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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS COMO ESTRATÉGIA LÚDICA ALTERNATIVA PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS: DANDO SABOR AO
SABER
Letícia dos Santos Carvalho RESUMO Como tornar o ensino de Ciências Naturais (CN) mais lúdico e prazeroso? Como aproximar a vivência do educando com as atividades desenvolvidas em sala de aula? Visando responder tais questões, o presente estudo focaliza a ludicidade das histórias em quadrinhos (HQ) da Turma da Mônica e a inserção de conteúdos científicos neste gênero textual, como viabilizadores de um ensino significativo das Ciências Naturais. Para efetivação da proposta, tomamos como corpus um episódio denominado: “vai até as estrelas”, que, de forma lúdica, trata acerca da órbita dos satélites. Consideramos necessário utilizar histórias que façam parte do repertório leitor das crianças, pois, apesar de já existirem grupos que preparam HQ para atender às demandas das aulas de CN, elas possuem uma intencionalidade que, em nossa concepção, atenua um ponto primordial da leitura quadrinizada: a leveza. Como resultado do trabalho, apontamos sugestões para a prática pedagógica em seu lócus privilegiado: a escola. Contudo, não percebemos os quadrinhos como a panacéia para os problemas educacionais da sociedade, mas uma proposta que pode servir como possibilidade de um ensino significativo e prazeroso. Palavras-chave: Ludicidade, Histórias em Quadrinhos, Ciências Naturais, estratégias pedagógicas. LES BANDES DESSINÉES COMME STRATÉGIE LUDIQUE, ALTERNATIVE POUR L’ENSEIGNEMENT DE SCIENCES: EN DONNANT LA SAVEUR AU
SAVOIR RÉSUMÉ
Comment faire de l’enseignement de Sciences Naturelles plus ludique et plaisant? Comment approcher le vécu de l’étudiant aux activités développées en salle de classe? Avec le but de répondre ces questions, l’étude met en lumière le ludisme des bandes dessinées de la Turma da Mônica et l’insertion des contenus scientifiques dans ce genre textuel, comme vecteurs d’un enseignement significatif des Sciences Naturelles. Pour rendre effective la proposition, notre corpus a été un épisode nommé: “Va jusqu’aux étoiles”, qui traite, de façon ludique, à propos de l’orbite des satellites. Nous trouvons nécessaire l’utilisation des histoires qui font partie du répertoire lecteur des enfants, car malgré l’existence des groupes déjà propres pour préparer des bandes dessinées pour atteindre les demandes des cours de Sciences Naturelles, elles possèdent une intentionnalité que, dans notre conception, atténue un point primordial de la lecture des bandes dessinées: la légèreté. Comme résultat du travail, nous donnons des suggestions pour la pratique pédagogique dans son lócus privilégié: l’ école. Cependant, nous n’apercevons pas les bandes dessinées comme une panacée pour les problèmes éducationaux de la société, mais comme une proposition qui peut servir comme une possibilité d’ enseignement significatif et plaisant.
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Mots-clés: Ludisme, Bandes Dessinées, Sciences Naturelles, Stratégies Pédagogiques
A espécie humana já recebeu várias nomenclaturas, das quais, a mais
conhecida é a do homo sapiens. Contudo, diferente do culto à razão do século XVIII, se
percebeu que o homem não era apenas um ser racional. Dessa forma, surge a expressão
homo faber, que poderia se aplicar a uma série de animais, pois era referente à produção
de materiais que lhes são necessários para a sobrevivência. Nesse contexto transitório,
Huizinga, em 1938, escreve o livro “Homo ludens”, para caracterizar o “homem que
joga”, considerando esse aspecto uma condição primária e inerente ao homem, tanto
quanto o ato de pensar.
É na intensidade do jogo que reside o lazer. A principal característica do jogo é
o divertimento, que está intimamente relacionado com prazer, alegria e agrado. O objeto
de estudo de Huizinga (2007) foi a análise do jogo como forma específica de atividade,
como forma significante, como função social. Por suas características, o jogo não é
passível de definição, contudo, sabemos que ele é capaz de absorver inteiramente o
jogador, é livre, propicia uma evasão da vida real para uma esfera temporária de
atividade própria (que é o faz de conta), é cheio de ritmo e harmonia e há uma tendência
para ser belo.
