estrutural, funcional, gerativa , pragmática, as teorias da analise
do discurso.
2.2.4 A proposta de Ricardo Cavaliere
A quarta proposta de periodização é a de Ricardo Cavaliere ( 2001 ) . O próprio
Cavaliere explicita os critérios que o levaram a organizar a nossa produção gramatical:
Julgo possível uma tentativa de periodização heterogênea, com fulcro
em dois fatores : as fontes teóricas que dão feição às novas ordens no
desenvolvimento e difusão nos estudos linguísticos, e as obras
representativas desses momentos de ruptura. As fontes teóricas
conferem unicidade e identidade ao período, ao passo que as
publicações atuam como marcos históricos de sua vigência.
(CAVALIERE, 2001: 56)
43
Cavaliere, da mesma forma que Nascentes e Guimarães, reconhece quatro
momentos distintos da nossa produção gramatical :
1) Embrionário : Inicia-se com o descobrimento e se estende até 1802 ano em
que Moraes Silva termina de escrever a sua gramática , que somente será
publicada em 1806.
2) Racionalista: Inicia-se em 1802 e se estende até 1881, data da publicação da
Grammatica Portugueza de Júlio Ribeiro.
3) Científico, que se inicia em 1881 e se estende até 1941. Esse período se
divide em duas grandes fases:
A) Fase Fundadora: (1881–1920) tem como marco inicial a publicação da
gramática de Júlio Ribeiro.
B) Fase Legatária: (1920 –1941) fase em que, conforme Fávero& Molina, “os
pesquisadores preocupam-se exclusivamente com o fato em língua vernácula”.
4) Linguístico: Inicia-se em 1941 e se estende até os nossos dias. Período , segundo
o autor, marcado pelo estruturalismo e a especialização dos estudos linguísticos .
Apesar da importância para a visão de conjunto da nossa produção gramatical,
reconhecemos que a heterogeneidade25
dos critérios adotados para dividir a nossa
produção gramatical em períodos nos levam a uma visão distorcida do nosso processo
de gramatização. Além disso, a maioria desses autores não deixa claro os critérios que
os levaram a afirmar que determinada obra pertence a determinado período.
Acreditamos que se traçarmos uma periodização baseada nas obras e na metalinguagem
adotada por determinados autores, a introdução do método histórico-comparativo
25
Fávero & Molina( 2006 : 49-50) nos informam da proposta de periodização apresentada por
Leodegário Azevedo Filho em 2000 que divide a nossa produção gramatical em cinco períodos distintos
1) Período de estudo inicial das línguas indígenas em contato com o português. 2) período de imitação da
gramática portuguesa. 3) período purista e de diferenciação idiomática . 4) período vernaculista e de
evolucionismo linguístico. 5) período filológico e lingüístico.
44
deveria recuar a data de 1875, momento da publicação da obra de Augusto Freire da
Silva. É o que também observa Parreira (2011:24):
[...] com anterioridade a la reforma de la enseñanza y la
publicación de la gramática de Ribeiro, Freire ya apresentaba em su
obra influencias de las fuentes teóricas de las doctrinas historicistas.
Apesar de que el autor no menciona explicitamente la mayoria de las
fuentes históricas y de que conserva las bases tradicionales -
característica también bastante presente em la gramática de Ribeiro - ,
el tratado de freire demonstra que la orientação histórico-comparativa
ya habia sido introducida em la tradición brasileña.26
Sendo assim, ao contrario do que as propostas de periodização parecem indicar,
acreditamos que a produção gramatical brasileira não vive de rupturas bruscas de
orientação, muito pelo contrário, nossa produção gramatical experimenta um
desenvolvimento continuo caracterizado pela sobreposição de diferentes correntes
teóricas. É o que acontece com o que denominamos de gramáticas gerais e filosóficas
tardias do século XIX , gramáticas que, se por um lado, mantêm suas bases nas
orientações da gramática geral e filosófica, por outro, incorporam ou dialogam com as
inovações do método histórico-comparativo e o positivismo linguístico.
26
Tradução nossa: [...] com anterioridade à reforma de ensino e a publicação da gramática de Ribeiro,
Freire já apresentava em sua obra as influencias das fontes teóricas das doutrinas historicistas. Apesar do
autor não mencionar explicitamente a maioria de [suas] fontes históricas e de conservar as bases
tradicionais – característica também muito presente na obra de Ribeiro - , o tratado de Freire demonstra
que a orientação histórico-comparativa já havia sido introduzida na tradição brasileira.
45
3
Grammatica Portugueza Philosophica.
ERNESTO CARNEIRO RIBEIRO
Neste capítulo, deter-nos-emos na análise da Grammatica Portugueza Philosophica,
de Ernesto Carneiro Ribeiro. Para tanto, inicialmente, traçamos uma breve biografia do
autor e, posteriormente, na análise da obra, procuramos demonstrar que, embora a
gramática siga as orientações da gramatica geral e filosófica, em muitos momentos o
autor incorpora no seu processo de descrição as inovações das novas correntes de estudo
da linguagem.
3.1 O AUTOR
No dia 12 de setembro de 1839, na cidade de Itaparica, nasce o segundo filho do
casal José Carneiro Ribeiro e D. Claudeana Ramos. Deram-lhe o nome de Ernesto
Carneiro Ribeiro.27
Após concluir os primeiros estudos na cidade de Itaparica, embarca para Salvador
onde se matricula no Liceu Provençal, renomada escola da época. Danilo Carneiro
Ribeiro (1939), no seu relato memorialístico, relembra as dificuldades do seu avô
Ernesto Carneiro Ribeiro nessa época de estudante:
Esses anos de acurado estudo foram-lhe de extraordinário
aproveitamento moral e espiritual, mas, penosamente passado, em
relação a sua situação de estudante pobre. Não poupava e não media
sacrifícios para aumentar as parcas rendas. Tinha que manter-se sem o
auxílio de casa. ( RIBEIRO,1939:.32)
Carneiro Ribeiro ingressa no magistério no ano de 1857, no Colégio São João. O
“menino filósofo” assume a cadeira de filosofia em substituição ao famoso professor
Dr. Salustiano Pedrosa. O ano de 1858 havia passado e Carneiro Ribeiro termina os
27
Os dados biográficos se encontram em Danilo Ribeiro (1939).
46
preparatórios e ingressa na faculdade de medicina. Ainda no primeiro ano do curso é
convidado a lecionar inglês e francês no ginásio baiano28
.
Imagem 1. Ernesto Carneiro Ribeiro Com 78 anos
28
Neste período dois meninos sentavam-se nos bancos do renomado colégio: Ruy Barbosa e Castro
Alves.
47
Os anos de trabalho no ginásio baiano incutiram no jovem o gosto pelo magistério:
A proveitosa estada naquela importante casa de educação, em que
tão suaves se me passaram os primeiros tempos da mocidade, a que
posso chamar – meu aprendizado de mestre - devo, sinceramente, o
confesso, tudo, tudo, o que na difícil arte de dirigir os primeiros
tentames da mocidade na vida colegial. Daí, foi que me veio esse
gosto de viver da mocidade, para a mocidade e pela mocidade.
(RIBEIRO, 1939 : 44 )
Em 1860 com vinte anos de idade o jovem professor, presta o primeiro concurso para
a cadeira de francês do Liceu Provincial. Porém, desta vez é reprovado no concurso.
Sempre levando o magistério com o curso de medicina, obtém o grau de doutor em
medicina com a tese “ Relação da medicina com as ciências filosóficas”.
Em 1871, no Liceu Provençal abre-se uma vaga para a cadeira de gramática
filosófica. Deixando alguns concorrentes pelo caminho, a decisão no certame fica entre
Ernesto Carneiro Ribeiro e Guilherme Rebello. Os juízes sem poderem decidir entre um
ou outro concorrente acabam decidindo o certame na sorte29
.
Felizmente a sorte sorri a Carneiro Ribeiro e com a tese “ Origem e filiação da língua
portuguesa” assume a cadeira de gramática filosófica do Liceu.30
No ano de 1873, contando com apenas trinta e quatro anos, em parceria com o
cônego Emílio Lobo, funda o Colégio Bahia. Alguns anos depois, funda outro
estabelecimento de ensino que leva o seu próprio nome. Posteriormente, por conta do
novo código de ensino elaborado pelo ministro Epitácio Pessoa, o Colégio Carneiro
Ribeiro passa a chamar-se Ginásio Carneiro Ribeiro.
Em 1902, o Dr. J.J. Seabra confiou-lhe a revisão dos oito volumes do projeto do
Código Civil brasileiro, do jurista e magistrado Clóvis Belviláqua (1859/1944),
publicado pela Imprensa Nacional. Consta que, por razões políticas, Rui Barbosa, de
quem Seabra era antigo desafeto político, iniciou uma grande polêmica em torno da
29
Conforme relata Danilo Carneiro Ribeiro( id. 86-87): “ O presidente, para resolver o problema da
igualdade e de competência, consoante o voto do júri examinador, fez escrever pelo prof. Sebastião Pinto
duas cédulas semelhantes, lendo-se numa ‘ tive mérito e não tive sorte’ e na outra ‘ tive mérito e a sorte
me ajudou’ colocando-as numa urna. 30
Carneiro Ribeiro permanece na cadeira de gramática filosófica do Liceu por cerca de dezenove anos.
48
revisão do projeto. Envolvido a contra gosto na polêmica, o gramático refutou as
críticas de seu célebre ex-aluno. Carneiro Ribeiro, o “Tolstoi Bahiano”, faleceu em
Salvador, aos treze de novembro de 1920
3.2 A OBRA
Dedicada à memória de Guilherme Pereira Rebello, A Grammatica Philosophica da
Língua Portugueza31
é o segundo trabalho gramatical de Carneiro Ribeiro. O primeiro
trabalho é a sua tese de concurso Origem e Filiação da Língua Portuguesa, publicada
no ano de 1871. A data de publicação da Gramática, apesar de trazer no frontispício da
sua primeira edição a data de 1881, Deraldo I. de Souza, no prefácio à segunda edição
da obra, publicada em 1957 no volume Estudos Gramaticais e Filológicos, apresenta
uma outra data para a sua da obra32
.
A gramática Filosófica, nada obstante trazer no frontispício a data
de 1881.data esta indicada nas bibliografias de Ernesto Carneiro
Ribeiro, foi escrita em 1877, e começada a sua impressão no referido
ano, como se pode ver no Parecer do Conselho Superior de Instrução
Pública (...) . Ademais já tivemos em mãos um exemplar com
frontispício diferente, nos caracteres gráficos e na disposição, e bem
assim trazendo no fim da página a data de 1877. (SOUZA apud
RIBEIRO,1957: 385)
31
Doravante Gram. Phil. 32
Utilizamos para o nosso trabalho esta segunda edição da obra, revisada e prefaciada por Deraldo I. de
Souza.
49
Imagem 2. Capa 2ª edição da Grammatica Portugueza Philosophica.
50
3.2.1 Visão Geral da Obra
Logo em suas primeiras páginas, na introdução da obra, Carneiro Ribeiro destaca os
nomes de alguns filósofos e gramáticos que se dedicaram ao desenvolvimento dos
estudos da linguagem. A longa lista de autores reflete não só o conhecimento do autor
sobre a longa tradição dos estudos gramaticais, mas indica também que o autor estava
atento ao que vinha sendo discutido na época.
Quadro1. Gramáticos e Filósofos citados por Ernesto Carneiro Ribeiro.
Gramáticos e filósofos citados por Ernesto Carneiro Ribeiro33
Antiguidade Clássica
Platão
Aristóteles
Ennio
Appolonio de Alexandria
Dionísio da Tracia
Séculos XVI e XVII
Fernão de Oliveira
João de Barros
Pedro Ramos
Erasmo
Júlio Cesar Scalígero
Vossio
Vaugelas
Arnauld & Lancelot
Dangeau
33
Em muitos momentos Carneiro Ribeiro utiliza a opinião desses autores como um argumento de
autoridade a serviço da sua argumentação.
51
Século XVIII
Duclos
Dumarsais
Condillac
Court de Gébelin
Harris
Sylvestre de Sacy
Destuut de Tracy
Século XIX
Adelung
Vater
Jones
Adolpho Coelho
Colebroucke
Leo Meyer
Bopp
Diez
Max Muller
Schegel
Humbouldt
Potti
Grim
O corpus literário da Gram. Phil. gira em torno de setenta e dois autores.34
Na sua
grande maioria autores portugueses dos séculos XVI e XVII, como, Luiz de Camões,
João de Barros, Padre Manuel Bernardes, Pe. Antônio Vieira. Exceção a esta regra é o
nome de Alexandre Herculano, também citado muitas vezes na obra como exemplo de
correção e boa linguagem. Como podemos perceber pelo levantamento, embora o
século dezenove fosse um momento de intenso debate sobre a língua nacional, Carneiro
Ribeiro parece não estar preocupado em destacar nenhum autor brasileiro.
34
Embora a obra apresente inúmeras citações de autores latinos, por exemplo, Cicero, Ovídio, Virgílio e
autores franceses , tais como, Molière, La Fontaine, incluímos neste número apenas autores em língua
portuguesa.
52
O gráfico a seguir procura ilustrar a distribuição dos autores citados nas duas partes
analisadas da obra, isto é , a Lexicologia e a Sintaxe.
