As Urbes Buarquenasdas Cidades Utopicas a Distopia Singular

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S URBES BUARQUEANAS: DAS CIDADES UTPICAS DISTOPIA SINGULARAbilio Pacheco1A cidade uma estranha senhora Que hoje sorri e amanh te devora (Chico Buarque)

Considerado herdeiro do romantismo nos anos 60, Chico Buarque, assim como seu pai, Srgio Buarque, apresenta um pudor intelectual, a tendncia a dizer menos do que de fato pensa, a esconder a prpria erudio e inteligncia (Barros e Silva, 2004, p. 21) e costuma disfarar a erudio com humor. Geralmente associado msica de protesto e resistncia ao regime militar, somente a partir da publicao dos romances na dcada de 90 que Chico Buarque se consolida na literatura brasileira contempornea, embora a recepo crtica dos mesmos no tenha a unanimidade que sua msica tivera no passado. Aqui procuramos empreender uma leitura das representaes da cidade em dois tempos distantes da produo artstica buarqueana, a m de estabelecer um contraste, e no uma gradao, entre a representao da cidade (ideal, utpica) nas composies dos primeiros discos, seja da cidade perdida e saudosa, seja da cidade desejada, e a representao da cidade (distpica) em algumas composies mais recentes e no romance Benjamim, buscando traos infernais e demonstrando a runa da utopia, que, especialmente no romance, alm de apontar para o vis psutpico da cidade, faz uma crtica social aos aspectos da violncia urbana e policialesca que assumem matizes peculiares no Brasil. Nos trs primeiros discos, a cidade se apresenta como um espao em mutao, cuja atmosfera provinciana comea a dar lugar a aspectos da modernidade. Especialmente no primeiro LP, a cidade ainda tem casas com terrao (A banda), com varanda (Ela e sua Janela); ainda se usa fogareiro (Ela e sua Janela); as pessoas andam de bonde (Voc no ouviu); os sinos1 Mestre em Letras Estudos Literrios pela UFPa. Professor da Universidade Federal do Par - Campus de Bragana; Lder do grupo de pesquisa NARRARES - Narrativas de Resistncia.

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chamam as pessoas para a missa (Ol, ol); o eu-lrico ainda tem gestos que posteriormente sero perdidos leva rosas e doces para a amada (Voc no ouviu); as pessoas costumam car janela (A banda e Ela e sua janela); e sobretudo as pessoas ocupam a rua, onde a meninada toda se assanha (A banda), onde as moas caminham (Ela e sua Janela), onde Juca faz serenata e samba diante da janela de Maria (Juca) e principalmente onde as pessoas podem fazer batucada (Amanh ningum sabe), podem mostrar o gingado (Ol, ol) e por onde a banda passa (A banda e Amanh ningum sabe). A rua de onde vem o som em que tem mais samba (Tem mais samba). Entretanto, a partir do segundo LP (1967) as modicaes na cidade comeam a mostrar-se mais intensamente, o que causa no eu-lrico uma certa nostalgia da cidade provinciana? perdida. A cidade agora tem barracos, mas tambm tem casa com porto (Fica e Quem te viu, quem te v); o eu-lrico operrio (Com acar, com afeto) e deve ser cumpridor el [...] dos deveres do lar, bom funcionrio / cumpridor dos horrios, pois sua amada lhe diz para deixar de frias / pra largar a batucada [...] pra deixar a companhia / dos amigos que mais gosta e, rotineiramente, acorda-o e despacha pro batente, no qual, s vezes, o eu-lrico pega extra no servio (Logo eu). As pessoas no cam mais nas ruas, as pessoas no cam janela que o violo quer abrir (Lua cheia) e a praa ca vazia, tanto que o eu-lrico de Um chorinho, procura quem com ele faa coro pra cantar na rua. Trs canes desse LP so sintomticas dessas mudanas, bem como da nostalgia pela cidade que j era. Em Quem te viu, quem te v, a cabrocha que era a mais bonita da ala do eu-lrico, morava com ele num barraco, danava no cordo (grupo carnavalesco) e sambava na pista e na rua, agora s d ch danante, mora em casa com porto, dana na galeria (tribuna) e samba em mais na companhia tendo suas noites de gala (Quem brincava de princesa acostumou na fantasia). A cano deixa entrever mudanas na cidade, uma cidade dupla, dividida ou partida. Outra cano que nos mostra a mudana de hbitos, de atitudes e de comportamentos das pessoas Televiso. Quem antes vivia na roda de samba agora vive na roda muda diante da TV. Por causa dela, o homem no d mais ateno a coisas simples como olhar a lua, que d uma volta graciosa / pra chamar as atenes, que cheia e nua, chega e chama / pra mostrar evolues, e que por m encabulada e j minguando / numa nuvem se ocultando / vai de volta pros sertes. Por causa da TV, a escola de samba no vem (devem estar assistindo televiso) e os namorados j dispensam o namoro. Mas , sobretudo, Realejo que melhor nos revela essa melancolia, essa tristeza pela cidade que vai deixando de ser o que era. No terceiro LP (1968), ocorre o prosseguimento dessa mudana. A cidade no mais onde se pode fazer serenata / a roda de samba acabou (Roda Viva), anal a viola do eu-lrico levada pela Roda Vida. Agora existem168 Pesquisa em Educao:

