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ESTEVAN LO R POUSADA
ASPECTOS DE UMA TRADIO JURDICA ROMANO-
PENINSULAR:
DELINEAMENTOS SOBRE A HISTRIA DO MANDATO NO
DIREITO LUSO-BRASILEIRO
Tese de Doutorado realizada sob a orientao do Professor
Titular IGNACIO MARIA POVEDA VELASCO,
do Departamento de Direito Civil rea de Histria do
Direito da Faculdade de Direito da Universidade de So
Paulo.
SO PAULO
Janeiro de 2010
2
coragem de Secundino Pousada;
e f de Felice Lo R.
3
NDICE
Apresentao .................................................................................................................... p. 5
Introduo ........................................................................................................................p. 12
PARTE PRIMEIRA:
HISTORIOGRAFIA GERAL
(Quatro aspectos peculiares da evoluo do contrato de mandato e da representao
negocial).
Captulo I. Procuratio, contrato de mandato e admissibilidade excepcional da
representao direta pelo direito romano ........................................................................p. 45
Captulo II. O direito cannico e o desenvolvimento medieval da representao direta
..........................................................................................................................................p. 87
Captulo III. A atividade notarial e o robustecimento da representao direta no mbito do
direito comum ..................................................................................................................p. 97
Captulo IV. O influxo iluminista e a essencializao da representao direta no contexto
do contrato de mandato .................................................................................................p. 104
PARTE SEGUNDA:
HISTORIOGRAFIA LUSO-BRASILEIRA
(A evoluo do contrato de mandato no direito luso-brasileiro).
Captulo V. O contrato de mandato (e sua relao com a representao negocial direta)
consoante as fontes do direito visigtico .......................................................................p. 122
Captulo VI. A primeira etapa do renascimento do direito romano (justinianeu) e o contrato
de mandato segundo as fontes castelhanas ....................................................................p. 145
Captulo VII. Lineamentos sobre a eficcia da procurao segundo as fontes do direito
lusitano ..........................................................................................................................p. 182
Captulo VIII. A ascenso e o declnio do direito justinianeu no panorama das fontes
jurdicas lusitanas: notas sobre a transio rumo a um mandato de contornos liberais
........................................................................................................................................p. 219
Captulo IX. Uma historiografia interna exclusivamente portuguesa: instaurao e
reformulao de um contrato de mandato de contornos liberais
........................................................................................................................................p. 257
Captulo X. Historiografia exclusivamente brasileira: os contornos eficaciais do contrato de
mandato anterior ao cdigo civil de 2002 .....................................................................p. 296
4
PARTE TERCEIRA:
CONCLUSO.
Captulo final. Consideraes conclusivas ....................................................................p. 403
Bibliografia ....................................................................................................................p. 410
Relao das fontes utilizadas .........................................................................................p. 451
Anexo I - Tbua cronolgica de diplomas legais (sistema diploma/data) ....................p. 502
Anexo II Tabela de correspondncia n I Direito castelhano ..................................p. 503
Anexo III Tabela de correspondncia n II Direito lusitano (perodos medieval e
moderno) .......................................................................................................................p. 510
Anexo IV Tabela de correspondncia n III Direito portugus contemporneo .....p. 524
Anexo V Tabela de correspondncia n IV Direito brasileiro contemporneo .......p. 531
Anexo VI Documento: Anteprojeto de Parte Geral do Cdigo Civil (1970) de Jos
Carlos Moreira Alves (extrato) ......................................................................................p. 551
Resumo ..........................................................................................................................p. 554
Riassunto .......................................................................................................................p. 555
Abstract .........................................................................................................................p. 556
5
APRESENTAO.
Esta apresentao corresponde ao elemento mais pessoal de todo este
trabalho. Nela esto contidas algumas informaes que podem contribuir para tornar mais
claras ao leitor algumas obscuridades do texto que se segue; nela, igualmente, pode ser
entrevista a ponta de um novelo que evidencia as prprias fraquezas estruturais deste
estudo. No entanto, no nos pareceria adequado compartilhar com o leitor o resultado final,
sem que se fizesse preliminarmente um breve apontamento sobre a trajetria da
pesquisa que nele redundou.