Gráfico 1. Distribuição dos autores citados por Carneiro Ribeiro.
Conforme demonstra o gráfico 2, os autores mais citados na obra são,
respectivamente , Luiz Vaz de Camões, Pe. Antônio Vieira e Alexandre Herculano.
Gráfico 2. Autores mais citados na Grammatica Portugueza Philosophica.
Somados Camões e Vieira atingem um pouco mais de trinta por cento do total das
citações presentes na obra. As 567 citações presentes nas duas partes analisadas na obra
0
5
10
15
20
25
XIV XVXVI
XVIIXVIII
XIX
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
16%
15%
7% 62%
Camões
Vieira
Herculano
outros
53
são distribuídas da seguinte maneira; 91 são atribuídas a Camões, 87 ao Pe. Antônio
Vieira e Alexandre Herculano com 38 citações.
3.2.2 Divisão da Obra e Definição de gramática
Carneiro Ribeiro divide a sua gramática em quatro partes, adotando, portanto, a
tradicional divisão.
O autor define as quatro partes da gramática da seguinte maneira : 1) Fonologia35
é a
parte da gramática que estuda os sons da língua e todas as suas modificações. 2)
Ortografia é a parte da gramática que estuda a representação dos sons por meio de sinais
gráficos. 3) Lexicologia é a parte da gramática que tem por objetivo as palavras
consideradas em relação ao seu valor, a sua etimologia, classificação, inflexões ou
desinências gramaticais. 4) Fraseologia ou Sintaxe é a parte da gramática que trata da
análise da proposição entre si e da sua estrutura e construção.
Gráfico 3. Divisão interna da gramática
35
Na obra a fonologia corresponde à prosódia e à ortoépia .
10%
13%
58%
19% Fonologia
Ortografia
Lexicologia
Fraseologia
54
Conforme observa Cavaliere (2000:59), a reflexão gramatical de Carneiro Ribeiro
revela uma tensão entre a tradição da gramática geral e filosófica e as inovações do
método histórico-comparativo e do naturalismo linguístico:
Lida da sofreguidão, sem o necessário acompanhamento das
mudanças axiológicas nos conceitos linguísticos do autor, a obra de
Carneiro Ribeiro pode parecer mesmo paradoxal, tamanho é o embate
de ideias em colisão frontal. A primeira fase da produção acadêmica
de Carneiro Ribeiro é francamente apoiada nos cânones da gramática
filosófica, não obstante aqui e ali o mestre baiano refutasse conceitos
que a teoria metafísica já havia consagrado.
A primeira obra gramatical do mestre baiano, isto é, a sua tese para o concurso
Origem e Filiação da Língua Portuguesa, publicada em 1871, revela o pensamento
oscilante do autor.
A leitura da Origem revela um Ernesto Carneiro Ribeiro flutuante
entre os fundamentos da gramática metafísica e os novos rumos da
gramática científica. De início, o próprio tema da tese e o apoio
metodológico utilizado em seu desenvolvimento – extraído da
classificação das língua indo-européias de E. Renan – revelam grande
interesse pelos novos conceitos que aqui afluíam dos grandes centros,
como Leipzig e Paris. Carneiro Ribeiro, entrementes, sustenta com
competência um confronto ideológico que dá à tese uma conotação
híbrida, mesclada, sem que ali se possa, a rigor, determinar a diretriz
efetiva do pensamento linguístico do autor. (id. ibid.)
A oscilação no pensamento de Carneiro Ribeiro reflete, por um lado o período de
transição pelo qual passava a reflexão gramatical no Brasil e, por outro, a preocupação
sempre presente do intelectual brasileiro de se inteirar das inovações que iam surgindo
no período.
A definição de gramática apresentada por Carneiro Ribeiro parece revelar uma certa
influência das inovações que chegavam da França e Alemanha.
GRAMÁTICA é a ciência de enunciar nossos pensamentos
segundos as regras estabelecidas pela razão e pelo bom uso; mais
geralmente, porém, considerada, pode-se definir a gramática como a
ciência da linguagem. (RIBEIRO, 1957: 389)
55
Na tradição da gramática geral e filosófica, a gramática é definida como arte,
conforme a definição oriunda do modelo greco-latino que percorreu toda a idade média
e, no Brasil, perdurou durante grande parte do século XIX.
Assim, podemos observar algumas definições de gramática desse período:
A gramática é a arte que ensina a declarar bem os nossos pensamentos, por meio de
palavras. (Moraes Silva, 1806)
Gramática portuguesa é a arte que ensina a falar, ler e escrever corretamente a
língua portuguesa. (Frei Caneca, 1817)
Ao definir a gramática como ciência, Carneiro Ribeiro parece se afastar da tradição
da gramática geral e filosófica.
O próprio Cavaliere encontra uma explicação para esta definição avant la lettre
presente na gramática:
Uma explicação plausível para este inusitado “ecumenismo
linguístico”, em que se fundem conceitos metafísicos e científicos,
talvez esteja na utilização mais frouxa de alguns termos-chave da nova
ciência linguística, como o próprio termo ciência além de lei e estudo
analítico. Ribeiro certamente não impunha ainda ao termo lei (Gesetz
) o sentido doutrinário da escola comparativa alemã. ( CAVALIERE,
op. cit.: 61)
A gramática pode ser geral, particular36
ou comparada.: “A [ gramática] geral tem por
assunto os princípios invariáveis, imutáveis e universais da língua”(RIBRIRO, op.cit.
391). A particular “ é a que faz aplicação destes princípios aos usos, às instituições
arbitrárias de uma língua. Esta é a que mais comumente se define a arte de ler , escrever
e falar corretamente uma língua” (idi,ibid). A gramática particular se desdobra em uma
gramática elementar e uma gramática filosófica. “A [gramática] é elementar quando
limita-se ao estudo das regras sem elevar-se aos princípios gerais de que se deduzem as
tais regras, é filosófica quando estuda as regras gramaticais, prendendo-as e ligando-as
aos princípios gerais, que as explicam e as justificam.” “ A gramática elementar é arte, a
36
Conforme Fávero (1996), a distinção entre uma gramática geral e uma gramática particular constituí o
aspecto mais original da teoria gramatical dos enciclopedistas.
56
filosófica é uma ciência-arte”( Id:.392).37
E, por fim, “ comparada é a que estuda dois
ou mais idiomas, investigando suas analogias e semelhanças, comparando seus fatos,
suas transformações.” (id,ibid).
3.3 LEXICOLOGIA
Carneiro Ribeiro define a Lexicologia como a “parte da gramática que tem por objeto
a classificação das palavras conforme as suas funções” (p. 467). O gramático reconhece
oito funções que as palavras podem exercer nas proposições:
Quadro 2. Classes de palavras elencadas na obra.
Classes de Palavras
Interjeição Uma espécie de grito, de que usamos, para
exprimir as paixões, os sentimentos
súbitos de nossa alma.
Substantivo Palavras que exprimem determinadamente
os seres pela ideia de sua natureza.
Pronomes Palavras que indicam seres determinados
designando-os pela ideia de sua pessoa.
Adjetivo Palavras que exprimem seres
indeterminados, designando-os por uma
ideia precisa, mas acidental à natureza
comum determinantemente indicada pelos
apelativos.
Verbos Palavras que exprimem seres
indeterminados, designando-os pela ideia
precisa da existência intelectual com
relação a um atributo.
Preposição Parte da oração que serve para exprimir a
relação entre duas palavras.
Conjunção Parte elementar do discurso que serve para
mostrar as relações que as proposições têm
entre si.
Advérbio Palavra que modifica o adjetivo, o verbo e
o próprio advérbio.
37
Nesta definição podemos perceber o desejo do gramático de conciliar a tradição da gramática geral e
filosófica com as inovações do método histórico comparativo.
57
O mestre baiano , baseando-se, nas categorias aristotélicas de substância, qualidade
e relação agrupa as oito partes da proposição em três categorias distintas: palavras
denominativas, palavras modificativas, palavras conjuntivas.38
Quadro 3. Categorias de palavras conforme Carneiro Ribeiro.
Grammatica Portugueza Philosophica ( 1881 )
Palavras Denominativas
Substantivo
Pronome
Palavras Modificativas
Adjetivo
Advérbio
Verbo
Palavras Conjuntivas Preposição
Conjunção
Conforme lemos em Fávero & Molina (op. cit.: 103) encontramos quase a mesma
proposta de classificação na Gramática Portuguesa de Augusto Freire da Silva (1877 )
e na Gramática Descritiva de Maximino Maciel ( 1894 ).
Quadro 4. Categorias de palavras conforme Augusto Freire da Silva.
Gramática Portuguesa ( 1877 )
Palavras Nominativas Substantivo
Pronome
Palavras Modificativas Adjetivo
Advérbio
Palavras Conectivas Verbo
Preposição
Conjunção
38
Cabe destacar que a Interjeição não aparece em nenhum das três categorias de palavras pelo fato de não
ser considerada pelo autor como palavra discursiva.
58
Quadro 5. Categorias de palavras conforme Maximino Maciel.
Gramática Descritiva ( 1894 )
Palavras Nominativas Substantivo
Pronome
Verbo
Palavras Modificativas Adjetivo
Advérbio
Palavras Conectivas Preposição
Conjunção
Na obra a parte dedicada ao estudo da Lexicologia apresenta cento e setenta e duas
páginas. A partição da matéria tratada apresenta a seguinte proporção:
Gráfico 4. Proporção da matéria tratada na Lexicologia.
3% 16%
15%
18%
30%
7% 5%
6% Interjeição
Substantivo
Pronome
Adjetivo
Verbo
preposição
Conjunção
Advérbio
59
INTERJEIÇÃO
A gramática dedica apenas cinco páginas ao estudo da interjeição. Como aparece na
maioria dos compêndios gramaticais do período, a interjeição é definida como um mero
“grito” não fazendo , portanto, das palavras discursivas.39
A interjeição é definida como
“ uma parte de grito de que usamos para exprimir as paixões, os sentimentos súbitos de
nossa alma” (RIBEIRO, op.cit. : 471).
As interjeições são divididas em próprias ou naturais. São naturais “todas as
[palavras] monossílabas, não são em geral mais que vozes, a, e, i ,o, u pronunciadas
com uma entonação particular, e com um certo grau de aspiração, que depende do
sentimento da comoção imprevista da alma”. (id:472) Já as interjeições convencionais
são definidas pelo gramático como “desvios” ou “corrupções” do uso de certos
elementos gramaticais.
SUBSTANTIVO
Os substantivos, do mesmo modo que os pronomes, pertencem à classe das palavras
denominativas.Como na maioria das gramáticas do período, a classificação dos
substantivos apresenta critérios morfológicos e semânticos. Nesse sentido, seguindo a
gramática de Port-Royal, os substantivos são classificados quanto a “carga extensional”
do seu conceito. Conforme Carneiro Ribeiro, “ a extensão consiste no número de
indivíduos a que é atualmente aplicável a ideia da natureza comum exprimida pelo
nome” (id:476).
No que concerne à natureza e à extensão do seu significado, os substantivos são
divididos em próprios e apelativos.40
Os substantivos próprios “ designam os seres pela
ideia singular de uma natureza individual. Os substantivos apelativos designam os seres
39
O autor incluí entre as palavras afetivas, além das interjeições, as onomatopeias e os mimologismos.
Os mimologismos consistem na imitação da voz ou do modo de falar de alguém. 40
Os substantivos apelativos são classificados em coletivos e compostos.
60
pela ideia geral de uma natureza comum” (RIBEIRO, op cit.:476). Quanto a sua forma
os substantivos são classificados em primitivos e derivados. Os primitivos “ são os que
não se derivam de outro da mesma língua” (id:480). Os derivados são os substantivos
que são formados a partir dos substantivos próprios.
O gramático, partindo de um critério semântico, inclui diversas palavras que hoje
classificaríamos como pronomes na classe dos substantivos :
Afora estes diferentes substantivos apelativos há uma classe
particular de nomes, que coloca-os erradamente a maioria dos
gramáticos já na classe dos pronomes, já na dos adjetivos, e que outra
coisa não são que nomes gerais de pessoas ou de coisas, nomes
indefinitos ou sintéticos. Tais são os nomes isto, isso, aquilo, nada
tudo, quem, alguém, ninguém, outrem, fulano sicrano e em certas
frases o vocábulo o (...) (RIBEIRO, op.cit.: 479)
São dois os acidentes dos substantivos: o gênero e o número. O autor funda a sua
distinção do gênero dos substantivos partindo da diferença sexual dos seres.
O gênero dos [substantivo] são fundados na distinção natural dos
seres animados relativamente ao sexo. E como segundo o sexo todos
os animais naturalmente se dividem em animais do sexo masculino e
animais do sexo feminino, nas línguas só deviam ter gênero os nomes
que indicassem animais, correspondendo ao gênero masculino os
animais machos e o feminino aos animais fêmeas; todos os mais
nomes de seres que não entrassem na classe dos animais não deviam
ter gênero, isto é, deviam ser do gênero neutro. (id:.484 )
Por fim, vale destacar que no estudo dos substantivos, Carneiro Ribeiro, retomando o
critério de extensão do significado dos substantivos, faz uso do mesmo substantivo no
masculino e feminino para demonstrar o caráter mais geral dos substantivos femininos.