A função primordial do jogo é representar e a base etimológica do termo
lúdico vem de ludus, palavra latim, de ludere, de onde deriva diretamente lusus. Ludere
pode ser usado para designar o salto dos peixes e outros movimentos rápidos, mas sua
etimologia vem da não-seriedade, ilusão, simulação. Ludus abrange os jogos infantis,
recreações, competições.
Mas, qual a relação das histórias em quadrinhos (HQ’s) com o jogo, o lúdico?
Partindo das considerações de Huizinga acerca do que se constitui um jogo,
consideramos as HQ´s material lúdico, pois propiciam um jogo de linguagem e um jogo
com personagens, têm um sistema linguístico particular, oferecendo dessa forma ao
jovem leitor um momento de identificação com as vivências dos personagens presentes
na narrativa. Essas questões particulares dos quadrinhos permitem uma aprendizagem
mediada pelos sentidos, e ao ativar as funções psicológicas superiores, torna-os mais
efetivos. Ao nos referirmos ao aprendizado, não nos limitamos à apropriação de
conteúdos conceituais, mas de procedimentos e atitudes, que não deixam de ser saberes
necessários à formação global do sujeito.
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Umberto Eco ratifica essa ideia da leitura ficcional - da qual as HQ´s fazem
parte – como jogo, ao afirmar que:
A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando, as crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos a nossa capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente. (ECO, 1994, p. 137)
As HQ´s possuem a relação semiótica do icônico e do verbal, e esse tipo de
linguagem favorece a compreensão e identificação da criança com o enredo proposto.
Esse conjunto de cores, ilustrações, onomatopeias e imaginação presente nas HQ´s
fascina o público infantil.
É bem sabido que ainda há uma série de preconceitos acerca do uso dos
quadrinhos, mas, quando será que isso iniciou? Segundo Amarilha (2006), o
preconceito remete à história da imagem no Ocidente. Seja pelos folhetos distribuídos
em dias santos, elaborados pelos gráficos espanhóis, que eram repletos de imagens e
destinados para o público analfabeto, seja pela utilização da imagem realizada pela
Igreja Católica.
Na Idade Média, essa instituição era detentora do saber presente nas Sagradas
Escrituras, haja vista que as missas eram celebradas em latim e não havia uma tradução
da Bíblia para o vernáculo, o que fazia de seus fiéis dependentes do que era
“transmitido” pelos seus líderes. Nesse contexto, a Igreja fazia uso das imagens para
retratar passagens bíblicas. Descontente com a sua situação de dependência do saber
(dentre outras questões), Martinho Lutero se torna o precursor do Protestantismo, que
tinha como uma de suas diretrizes que os seguidores tivessem acesso direto à palavra, e
não apenas recebessem passivamente o que era ensinado, por falta de conhecimento. Ele
traduziu a Bíblia para o vernáculo e investiu na alfabetização dos jovens e adultos, de
forma que os seguidores dessa vertente religiosa não necessitavam mais esperar uma
explanação do seu líder ou a observação das imagens, pois, seguindo esse raciocínio,
quem tem acesso à palavra não necessita da imagem. “Essa mentalidade respinga nas
manifestações imagéticas do nosso tempo, como na televisão e nos quadrinhos”
(AMARILHA, 2006, p. 94).
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O problema também reside no fato de que as HQ´s são um material
proveniente da cultura de massa. Com a Revolução Industrial, houve um novo tipo de
civilização: a industrial, classificada como a sociedade de massa, com a divisão de duas
classes antagônicas: a burguesia e o proletariado. Para a segunda classe de pessoas
citadas, foi criada uma ‘cultura de massa’, que é uma produção industrial de eventos e
produtos que influenciam e caracterizam o atual estilo de vida humano (ECO, 2006).
O quadrinho é um elemento da cultura de massa que vem sendo utilizado na
escola. Com a aplicação didática desses materiais, começam a surgir análises científicas
que tornam menos insipientes os estudos sobre esses materiais, explorando suas
especificidades e potencialidades formativas. Além disso, a crítica cultural leva à
abertura do discurso, o que reorienta o mercado e oferece aos leitores orientações de
análise reflexiva sobre o material. A escola, ao promover atividades que envolvam os
meios de comunicação de massa, pode levar os alunos a conhecê-los melhor, analisá-
los, desmistificando-os na medida em que os processos de produção sejam conhecidos e
estabelecendo com eles uma relação mais crítica e dinâmica. As atividades de criação e
produção são fundamentais para o aluno vivenciar a complexidade do processo, nem
sempre percebida em sua leitura apenas para o prazer em si.