casas com bosques murados prximos rua do eu-lrico (At pensei); mas ainda h as pessoas se importando com a vida dos outros, o que que eu digo ao povo / o que que tem de novo, pergunta-se o eu-lrico de O velho. Se no LP anterior no h ningum janela, aqui temos Januria e Carolina, a primeira que ca na janela desde muito cedo ignora, desdenha aqueles que admiram sua graa singela e, malvada, se penteia e no escuta quem apela, enquanto a outra, ignorando os apelos de sair para danar (embora, l fora, uma rosa tenha nascido, todo mundo tenha sambado e uma estrela tenha cado), Carolina no v o tempo passar na janela. Embora essas canes no nos remetam cidade fervilhante, populosa, barulhenta, violenta, elas revelam uma nostalgia pela cidade enquanto papel aglutinador, como espao de troca que assume dimenses poltica e social, cordial, afetivo e concilador. Ao mesmo tempo em que j prenunciam a perda do potencial utpico da cidade nas composies buarqueanas. Em Pedro Pedreiro, cano de seu primeiro compacto, a utopia de uma vida melhor nas capitais do Sul e Sudeste do Brasil, em especial Rio de Janeiro e So Paulo, evidenciada exatamente pelo seu revs. Pedro no revela alegria ou contentamento por ter atingido a Cana desejada (jamais prometida) pelo homem nordestino. Nessa cano, o personagem revela o desespero de esperar demais, o desejo de partir de volta, ou ainda: a espera(na) do dia de voltar pro norte, aps a constatao de que sua Cana no passava de uma iluso. Meneses acredita que Pedro Pedreiro seja, de toda obra de Chico Buarque, talvez a mais contundente crtica esperana e acrescenta com segurana que esta seria a cano da espera desesperanada (2002, p. 115). Segundo a autora, a gestao, que em Morte e Vida Severina de Joo Cabral de Melo Neto e em Primeiro de Maio (outra cano de Chico Buarque), representa a esperana (base de qualquer utopia, especialmente se tivermos em mente o princpio esperana de Ernst Bloch), aqui pode signicar a reproduo da misria (2002, p. 115), conforme os versos: E a mulher de Pedro / Est esperando um lho / Pra esperar tambm (Buarque, 2004, p. 41). A cidade no representa um espao de troca, nem exerce um papel aglutinador de convivncia harmoniosa. Em Pedro Pedreiro, a cidade , antes, um espao de explorao de mo de obra e de fora produtiva, de disperso, de conito e de onde se deseja se afastar, seja pelo retorno para o Norte, seja pela suspenso das categorias tempo e espao, ao adotar o tempo mtico do carnaval ou da festa, seja enm pela morte. Embora a chegada do trem, no m da cano, sugira a volta de Pedro para o Norte e encerre seu sonho (ou pesadelo), possvel perceber que Pedro Pedreiro seja a primeira cano a nos revelar a cidade como sede daterritrios mltiplos, saberes provisrios 169

imaginao distpica que, na cano buarqueana, tem sua maior expresso na violncia urbana, por vezes oriunda da delinquncia, por vezes da marginalidade, como podemos notar em canes como Pivete, em que o protagonista, um menino de rua que vende chiclete no sinal fechado, logo passa a assaltante, depois a puxador de carros e, por m, batalha uma bereta (Buarque, 2004, p. 172); e em O Meu Guri, em que protagonista vira manchete de jornal, aps morrer numa emboscada da polcia. Na maioria das vezes, entretanto, a violncia oriunda do poder pblico, das foras policiais, como podemos perceber em Malandro Quando Morre, gravada no mesmo ano de Pedro Pedreiro (1965); nesta cano, o pai e a namorada (ou noiva) choram a morte do malandro (provavelmente) assassinado. Em Acorda Amor (1974), o eu-lrico, que desperta sobressaltado pela chegada da dura, numa escura viatura (Buarque, 2004, p. 110) (leiase ditadura), opta por se refugiar entre os ladres. Para Meneses (2002, p. 70), nessa composio, que assinada sob o pseudnimo de Julinho da Adelaide, as prises de madrugada, o sumio inexplicado, os impasses, a insegurana, [...] se encontram no denominador comum da marginalidade. E acrescenta ainda que a marginalidade social (os malandros criminosos que so executados) se identica com marginalidade poltica (os contestatrios do regime que, culpados ou no, so eliminados), isso sem contar a marginalidade potica, que a mscara assumida por Chico e que constitui mais uma alternativa ao silncio, uma das caractersticas da linguagem da fresta, conforme Gilberto de Vasconcelos (apud Meneses, 2002). A violncia urbana das dcadas de 60 e 70, de que merece destaque aquela oriunda do regime militar, pode ser sentida em vrias canes, entre elas: Deus lhe Pague (1971), Vence na Vida Quem Diz Sim (1972/73 Calabar), Clice (1973), O que ser (1976), Anglica (1977) e Hino de Duran (Hino da Depresso 1979/1985). J Geni e o Zepelim (1977-78), uma cano da dcada de 70, apresenta nuances de uma narrativa de co (cientca) distpica. O enorme Zepelim, que paira sobre os edifcios, aponta dois mil canhes e deixa a cidade apavorada, s no transforma tudo em gelia (sic!), porque seu comandante se enamora por Geni, uma prostituta constantemente hostilizada pela populao. Assim, o pnico dura bem pouco, a catstrofe no sucede e o pesadelo distpico parte numa nuvem fria / com seu zepelim prateado (Buarque, 2004, p. 161). Os vieses distpicos mais contundentes, ligados runa, catstrofe e a vises apocalpticas, caro ausentes da cano buarqueana por quinze anos, de ns da dcada de 70 ao incio da dcada de 90, perodo de otimismo crescente (ou de anestesiamento), alimentado pelos fatos polticos do perodo: anistia, abertura poltica, retomada da democracia, eleies170 Pesquisa em Educao:

indiretas para presidente, assemblia constituinte de 1988 e eleies diretas para presidente. A energia distpica que nesse perodo aparece em bem poucas canes, e quando se faz presente, pode ser sentida apenas nas sutilezas prprias do autor (embora No Sonho Mais seja uma clara exceo), volta com toda fora numa cano do CD Paratodos (1993). Futuros Amantes insere o Rio de Janeiro na lista das cidades destrudas ccionalmente. Se Detroit, Los Angeles e principalmente Nova Iorque, j foram destrudas em obras ccionais a ponto de merecerem trabalhos acadmicos sobre essa produo artstica, aqui o Rio de Janeiro aparece como uma cidade submersa onde estariam os vestgios de [uma] estranha civilizao (Buarque, 2004, p. 268). Dois anos depois do CD Paratodos lanado o romance Benjamim2. Para Barros e Silva, tanto este quanto os outros dois romances de Chico Buarque (Estorvo e Budapeste) so variaes de um mesmo mal-estar e representao problemtica do pas e da cena contempornea (2004, p. 119). Em seu ensaio, o autor aponta trs caractersticas que aproximam os trs romances: a tendncia circular do enredo; os protagonistas cujas trajetrias apontam para um destino fatalizado e cujas vidas caminham s cegas, determinadas por uma espcie de necessidade to implacvel quando invisvel vivem merc do acaso; e os protagonistas, condenados a viver o tempo todo dentro de um sonho, mas [...] acordados, estabelecem uma relao com a cidade [...] nesse duplo registro que Barros e Silva chamou de onirismo desperto (2004, p. 119). Sobre Benjamim, o ensasta arma prevalecer um tempo circular ditado pela imobilidade, traduo do estado mineral a que est condenado o protagonista (2004, p. 121). A cidade, em Benjamim (tal como em Estorvo), submerge num excesso de signos (Faria, 1999); oscilando entre dois tempos, consequentemente entre duas cidades, cuja imagem se projeta como num jogo de luzes de um espelho falso. Embora o enredo apresente uma lgica interna singular (prxima da escrita de livre associao), possvel depreender a cidade desse romance. Abordada como uma cidade subterrnea (Matos, 2000), qual temos acesso por uma memria involuntria e cuja construo se d em caleidoscpio, em mosaico, em labirinto, em um palimpsesto, enm, em que a cidade real (o Rio de Janeiro) transgredida para uma imaginria, diluda em vrias cidades possveis e duplas: uma delas residindo na memria do protagonista e a outra Benjamim apenas sabe que existe. A cidade de Benjamim Zambraia jovem e a cidade de Benjamim Zambraia velho. A cidade de Ariela Mas, a cidade de Castana Beatriz. A cidade de Aliandro2 O segundo romance publicado por Chico Buarque, posto que Fazenda Modelo (1974) classicada pela crtica e por seu prprio autor como uma novela.

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Esgarate, puxador de carros, e a cidade de Alyandro Sgaratti, candidato a deputado. A cidade dos estudantes e a cidade dos mendigos. A cidade das autoridades e a cidade dos amigos de Jeovan. A cidade em Benjamim a cidade dos desvalidos, da procisso de mutilados, dos pobres, dos mendigos, das putas e dos ladres. Mas tambm a cidade dos privilegiados, dos empresrios (agentes de publicidade e de imobilirias), dos polticos em ascenso. a cidade daqueles que disputam uma jaqueta de tenista, fruto de um furto, mas tambm daqueles que enriquecem puxando carros. a cidade daqueles que tm que pegar transporte urbano para se locomover do subrbio ao centro e vice-versa, mas tambm daqueles que usam helicptero particular. Mltipla, multifacetada, plural, contraditria, a cidade de Benjamim na dcada de 90 bem se apresenta como uma cidade ps-moderna, onde habita o sujeito descentrado, cuja orientao espacial [se perde] num hiperespao em que tudo (pessoas, objetos, ideias...) est fora de lugar (Siqueira, 2005). Em Benjamim, as personagens sempre esto em movimento, fugindo de algo ou algum que as move ou as manipula, como se estivessem sob o controle de uma fora invisvel (o sistema!?) que monitora seus passos e guia seus destinos, da tomarem atitudes repentinas. Alm disso, parecem estar em constante estado de viglia e andar letrgicas maneira de zumbis. O liame entre sonho e pesadelo torna-se frgil e a memria tnue e tardia. Embora Gomes (apud Carreira, 2002) arme que a cidade no romance, seja o espao onde memria e identidade se organizem e possam ser recuperadas, acreditamos que seja tambm o espao onde se percam e se fragmentem, pois, especialmente, a cidade ps-moderna (ccionalizada ou no) costuma ser o espao propcio perda da identidade e fragmentao da memria. Na Amrica Latina, especialmente, as cidades tm assumido tambm um carter simblico associado s tcnicas de interveno do planejamento urbano, que cria mecanismos de controle com os quais se constri uma imagem domesticada de pluralidades de tenses no resolvveis (Gomes, 1999, p. 204). A cidade latino-americana um produto criado como uma mquina para inventar a modernidade, entend-la e reproduzi-la (1999, p. 55), sendo tambm um objeto privilegiado de uma poltica deliberada para conduzir modernizao (1999, p. 56). Da a excessiva preocupao do planejamento urbano com aspectos como a limpeza pblica exercida sob a forma de controle social, que neutraliza lugares estabelecendo muros que dividem a cidade em reas, como o centro e o subrbio, o comrcio e a periferia, as reas familiares e as zonas de prostituio. Trata-se de formas de controle e delimitao ambguas, pois as reas marginalizadas so visivelmente excludas e invisivelmente integradas (Gomes, 1999, p. 209). Como forma de controle, o planejamento urbano que colabora com172 Pesquisa em Educao:

o ideal da cidade como espao seguro e acolhedor, ao mesmo tempo ajuda a construir a sua imagem ps-utpica, na medida em que o controle, alm de no deixar a populao segura de sua ecincia, ainda causa uma sensao de desconforto e perseguio. Em Benjamim, as formas de controle, alm de dividirem a cidade em reas sociais e marginais, reforam ainda a sensao de desconforto e perseguio que Benjamim Zambraia costuma sentir em momentos de embarao ou hesitao; como no instante em que est impaciente em frente ao Bar-Restaurante Vasconcelos sem se decidir entrar ou voltar para o apartamento. A mesma sensao o faz tomar atitudes inusitadas: a simples imagem de um carro com faris acesos faz Benjamim preferir contornar o edifcio para entrar pela entrada de servio, onde assaltado por moradores de rua. O romance, ao indiciar esse paradoxo a coao provocada pela vigilncia e insegurana causada pela violncia , nos revelador da cidade como espao-sede da imaginao distpica. Nesse sentido, acreditamos ainda que o romance de Chico Buarque seja tambm resultado do questionamento apontado por Freitag quanto falncia do contrato social normalmente estabelecido entre poder pblico e populao, especialmente no que se refere ao o uso da violncia por parte do Estado como cou evidente nos casos da Candelria e do Carandiru (2005, p. 03). Para Freitag, o binmio cidade e violncia, pode ser analisado sob quatro aspectos dos quais destacaremos dois. Um deles aponta para a cidade funcionando apenas como palco e/ou cenrio de atos de violncia que acontecem em quase todos os grandes centros urbanos do mundo contemporneo (2005, p. 03) e so reexos de uma estrutura social desigual, injusta, com alta concentrao de renda nas mos de elites (2005, p. 04). Assim, a violncia na cidade decorre da organizao da sociedade subjacente. Outro aspecto do binmio cidade e violncia, apontado por Freitag (2005), consiste na cidade como sede do poder, portanto detentora da violncia institucionalizada (a violncia usada pela polcia e pelo exrcito) (p. 05) que, por outro lado, gera reaes violentas, posto que os excludos das vantagens e benefcios da economia globalizada, se revoltam e praticam aes que a sociedade considerada criminosas. No romance de Chico Buarque, esses dois binmios so claramente percebidos. A cidade buarqueana se apresenta como palco da violncia (Benjamim Zambraia assaltado prximo ao prdio onde mora e Ariela Mas tem seu relgio roubado quando est no meio da multido aps um comcio de Alyandro) e principalmente como sede do poder, tanto na dcada de 60 (pela fora exercida pelas autoridades) quanto na dcada de 90 (pela fora da polcia de extermnio dos amigos de Jeovan). Tais binmios deixam clara a postura crtica de Chico Buarque em relao sociedade brasileira, alm de reforarem nossa armao anterior de que a cidade em Benjamimterritrios mltiplos, saberes provisrios 173