O feminino é sempre mais geral, e o masculino mais particular. Os
nomes a que convém o primeiro gênero encerram em sua significação
alguma coisa mais vaga, mais indeterminada que seus sinônimos do
gênero masculino, este tem um sentido mais preciso (... ) (id:493)
Como exemplo do caráter mais geral dos substantivos femininos, o gramático elenca
os seguintes exemplos: “O vocábulo fruta,41
por exemplo, é aplicável a toda a produção
vegetal; o fruto, porém, é uma espécie de fruta; o madeiro é uma espécie de madeira; o
41
Essa concepção do Gramático de que a apalavra feminina tem maior extensão do que a palavra
feminina parece ser o resquício da concepção do neutro plural latino.
61
bago, uma espécie de baga; o saco, uma espécie de saca; o jarro uma espécie de
jarra”( id,ibid).
Cabe sublinhar que nos dias atuais as gramáticas no que concerne ao gênero dos
substantivos reconhecem o caráter mais geral dos substantivos masculinos e mais
particular dos substantivos femininos. Esse fato podemos observar no seguinte trecho
retirado da Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara:
É pacífico [entre os estudiosos da linguagem] a informação de
que a oposição masculino – feminino faz alusão a outros
aspectos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve
para distinguir os objetos substantivos por certas qualidades
semânticas, pelo quais o masculino é uma forma mais geral, não
marcada semanticamente, e o feminino expressa uma
especificação qualquer: Barco/Barca (= barco grande),
Jarro/Jarra (= Um tipo especial de Jarro). (BECHARA, op.
cit.2009)
PRONOMES
A gramática dedica vinte quatro páginas ao estudo dos pronomes. Contrariando o que
pregavam muitos gramáticos, Carneiro Ribeiro não considera os pronomes como meros
substitutos dos substantivos.
(...) Considera-los na classe dos adjetivos, como Jeronimo Soares e
outros gramáticos é de todo desconhecer a natureza deste elemento.
A maioria dos gramáticos enganados por ventura pela etimologia
do vocábulo pronome ( pro e nome ), dizem ser este uma palavra que
se põe em lugar do nome. Fácil é demonstrar o inexato dessa
definição. Com efeito, se assim fosse seriam pronomes todas as
palavras empregadas metaforicamente , e grande número de adjetivos.
(id. :501)
No processo de descrição dos pronomes, o mestre baiano, parece seguir de perto as
lições dos enciclopedistas, Beauzée e, sobretudo, Du Marsais quando defende o caráter
discursivo dos pronomes:
Os verdadeiros pronomes, diz Du Marsais, são as denominações
precisas das pessoas gramaticais , isto é, de pessoas consideradas
62
somente segundo uma certa ordem, que tem no discurso. Um fala; é
dele que vem esse discurso: é a primeira pessoa; aquele ou aqueles a
quem se dirige o discurso, são a segunda pessoa; enfim entende-se por
terceira pessoa tudo o que faz a matéria do discurso. (Id.:502 )
Quanto à classificação dos pronomes, o gramático se afasta da tradicional
classificação: “A distinção dos pronomes em possessivos, demonstrativos, relativos e
indefinitos é completamente falsa, e provem de não terem os gramáticos pela maior
parte penetrado na natureza desse elemento gramatical, sobre o qual deram as maiores
noções inexatas(...) (id. :502)
São verdadeiros pronomes somente os pessoais42
“ Vê-se , portanto, que só merecem
o nome de pronome o que os gramáticos denominam pessoais, a que chamaremos
simplesmente pronomes” (id. ibid.)
O autor classifica os pronomes da seguinte maneira:
Quadro 6. Classificação dos pronomes.
Singular Plural
1ª pessoa Eu, me, mim, migo Nós, nos , nosco
Singular Plural
2ª pessoa Tu, te, ti, tigo Vós, vos, vosco
Singular Plural
3ª pessoa Ele, ela, lhe, se ,si, sigo ,o,
a
Eles, elas, lhes , se, si, sigo,
os, as
O processo de descrição dos pronomes termina com uma longa discussão sobre o
papel sintático do pronome se. Ao analisar as diversas ocorrências deste pronome, o
autor critica a opinião de alguns gramáticos que defendem o emprego do pronome se
como sujeito, ou seja, como um equivalente do pronome on francês.
42
As outras palavras que hoje classificaríamos como pronomes, o gramático as inclui, na maioria das
vezes, na classe dos adjetivos.
63
ADJETIVO
Na gramática são dedicadas trinta páginas ao estudo dos adjetivos. Do mesmo modo
que os verbos e advérbios, os adjetivos pertencem à classe das palavras modificativas.
Os adjetivos são palavras que “exprimem seres indeterminados, designando-os por uma
ideia precisa, mas acidental à natureza comum determinantemente indicada pelos
apelativos” ( RIBEIRO op.cit.523). A gramática apresenta a tradicional divisão dos
adjetivos em qualificativos e determinativos. Os qualificativos “modificam a
compreensão dos apelativos, sem determinar-lhes a extensão”. Os determinativos ou
artigos “modificam a extensão dos apelativos, sem nada ajuntar à compreensão destes”
(id: 524) . A gramática apresenta a seguinte classificação para os adjetivo:
Quadro 7. Classificação dos adjetivos qualificativos
Positivos
Bom
Adjetivos
qualificativos
Comparativos
Melhor
Superlativos
Ótimo
Positivo
Bom
64
Quadro 8. Classificação dos adjetivos determinativos.
O autor esvazia a noção de classe gramatical dos adjetivos, uma vez que ele
compartilha as noções de gênero e número dos substantivos.
Os adjetivos por si mesmos não têm gênero, nem número; porque
são abstrações, a que não podemos propriamente dar sexo, nem
pluralidade; mas recebem essas propriedades dos substantivos a que se
ajuntam para melhor estabelecer e firmar as relações que com estes
tem. ( RIBEIRO,op.cit.:525)
Como podemos perceber, Carneiro Ribeiro constrói a classificação dos adjetivos a
partir de critérios semânticos. Deste modo, muitas palavras que hoje consideraríamos
pertencentes à classe dos pronomes ou numerais no século XIX oscilavam entre uma ou
outra classe gramatical.
Adjetivos
Determinativos
Indicativos
o,a,os,as
Conotativos
Universais
Partitivos
Negativos
Nenhum,
Nenhuma
Coletivos
toda, todo
Distributivos
cada
Indefinitos
algum,
qualquer, etc
Definitos
Positivos
Numerais
um, trigésimo,
triplo etc
Possessivos
meu, seu, etc
Demonstrativos
este, esse, aquele
65
VERBO
O verbo é a classe gramatical que recebe a maior atenção do autor. Os verbos são
definidos como “ palavras que exprimem seres indeterminados, designando-os pela
ideia precisa da existência intelectual com relação a um atributo” (RIBEIRO,
op;cit..:554). Na sequência os verbos são classificados em abstratos43
e concretos. Ao
primeiro “dão igualmente o nome de substantivo, metafísico, copulativo; aos concretos
chamam também adjetivos”. (id. :554)
Quanto à conjugação, a obra segue a tradicional divisão em quatro conjugações. A
quarta conjugação é formada pelo verbo pôr e seus compostos. Em relação aos
complementos verbais, Carneiro Ribeiro abandona a tradicional classificação dos verbos
em ativos, passivos e neutros para adotar a classificação dos “gramáticos modernos44
”.
Os gramáticos modernos, considerando os verbos mais pelo modo
como o atributo é neles enunciado, pelo papel que representam na
frase, pelo modo por que se ajuntam aos outros elementos da oração,
do que pela natureza do atributo neles encerrado, os dividem em
absolutos ou intransitivos e relativos ou transitivos. Esta divisão,
menos filosófica, é verdade, que a primeira é a que seguiremos aqui
(...) (RIBEIRO,op.cit..:559)
São intransitivos os verbos “que em si mesmos têm sentido determinado e
completo”, transitivos “os que em si não têm um sentido completo, sendo mister um
complemento ou regime para determinar-lhes e completar-lhes o sentido” (id.:559) Os
verbos transitivos dependendo do complemento são classificados em transitivos diretos
e transitivos indiretos.
Em relação à forma, os verbos são classificados em regulares, irregulares, defectivos
e pronominados. Regulares são os verbos que estão de acordo com a sua conjugação,
irregulares os que “se afastam do verbo de tipo da sua conjugação”, defectivos são os a
que “faltam algum tempo, modo, número ou pessoa e, por fim, os pronominados são os
que “ em toda a conjugação se acompanham de um pronome regime direto ou indireto,
real ou aparente” (id. :564).
O quadro a seguir ilustra a descrição dos modos e tempos verbais presentes na
gramática.
43
O verbo ser é o único verbo abstrato. 44
Os modernos aos quais Carneiro Ribeiro faz referência são gramáticos como Bopp, Diez e Adolpho
coelho.
66
Quadro 9. Modos e Tempos verbais .
Modo Indicativo
Presente ( Amo) Indica que uma coisa se faz no momento
da palavra: este momento não se pode
dividir, por que a atualidade porque a
atualidade não pode ser mais ou menos
presente.
Passado imperfeito ou simultâneo
(Amava)
Indica uma ação passada mas presente
relativamente à outra em um tempo
igualmente passado; as duas ações ,pois,
são simultâneas
Passado definito (Amei) A que chamam geralmente pretérito
perfeito indica uma ação feita em tempo
determinado circunscrita inteiramente no
passado.
Passado indefinito (Tenho amado) Indica uma ação feita em um tempo
indeterminado.
Passado mais que perfeito (Amara) Exprime uma ação não só passada em si,
senão passada relativamente à outra ação
igualmente passada.
Futuro imperfeito (Amarei) Indica que a existência ou a ação será ou
far-se-á em um tempo posterior ao ato da
palavra.
Modo condicional
Presente (Amaria) Indica que uma coisa se faria no tempo
mediante certa condição.
Passado (Teria amado) Indica que uma ação se teria sido feita no
passado se se tivesse cumprido a condição
de que dependia.
Modo subjuntivo
Presente (Ame) Designa uma ação que coincide com o
presente.
Imperfeito (Amasse) Denota uma ação passada em respeito ao
ato da palavra, mas considerada presente
relativamente a outra ação igualmente
passada.
Passado (Tenha amado) Indica um passado sem nenhuma outra
67
ideia acessória, além da dependência e
subordinação que caracteriza todas as
formas do subjuntivo.
Mais que perfeito (Tivesse amado) Indica uma ação passada anterior a outra
igualmente passada.
Futuro (Amar) Exprime já um futuro anterior ou posterior
a outro, já um futuro que coincide com
outro.
Futuro passado (Tiver amado) Indica uma ação futura, mas sempre
acabada e anterior a outra igualmente
futura.
Modo infinitivo
Presente (Amar) Denota presente em relação ao tempo do
verbo.
Passado (Ter amado) Denota passado em relação ao tempo do
verbo.
Modo participial
Presente ou gerúndio (Amando) Não exprime tempo algum considerado
só, mas posto em relação no contexto da
frase com outro verbo denota uma
coincidência de tempo já com um
presente, já com um passado, já com um
futuro.
Passado (Amado) Indica sempre um passado.
PREPOSIÇÃO
A gramática apresenta onze páginas dedicadas ao estudo da preposição. A preposição
é definida como “uma parte da oração que serve para exprimir a relação entre duas
palavras”. (RIBEIRO, op. cit.:603)
Conforme Carneiro Ribeiro, resulta da natureza da preposição que:
68
1ª A preposição não pode existir sem os dois termos entre os quais estabelece a
relação de que é sinal.
2ª Que a preposição, indicando apenas uma relação simples, não se deve decompor,
porque, se assim não fosse , ajuntaria à relação exprimida por um de seus elementos a
ideia indicada pelo outro, e não significaria já uma ideia simplíssima, uma pura relação.
Do mesmo modo, indicando a declinação e a variabilidade nos vocábulos diversas
ideias acessórias, que se ajuntam à ideia matriz ou fundamental que estas exprimem,
não pode a preposição, sinal de uma pura e simples relação, declinar-se nem variar.
3ª que a preposição não pode ser antecedente nem consequente de outra; porque
exprime só e puramente uma relação entre dois termos, devendo por isso excluir-se do
catálogo das preposições toda palavra que for complemento de outra, ou que tiver um
complemento precedido de outra preposição.
As preposição são agrupadas em duas classes: preposições de estado, existência ou
repouso e preposições de ação ou movimento45
.
Quadro 10. Classificação das preposições.
Preposições que indicam estado, existência ou repouso.
Ante, Após, Contra, Em, Entre, Sob, Sobre
Preposições que indicam ação e movimento
A, Até, De, Desde, Para, Per, Por.
CONJUNÇÕES
A gramática dedica nove páginas ao estudo das conjunções. A conjunção é a “ parte
verdadeiramente conectiva e sistemática do discurso: por ela as proposições ligam-se às
proposições constituindo as frases, estas encadeiam-se uma com as outras formando o
discurso” (RIBEIRO, op. cit.:613)
45
Nesta classificação o autor parece seguir de perto a doutrina de Soares Barbosa ( Cf.Fávero 1996: 37)
69
As conjunções são divididas em simples e compostas. Simples são as que “não se
podem decompor, as compostas são as que se compõem de dois ou mais elementos,
formando uma locução” ( RIBEIRO, op. cit. 612)
Conforme o significado da relação estabelecida, as conjunções são classificadas em:
conjunções de simples ligação ou conexivas e conjunção de subordinação ou
subjuntivas.