Amarilha (2006, p. 94) ratifica a nossa ideia, ao afirmar que
Incorporar uma crítica em que os quadrinhos sejam considerados apenas manifestação da indústria cultural, implicando com isso limitações de qualidade é um equívoco, pois, como gênero narrativo, os quadrinhos têm apresentado alto nível de desenvolvimento de linguagem imagética, narracional e estética.
Os quadrinhos, ao longo da história, se desenvolveram como entretenimento
industrializado, por seu caráter sedutor, com o uso de imagens impressas sequenciadas,
tendo contato ou não com as palavras. Sua incorporação para fins didáticos já foi
percebida há muito tempo, seja para campanhas de prevenção de acidentes de trabalho,
de doenças ou para informativos de trânsito. Podemos afirmar que os quadrinhos, em
suas diferentes especificidades, são elaborados para todos os públicos, abarcando uma
série de conteúdos de diversas culturas.
Hoje em dia, já se percebe que as HQ´s possuem potencialidade pedagógica
especial e podem dar suporte a novas modalidades educativas, podendo ser utilizadas
em todas as disciplinas. A utilização desse gênero textual em sala de aula deve ser um
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ponto de reflexão para àqueles que se dispõe a ensinar. Sua eficácia pode se dá em
diversas áreas do conhecimento, inclusive nas aulas de Ciências Naturais.
Hoje, eles já se encontram incorporados nas aulas de Língua Portuguesa, mas
pouco se ouve falar de sua aplicação nas aulas de Ciências Naturais (como se questões
de linguagem estivessem restritas às aulas de Português). Como as HQ`s foram,
inicialmente, destinadas ao público infantil, por ser um texto de fácil assimilação,
muitos as consideram não apropriadas para serem utilizadas em sala de aula. Todavia,
algumas das particularidades dos quadrinhos podem ser percebidas nas “Seis propostas
para o próximo milênio”, de Calvino (1990, p. 32). Apesar de as colocações nas
conferências presentes no livro fazerem referência aos textos literários, características
como a leveza - que está presente na leitura de HQ`s -, tornam o texto mais prazeroso,
pois segundo o autor, “assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor
é o cômico que perdeu o peso corpóreo”.O texto leve é o que não possui um peso em
sua estrutura narrativa e nem em sua linguagem. Com isso, Calvino não desmerece os
textos com maior densidade, pois, afirma, só poderemos apreciar a leveza da linguagem
se conhecermos a linguagem dotada de peso, pois “se a idéia de um mundo constituído
de átomos nos impressiona é porque temos experiências do peso das coisas (CALVINO,
1990, p. 27) O aspecto do humor-comicidade e leveza perpassa todas as HQ`s
destinadas ao público infantil, pois é inerente à sua concepção.
Para que o professor tenha a possibilidade de criar situações de aprendizagem
que realmente tenham significado efetivo, faz-se necessário utilizar mecanismos que
façam parte do contexto cotidiano do educando. Nesse sentido, reconhecemos as HQ’s
como um instrumento que não só tem esse caráter educativo, como também relaciona os
saberes de várias áreas do conhecimento. Reconhecendo-se as particularidades das
HQ’s e a dimensão dos saberes científicos, o professor poderá recorrer a esse material
para auxiliar na compreensão dos conceitos da ciência.
Salientamos que nenhuma proposta poderá ter êxito na escola sem uma
mediação efetiva, realizada na maioria das vezes pelo professor,visto que o educador
deve ter um repertório conceitual mais elevado que o aluno para poder mediar a
discussão e superar os obstáculos epistemológicos presentes na sala de aula.
Partindo do pressuposto de que os quadrinhos − como material bibliográfico,
acessível e de fácil aceitação − fazem parte da vida cultural de nossas crianças, mesmo
que fora do ambiente escolar, e que cabe à escola ser um espaço onde se faz a ponte
entre os saberes do aluno e o conhecimento sistematizado, torna-se relevante a
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valorização desse material em atividades didáticas. Nossa proposta, especificamente, é
que se faça uso das HQ´s, sem desconsiderar as características que lhe são peculiares –
leveza, comicidade e ludicidade –, para explicitar os conteúdos conceituais que fazem
parte do currículo das Ciências Naturais.