indicia o paradoxo (vigilncia x violncia) e revela a perda do potencial utpico da cidade, a qual se apresenta como protagonista dessa distopia singular, por entre outras coisas distanciar-se de seu carter original: de moderno espao destinado ao convvio harmnico com o outro, ao encontro e troca, tornaram-se sepulcro da prpria utopia, palco de distopias a que o homem contemporneo busca se ajustar (FARIA, 1999, p. 190). Ridenti (1999), em artigo em que tem por m especular sobre as implicaes polticas e sociolgicas subjacentes obra, procura, por intermdio de uma leitura do romance, [...] fazer um balano da dimenso sociopoltica no conjunto dos trabalhos de Chico Buarque, produzidos entre os anos 60 e 90 (p. 168). Ridenti esclarece ainda que o fato de o romance abordar indivduos que viveram os anos 60 e 90, favoreceu uma leitura sociopoltica, privilegiando o registro poltico da obra e procurando analisar como o protagonista Benjamim Zambraia se encontra inserido no social. No livro Em Busca do Povo Brasileiro, Ridenti (2000) busca desvendar os imaginrios e as aes dos artistas e intelectuais de esquerda, embasados nas classes mdias, seus meios artsticos e intelectuais (p. 14). O romance Benjamim de Chico Buarque (considerado um artista emblemtico das dcadas de 60 e 70 e radicalizado em um romantismo revolucionrio), bem como algumas canes, usado para analisar como o artista crtico e engajado, herdeiro do romantismo nos anos 60, se contradiz e se insere no contexto cultural da poca. Para Ridenti, tanto no artigo quanto no livro (e tendo como base o trabalho de Adlia Bezerra de Meneses Desenho Mgico), Benjamim recoloca e atualiza o lirismo nostlgico e a crtica social, paralelamente ao esvaziamento da variante utpica e acrescenta que Chico Buarque expressa a perplexidade da intelectualidade de esquerda de m de sculo (1999, p. 168 e 2000, p. 229-230). No artigo (1999), Ridenti estabelece um paralelo entre a vida de Benjamim e a sociedade brasileira: a perda de Beatriz / perda da democracia, xito prossional / dcada de 70, declnio fsico / proliferao de mendigos, conhece Ariela / redemocratizao eleies para presidncia. Embora, nesse paralelo, a democracia esteja associada (s) mulher(es) amada(s), as implicaes dessa analogia so bem mais complexas, pois, tanto na mitologia pag quanto na mitologia judaica-crist, em decorrncia da primeira mulher Pandora / Eva que advm uma srie de consequncias para a raa humana: morte, velhice, doenas, sofrimento, angstia quanto ao futuro. Mas tanto Pandora quanto Eva guardam sua oposio dialtica, uma veio para que o homem no casse s e o levou ao pecado, a outra abriu a tampa da fatdica caixa de males, mas a guardi da esperana. A cidade guarda semelhante dialtica; nela que os homens passam a viver em sociedade, mas esse convvio que leva ao conito, nela que esto os males dos mais diversos, mas nela que o homem deposita a esperana.174 Pesquisa em Educao:

A mulher, que j alegorizou a liberdade em Delacroix e que smbolo da Repblica, tambm uma imagem para cidade. No toa que todas as 55 cidades de Italo Calvino tm nomes de mulher. Ceclia, Clarisse, Irene e outros nomes menos corriqueiros (pelo menos para ns ocidentais) como Eutropia, Bersabia. Alm disso, especialmente sob o ttulo de As cidades e o desejo, boa parte da descrio da cidade repousa na descrio das mulheres que nela vivem: Eu deveria [....] falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que s vezes convidam diz-se o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da gua (1990, p. 16). Para Meneses (2001), cuja leitura assume um vis psicanaltico, em algumas canes de Chico Buarque, possvel vericar uma superposio das imagens da mulher e da cidade (p. 132) Segunda ela, pelo conjunto da obra de Chico Buarque possvel delinear nas canes trs momentos de um percurso nas relaes Eros/polis. Um desvnculo total, Eros politizada e, por m, a polis erotizada. Em Benjamim, a mulher perdida representa a cidade perdida, por extenso, a sociedade perfeita, democrtica, qui, o pas tangvel, possvel, em que se acreditava em ns da dcada de 50. Representa, tambm, a esperana perdida, um tempo perdido, uma utopia perdida. A casa do Oscar3, demolida antes de existir ou intacta, suspensa no ar, como a casa do beco de Manuel Bandeira (Chico Buarque apud Barros e Silva, 2004, p. 14). O encontro com Ariela, no primeiro captulo, a constatao de que ela semelhante a Castana Beatriz (provavelmente sua lha) e a busca por ela podem num primeiro momento, ao apontar por certa nostalgia de Benjamim sugerir a presena de uma imaginao utpica. Entretanto, a leitura mais acurada da obra, aos poucos, vai desmontando a utopia nostlgica de Benjamim Zambraia. Para Ridenti, o paraso perdido da existncia pessoal de Benjamim coincide com os melhores tempos da democracia brasileira (1999, p. 177), que vo da Constituio de 1946 aos primeiros anos dcadas de 1960, anos marcados por signicativo orescimento poltico e cultural, com os movimentos pelas reformas de base, a mobilizao de estudantes, intelectuais, militares de baixa patente, trabalhadores urbanos e rurais (1999, p. 176). O paraso perdido de Benjamim Zambraia coincide com as condies objetivas da realidade pr-64; a perda da democracia com a perda de mulher amada; o recrudescimento da ditadura com a morte de Castana Beatriz (Ridenti, 1999). Desse modo, o que se costumava chamar nos anos 60 a revoluo brasileira, (179) que morre com Castana Beatriz e3 Em 1988, em texto escrito por ocasio da comemorao dos 90 anos de Oscar Niemeyer, Chico Buarque deixa escapar o desejo de morar na casa que Oscar Niemeyer havia desenhado para a famlia Buarque. Mas a casa nunca fora construda, pois o dinheiro da famlia no era suciente para a empresa. Alm disso, terreno (reservado para a construo) fora vendido num momento de mais aperto.