Tudo se inicia com a admisso de nosso fracasso: buscvamos ao incio de
nossos trabalhos produzir um ensaio de natureza dogmtica. vista da linha de pesquisa
adotada pelo autor, por seu orientador e pelo grupo a que orgulhosamente pertence, a
investigao haveria de apresentar um vis histrico: o prprio tema abordado o
propiciava, uma vez que nos manuais mais elementares se afirmava que em Roma, a
despeito da existncia do mandatum, no se admitia a representao direta. Tratava-se
to somente de desenvolver tal assertiva, se possvel coordenando-a com o direito
contemporneo; pois que, de incio, o pesquisador pretendia abordar a distino entre os
institutos do mandato e da representao para tanto lanando mo, sobretudo, das
fontes contemporneas brasileiras e aliengenas.
No entanto, a primeira pedra que surgiu em nosso caminho foi aquela sobre
a qual erigimos todo o nosso trabalho: imagine-se que o cientista, pretendendo separar duas
substncias que integram uma mistura miscvel, se convence da existncia de uma terceira.
Em lugar da destilao antes pretendida, sua ateno se volta, ento, descoberta
acidentalmente realizada. Por mais que toda a comunidade cientfica conhecesse tal
substncia, aquela novidade to somente relativa acabaria por tomar algumas noites
de sono do referido pesquisador.
E foi exatamente isso o que aconteceu com este autor. Algumas pessoas
bolam teses. Outras as escrevem. Este investigador, no entanto, a viveu durante os
ltimos mil dias e certamente durante as ltimas mil noites.
Ao nos depararmos com o direito romano, buscvamos ali o fundamento
histrico elegante ou mesmo o argumento de autoridade para uma dissociao entre o
contrato de mandato e a representao negocial. Ora, conhecedores razoveis que
ramos do direito contemporneo, espervamos encontrar o mandatum; e pretendamos
6
nos deparar com a ausncia de uma eficcia representativa direta. At a, tudo andou
conforme o planejado. No entanto, eis que como fantasma nos exsurgiu a procuratio.
Mas procurao no corresponde ao negcio jurdico unilateral de outorga
de poderes representativos?. De fato, aquele instituto romano por sua simples existncia
acabou por tumultuar todo o projeto de pesquisa que tnhamos em mente.
Nossos estudos prosseguiram. At o ponto em que no se podia mais
procrastinar uma escolha metodolgica fundamental. Usualmente, esta uma opo que se
faz de incio, antes que se comecem as pesquisas mais acuradas; em nosso caso, assumiu
uma feio francamente superveniente.
Em reunio com nosso pai acadmico, tnhamos duas opes
fundamentais: ou se abria mo da investigao histrica; ou se punha de lado a parte
dogmtica do estudo. Com alegria dele recebemos a confirmao de que este segundo
objeto poderia ser analisado em uma oportunidade futura.
De fato, os aspectos gerais da relao mantida entre os institutos da
procurao, do mandato e da representao j haviam sido analisados por inmeros
autores inclusive em sua perspectiva histrica. No entanto, a gestao do mandato luso-
brasileiro no havia merecido semelhante devoo. Certamente, muitos investigadores
mais preparados poderiam ter se voltado a este tema. No entanto, este autor no tem
conhecimento de nenhum que tenha dedicado uma pesquisa de mais largo flego a uma
investigao historiogrfica sobre o tipo contratual objeto de nossas pesquisas.
O panorama com que nos deparamos era muito amplo. Graas a Deus no
sabamos quanto haveramos de caminhar quando iniciamos nossa tarefa; pois se
soubssemos, acreditamos que nossa fraqueza de carter haveria de preponderar sobre a
misso a ser desenvolvida. De todo modo por razes de ordem metodolgica buscamos
nos concentrar em algumas premissas fundamentais. Exponhamo-las.
O cerne de nossa pesquisa haveria de corresponder a uma investigao luso-
brasileira; assim, a historiografia geral deveria atender a um propsito bastante especfico:
evidenciar a relao mantida entre os institutos da procurao, do mandato e da
representao pondo em relevo a essencializao moderna desta ltima na
arquitetura do tipo contratual investigado.