As conjunções conexivas são as que deixam subsistir uma
igualdade perfeita entre as proposições que elas ligam; as de
subordinação estabelecem uma subordinação de umas proposições
relativamente às outras; as primeiras, pois, coordenam; as outras
subordinam. ( id. :614)
Quadro 11. Classificação das conjunções.
Conjunções conexivas
Copulativas: estabelecem entre
proposições semelhantes uma relação
de unidade, fundada em sua
semelhança mesma.
Ex. e, nem e as locuções conjuntivas
também, outro sim , bem assim etc.
Disjuntivas: designam entre
proposições compatíveis uma ligação de
comparação ou escolha, fundada na
incompatibilidade mesma.
Ex. ou. o autor apresenta como variante
desta conjunção o uso repetido de alguns
advérbio como, já...já, quando...quando,
ora...ora etc.
Adversativas: as que ligam proposições
incompatíveis em algum ponto,
mostrando entre elas uma ideia de
oposição definida e positiva.
Ex. mas, porém e as locuções conjuntivas
todavia, contudo, ainda assim, entretanto,
no entanto, ao contrário etc.
Explicativas: as que, designando uma
relação de identidade, ligam entre si
duas orações das quais é uma
explicação das outras.
Ex. as locuções conjuntivas são ; isto é, a
saber, sobretudo, principalmente etc.
Transitivas: Indicam entre duas
proposições uma ligação de afinidade
fundada no concorrerem ambas ao
mesmo fim.
Ex. Pois ( posposto ), o advérbio ora
(quando não repetido) e as fórmulas
transitivas mais, de mais, na verdade,
além disso, etc.
Ilativas: as que designam entre as
proposições uma ligação de conclusão
ou consequente para princípios ou
premissas.
Ex. o advérbio logo, e as fórmulas
conjuntivas portanto, pelo que, por isso,
por conseguinte, em fim , por fim,
finalmente, etc.
70
Conjunções subordinativas
Circunstanciais: ligam duas
proposições das quais uma indica uma
circunstancia da outra.
Ex: como e as fórmulas conjuntivas logo
que, tanto que, em quanto, como quer que,
até que etc.
Causativas: ligam entre si duas
proposições das quais a primeira se
acha contida na segunda, como o efeito
na causa.
Ex. como e as fórmulas conjuntivas
porque, visto que, porquanto, pois, pois
que, já que etc.
Condicionais: ligam duas proposições
pela relação de condição em que está
uma relativamente a outra.
Ex: se e senão
Subjuntivas: liga duas proposições, das
quais uma se subordina à outra.
Ex: que
ADVÉRBIO
O advérbio é a parte mais criticada da gramática, conforme lemos no parecer do
Conselho Superior de Instrução Publica:
Pensa porém a comissão que o autor deva corrigir e reconsiderar
o seguinte ponto: a definição do advérbio e a teoria que desenvolve o
autor para justifica-la não são satisfatórias, porque não combatem com
vantagem a doutrina de Destutt de Tracy. ( RIBEIRO, op. cit..:387)
Em resposta ao parecer negativo do Conselho Superior de Instrução Publica,
Carneiro Ribeiro justifica deste modo a sua doutrina:
Este modo de considerar o advérbio, e a doutrina que aqui
expomos parece não agradaram aos dois distintos membros do
conselho superior de instrução publica, encarregados de apresentar seu
parecer relativo à presente gramática; entretanto a opinião que sustentamos é a substância do que sobre o assunto tem escrito
gramáticos modernos de grande nomeada. (id. :622)
No tratamento do advérbio, o gramático se afasta da doutrina da gramática filosófica
e se aproxima das definições da gramática “científica”. O advérbio é definido como a
“palavra que modifica o adjetivo, o verbo e o mesmo advérbio” (id. :621)
71
Na tradição da gramática filosófica, o advérbio era considerado como a palavra que
equivale a um nome acompanhado de uma preposição. Tal definição é criticada
duramente por Carneiro Ribeiro:
Não é logo o advérbio a redução em uma só palavra de uma
preposição com seu consequente, bem que em apoio de tal doutrina
militam as autoridades de gramáticos eminentes, como Lancelot,
Duclos, Condillac, Beauzée, de Tracy e Jeronimo Soares. (RIBEIRO,
op.cit..622)
Quadro 12 Classificação dos advérbios.
Quantidade Modo Lugar Tempo
Mais, muito, assaz,
pouco, tão, quão,
menos, apenas etc.
Bem,
honestamente,
prudentemente, não
sim, não, talvez etc.
Onde, aqui, algures,
aí, cá, lá, além,
acolá, dentro, etc.
Já, ainda, cedo,
tarde, hoje, ontem,
depois, antes, etc.
Carneiro Ribeiro aproxima a classe dos advérbios à classe dos adjetivos pelo fato de
ambos retirarem os seus acidentes das palavras que acompanham.
Visto que os adjetivos, como já deixamos dito, denotam abstrações, e
não tem estas nem sexo nem pluralidade, segue-se que são estas
espécies de palavras invariáveis por sua natureza.
E como por si mesma não tem gênero nem número as palavras que o
advérbio modifica, é sempre invariável este superadejetivo
vulgarmente denominado advérbio. (id..624)
72
3.4 FRASEOLOGIA
Ao estudo da Fraseologia são dedicadas cinquenta e cinco páginas da gramática. No
total da obra, a lexicologia ocupa 58% e a fraseologia ocupa 19%. Portanto, assim como
em gramáticos anteriores ,a sintaxe ocupa um lugar muito menor na obra.
Carneiro Ribeiro define a fraseologia como “ a parte da gramática que ensina a
compor as orações e as frases" (p..641). Portanto, o estudo da fraseologia compreende a
sintaxe e a construção.
Seguindo o modelo da gramática filosófica, Carneiro Ribeiro estabelece uma
distinção entre sintaxe e construção:
A ordem das palavras, diz respeito à combinação e ao
arranjamento destas na oração. A sintaxe dá regras para o
emprego das terminações dos vocábulos, ensina as varias formas
que devem estes tomar para entrar na constituição das frases.
(id. :641)
TERMOS DA ORAÇÃO
Seguindo os teórico de Port-Royal , para Carneiro Ribeiro a oração considerada do
ponto de vista lógico “ não é outra coisa do que a enunciação de um juízo”(p.:642). O
juízo que toma a forma de uma proposição é composto por três elementos essenciais:
sujeito, verbo, atributo ou predicado.
Os termos essenciais da oração são definidos da seguinte maneira:
O sujeito de uma proposição é o objeto de que se afirma ou nega
alguma coisa; o predicado ou atributo é aquilo que se afirma ou nega
do sujeito.
Verbo é a palavra que, exprimindo a existência intelectual com
relação a um atributo liga este ao sujeito (id. :642)
73
As orações são classificadas como simples “ conforme é o seu sujeito só ou só o seu
atributo”, compostas “ quando o sujeito não exprime uma unidade de ideia” e o atributo
“exprime mais de uma maneira de seu sujeito”, complexa “ quando o sujeito é
modificado por algum acessório” e quando o atributo tem alguma acessório que o
modifique”, incomplexa “quando nenhum termo acessório modifica o sujeito e o
atributo” (RIBEIRO, op. cit. :642).
Além dos termos essenciais da oração há os elementos gramaticais da oração: o
aposto , os complementos e o compelativo. Complemento é “ toda palavra que se ajunta
à outra para lhe completar o sentido”(id..:644). O complemento é direto ou imediato
quando “ pedido imediatamente pela significação do verbo, completando-lhe o sentido
sem a interposição de preposição”(id. ibid), indireto ou mediato é o complemento que
apresenta a “interposição de uma preposição [ para completar] o sentido do verbo ou
qualquer palavra suscetível de complemento” (id. ibid.). O aposto “é qualquer palavra
que vindo imediatamente após outra exprime com esta uma só e mesma coisa”
(id.:644). Por fim, compelativo é “ a palavra que serve para exprimir a pessoa ou coisa a
que nos dirigimos falando”(id. :643).
CLASSIFICAÇÃO DAS PROPOSIÇÕES
As proposições são divididas em absolutas e relativas. A proposição é absoluta
“quando para integridade de seu sentido não necessita de outra” e relativa quando
supõe outra para lhe completar o sentido”(id:645) . Por sua vez a proposição relativa
pode ser principal ou primordial e subordinada ou secundária.
As orações subordinadas ou secundárias podem ser de primeira ou segunda ordem.
As orações de primeira ordem “indicam um sentido parcial, que não sendo
complemento de alguns dos termos de outra oração depende, todavia, de uma principal
que lhe determine e subordine”(id.:647) As orações de segunda ordem podem ser
incidentes ou integrantes. As incidentes são “as que fazem parte de outra ampliando ou
74
restringindo alguns de seus termos” (id. ibid.). Quando a oração incidente amplia algum
termo da oração principal é chamada ampliativa ou explicativa.
Assim temos o seguinte exemplo:
Assim na frase Deus, que é omnipotente, é infinitamente bom e
justo, a oração é ampliativa, porque desenvolve o sentido do sujeito da
principal sem lhe restringir a extensão (RIBEIRO, op. cit..647)
Restritiva ou determinativa é a oração incidente que restringe algum termo da oração
principal. É o que ilustra o autor no seguinte exemplo:
Quando , ao contrário, dizemos o homem que é justo respeita os
direitos de seus semelhantes, é restritiva a oração que é justo porque
determina a extensão do sujeito homem fazendo aplicar-se a uma
classe menor de indivíduos. (id.:647)
As orações integrantes são classificadas em puras ou simples e comparativas ou
correlativas. Integrantes simples “são as que fazem parte de outra oração, servindo-lhe
de sujeito, atributo ou complemento” e integrantes comparativas ou correlativas são
“as que inteiram o sentido de outra oração ou palavra de outra oração”(id. :648)
No que concerne à nomenclatura das orações, percebemos que Carneiro Ribeiro
segue de perto a tradição da gramática geral e filosófica e, portanto, não se diferenciava
da maioria dos compêndios da época.
SINTAXE DE REGÊNCIA E CONCORDÂNCIA
As relações de identidade e determinação aplicadas à sintaxe constituem o
fundamento da sintaxe de concordância e regência. Assim temos duas sintaxes: “uma
regula as relações de identidade; é a sintaxe de concordância; outra as relações de
determinação; é a sintaxe de regência”(RIBEIRO, op. cit..:652).
75
Os sinais de concordância são de três espécies:
1ª As terminações genéricas e numerais dos adjetivos, as pessoas e os números dos
verbos.
2ª O emprego das conjunções
3ª A colocação e a posição das palavras
Quanto à regência, Carneiro Ribeiro a define deste modo:
Regência outra coisa não é que a dependência das várias partes da
proposição cujo sentido é determinado por uma delas por meio de
adjetivos, advérbios, verbos ou preposições (RIBEIRO, op. cit..:667)
Na sintaxe de regência distinguem-se partes regentes e partes regidas. As partes
regentes são “as preposições, os adjetivos, que pedem complementos” e as regidas
“podem ser todas as que entram na composição da oração”(id. 667.).
FIGURAS
A gramática dedica nove páginas ao estudo das figuras. As figuras não são definidas
como desvios ou corrupções, como aparece em alguns compêndios da época, mas sim
como parte integrante do sistema linguístico.
Carneiro Ribeiro (p. 674-675), define deste modo as figuras de sintaxe:
As figuras não são desvios excepcionais, simples caprichos ou
vícios de construção, corruptelas mais ou menos consideráveis,
introduzidas na linguagem usual pelo falar descurado do vulgo; ao
contrário são elas formas necessárias a que recorre o espírito na
enunciação de conceitos e juízos; ligam-se tanto, associam-se tão
intimamente e profundamente com o pensamento, com ele se
identificam de tal modo, que constituem uma necessidade real, e
fundamental do mesmo pensamento, quando vasado no molde que
oferecem as línguas.
76
As principais figuras de sintaxe são as seguintes:
Quadro 13. Classificação das Figuras de Linguagem.
Elipse Figura que para dar mais rapidez à
expressão suprime palavras que a
construção gramatical exige, as quais
facilmente se subentendem.
Zeugma Figura pela qual uma palavra já foi
exprimida em uma oração se subentende
na outra que lhe é análoga ou ligada
Pleonasmo Figura pela qual se empregam palavras
que, bem que não sejam necessárias para a
perfeita expressão do pensamento, lhe dão
todavia mais graça, força e energia
Silepse Figura pela qual uma palavra não
concorda com a palavra a que se refere
gramaticalmente, mas com a ideia que se
tem no espírito.
Inversão Construção que se afasta da ordem da
sucessão analítica do pensamento, sem
quebrar a ligação imediata das palavras
Hipérbato Construção que se afasta da ordem da
sucessão analítica do pensamento,
quebrando a ligação imediata que tem as
palavras umas com as outras.
Enálage Figura pela qual se emprega uma palavra
exercendo função gramatical diversa da
que naturalmente exerce.