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que poderia ser recupervel com Ariela, estar fadada ao fracasso. Como nas melhores narrativas de co distpicas, Admirvel Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que apontam para a falncia da Stalinismo ao criticarem o Totalitarismo, Benjamim uma obra, que alm de reveladora da perplexidade da intelectualidade [brasileira] de esquerda de m de sculo (Ridenti, 1999, p. 168 e 2000, p. 229-230) conforme citamos anteriormente tambm funciona como uma espcie de sismgrafo do desmoronamento (Barros e Silva, 2004, p. 09) da utopia brasileira, tanto do pas tangvel em que se acreditava na dcada de 50, quanto principalmente da esperana de retomada deste pas na dcada de 90. Em Benjamim, a democracia perdida representada pela perda da mulher amada. Uma perda ocorrida em trs momentos: no primeiro momento ocorre quando o pai de Castana, o Dr. Campoceleste, ao ver a foto da lha no anncio de um mai de duas peas (Buarque, 1995, p. 58), embarca-a de avio para a Europa. A m de reav-la, Benjamim vai em seguida num navio cargueiro, mas logo retorna quando lhe nda o capital. Voltando da Europa (segundo momento), Castana mete-se num grupo de estudantes engajados que discutem a Amrica Latina leia-se tambm a ditadura militar e envolve-se com um professor. Benjamim descobre a traio de forma traumtica: arrancado do meio do sono por homens que invadem seu quarto, para levarem-no at a casa do Dr. Campoceleste, pois este desejava saber onde estava a lha, sumida a trs meses e que na noite anterior lhe telefonara para dizer que estava grvida, no de Benjamim, mas do Prof. Douglas, cuja foto Dr. Campoceleste insiste em mostrar para Benjamim. No terceiro momento, novamente Benjamim levado frente do pai de Castana, dessa vez de forma mais amena, o velho est convalescendo e quase sem fala suplica a Benjamim para no procurar por Castana, pois este estava sendo seguido, as autoridades apostavam que ele, inadvertidamente, terminaria por lev-las a Castana Beatriz e seu concubino (Buarque, 1995, p. 35); e o que acontece: Benjamim segue Castana, seguido pela polcia, que invade o esconderijo dos amantes na casa verde-musgo, no nal da rua 88, e fuzila-os. Num esboo de compreenso psicanaltica, poderamos concluir que, nos trs momentos, a imagem paterna como elemento ligado angstia de castrao (a separao de Benjamim e Castana) forte. Em todas, o Dr. Campoceleste est presente seja como o pai mau no primeiro momento , seja como o pai bom na advertncia a perda denitiva , seja de forte ambivalncia no segundo momento. J o Prof. Douglas projeta apenas a imagem do pai mau que fere o narcisismo de Benjamim tanto por roubar-lhe Castana, quanto por de certa forma ser culpado no ltimo momento, anal a participao de Castana no grupo de estudos se devia176 Pesquisa em Educao:

tambm ligao afetiva com o professor. (As autoridades responsveis pela morte de Castana e seu amante, nos remetem a ditadura do perodo tanto pelo poder coercivo quanto pelos mecanismos de controle e vigilncia. A ditadura salvo melhor juzo , aqui, a maior representao da gura paterna, do pai mau gura associada angstia de castrao contra quem o lho se sente sem fora e reprimido.) Entretanto, se, no primeiro momento, Benjamim esperou que Castana retornasse da Europa, no segundo convenceu-se de que ela, cansada da situao de ser amante e aps ser rejeitada pelo pai, acabaria por procurlo para que ele a acolhesse com o(a) lho(a) no apartamento dele, onde j havia um cmodo (o quarto da criana) pronto para isso, o ltimo momento (a perda denitiva), cuja culpa em parte do prprio Benjamim, que seguiu Castana, mesmo aps a advertncia do Dr. Campoceleste, mais cedo ou mais tarde converter-se- no inconsciente profundo num desejo de reencontr-la. Tanto que a notcia da morte de Castana chegou-lhe por impulsos de silncio. Benjamim passou dias esperando o telefonema que lhe comunicaria o que j sabia. Dias depois, resolvera ir praia, seguro de que os amigos estariam alinhados beira dgua, prontos para lhe transmitir as condolncias numa s voz, como um peloto de fuzilamento (Buarque, 1995, p. 102). Mas os amigos de Benjamim sumiram. Ele no os encontrava nem na praia nem no bar-restaurante onde bebiam cerveja todo m de tarde (Buarque, 1995, p. 103). Anal, se as autoridades chegaram a Castana e seu amante por Benjamim, assim tambm poderiam chegar a seus amigos. Benjamim tambm procurava no telefonar para os amigos, mas quando resolvia ligar, eles silenciavam e desligavam o aparelho (Buarque, 1995, p. 103). Assim, para Benjamim, Castana continuou a morrer durante muito tempo, cada vez que o telefone no tocava (1995, p. 102). Segundo Ridenti (1999, p. 179), a perda de Beatriz o trauma insuperado de Benjamim, assim como o golpe de 64, que interrompe o projeto de um pas possvel, o trauma da sociedade brasileira. Se para Renato Janine Ribeiro (citado por Jaime Ginzburg4), a colonizao e a escravido constituem dois traumas fundamentais da sociedade brasileira, a ditadura militar certamente constitui o terceiro. Como um trauma de toda sociedade, a ditadura tambm o trauma do cidado Benjamim Zambraia. Tanto pela perda de Castana Beatriz, quanto pelas consequncias dessa perda, como o sentimento de culpa e o insulamento. Para Benjamim Zambraia, o assassinato de Beatriz pareceu-lhe obra da fatalidade do destino. Sentia que a culpa pelo crime estava mais nele mesmo, pela imprudncia de ter sido seguido pela polcia ao esconderijo, do que4 Todas as referncias desse autor se referem ao texto presente neste volume.