Alm disso, precisvamos eleger escrupulosamente as fontes do direito
luso-brasileiro a serem pesquisadas. Assim, optamos pelo estudo das fontes primrias de
nosso direito; em primeiro lugar porque, em tempos mais remotos, foram elas que alm
7
dos costumes chegaram inarredavelmente prtica quotidiana. Ademais, fomos
impelidos a esta alternativa porque pareceu-nos que somente ela nos permitiria
concatenar a tarefa abrangente a que nos havamos comprometido.
Alis, se por um lado nossos objetivos nos impeliam a uma abordagem das
fontes primrias, de outra banda no nos pudemos desvencilhar de um compromisso
metodolgico fundamental: nossa investigao pretende contribuir Histria do Direito.
Assim, o direito romano abordado pelo romanista no o mesmo que estudado pelo
historiador: aquele pretende ter acesso s fontes e quilo que o direito romano foi em seu
respectivo contexto histrico de produo; este, todavia, no pode se afastar de uma
investigao que tenha em mira a maneira segundo a qual suas fontes foram transmitidas
posteridade.
Em termos prticos: dificilmente um romanista dedicado investigao de
um especfico instituto lanaria mo, durante os seus trabalhos mais acurados, de manuais;
ao contrrio, pretenderia se debruar quase que exclusivamente sobre monografias
especficas. No entanto, ao historiador parece importante compreender a razo por que a
obra de Ferdinand Mackeldey, por exemplo, destoa consideravelmente dos demais manuais
de direito romano de sua poca. Observao semelhante, alis, deve ser feita quanto
utilizao de obras contemporneas por parte do jurista dogmtico; da mesma forma, dele
tivemos de nos distanciar metodologicamente em virtude dos estritos objetivos a que
nos tnhamos proposto.
Por tais razes, consideraes dogmticas mais profundas e o prprio
estudo do direito comparado somente poderiam ser realizadas incidentalmente; caso
contrrio, o desfecho de todo o trabalho poderia restar comprometido.
A fim de que pudssemos cumprir nossos propsitos, elaboramos diversos
quadros e tabelas, alguns dos quais se incorporam, nesta ocasio, sob a forma de anexos a
este trabalho. Na verdade, os quadros comparativos se entrelaam, intimamente, com
outros dois assuntos: o mtodo de exposio adotado e as notas de rodap que instruem o
texto principal.
Antes de iniciar a leitura do estudo, o leitor deve ter em mente uma premissa
indispensvel ao seu prprio xito: toda a historiografia interna luso-brasileira
exceo do fragmentrio direito visigtico foi fundada na prvia elaborao de tais
quadros esquemticos. Eles corresponderam ao principal instrumento de trabalho deste
autor. Por isso, ocupam uma posio importantssima em nossa investigao, pois
8
correspondem, em verdade, prpria tese em uma verso sinttica. Coube-nos, to
somente, vert-los, cuidadosamente, em um texto dissertativo.
Para tanto, lanamos mo de uma rigorosa estruturao da ordem expositiva.
Podemos garantir ao leitor que nenhuma assertiva lanada no corpo do texto se repete
noutra linha subseqente. Alis, tambm podemos assegurar que todas as afirmaes
contidas no texto contam com respaldo comprobatrio em notas de rodap.
Ciosos da boa metodologia de pesquisa, no pudemos, todavia, nos furtar a
longas e por vezes fatigantes notas de rodap: certamente o esforo do leitor em l-las
no menor do que aquele despendido pelo autor em sua confeco. No entanto, os
objetivos da obra no nos permitiam articul-la metodologicamente noutra forma.