Repetição Figura pela qual se repetem as mesmas
palavras ou locuções.
Assíndeto Figura pela qual se tiram da oração todas
as conjunções
Polissíndeto Figura pela qual se empregam muitas
conjunções na mesma frase ou a mesma
muitas vezes
Por fim, concluímos que obra de Carneiro Ribeiro é o resultado do trabalho de um
professor e de um pesquisador experiente. A longa lista de gramáticos citados
demonstra não só o conhecimento da longa tradição da gramática geral e filosófica, mas
também indica que o autor estava atento ao que vinha sendo discutido na época. A
gramática apresenta como maior influência a tradição racionalista francesa. É frequente
na obra referencias a autores como Du Marsai, Beauzée e Condilac.
77
O Corpus de registro linguístico presente na gramática, composto em sua maioria por
autores dos séculos XVI e XVII reflete o caráter conservador e purista da obra. Do
mesmo modo que as gramáticas do inicio do século, os modelos de correção e boa
linguagem são autores como Luiz Vaz de Camões e Pe. Antônio Vieira.
Por fim, podemos observar que a Grammatica Portugueza Philosophica reflete a
preocupação de um autor em modernizar a gramática Brasileira. Por exemplo, na
definição de gramática como “Ciência-Arte” ou no processo e de descrição do sistema
verbal e na definição de advérbio o autor parece dialogar com as inovações das novas
correntes de estudo da linguagem.
78
4
Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza
Charles Adrien Olivier Grivet
Neste capítulo , deter-nos-emos na análise da Nova Grammatica Analytica da Lingua
Portugueza. Na análise procuramos observar em que media o processo de descrição
gramatical presente na obra reflete um período de transição em que as orientações da
gramática geral e filosófica começa a dividir espaço, nos nossos compêndios
gramaticais, com as inovações da gramática “científica”.
.
4.1 O Autor
Charles Adrien Olivier Grivet nasceu no ano de 1816 em Villars-lê-Terroir, cantão
de Vaud, na Suíça. Desde 1827 até 1836, em Friburgo, estudou língua francesa, latina e
grega, história, geografia, retórica, filosofia, matemática, física, química e, finalmente o
direito. No ano de 1837 aceita o convite para lecionar na Rússia, retornando à Suíça em
1843, para ocupar uma cadeira de professor na escola de medicina de Friburgo.
Em 1856, por conta da elevação ao poder de um partido político contrário ao seu,
emigra para o Brasil com a intenção, posteriormente frustrada, de abrir uma escola para
meninos. Lecionou em vários colégios, alguns por ele fundado, como em Vassouras.
Teve no Brasil uma vida marcada por dificuldades financeiras e tragédias familiares,
mas firmou solida reputação.
Em 1865 publicou a Pequena Grammatica da língua Portugueza, refeita e finalizada
em 1874 e publicada posteriormente em 1881 com o titulo de Nova Grammatica
Analytica da língua Portugueza. Charles Adrien Grivet faleceu em 14 de janeiro de
1876.
79
4.2 A OBRA
A Nova Grammatica analytica da Língua Portugueza foi finalizada em 1874, mas
somente publicada postumamente no ano de 1881, momento em que as gramáticas
gerais e filosóficas perdiam espaço, no Brasil, para as inovações dos estudos histórico-
comparativos.
Após a nota biográfica, em que se afirma a publicação póstuma da obra, aparece um
relatório sobre a gramática com a data de 1876, assinado pelo conselheiro Dr. Francisco
Octaviano de Almeida Rosa e pelo Comendador J.B. Calógeras . O relatório começa
expondo não só as qualidades da obra, mas a sua diferença em relação às publicadas
anteriormente.
Esta obra, pela robusteza da logica e pela vasta erudição que a rege
desde o princípio até o fim, destaca-se completamente de todas as
outras de igual natureza até hoje conhecidas. Classificadas as matérias
segundo as mais vigorosas exigências da linguagem, cada parte é
tratada com magistral proficiência. As regras, amplamente expostas
são sempre acompanhadas de valiosíssimas reflexões sobre a sua
aplicação, sendo estas corroboradas , a cada passo, pelo exemplo e
pela autoridade dos escritores clássicos de melhor nota; e assim
firmadas, tanto as regras como a sua genuína aplicação, põem
naturalmente em relevo as incorreções que o uso tem pouco a pouco
introduzido na prática. ( GRIVET, 1881:. XIX )
Na sequência, o relatório traz uma breve descrição do conteúdo discutido nas cinco
partes da gramática46
. Na conclusão, os autores reafirmam a superioridade da obra em
relação às publicadas anteriormente e expressam o desejo de vê-la utilizada nos
estabelecimentos particulares e públicos de ensino secundário.
46
Os autores justificam nos seguintes termos a presença do resumo da gramática presente no relatório:
“ Para formar um juízo seguro a cerca desta obra, seria preciso lê-la toda, não havendo nela palavra
alguma supérflua. Mas, sendo isto incompatível com muitas e importantes incumbências a cargo de V.
Ex.ª, apresentamos alguns extratos a fim de proporcionar-lhe, pelo menos, uma ideia geral do
merecimento do trabalho do Sr. Grivet”. (p. xix )
80
Imagem 3. Capa 1ª edição da Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza
81
4.2.1 Visão geral da obra
A gramática possui uma forte orientação pedagógica. Conforme Fávero & Molina
(2006: 111), “É uma gramática destinada aos professores” O trecho abaixo demonstra o
desejo do gramático de a obra fosse utilizada nas instituições de ensino.
Oferecendo à consideração dos mestres esta nova gramática,
comprazo-me na esperança de que lhe achem os requisitos que
faltavam à que publiquei em 1865, para que fosse um bom livro
escolar, e nela encontrem mormente, além de um tratado completo
sobre a matéria, o método mais apropriado para a introdução nas
aulas, do estudo sistemático dos clássicos, sem o qual, por mais que se
faça, a resignação da linguagem não passará de uma quimera .
(GRIVET, 1881.: XV)
A leitura atenta da obra e o exame dos autores citados como exemplo de boa
linguagem, permitem-nos observar o caráter purista da gramática. O gramático
justifica desse modo o seu apego a tradição dos autores clássicos da língua portuguesa:
(...) pareceu-me que o meio, senão único, ao menos mais adequado
para reagir com eficácia contra a decadência crescente da linguagem,
era o de por em frequente confronto as loquelas espúrias do tempo
presente com as lições do beneméritos das letras, que acomodando
genialmente a arte das palavras aos ditames do bom senso, isto é, da
lógica bruxilaram o padrão perene das feições características da língua
portuguesa. ( Id. Ibid.)
O corpus de registro linguístico da Nova Grammatica Analytica da Língua
Portugueza gira em torno de cinquenta autores. Na sua grande maioria autores
portugueses dos séculos XVI e XVII, por exemplo, Pe. Antônio Vieira, Pe. Manoel
Bernardes, João de Barros, Duarte Nunes Leão, Raphael Bluteau, Fernão Mendes Pinto
entre outros. Como podemos perceber pelo levantamento dos autores citados, a
gramática não apresenta nenhum autor brasileiro. “Na época das polêmicas serem
travadas sobre a língua nacional, este gramático não nos brinda com nenhum exemplo
de autor brasileiro.” (FÁVER & MOLINA op. cit. : 113)
O gráfico a seguir ilustra a distribuição dos autores citados na obra.
82
Gráfico5 .Distribuição dos autores citados por Grivet.
Conforme demonstra o gráfico 6 a seguir, o número de autores citados na obra
poderia ser reduzido à apenas dois nomes: Pe. Antônio Vieira e Pe. Manoel Bernardes.
0
5
10
15
20
25
XIVXV
XVIXVII
XVIIIXIX
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
83
Gráfico 6. Proporção dos autores mais citados na nova Grammatica Analytica da
Língua Portugueza
As 1495 citações presentes nas duas partes analisadas, isto é, Lexicologia e Sintaxe, são
distribuídas da seguinte maneira; 925 são atribuídas ao Pe. Antônio Vieira, 203 ao Pe.
Manoel Bernardes e as 367 citações restantes são distribuídas entre os outros autores.
4.2.2 Divisão da obra e definição de gramática
A. Grivet divide sua gramática em cinco partes, não adotando, portanto, a
tradicional divisão em quatro partes47
.
O quadro 14 a seguir procura ilustrar as diferentes propostas de divisões de
gramáticas gerais e filosóficas publicadas no Brasil:
47
Conforme Fávero (1996:94) “ A divisão da gramática em quatro partes vem desde o período medieval (
talvez desde Prisciano que foi o primeiro a reconhecer a existência de uma sintaxe que é o estudo “da
disposição que visa à obtenção da oração perfeita”), com Alexandre de Villedieu (Doctrinale
puerorum,1200 ): ortografia, etymologia, dyasintástica (= sintaxe ) e prosódia, divisão essa que
permaneceu até o século XVI ou até mais porque ainda se encontra, em fins do século XVIII, por
exemplo, em Soares Barbosa.
62% 14%
24%
Pe. Antônio Vieira
Pe. Manoel Bernardes
outros
84
Quadro14. Divisão interna das gramáticas filosóficas.
Divisão interna das gramáticas gerais e filosóficas
Moraes Silva
( 1806 )
Frei Caneca
( 1817 )
Coruja
( 1835 )
S. dos Reis
( 1866 )
A. Freire
(1875)
A. Grivet
(1881)
Livro I Etimologia Etimologia Etimologia Lexicologia Lexicologia
Livro II Ortografia Ortografia Ortografia Sintaxe Sintaxe
Prosódia Prosódia Sintaxe Semiologia Ortografia
Sintaxe Sintaxe Prosódia Prosódia
Pontuação
Como demonstra o quadro anterior, a etimologia é uma parte integrante das
gramáticas gerais e filosóficas, porém, Grivet não a concebe como parte integrante da
sua gramática.
Etimologia é a declaração da procedência ou da constituição complexa
de uma palavra. (...) Sendo assim um processo de indagação
essencialmente aplicável a cada palavra em particular, a etimologia
não é do domínio da Gramática, ciência de generalização: pertence
exclusivamente à Lexicografia, que é a arte de compor os dicionários.
(GRIVET, op. cit.: 110)
Cavaliere (2000: 243) descreve o processo pelo qual a etimologia perde espaço com
o advento da gramática científica:
“A etimologia, por seu turno, que no modelo da gramática filosófica
dos séculos XVIII e XIX, incumbia-se da significação e classificação
das palavras, e nos primeiros anos da gramática científica passara a
constituir subdivisão da morfologia para tratar da origem e da
formação dos vocábulos, aos poucos se vai afastando dos grandes
troncos da sinopse gramatical, até constituir apêndice e, mais tarde ,
restringir-se aos manuais de gramática histórica”.
Grivet define as partes da gramática da seguinte maneira: 1) Lexicologia é a parte
da gramática que ensina a natureza e as formas da palavra. 2) Sintaxe é a parte que
assinala as relações que entre elas ocorrem na enunciação do pensamento. 3) Ortografia
é parte que determina o modo mais acertado de escrever as palavras. 4) Prosódia é a
85
parte que trata de sua pronunciação métrica. 5) Pontuação é a parte da gramática que
regula a separação dos pensamentos escritos por meio de sinais marcando as pausas
naturais da elocução.
As cinco partes da Nova Grammatica Analytica da Língua Portugueza seguem a
seguinte proporção:
Gráfico 7. Divisão interna da nova grammatica Analytica da Língua portugueza.
A. Grivet , como a maioria dos autores deste período, define a gramática como
Arte, seguindo a conceituação do modelo greco-latino.
Ars é a tradução do grego. Aristóteles, na Metafísica atribui ao termo
o sentido de ofício, habilidade para fazer algo; artesão é o que possui
essa habilidade e conhece as coisas pelos efeitos, não causas. Dionísio
chamou sua obra de arte gramatical, por não ser ela especulativa, mas
prática. (Fávero, 2001:61)
O conceito de Arte aparece no título de muitas gramáticas, por exemplo, na Arte de
Gramática mais usada na costa do Brasil (1554), Pe. José de Anchieta; Arte da língua
35%
45%
4% 1% 15%
Lexicologia
Sintaxe
Ortografia
Prosódia
Pontuação
86
brasílica (1621), Pe. Luís Figueira; Arte de Gramática Abreviada (1710), Manuel
Carlos de Almeida; Arte de Gramática da Língua Portuguesa (1770), Antônio José dos
Reis lobato. (Fávero, 2001:62). O mesmo conceito de Arte se expande e passa a fazer
parte da própria definição de gramática: “Gramática é a arte que ensina a falar, ler e
escrever corretamente a língua portuguesa” ( Frei Caneca); Gramática (...) é a arte que
ensina a declarar bem os nossos pensamentos por meio de palavras” (Coruja);
“Gramática(...) é a arte de falar e escrever corretamente a língua portuguesa”, (Sotero
dos Reis).
Seguindo a tradição da Gramática Geral e Filosófica, Grivet define a gramática desta
maneira:
“ Gramática é a arte de falar e escrever corretamente(... ) Fala e
escreve corretamente quem se conforma com as regras sancionadas
pelos ditames da boa razão, e segundo os usos respeitáveis pelo
assenso que granjearam dos doutos” (GRIVET, 1881 : 1) .