Apesar de já existirem grupos que criam HQ´s para atender as demandas das
aulas de cunho científico, como o Projeto de Educação em Ciências Através de
Histórias em Quadrinhos (EDUHQ), desenvolvida pelo Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas (CBPF), queremos enfatizar aqui a ideia de que nosso objetivo não é utilizar
HQ´s produzidas para as aulas de Ciências Naturais. O que se pretende é fazer uso
desse veículo imagético que já faz parte do repertório das crianças. Por isso,
selecionamos uma história da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, por se tratar da
HQ mais lida no Brasil pelo público infantil (AMARILHA, 1994, HIGUCHI, 1997).
Como pela revisão da literatura não encontramos muitos estudos sobre a
utilização de histórias em quadrinhos nas aulas de Ciências Naturais, realizamos
inicialmente um estudo que buscou construir uma interface entre o ensino das Ciências
Naturais e as Histórias em Quadrinhos, analisando um conjunto de HQ`s que oferecem
possibilidades de trabalho com os conceitos científicos, com ênfase em sua função
estética e educativa, como também pensamos em estratégias de trabalho pedagógico
com as HQ’s nas aulas de Ciências Naturais dos anos iniciais do ensino fundamental
(CARVALHO, 2007).
Consideramos extremamente necessário apresentar formas de se aplicar as
HQ´s em sala de aula, visto que, se apenas nos referíssemos aos saberes científicos
contidos em cada história, não cumpriríamos o nosso intuito inicial, que é o de tecer
possibilidades para o ensino de Ciências. Dessa forma, evidenciaremos que as HQ´s não
são uma mera ilustração para se ensinar Ciências, mas podem permear toda a proposta
didática.
No que se refere à utilização dos quadrinhos em sala de aula, a nossa proposta
é que seja utilizada a leitura por andaime ou “scaffolding” nas sessões de leitura das
HQ´s. A palavra “andaime”, no dicionário, em seu sentido real significa “Armação de
madeira ou de metal com estrado, sobre o qual trabalham os operários nas construções
quando já não é possível trabalhar apoiado no chão”. No sentido da leitura que nos
propomos a realizar, andaime é um termo utilizado metaforicamente, para designar um
suporte, uma assistência de um sujeito mais experiente. Essa idéia de leitura foi
difundida por Graves & Graves (1995, p. 01) e trata-se de “uma série de atividades
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especificamente desenhadas para assistir um grupo particular de estudantes a ler com
sucesso, entender, apreender e apreciar uma seleção particular”.
Essa teoria remete-nos à “Zona de Desenvolvimento Proximal” defendida por
Vygotsky (1989), que representa a diferença entre a capacidade de a criança resolver
problemas por si própria e a capacidade de resolvê-los com ajuda de alguém, e abrange
todas as funções e atividades que o sujeito consegue desempenhar apenas se houver um
apoio (andaime) de um outro mais experiente. Esta pessoa que intervém para assisti-lo e
orientá-lo pode ser tanto um adulto quanto um colega que já tenha desenvolvido a
habilidade requerida. Vygotsky (1989, p.97) explicita bem essa teoria ao afirmar que:
Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.
Segundo o autor supracitado, o Desenvolvimento real é determinado por aquilo
que a criança é capaz de fazer sozinha porque já tem um conhecimento consolidado. A
Zona de Desenvolvimento Proximal é a distância entre o desenvolvimento real e o
potencial, que está próximo, mas ainda não foi atingido. O Mediador é quem ajuda a
criança a concretizar um desenvolvimento que ela ainda não atinge sozinha. Na escola,
o professor e os colegas mais experientes são os principais mediadores. E o
Desenvolvimento Potencial é determinado por aquilo que a criança ainda não domina,
mas é capaz de realizar com auxílio de alguém mais experiente.
A leitura por andaime, que se trata de “Um processo que permite a criança ou
ao aprendiz resolver um problema, levando adiante uma tarefa ou atingir uma meta que
poderia estar além de seus esforços não assistidos” (WOOD, BRUNER e ROSE, apud
GRAVES & GRAVES, 1995, p.01). As crianças devem ser desafiadas, mas devemos
oferecer subsídio para tal, e essa é a proposta da leitura por andaime. Nesse processo, o
professor não apenas ajuda o aluno a dar uma resposta, mas a compreender um conceito,
e, desse modo, a informação é transformada em conhecimento.