Observe-se que excetuados esta apresentao e o captulo derradeiro,
dedicado s consideraes conclusivas todos os pargrafos do texto so numerados e
acompanhados de uma breve epgrafe denunciadora de seu contedo. A numerao atende
ao propsito de tornar mais fcil o acesso aos diversos contedos abordados. J as
epgrafes se voltam ao leitor que pretende efetuar uma segunda abordagem do estudo:
delas lanando mo, ser possvel localizar qualquer assunto abordado no texto de maneira
relativamente rpida. Alm disso, da coordenao entre ambos numerao e epgrafes
deflui uma linha expositiva que talvez no se tornasse perceptvel ao leitor se no nos
tivssemos utilizado de tais expedientes.
Os quadros comparativos que integram este estudo sob a forma de anexos
contm referncias a diversas fontes que guardam similitude quanto a alguns aspectos.
Assim, quando desdobradas em nota de rodap, transcreveu-se to somente a mais antiga
(dentro de cada um dos perodos analisados); as demais foram to somente referidas
quando no implicassem mudana significativa de orientao (hiptese que nos compeliu,
por vezes, transcrio destas outras).
Alis, no foram poucas as transcries: as palavras de censura daquele que
mais nos influenciou quanto a questes metodolgicas o Professor Titular Eduardo Csar
Silveira Vita Marchi permanecem ecoando em nossa mente. No entanto, ao estimado
mestre, temos apenas uma resposta: tentamos delas nos servir apenas quando isso nos
pareceu estritamente necessrio.
neste ponto, pois, que se encerra a apresentao deste estudo e se
iniciam algumas palavras de agradecimento queles que tornaram possvel este trabalho.
9
Em primeiro lugar, devemos agradecer nossa famlia. Por sua
compreenso, por seu carinho, por sua pacincia e sobretudo por sua confiana
irrestrita. Em uma palavra, por todo o seu amor.
Em segundo lugar, a Elaine Lavaissiere de Melo. Nenhuma pessoa no
mundo consegue entender melhor do que ela como este pesquisador viveu esta tese
durante estes ltimos anos de sua vida. A ela fica o reconhecimento por seu estmulo
constante; por sua carinhosa palavra dura ou afvel nos momentos em que este autor
quis fraquejar; e por sua inesgotvel pacincia quando de nossas freqentes
instabilidades sbitas.
Alm disso, devemos agradecer a diversos amigos que, uns mais prximos,
outros mais distantes, contriburam com palavras e atos de estmulo dirigidos a este
pesquisador.
Assim, somos gratos ao Centro de Extenso Universitria (CEU) e
Fundao Escola de Comrcio lvares Penteado (FECAP). Por intermdio destas
instituies pudemos estreitar nossa amizade com os Professores Antonio Jorge Pereira
Jnior, Paulo Restiffe Neto, Gilberto Haddad Jabur, Jos Osrio de Azevedo Jnior,
Marcelo Vieira von Adamek, Andr L. Costa-Corra, Ana Paula Savia Bergamasco
Diniz, Alexandre Multini Mihich, Fbio Pinheiro Gazzi, Rodrigo Fernandes Rebouas,
Glauco Peres da Silva, Dcio Azevedo Marques de Saes e Pedro Proscurcin. Foi nestas
instituies que tivemos o privilgio de conviver com Fabiana Rodrigues da Fonseca,
Vera Lcia Viegas Liquidato, Alexandre Gaetano Nicola Liquidato e Marco Fbio
Morsello.
Agradecemos, ainda, Coordenadoria Geral de Especializao,
Aperfeioamento e Extenso da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (COGEAE-
PUC/SP) e Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getlio Vargas
particularmente pela confiana demonstrada ao longo dos ltimos anos.
Alis, sem o concurso destas ltimas quatro instituies no teria o
pesquisador realizado sua tarefa tal como o pde fazer. Razo pela qual os agradecimentos,
mais do que tudo, correspondem a um dever deste autor.
Mas como nem s de po vive o pesquisador, agradecemos ainda aos
Professores Joo Baptista Villela, Antnio Manuel Hespanha e Sandro Schipani pelo
reconhecimento emprestado seriedade de nossas investigaes.
10
Palavras de carinho e de profunda admirao tambm devem ser
dirigidas aos seguintes Professores da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo,
os quais nos incentivaram, constantemente, em nossas pesquisas: Antonio Junqueira de
Azevedo (in memoriam), Luiz Carlos de Azevedo, Joo Alberto Schtzer Del Nero, Jos
Luiz Gavio de Almeida, lvaro Villaa Azevedo, Hlcio Maciel Frana Madeira e
Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes.