Nessa definição de gramática já aparece a noção de correção, relacionada ao uso de
uma determinada classe social, os “doutos”. “Essa valorização da norma culta como
fator de prestígio, pela imitação dos “clássicos”, dos “beneméritos das letras” é a mesma
que se encontra em quase todos os gramáticos anteriores como Moraes Silva e Soares
Barbosa” (Fávero & Molina, 2006.:113).
4.3 LEXICOLOGIA
A. Grivet define a lexicologia como “ a parte da gramática que ensina a natureza e
as formas das palavras”( p.1). Considerando a natureza das palavras, o autor reconhece
dez espécies de palavras:
87
Quadro 15. Espécies de palavras
Espécies de Palavras48
Verbo Palavra que enuncia um fato.
Substantivo Palavra que designa entes ou abstrações.
Artigo Palavra que, antepondo-se essencialmente
aos substantivos, e acidentalmente a
pronomes ou mesmo a verbos no infinitivo
confere-lhes um sentido preciso.
Adjetivo Palavra que se acrescenta medita ou
imediatamente aos substantivos ou
pronomes ou mesmo a verbos no infinitivo
para os qualificar ou determinar.
Pronome Palavra que, dispensando a frequente
reprodução dos substantivos, supre-os em
todas as suas funções.
Particípio Palavra que, procedendo do verbo,
coadjuva-o na conjugação, ou porta-se
como mero adjetivo junto a substantivos
ou pronomes.
Preposição Palavra que se antepõe essencialmente a
substantivos, pronomes ou verbos no
infinitivo, e acidentalmente a advérbios
para marcar uma relação.
Advérbio Palavra que se ajunta a um verbo,
particípio, adjetivo, ou até outro advérbio,
para modificar-lhes o alcance de
significação.
Conjunção Palavra que liga partes de uma oração, ou
orações completas, para denunciá-las
como conexas ou opostas.
Interjeição Palavras que implicitamente abrange todos
os elementos de uma proposição ou
pensamento.
Para distinguir as diferentes espécies de palavras, o gramático recorre a critérios
sintático-semânticos e ao da declinabilidade ou variação49
. O critério de declinabilidade
48
O uso da terminologia “espécies de palavras” indica a influência da corrente “científica” dos estudos da
linguagem..
88
utilizado por gramáticos como, Soares Barbosa e Moraes Silva dentre outros, para
distinguir as diferentes classes de palavra surge conforme, Fávero (1996), com os
Enciclopedistas, sobretudo, com Beauzée :
Le fondement de cette distinction est ‘perspectiviste’: les mots
déclinables désignent des êtres (réels ou abstraits) qui sont
susceptibles d’être envisagés sous différents aspects, alors que
les mots indéclinables ne désignent que idées qu’on ne peut
envisager que que sous um aspect immuable50
. ( Mot. E. M.
apud FÁVERO,1996: 215 )
Seguindo o critério da declinabilidade, as dez espécies de palavras são divididas da
seguinte maneira:
Quadro 16. Classificação das palavras variáveis e invariáveis
Palavras variáveis e invariáveis
Variáveis são as palavras que, sem
saírem de sua espécie, passam por uma
ou mais alterações de letras e
pronúncia.
Verbo
Substantivo
Artigo
Adjetivo
Pronome
Particípio
Invariáveis são as palavras que, a não
saírem de sua espécie, não podem
passar por nenhuma alteração de letras
nem de pronúncia.
Preposição
Advérbio
Conjunção
Interjeição
Na obra, a parte dedicada à lexicologia apresenta duzentas e onze páginas. E só o
estudo do verbo representa quase a metade dessas páginas, fato que demonstra a
importância que o gramático atribuía a essa classe de palavras.
49
Este critério se baseia na constatação de que as palavras possuem características morfológicas de
gênero, número, pessoa, tempo e modo. 50
Tradução nossa: O fundamento desta distinção é ‘perspectivista’: as palavras declináveis designam
seres (reais ou abstratos) que são suscetíveis de serem considerados sob diferentes aspectos, enquanto que
as palavras indeclináveis designam ideias que apenas podemos considerar sob um aspecto imutável.
89
Gráfico 8. Proporção da matéria tratada na lexicologia
VERBO
Diferentemente das gramáticas filosóficas e gerais do século XIX, a gramática inicia
o estudo das espécies de palavras pelo verbo, concebendo-o como a palavra por
excelência . “Não é possível emitir um pensamento sem que nele ocorra expressa ou
tacitamente, ao menos um verbo”. (GRIVET,1881: 8)
Grivet distingue nos verbos feições e formas, fato, segundo o autor, geralmente
ignorado ou confundido pela maioria dos gramáticos. “Tendo geralmente os gramáticos
confundido as feições e as formas do verbo não será fora de proposito extremar o
sentido que cada um dos termos compete”. (Id:.7) Segundo o gramático, a forma do
verbo é a sua manifestação pela fala ou pela escrita. “ Assim é que trabalho é uma só e
única forma do verbo trabalhar; não é, porém, sua feição. Já a feição são os conceitos
que se manifestam de uma mesma forma verbal. “Assim é que trabalho depara-se com
uma feição de modo, que é o indicativo, uma feição de tempo, que é o presente, com
uma feição de número, que é o singular; enfim com uma feição de pessoa, que é a
48%
4%
2%
16%
10%
3% 4%
5% 7%
1% Verbo
substantivo
Artigo
Adjetivo
Pronome
Particípio
Preposição
Advérbio
Conjunção
Interjeição
90
primeira” (Id. Ibid.) Desse modo, uma única forma verbal pode apresentar quatro
feições diferentes.
No que concerne às conjugações, o gramático reconhece três : “ Da circunstância de
todos os verbos com exceção de pôr e seus congêneres acabarem em Ar, Er, Ir originou-
se a sua distribuição em três conjugações” (GRIVET, 1881:.25 ). O verbo pôr é
colocado em uma categoria à parte “porque considerando que, além de se desenvolver
em modificações pouco harmônicas, só serve de norma a verbos que dele procedem”
(id:78). Cabe destacar que muitos gramáticos posteriores mantiveram a ideia de incluir
uma quarta conjugação formada pelo verbo pôr e seus compostos.51
A noção de tempo gramatical é vinculada à noção de tempo cronológico: “Por
associações de ideias, todo e qualquer conjunto de formas verbais recordando uma
mesma época de duração veio a ser chamado em Gramática tempo do verbo”(p.9).
Quadro 17. quadro sinóptica dos modos e tempos verbais
Indicativo
1º Tempo52
Presente ( amo )
2º Tempo Passado imperfeito ( amava )
3º Tempo Passado perfeito ( amei )
4º Tempo Passado perfeito composto ( tenho amado)
5º Tempo Passado mais que perfeito ( amára )
6º Tempo Passado mais que perfeito composto
(tinha amado)
7º Tempo Futuro (amarei)
8º Tempo Futuro composto ( terei amado)
51
Conforme sublinha Cavaliere ( op.cit. 284) “ A usual subdivisão dos verbos portugueses em quatro
conjugações gozava de ampla aceitação, visto considerar-se o verbo pôr e seus derivados (à época,
compostos ) como integrantes de um paradigma próprio. Tal procedimento fundava-se no princípio de que
o infinitivo constituía base de classificação do verbo quanto à conjugação.” 52
A partir deste momento, o autor passa a identificar os tempos verbais pelo número de cada modo: “
Em vez de passado mais que perfeito composto do indicativo, diga-se, portanto, simplesmente : Sexto
tempo do indicativo, e assim dos demais.” (p.12)
91
Condicional
1º Tempo Presente-Passado-Futuro próprio ( amaria)
2º Tempo Passado próprio ( teria amado )
3º Tempo Presente-Passado-Futuro suplementar
(amára )
4º Tempo Passado suplementar (tivera amado )
Imperativo
Tempo Único Futuro ama (tu)
Subjuntivo
1º Tempo Presente-Futuro ( ame )
2º Tempo Presente-Passado-Futuro próprio ( amasse)
3º Tempo Presente-Passado-Futuro suplementar
(amára)
4º Tempo Pretérito perfeito ( tenha amado )
5º Tempo Passado mais que perfeito próprio
(tivesse amado)
6º Tempo Passado mais que perfeito suplementar
(tivera amado )
7º Tempo Futuro (amar )
8º Tempo Futuro composto ( tiver amado )
Infinitivo
1º Tempo Presente-Passado-Futuro impessoal
(amar)
2º Tempo Presente-Passado-Futuro pessoal (amar )
3º Tempo Passado impessoal ( ter amado )
4º Tempo Passado pessoal ( ter amado )
5º Tempo Gerúndio simples ( amando )
6º Tempo Gerúndio composto ( tendo amado )
92
Embora a lexicologia trate da natureza e forma das palavras e a sintaxe das relações
estabelecidas entre elas, Grivet não segue rigorosamente essa divisão. Na sequência do
estudo do verbo, o gramático tece alguns comentários sobre as noções de sujeito,
predicado e complemento53
.
Dependendo da significação do verbo, o sujeito pode apresentar-se com autor (ele
julga) ou como objeto (ele é julgado). Podem exercer a função de complemento direto,
que não exige preposição, “substantivos, pronomes ou verbos nos quatro primeiros
tempos do infinitivo”(GRIVET, 1881:16) . Os complementos indiretos, que exigem
preposição, “ substantivos, pronomes , verbos em seja qual for o tempo do infinitivo, e
enfim de advérbios e locuções adverbiais” (id. ibid.) . Não seguindo a tradicional
nomenclatura, Grivet fala em predicado não em atributo, termo que, a partir de Port-
Royal, aparece em muitas gramáticas gerais e filosóficas. “Predicado, a que a maior
parte dos gramáticos chamam atributo, é a palavra ou conjunto de palavras que enuncia
uma qualidade, propriedade ou situação do sujeito mediante um verbo de estado”
(id:.17).
Seguindo o estudo do verbo, o autor afirma que “ a distinção dos tempos primitivos
e derivados é um mero artifício de método para sistematizar formas anormais, porém
artifício útil (...)” (id.:56). Finalizando o estudo minucioso do verbo, Grivet sublinha a
dificuldade de classificar os verbos:
Dentre as dificuldades que se podem originar da aplicação das tabelas
conjugativas e aos exercícios analíticos, nenhuma se ostenta mais
saliente de que a determinação dos tempos em que o acaso fez
perfeitamente idênticos de formas, embora, por pertencerem a modos
diferentes, tenham assim necessariamente um alcance diverso de
sentido. (GRIVET, 1881: 58)
Para resolver esse problema, propõe seguir os princípios do método experimental,
isto é, os princípios da gramática histórico-comparartiva.
53
As noções de sujeito, predicado e complemento são tratadas com mais vagar na sintaxe.
93
Não é sem estranheza que se nota como o principio da substituição,
um dos mais valiosos promotores hodiernos do progresso nas ciências
físicas, adapta-se com o mesmo acerto e proficiência aos estudos
filológicos , verificando-se assim novamente a superioridade do
Método experimental sobre o Dogmático. (GRIVET, 1881:60 )
SUBSTANTIVOS
Em relação ao estudo do substantivo, a gramática mantém a distinção entre
substantivos e adjetivos que surge na tradição escolástica. “ os gramáticos gregos e
latinos não consideram [substantivos e adjetivos] uma classe à parte, mas uma
subdivisão do nome; a distinção substantivo-adjetivo é devida à escolástica.
(Fávero,1996:195).
No modelo classificatório dos substantivos, percebemos a presença de critérios
semânticos e morfológicos . Na distinção entre os substantivos próprios e comuns o
autor se vale do critério semântico, seguindo o modelo da Grammaire de Port-Royal.
“Tal como na Grammaire de Port-Royal, os substantivos podem ser divididos quanto à
‘carga extensional’ do conceito de que são o signo, em próprios e comuns ou
apelativos” (Fávero, 1996:217). Conforme Grivet,
Os substantivos são próprios ou comuns quando designam um ente
segregadamente dos da mesma espécie. São comuns quando designam
um ente promiscuamente com os da mesma espécie (...). (GRIVET,
op. cit. : 107)
Na discussão do gênero dos substantivos, Grivet parece apoiar-se na corrente
naturalista:
Nos substantivos de entes animados cuja distinção sexual
importava à propriedade da linguagem, o gênero ficou determinado
pelo sentido, vindo assim a ser masculinos os nomes de machos e
femininos de fêmeas (...) Desaparecendo, porém, a oportunidade da
distinção sexual, caso que se dá com a maior parte dos animais, um
único substantivo, já masculino, já feminino, abrangeu o macho e a
fêmea de cada espécie ( id. 109)
94
Na distinção entre substantivos simples e compostos é o critério morfológico que
prevalece : “Considerados na sua forma, os substantivos, quer próprios , quer comuns,
são simples ou compostos”. São simples os substantivos “ quando constam de uma só
palavra” e compostos quando “constam de mais de uma palavra” (id.: 108)
ARTIGO
Historicamente, o artigo não existia em latim como classe gramatical autônoma . O
nosso artigo provém do demonstrativo latino Ille, Illa, Illud (Coutinho Gram. Hist,
1974:251). O fato de diacronicamente originar-se de uma outra classe gramatical fez
com que o artigo oscilasse entre uma classe gramatical própria e participante da classe
dos adjetivos ou dos pronomes. Cavaliere sintetiza desse modo o estatuto do artigo no
final do século XIX:
A figura do artigo, entrementes, sofria uma avaliação conceitual
deveras diversificada no primeiro momento da gramática científica,
ainda no século XIX, de tal sorte que não só era incomum inseri-lo nas
searas de outras classes , mormente na do adjetivo e do pronome,
como também não era incomum distribuí-lo, segundo a espécie
(definidos e indefinidos) em classes diferentes. ( CAVALIERE,
2000.:258)
O artigo pertence à classe das palavras variáveis e tem a função de “antepor-se
essencialmente aos substantivos, e acidentalmente a pronomes ou mesmo a verbos no
infinitivo, tornar-lhe o sentido mais preciso”(GRIVET, op. cit.:115). Além disso, o
artigo tem a função de “determinar, por suas formas características, o gênero e o
número das palavras a que se prendem pela concordância” (Id. Ibid.).