Após fazer a explanação de como iremos utilizar as arte sequencial, vamos
relacioná-las com os conteúdos de Ciências Naturais que estão implícitos ou explícitos
na história selecionada:
Cascão em: vai até as estrelas
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A história, que não fez uso da linguagem verbal (que, aliás, é uma das
particularidades dos quadrinhos: mesmo sem contar com a presença do verbal, o
icônico, por si só, dá conta de expressar o pensamento) apresenta Cascão tendo uma
ideia científica em seus momentos de brincadeira (afinal, a Ciência faz parte das
vivências do sujeito). No enredo, o personagem principal faz um foguete de garrafa
descartável, mas na verdade não obtém sucesso ao tentar fazê-lo voar em sua primeira
tentativa. Por esse motivo, formula uma série de hipóteses para ver se obtêm êxito em
sua tarefa (isso também é uma das características da metodologia científica, a tentativa
de achar possíveis respostas para as indagações e dúvidas).
A razão de Cascão não conseguir fazer seu brinquedo “ir até as estrelas”, é o
fato de que um satélite, para ser posto em órbita, deve ser colocado até uma altura de
cerca de 150 km, onde a atmosfera terrestre já está rarefeita, e a resistência do ar não
interfere no movimento. Como Cascão não teve força o suficiente para fazer com que o
foguete chegasse a essa altura(o que não seria impossível neste tipo de leitura), e não há
um motor que lhe dê esse impulso, levando em consideração outros fatores, como a
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resistência do ar e a atração os objetos para o centro da Terra, a garrafa voltou ao chão.
Nota-se que quanto mais impulso Cascão forneceu ao objeto em suas tentativas, mais
ele demorou a chegar ao chão.
Um ponto cômico da história é ver que, ao cair o foguete na cabeça de Cascão
e aparecerem estrelas, que simbolizam dor ou pancada na linguagem dos quadrinhos, ele
mostra para os seus amigos que realmente seu foguete chegou até as estrelas. Não as
que ele objetivava, mas de certa forma, para dar o tom hilário da história, chegou até
outras estrelas.
Se apenas observarmos a história e relatarmos o conhecimento científico,
haverá um avanço conceitual restrito para o educando. Cascão e suas ideias para dar o
impulso motor à sua garrafa pet1 é o que pode estimular os educandos a refletirem sobre
o lançamento dos foguetes reais. Ao estimulá-los, por intermédio da leitura por
andaime, favorecemos o desenvolvimento do pensamento hipotético dedutivo, até
chegar a um ponto de compreensão do conceito científico. Essa transposição dos
quadrinhos para a ciência ocorre fluentemente, mas, para que isso seja viável, faz-se
necessário uma mediação qualificada, e por isso consideramos tão fundamental esse
momento construtivo que se constitui a leitura por andaime.
Possíveis questões de Pré-leitura:
1. Ao ler o título da história, sobre o que você acha que vai se tratar?
2. Observando a imagem do primeiro quadro, qual seria a possível criação
do Cascão?
3. Qual a estratégia você acha que Cascão utilizou para fazer com que o
foguete voasse?
4. Você acha que ele conseguiu? Por quê?
As questões que foram elencadas permitem ao educando hipotetizar e
encontrar-se com a necessidade de Cascão - fazer o foguete voar -, tornando-o co-autor
da produção do conhecimento. Ao observar toda a história, o aluno irá perceber as
estratégias utilizadas pelo personagem. Vai poder antecipar se o foguete voará, ou não, e
1 PET é a sigla de Polietileno Tereftalato, uma resina plástica de poliéster, comumente utilizada para envasar refrigerantes.
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dar uma possível resposta para essa problemática, resposta essa que será oralizada no
momento de pós leitura.
As possíveis questões de pós-leitura:
1. As suas expectativas se aproximaram da ideia correta?
2. Se você fosse o autor da história, que outro título daria?
3. Cascão queria que seu foguete fosse até as estrelas. Ele conseguiu?
(Nesse ponto, as crianças demonstram se já percebem as sutilezas e
particularidades dos quadrinhos)
4. Por que o foguete não voou?
5. O que seria necessário para ele voar?
Consideramos que esses questionamentos propiciam ao educando a reflexão
sobre o ato de estruturar seu conhecimento, que é a proposta construtivista, que temos
tanta dificuldade de aplicar em nosso dia-a-dia, pois requer uma busca de novos
conhecimentos e possibilidades.