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na prpria ao policial, tomada quase como infortnio natural (Ridenti, 1999, p. 175-6). Trauma principalmente porque fora conveniente com a represso da ditadura militar, silenciou diante dela, enquanto usufrua sua vida pacata e acumulava alguns bens (1999, p. 175). Para Seligmann-Silva (citado por Ginzburg), o problema fundamental da literatura que remete a um trauma histrico (seja oriundo do holocausto como aponta Seligmann-Silva , seja da tortura do regime de 64, como aqui apontamos), a formacomo representar aquilo que por denio irrepresentvel. Como tornar racionalizada, verbalizada, articulada, uma experincia que em si mesma est alm de qualquer tolerncia da conscincia, sem reduzir seu impacto, falseando sua especicidade, e sem generaliz-la, eliminando a singularidade que essencial sua estranheza. Se da experincia do trauma for removida a estranheza, o risco a trivialidade, a normalizao daquilo que, pelo terror que constitui, no pode ser banalizado (Ginzburg).

Em Benjamim, tal como Ginzburg aponta no conto O condomnio de Lus Fernando Verssimo, a ironia na de Chico Buarque concilia tenuemente o sombrio estranhamento de Benjamim Zambraia de reencontrar Castana Beatriz em Ariela Mas e a trivialidade de sua rotineira ida ao Bar-Restaurante Vasconcelos. Para Ginzburg, essa combinao inesperada do horror com o banal, do passado com o presente faz parte de um procedimento narrativo que resolveria o problema apontado por Seligmann-Silva. Aps comparar descries tcnicas de mtodos de tortura com os depoimentos de pessoas torturadas, Ginzburg aponta os principais recursos empregados em textos literrios que manifestam escritas de tortura, como O condomnio, de Lus Fernando Verssimo:O deslocamento do foco narrativo e a suspenso da linearidade temporal, que tornam o leitor prximo dos procedimentos expressivos dos torturados, que aps viverem a dor em extremo perdem as referncias precisas de constituio de sujeito, de organizao de tempo, de convenes da linguagem (Ginzburg).

Recursos que podemos encontrar na obra de Chico Buarque, embora Benjamim nos parea menos uma escrita da tortura que escrita de trauma. Trauma por denio, algo que evitamos lembrar, evitamos reencontrar (Ginzburg). No romance, o protagonista como forma de evitar a lembrana178 Pesquisa em Educao:

traumtica tenta recusar o real, construindo em torno de si um mecanismo de proteo da realidade [...] vivendo como um simulacro de si mesmo (Paz, 2001) e, dessa forma, vive num mundo de iluso. Durante duas dcadas e meia, Benjamim no buscou novos afetos (a no ser a Pedra do Elefante) nem desmontou o quarto da criana, fugiu dos antigos amigos/conhecidos que lhes pudessem trazer tona a lembrana de Castana e o remorso pela culpa. Entretanto, numa de suas idas ao Bar-Restaurante Vasconcelos, Benjamim encontra Ariela Mas. Tendo a sensao de conhec-la, Benjamim retorna para casa a maior parte do tempo de olhos fechados, pretende chegar em casa com a imagem intacta [...] necessita confront-la com antigas fotos (1995, p. 22-3). Em casa, Benjamim pega suas pastas de fotos da dcada de 60 e, na pasta lils de 1963, percebe a semelhana entre Ariela Mas e Castana Beatriz e convence-se de que Ariela a lha de Castana. O acaso ir fazer Benjamim encontrar novamente Ariela, que trabalha numa imobiliria, quando ela vai mostrar um apartamento para Alyandro e por ocasio de uma gincana na revendedora de carros onde trabalha Zorza, amante de Ariela. Ariela uma personagem aparentemente ingnua que morava num vilarejo e que no primeiro dia na cidade conhece Jeovan, com quem se casa mais tarde. Jeovan possessivo, ciumento e machista, por causa dele, Ariela abandona o esporte e s vai trabalhar na imobiliria do Dr. Cantagalo porque o proprietrio amigo do marido e l ela poderia ser vigiada, principalmente depois do incidente que deixou Jeovan paraplgico. Alm do dono da imobiliria e da recepcionista que anota o horrio em que Ariela sai, os amigos de Jeovan costumam segui-la num txi preto. Para Ridenti,sem conscincia de seu passado, Ariela Mas no pode, no quer, ou simplesmente no consegue se livrar da morte em vida, do presente, do fantasma corporicado em Jeovan e dos policiais que a tutelam. Contudo, o mistrio de Ariela para Jeovan que ele e seus amigos no logram domin-la por completo: mesmo sem um norte, com os passos controlados, ela mantm suas aventuras e o prazer de insinu-las ao marido. Ariela talvez represente a maioria da sociedade brasileira nos anos 90, que no se liberta da herana da ditadura e de sculos de opresso, mas tampouco pode ser totalmente domada pelos donos do poder (1999, p. 179).