Conforme Cavaliere, não era comum nos gramáticos do século XIX reconhecer a
função “determinante” dos artigos:
Não se confere ao artigo, nos estudos taxionômicos da gramática
científica, a função categórica que hoje lhe reconhecemos, para
determinar o gênero e o número do nome, senão por brevíssima
referência de João Ribeiro na Grammatica portuguesa: Praticamente
95
assinalam o gênero e o numero dos nomes” (CAVALIERE, 2000:
259).
ADJETIVO
Na gramática, o adjetivo, excetuando o verbo, é a classe de palavras que recebe a
maior atenção. Os gramáticos do período conceituavam o adjetivo como uma palavra
qualificadora ou determinadora do substantivo. Porém, para Grivet, os adjetivos se
ligam não apenas aos substantivos. O adjetivo é “uma palavra variável que se acrescenta
mediata ou imediatamente aos substantivos, aos pronomes, e até aos verbos no
infinitivo, para qualificar ou determinar” (GRIVET, op. cit..119).
Os adjetivos determinativos “denunciam uma ideia de numeração de situação, de
pertença, ou de quantidade indecisa” (id.ibid.). Os adjetivos qualificativos “despertam
absoluta ou relativamente uma ideia de agrado ou de desagrado, conforme enunciam
uma qualidade ou um defeito, quer moral, quer físico” (id. ibid.). Grivet classifica deste
modo os adjetivos determinativos e qualificativos:
Quadro 18. Classificação dos adjetivos determinativos
Adjetivo
Determinativo
Numeral
Possessivo
Demonstrativo
Indefinido
96
Quadro 19. Classificação dos Adjetivos qualificativos
No que concerne ao estudo dos adjetivos, o gramático não apresenta novidades no
processo de descrição dessa classe gramatical.
PRONOME
No que concerne à conceituação do pronome, Grivet destaca a sua função textual.
Fato que, conforme Fávero & Molina, (op. cit 116) , “ só seria discutido muitos anos
depois com o advento dos estudos do texto”. O pronome é definido desse modo pelo
gramático:
Pronome é uma palavra variável que, substituindo-se aos substantivos,
e até a pronomes de espécie diversa, faz todas as funções próprias do
substantivo, com a dupla vantagem de aclarar a dicção pela
simplificação das formas, e de suavisá-la pela eliminação de
repetições fastidiosas. (GRIVET, 1881: 151)
Adjetivo
Qualificativo
Positivo
Comparativo
Superlativo
97
Quanto à classificação dos pronomes, distingue os pronomes possessivos “que como
sujeitos, constituem as três pessoas da dicção, quer no singular quer no plural, e que
como complemento ou predicado, a estão concordando” (id :153). Os outros pronomes
são os mesmos arrolados na classe dos adjetivos quando não acompanhando nenhuma
outra palavra. São pronomes demonstrativos “ não só os mesmos adjetivos
demonstrativos quando desligados de todo e qualquer substantivo ou outro pronome,
senão também mais alguns vocábulos que com eles se aparentam pelo sentido” (id.159).
São pronomes possessivos “os mesmos adjetivos possessivos quando de todo e qualquer
substantivo ou pronome, exercem de per si mesmo as funções de sujeito ou de
complemento (...)” (id.:163). Pronomes indefinitos são os mesmo adjetivos desligados
de qualquer substantivo ou pronome”(Id.:167). E, por fim, os pronomes relativos que
são caracterizados “por uma imprescindível referencia a um antecedente expresso ou
apenas subentendido (...)” ( id:165 ).
PARTICIPIO
A gramática dedica seis páginas ao estudo do particípio. Os particípios, dependendo
da função exercida na frase, podem ser inseridos na classe das palavras variáveis ou
invariáveis. “ Particípio é uma palavra, já variável, já invariável, que, procedendo do
verbo, a ele reverte muitas vezes para a formação dos tempos compostos, ou porta-se
em tudo como um mero adjetivo qualificativo” (GRIVET, 1881 173).
98
PREPOSIÇÃO
Ao estudo da preposição, a gramática dedica apenas oito páginas. A preposição é
definida como “ uma palavra invariável que se interpõe entre outras de espécie diversa
para marcar uma relação” (GRIVET, 1881178)
Conforme Grivet ,
Perscrutada no seu sentido etimológico ( palavra anteposta) , a
preposição designa fielmente a sua propriedade mais característica,
que é a de não apresentar de per si mesma uma ideia apreciável, e sim
tão somente com a adjunção de uma palavra posterior, à qual se dá o
apelido de regime, e com a qual ela constitui um complemento
indireto. (Id. 179)
As preposições são classificadas em constantes e acidentais: “são constantes os
vocábulos, que a não formarem uma locução com outra palavra invariável, em caso
algum prescinde de um regime (...); são preposições acidentais os vocábulos que,
deixando de atuar em regime, revertem para uma espécie de palavra outra que a
preposição” (id.180 )
Quadro 20. Relação das preposições constantes e acidentais.
Preposições constantes
A Dentre Para
Afora Des Per
Ante Desde Perante
Após Durante Por
Com Em Sem
Contra Entre Sob
De
Mediante Sobre
99
ADVÉRBIO
Grivet define o advérbio como “palavra invariável que, juntando-se a um verbo ,
particípio, adjetivo ou até mesmo a outro advérbio, modifica-lhes o alcance de
significação” (GRIVET, 1881: 185). Uma característica do advérbio é a de equivaler
semanticamente a um complemento indireto: “ o advérbio nunca deixa de ser
analiticamente resolúvel em um complemento indireto” (Id.:186)
A ideia de que o advérbio equivale semanticamente a um complemento indireto, isto
é, um nome seguido de preposição já estava presente na gramática de Port-Royal:
A vontade que os homens têm de abreviar o discurso ocasionou o
aparecimento do advérbio, já que a maior parte dessas partículas serve
apenas para significar, numa só palavra, aquilo que não se poderia
indicar senão por uma preposição e um nome, como sapienter –
sabiamente, por cum sapientia, com sabedoria. (GGR54
,2001:80)
Du Marsais segue de perto os teóricos de Port-Royal na sua definição do advérbio;
Ce qui distingue l’adverbe des autres espèces de mots, c’est que
l’adverbe vaut autant qu’une préposition et um nom; il a la valeur
d’une préposition avec son complément; c’est um mot qui abrège; par
54
Gramática Geral e Razoada de Port-Royal.
Preposições acidentais
Até Salvo
Conforme Segundo
Exceto Suposto
Não obstante Visto
100
sagement vaut autant que avec sagesse.55
( Du Marsais apud
CARDOSO, op. cit.: 109 )
Por fim, na mesma linha da teoria dos gramáticos de Port-Royal, Du Marsais, e
Soares Barbosa diz que: “Advérbio não é outra coisa mais do que uma redução ou
expressão abreviada, da preposição com o seu complemento em uma só palavra” (G.F.
1871: 234) Conforme destaca Cavaliere, o advérbio é a classe de palavra de maior
estabilidade na nossa tradição da gramatical.
O advérbio é daquelas classes gramaticais em que mais se logra obter
convergência conceptual. Sua definição mais disseminada, até hoje
praticamente imutável nos estudos vernáculos, é de palavra invariável
modificativa do verbo, do adjetivo e de outro advérbio.O conceito de
advérbio, entre nós, não vai além do que residia na gramática latina,
até porque esse é o conceito que conseguiu igual amparo nas
principais gramáticas de língua vernácula estrangeira.(CAVALIERE,
op.cit.299)
No que concerne a classificação e descrição do advérbio, Grivet parece seguir as
orientações da gramática geral e filosófica, não apresentando, portanto, nenhuma
novidade.
CONJUNÇÃO
Seguindo de perto os gramáticos de Port-Royal e Soares Barbosa, Grivet define a
conjunção como elemento de ligação entre palavras e orações: “Conjunção é uma
palavra invariável que liga partes de uma oração, ou orações completas, para entre as
ideias ou os pensamentos assinalar, já conexão, já oposição” (p. 195 )
Conforme Fávero &Molina, (op. cit :116), reconhecer que a conjunção também tinha
a propriedade de ligar não só orações mas também palavras não era ponto pacifico entre
os gramáticos da época.
55
O que distingue o advérbio das outras espécies de palavras é o fato de o advérbio equivaler a uma
preposição e um nome, ele tem o valor de uma preposição com o seu complemento; é uma palavra
abreviada, sabiamente é o mesmo que com sabedoria.
101
Em relação ao modo que intervém no discurso “ as conjunções são distribuídas em
três categorias: copulativas, subordinativas e preventivas56
” As conjunções conjuntivas
são três: E, Nem, Ou. “ tanto se encontram dentro de uma proposição, como entre
proposições, e até entre orações” (id. 196 ). As conjunções subordinativas são duas: Que
e Se, “ com todas as mais conjunções ou locuções conjuntivas implicando ostensível ou
ocultamente Que e Se.” ( id:197). Por fim, as preventivas, cerca de doze conjunções,
que não têm outra função senão a de encaminhar o espírito a considerar as ideias ou
pensamentos como consenscientes ou dissidentes” ( id:.208 )
INTERJEIÇÃO
A gramática dedica apenas três páginas ao estudo da interjeição. O gramático define
a interjeição como “uma palavra invariável que implicitamente abrange todos os
elementos de uma preposição ou pensamento ( 208). As interjeições são distribuídas em
próprias e impróprias. São próprias as interjeições que “constando das vozes ou
vocábulos que soltamos quando nos comove algum afeto vivo, não podem reverter para
nenhuma outra espécie de palavra” ( 209) . A gramática apresenta os seguintes
exemplos para as interjeições próprias: Arre!- Hum!- caluda!- Eia! (... ) . São
impróprias as interjeições que “ deixando de enunciar implicitamente um pensamento,
revertem para outra espécie de palavra.” (p. p.209 )
4.4 A SINTAXE
4.4.1 A autonomia da sintaxe na tradição da Gramática Geral e Filosófica
A sintaxe foi a última parte a ser incorporada à estrutura da gramática. Nas primeiras
gramáticas das línguas vulgares, a sintaxe não era mais do que uma “extensão” da
morfologia. Somente em 1660, com a publicação da gramática de Port-Royal, a sintaxe
começa a ganhar a sua autonomia .
E conforme Cardoso,
56
Soma-se a este número as conjunções iterativas a que o autor também faz menção ( cf. p.206)
102
Os teóricos de Port-Royal, ao debruçarem-se sobre a análise da
linguagem, quer do ponto de vista da gramática, quer do ponto de
vista da lógica, visam a instauração de uma sintaxe. Fazendo da
afirmação a mola real do verbo, fundam a sintaxe sobre um princípio,
clara e distintamente percebido, que a separa da morfologia; enquanto
a morfologia apenas permite conceber as ideias, a sintaxe permite
formular um juízo, isto é, isolar no discurso as proposições. Esta
análise, que define uma unidade superior à palavra – a proposição -
abre as portas para uma análise mais profunda das estruturas da língua
e marca, de modo decisivo, o percurso futuro da gramática. (
CARDOSO, op. cit. 36)
Para os teóricos de Port-Royal o julgamento, que toma a forma de uma proposição, é
composto por três termos: o sujeito, o atributo e uma ligação estabelecida pelo verbo
ser.
O julgamento que fazemos das coisas, como quando digo “ a terra é
redonda”, se chama PROPOSIÇÃO; e assim toda proposição encerra
necessariamente dois termos: um chamado sujeito, que é aquilo do
que se afirma algo, como terra; o outro, chamado atributo, que é o
que se afirma, como redonda – além dessa ligação entre os dois
termos: é . (GGR, p. 29 )
O verbo ser é o verbo por excelência, pois marca a afirmação de uma proposição. O
verbo substantivo está presente em todos os outros verbos, uma vez que podemos
decompor qualquer verbo pela seguinte estrutura; verbo ser + particípio presente.