Como pudemos perceber, a leitura da HQ não serve apenas de pretexto para
um ensino prescritivo, mas está presente em todo o momento de apropriação dos
conceitos. Essa forma de abordagem conceitual não retira a ludicidade da história, pois
não castra a possibilidade do aluno fazer suas inferências, mas amplia suas possíveis
deduções de leitura, utilizando um material que é do interesse do aluno, de forma que
ele seja estimulado a pensar, não ficando passivamente observando a aula, mas sendo
efetivamente um construtor e reconstrutor de saberes.
Com o conhecimento das particularidades das HQ´s e da especificidade dos
saberes científicos, o professor poderá recorrer ao intercâmbio entre estes e aquelas para
viabilizar um aprendizado mais significativo, que deve ser a meta da educação para a
transformação e para uma educação mais ampla e integral, de modo que as habilidades
artísticas, culturais e lingüísticas dos educandos não sejam negligenciadas.
Consideramos o uso dos quadrinhos como recurso metodológico viabilizador
uma proposta cabível e interessante para ao ensino das Ciências Naturais, pelas suas
particularidades. Consideramos essa relação entre Ciências e quadrinhos uma discussão
pertinente, na qual quem sai ganhando é o educando e o educador, no processo
dialógico de ensino-aprendizagem.
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A utilização didáticas das HQ´s pode trazer uma série de benefícios tanto para
o aluno quanto para o educador. Muito se tem criticado o uso de perguntas fechadas
(questionários) ou extraídas idênticas ao descrito no livro didático, visto que ao
responder tais avaliações não significa que o educando se apropriou do conhecimento
proposto. Nesse contexto, as HQ’s surgem como proposta avaliativa, pois podem ser
interpretadas, permitindo que os alunos descrevam os conhecimentos científicos
implícitos, tornando-os assim epistemologicamente curiosos.
Outro ponto positivo do uso de HQ’s na sala de aula é a promoção da
interdisciplinaridade. Visto que o tempo destinado ao ensino de Ciências Naturais é
bastante reduzido (a nossa estrutura curricular ainda prioriza o ensino da Língua
Portuguesa e da Matemática), e o uso de HQ’s permite a junção de diversas disciplinas.
Para que possamos realmente atender as demandas da sociedade em que
estamos inseridos, em um universo cada vez mais globalizado, se faz necessário ter uma
sensibilidade maior para as vivências dos aprendizes, para que eles possam dar sentido
ao que é visto na escola. Este é um dos muitos desafios que temos enquanto educadores:
desenvolver um olhar mais acurado e crítico e inivador para os materiais que podem
favorecer um aprendizado mais rico, amplo e lúdico, dando assim, sabor ao saber!
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REFERÊNCIAS CITADAS: AMARILHA, Marly (Coord.). O ensino da literatura infantil da 1ª à 5ª séries do 1º grau nas escolas da rede estadual do Rio Grande do Norte. Relatório final. Natal: CNPq/UFRN/Departamento de Educação, 1994. AMARILHA, Marly. Magali e Cascão na escola: transitando entre imagens e palavras. In: Alice que não foi ao país das maravilhas: a formação do leitor crítico na sala de aula. Petrópolis-RJ: Vozes, 2006. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso – São Paulo: Companhia das letras, 1990.
CARVALHO, Letícia dos Santos. Ensinar ciências com quadrinhos: que história é essa? 105f. Monografia (Graduação em Pedagogia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das letras, 1994. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Tradução Peróla de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2006 GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framework for helping students get the most out of text. In: Reading. April, 1995 (Trad. Marly Amarilha, para estudo exclusivo do grupo de pesquisa NEPELC – UFRN) HIGUCHI, Kasuko Kojima. Super- Homem, Mônica e cia. In: Citelli, Adilson; CHIAPPINI, Ligia (coord). Aprender e ensinar com textos não escolares. São Paulo: Cortez, 1997. Vol 3. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5.ed. Tradução João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2007. SOUSA, Mauricio de. Cascão em: Vai até as estrelas. In: Cascão. São Paulo: Globo. N.463. Ago 2006 VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQ’s no ensino. In: Como usar as Histórias em Quadrinhos na sala de aula. RAMA, Ângela; VERGUEIRO, Waldomiro (orgs). São Paulo: Contexto, 2004
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VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 6. ed. Tradução José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1998.