Vrias situaes no romance servem para aproximar Ariela Mas de Castana Beatriz. Entretanto a semelhana total sempre se perde por algum detalhe. Ambas vivem sob vigilncia/superproteo afetiva: Castana pelo Dr. Cantagalo, Ariela pelo namorado Jeovan, um ex-policial entrevado; eterritrios mltiplos, saberes provisrios 179

tambm uma situao de represso armada (implicitamente): Castana pela ditadura militar, Ariela pelo grupo de extermnio ao qual so ligados Jeovan e o Dr. Cantagalo. elucidativo o fato de ambas terem suas imagens ligadas morte: Castana morre junto com o professor Douglas no sobrado verdemusgo no m da rua 88, depois que Benjamim se deixa involuntariamente seguir pelas autoridades, Ariela deixa-se (no to involuntariamente) seguir at o mesmo sobrado, para que o grupo de extermnio que fuzilaria Alyandro, encontrasse Benjamim. Ridenti aponta que os rgos de represso, que liquidavam oposicionistas durante a ditadura, foram transformados em grupos de extermnio de supostos bandidos ou de cidados comuns, considerados inimigos por quaisquer idiossincrasias dos policiais matadores (1999, p. 179). Desse modo, a cidade ideal apresenta seu vis distpico, a mulher amada / as condies do Brasil pr-64 transforma(m) o romance numa narrativa policialesca, cujo resgate, embora vislumbrado numa fantasmagoria, no pode ocorrer.Se Ariela no Beatriz, separadas que esto por cerca de 25 anos, tampouco a sociedade, a poltica e a democracia no Brasil so as mesmas. Isso no aparece explicitamente no livro, que primeira vista pouco tem de poltico. Mas as novas condies da vida sociopoltica nos anos 90 aoram em cada pgina: a presena constante de mendigos nas ruas; a banalizao da violncia no cotidiano; a decadncia da estrutura urbana; a decomposio de um edifcio de apartamentos de classe mdia; o transporte em nibus malcuidados de operrios e empregadas domsticas da periferia para o centro da cidade; a trajetria ascendente na poltica do bandido Alyandro Sgaratti, em campanha antecipadamente vitoriosa nas eleies democrticas para o Congresso Nacional (Ridenti, 1999, p. 178-9).

A distopia de Benjamim no a distopia de mquinas e robs enlouquecidos, mas da realidade humana decadente e irreversivelmente degrada pela ao do prprio homem especialmente instalado nos planos de poder poltico, militar ou ambos. Se, na distopia de Huxley existem os Controladores Mundiais, e em George Orwell temos o Big Brother, na cidade distpica de Benjamim Zambraia, o poder pblico institucionalizado, que na dcada de 60, se centralizava nas mos das autoridades, na dcada de 90, se descentraliza e se espalha nas mos das foras policiais menos preocupadas em levar a felicidade e bem-estar populao que atender simplesmente a interesses individuais de pessoas de determinado (s) grupo (s).180 Pesquisa em Educao:

No romance, o grupo de extermnio formado pelos amigos de Jeovan uma amostra dessa descentralizao. Diferentemente, entretanto, das distopias clssicas que incentivam o comportamento sexual com vistas a evitar que as energias erticas pudessem se canalizar para um potencial subversivo, eles, ajudados pelo taxista Zil, pelo Dr. Cantagalo e pela secretria da imobiliria, controlam os passos de Ariela com o intuito de punir quem quer que dela se aproxime com interesse sexual. Se, nas distopias de Huxley e de George Orwell, o Totalitarismo que suscita uma sensao de que algo dera tremendamente errado e isso resultou numa desesperana aguda quanto ao futuro, na distopia buarqueana essa sensao parece decorrer no (ou no s) da ditadura militar, mas de uma retomada da democracia que no veio a oferecer o que se esperava, de forma a servir como crtica no s perda do potencial utpico da cidade assinalado anteriormente , mas tambm a constatao de que a sociedade brasileira [que] se preparava como nunca para aceitar um governo legitimamente democrtico, terminou por ser decepcionada (Santiago, 1988, p. 23), revelando a desiluso na democracia que j no resgataria o pas tangvel da dcada de 60. Referncias BARROS E SILVA, Fernando de. Chico Buarque. So Paulo: Publifolha, 2004. BOOKER, M. Keith. Dystopian Literature: A eory and Research Guide. Westport: Greenwood Press, 1994b. __________________. e Dystopian Impulse in Modern Literature: ction as social criticism. Westport: Greenwood Press, 1994a. BUARQUE, Chico. Benjamim. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. ________________. Letra e msica. 3. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. CALVINO, Italo. As Cidades Invisveis. Trad. Diogo Mainardi. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2005. CARREIRA, Shirley. A cidade ausente e a representao da cidade na literatura latino-americana contempornea. In: Sincronia, Mxico: Fall, 2002. Extrado de [http://sincronia.cucsh.udg.mx/carreira2o02.htm]. CAUSO, Roberto de Sousa. As distopias de George Orwell. Revista Cult. So Paulo, v. 6, n. 71. p. 48-55, 2003. COELHO NETO, Teixeira. O que utopia? So Paulo: Crculo do livro, 1990. FARIA, Alexandre. Literatura de Subtrao. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 1999. FERNANDES, Rinaldo (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canes, o teatro e a co de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond / Fundao Biblioteca Nacional, 2004.territrios mltiplos, saberes provisrios 181

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