A partir do século XVIII, sobretudo na França, a sintaxe começa a receber uma
maior atenção dos filósofos e dos gramáticos da época. Conforme Cardoso, Du Marsais
foi o primeiro a dar um passo adiante em relação às reflexões dos gramáticos de Port-
Royal no que concerne ao desenvolvimento de uma sintaxe autônoma:
Du Marsais é o primeiro a refletir sobre o sentido da palavra sintaxe e
seu objeto, considerando a sintaxe como uma parte da gramática . Du
Marsais estabelece a distinção entre a construção e a sintaxe até ai
confundidas. A partir daí a sintaxe adquire o seu verdadeiro estatuto
de autonomia. ( CARDOSO, op. cit. :112 )
A distinção entre sintaxe e construção permitiu a distinção entre uma gramática
geral e uma gramática particular. A sintaxe é do domínio da gramática geral, isto é, a
103
mesma para todas as línguas; a construção é do domínio da gramática particular, varia
de língua para língua.
4.4.2 A sintaxe na Nova Grammatica Analytica da Lingua Portugueza
Ao estudo da sintaxe são dedicadas duzentas e setenta e cinco páginas. “Não estamos
mais sobre a influência da gramática geral e filosófica e de Sánchez (1587) para quem a
sintaxis est finis grammaticae” (Fávero & Molina op. cit: 116).
A sintaxe é definida como “ a teoria das funções57
que as palavras exercem na
enunciação dos pensamentos aí entre elas ocorrem”( p. 222) . Na gramática, o capítulo
de sintaxe é todo organizado a partir das funções que os termos exercem na proposição,
por esse motivo a obra não apresenta a tradicional divisão formal da sintaxe em sintaxe
de regência, sintaxe de concordância, sintaxe de construção.
Segundo Grivet, as palavras podem exercer sete diferentes funções: fato, sujeito,
complemento direto, complemento indireto, predicado, aposição e ligação.
Quadro21. Funções sintáticas das palavras na proposição
Funções sintáticas das palavras na proposição
Fato Enunciado por um verbo
Sujeito Enunciado por um substantivo ou pronome
e, acidentalmente, por verbo no infinitivo.
Complemento Direto Enunciado por um substantivo ou pronome
e, separadamente por um verbo no
infinitivo.
Complemento Indireto Enunciado, explicitamente, por um
substantivo ou pronome, um infinitivo e
locução adverbial, implicitamente por um
advérbio.
57
Segundo Grivet , “ Porquanto só A FUNÇÃO é permanente, universal, absoluta em Gramática; tudo o
mais é contingente, ilusivo, inconsistente “ (p. 212 )
104
Predicado Enunciado, essencialmente, por um
adjetivo ou um particípio variável,
acidentalmente, por um substantivo, um
pronome ou particípio.
Aposição Enunciado, essencialmente, por um
adjetivo, um adjetivo ou um particípio
variável, acidentalmente, por um
substantivo, um pronome ou verbo no
infinitivo.
Ligação Enunciada , isoladamente, por uma
conjunção ou locução conjuntiva,
contrastamente , por todo pronome
adjetivo ou advérbio implicando ostensiva
ou disfarçadamente.
O fato representado pelo verbo tem a função de emitir um juízo expresso pelo
pensamento. No que concerne ao sujeito, a gramática apresenta a tradicional divisão
entre sujeito simples e composto. Para Grivet, não são só os substantivos, pronomes e
verbos no infinitivo que podem exercer a função de sujeito, mas qualquer palavra
substantivada58
pode exercer essa função. Uma consequência desse processo de
substantivação é o fato de que “uma palavra substantivada pode vir não só a formar um
sujeito, mas pode ainda formar cada um dos outros termos em que o substantivo
compete exercer uma função”. (p.347)
Os complementos são divididos em diretos e indiretos. Complemento direto “ é o
termo que abrange a palavra ou conjunto de palavras inteirando o sentido de um verbo
sem intervenção de preposição(... )” (p. 361). O complemento indireto que exige uma
preposição para completar o sentido do verbo. As espécies de palavras que exercem a
função de complementos indiretos são os substantivos, pronomes, verbos no infinitivo e
advérbios. O fato de , por exemplo, os advérbios exercerem a função de complemento
indireto revela que o autor concebia o complemento indireto de um modo muito
diferente do que concebemos hoje. Fávero & Molina (op. cit.:118) destacam que
(...) este termo não é entendido por Grivet como complemento de um
verbo transitivo indireto como hoje fazemos, diferentemente, o autor
compreende como tal também o termo que completa um nome (o que
designamos hoje de complemento nominal) ou dá uma circunstância
ao verbo (o que hoje designamos de adjunto adnominal .
58
Conforme Grivet, Toda e qualquer palavra pode vir a ser tomada em sentido substantival caso em que,
para denunciar a sua transmigração para essa classe, ela costuma amparar-se de um artigo ou de um
adjetivo determinado. (p.347)
105
O predicado é a palavra ou conjunto de palavras que mediante um verbo de estado
“declara uma qualificação ou situação do sujeito”. As principais características dos
predicados e ligar-se imediatamente a um verbo de estado e semanticamente referir-se a
ao sujeito da proposição.
A aposição é toda palavra “que prende-se diretamente pela concordância possível a
um substantivo, pronome ou infinitivo para tornar-lhe o sentido mais preciso”
(GRIVET:403). As aposições podem ser essenciais ou acidentais. Essenciais são
artigos, adjetivos e particípios, as acidentais são os substantivos, pronomes e verbos no
infinitivo. A Ligação é “a palavra ou conjunto de palavras que por interposição, torna os
termos compostos, as proposições conexas”(id.418). Para o autor, as ligações
estabelecem o mesmo tipo de relação quer nas preposições quer entre as orações.
Por fim, o gramatico faz algumas observações sobre os idiotismos presentes na
língua portuguesa. Os idiotismos são definidos desse modo:
Idiotismo é toda a locução que embora de sentido claro, porque de uso
comum, nega-se entretanto às leis gerais da análise sintática, já porque
as palavras que a compõem exorbitam as relações que lhe são
próprias, já porque, cotejadas, em sentido genuíno, as mesmas
palavras se mostram avessas a formar uma com as outras um conjunto
racional. (GRIVET, op.cit..:418)
Diferentemente do que poderíamos esperar pelo caráter normativo e conservador da
obra, Grivet não se posiciona contrário aos idiotismos
Apesar de sua excentricidade gramatical, os idiotismos, quando
estremes de vulgarismos ou de alusões repulsivas, não são fórmulas
reprováveis, muito pelo contrário: discretamente espalhados na dicção
temperam-na por assim dizer, de um certo saber pátrio ao qual, com
muita propriedade, literatos modernos chamam de
vernaculidade.(id:418)
Na sequência, Grivet, faz severas críticas à teoria do verbo substantivo e, portanto, se
afasta das orientações da gramática geral e filosófica. A teoria do verbo substantivo
surge com a gramática de Port-Royal, mas é creditada erroneamente a Noël e Chapsal:
106
(...) ela [ a teoria do verbo substantivo] veio a dominar soberanamente
na gramática portuguesa; e hoje não há, neste assunto, autor que não
deixe de lhe fazer a devida continência , embora, nem todos pareçam
igualmente convencidos de sua desmarcada eficácia.
A verdade é que, tanto em relação ao francês, como às outra
línguas, nunca se imaginou tamanho absurdo, tão qualificada
parvoiçada. (...)
Tão maravilhoso achado, só comparável ao descobrimento da
pedra filosofal , não podia vir a predominar na ciência, sem ser
caracterizado por um título condigno; daí a aparição, no programa dos
estudos de uma Gramática Filosófica59
, assim denominada por se
incumbir de explicar a linguagem que todo mundo entende
(GRIVET:op.cit. 227-228)
Segundo Fávero & Molina, “ o alvo de suas críticas ferinas é Sotero dos Reis e sua
Grammatica Portugueza , extensamente citado, mas não nomeado” Fávero & Molina,
(op. cit :117). Conforme Grivet,
Verbo, diz o mais eminente dentre eles, porque também é o único
que, na sinceridade de sua fé, e no ardor de seu proselitismo, não se
esquivou ao dever de deduzir de seus princípios as mais longínquas
consequências, verbo é a palavra que serve para afirmar a existência
da qualidade na substancia, pessoa ou coisa, e por conseguinte o
Nexo ou Cópula que une o atributo ao sujeito da proposição, frase,
sentença ou enunciado do juízo.(p. 228)
Ainda conforme Fávero & Molina, Grivet “reforça suas críticas a propósito da
análise que Sotero apresenta à página 130 de sua obra, sobre o verbo haver, com sujeito
oculto e a significação de existir, afirmando tratar-se de idiotismos da língua”(p.118).
O reparo deste erro vulgaríssimo é na verdade atendível: engana-se
porém o autor, quando ao bom falar que recomenda chama idiotismo;
porque se Há homens, Havia festas, etc. fosse realmente discordância
de número entre sujeito e verbo, nem se deveriam nem se poderiam
desculpar; a ilusão está em cuidar-se que o verbo haver significa
existir. Logo que se advirta em que haver é derivado do latim habere ,
e com o mesma significação de ter , fica manifesto que o,
erroneamente chamado sujeito ou agente, não é senão complemento
59
Grivet aponta a existência de outras gramáticas além da filosófica: “ Quanto à outra ou outras
gramáticas, que não tratam de tão pasmosas transmutações, destas ninguém faz caso, e só se sabe que elas
existem, porque havendo uma filosófica, força é que haja que não o sejam” (p. 228)
107
objetivo ou paciente; é que o agente ou sujeito real se deixou oculto,
para conformar com o uso recebido. Assim, há homens completa-se
deste modo: O mundo há ( isto é tem ) homens60
. (GRIVET, op.cit.
233)
Após discorrer sobre a colocação das palavras no discurso, o gramático se detém na
discussão das figuras de sintaxe que define como desvios da linguagem. A sintaxe “diz-
se figurada por se chamarem figuras os diversos desvios que se produzem na
enunciação dos pensamentos” (p. 227). As figuras de sintaxe são cinco: Elipse,
Pleonasmo, Silepse, Inversão e Exclamação.
Por fim, após o estudo das figuras, o autor volta a discorrer sobre as diversas espécies
de palavras, transformando, assim, a sintaxe numa extensão da lexicologia.
A obra de Grivet representa o final de um longo processo que se iniciou com a
gramática de Port-Royal e, no Brasil, perdurou até o final do século XIX. Ao mesmo
tempo, a gramática incorpora no seu processo de descrição gramatical muitos preceitos
das novas correntes de estudo da linguagem. Na leitura que propomos, esse
“sincretismo linguístico” não decorre da idiossincrasia de um ou outro autor, mas reflete
um momento de transição na produção gramatical brasileira.
60
A mesma opinião já aparece em Moraes Silva: “ Haver é sempre ativo, e nunca significou existir, como
diz Argote, e outros. Tanto é incorreto dizer = Há homens = por existe homem, como supor, que na
significação de ter é idiotismo português concordar com sujeitos no plural. Há homens é uma sentença
elíptica, com sujeito no singular, isto é, o mundo, a espécie humana tem homens” ( apud Fávero &
Molina, op. cit. : 68 )
108
Considerações Finais
Em nosso trabalho analisamos duas gramáticas publicadas no final do século XIX; a
Grammatica Portugueza Philosophica, de Ernesto Carneiro Ribeiro e a Nova
Grammatica Analytica da Língua Portugueza, de Charles Adrien Olivier Grivet. Essas
gramáticas filosóficas tardias demostram que, ao contrário do que as propostas de
periodização e os trabalhos sobre o período parecem indicar, a produção gramatical
brasileira não vive de rupturas bruscas de orientação, muito pelo contrário, nossa
produção gramatical experimenta um desenvolvimento contínuo e com a sobreposição
de diferentes correntes teóricas. Como demonstramos, a confluência de doutrinas que
caracterizam as gramáticas desse período deve-se ao compromisso dos autores em
modernizar a reflexão gramatical brasileira.
Após a leitura das obras, podemos concluir que as gramáticas analisadas
incorporaram de maneiras diferentes as inovações das novas correntes de estudos da
linguagem. A obra de Carneiro Ribeiro apresenta como influência a tradição racionalista
francesa. É marcante na gramática referências a autores como Du Marsais, Beauzée e
Condilac. Assim, mesmo que a todo momento o autor busque dar um caráter de
modernidade a sua obra, concluímos que a gramático incorpora as inovações com os
“pés” ainda fincados na tradição anterior.
Já na obra de Grivet, percebemos um maior afastamento em relação às orientações da
gramática geral e filosófica. Apesar de textualmente não ter explicitado a linha teórica
que norteia o seu processo de descrição gramatical, concluímos que em muitos
momentos o gramático se vale das inovações das correntes “científicas”. Cabe destacar
que em muitos momentos fica evidente o desacordo do gramatico com os preceitos da
gramática filosófica; é o que acontece, por exemplo, com a crítica à teoria do verbo
substantivo e à teoria das elípse
O exame do corpus de registro linguístico revelou que as gramáticas apresentam um
caráter purista e conservador. Nas obras destacam-se como exemplo de correção e boa
linguagem autores dos séculos XVI e XVII.
Por fim, concluímos que as gramáticas refletem o período de transição pelo qual
passavam os estudos linguísticos no Brasil. Cada uma das obras analisadas pretende
109
renovar a gramática brasileira com as orientações mais modernas do seu tempo, porém,
sem romper com a tradição anterior. Sem dúvida, o pensamento oscilante e em alguns
momentos contraditório presente nas obras analisadas abriu caminho para a renovação
da reflexão gramatical do final do século XIX.
110
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