Alm deles, outros professores e amigos tiveram conosco contato mais
prximo, custa das constantes reunies do Grupo de Monitoria e Pesquisa da Cadeira de
Histria do Direito: aos Professores Maria Cristina da Silva Carmignani, Eduardo
Tomasevicius Filho, Ivan Nogueira Pinheiro, Ivan Jacopetti do Lago e Jlia Rosseti Picinin
Arruda Vieira e aos amigos Renato Sedano Onofri e Rodrigo Srgio Meirelles Marchini
nossa imensa gratido por toda a pacincia neste perodo turbulento de nossa vida.
Somos muito gratos ao Servio de Biblioteca e Documentao da Faculdade
de Direito da Universidade de So Paulo; pois foi graas ao seu acervo que esta pesquisa se
fez seja ela, afinal, bem ou mal-sucedida.
Agradecemos, ainda, aos funcionrios desta Casa, dos quais nos despedimos
aps quatorze anos de convivncia por meio de uma saudao especial querida Lcia
Aparecida Alves de Menezes.
Pela amizade slida, agradecemos a Luciano de Camargo Penteado, Marcos
Takaoka, Jaime Meira do Nascimento Jnior, ngelo Rigon Filho, Alessandra Maria
Bosco e Andr Rebouas (in memoriam) alm da Dra. Lilian de Melo Silveira.
Pela presena constante nestes ltimos tempos e pela palavra amiga que
sempre nos dispensaram no temos palavras para agradecer a Alaor Dionisio da Silva,
Raphael Blanco Cabello, Celso Bocatto e Manuel do Couto Fial. Suas imagens to
queridas jamais se apagaro de nossa memria.
Pela confiana depositada no jovem investigador, agradecemos novamente
ao Ministro do Supremo Tribunal Federal e Professor Titular da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo Jos Carlos Moreira Alves. Este autor espera, sinceramente, ter
honrado o seu voto.
Pela presena metodolgica permanente em meio a nossas investigaes,
agradecimento especial dirigido ao j referido Professor Emrito da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais Joo Baptista Villela. No entanto, agradecemos
11
mais por sua amizade, demonstrada em vrias das ocasies em que compareceu capital
do Estado de So Paulo.
Palavra de respeito e admirao sincera dirigida ainda ao Professor Doutor
Alcides Tomasetti Jnior, nosso orientador durante o Curso de Graduao na Faculdade de
Direito do Largo de So Francisco. Sua figura assim como a do Professor Titular
Eduardo Csar Silveira Vita Marchi nos guiou, direta e indiretamente, durante toda a
trajetria desta investigao.
Finalmente, queremos e devemos agradecer a nosso orientador,
Professor Titular Ignacio Maria Poveda Velasco. Um Mestre sereno, erudito, discreto,
perspicaz e acima de tudo absolutamente ntegro. A um s tempo soube cobrar de seu
discpulo toda a seriedade que ns pretendemos demontrar com este estudo; porm, se
mostrou uma das poucas pessoas que, afora algumas das acima citadas, se preocuparam
com o estado de sade e de esprito deste amigo. Extremamente ocupado, teve de
constantemente ouvir os nossos choramingos, uma vez que sua misso de construir uma
nova Facvldade de Direito tornou mais espaados os nossos contatos presenciais.
Assim, que a nica oportunidade em que nos utilizamos da primeira pessoa
do singular sirva para destacar: querido Professor Poveda, espero ter podido honr-lo,
cumprindo adequadamente este mandato.
12
INTRODUO.
1. A repercusso diversificada da Lei n 10.406/02 sobre os diversos
meandros do sistema jurdico civil. O advento da Lei n 10.406/02 surtiu diferenciados
efeitos quanto aos variados aspectos da vida civil de seus destinatrios: enquanto algumas
matrias foram objeto de uma atuao acentuadamente inovadora do legislador, outras
no experimentaram qualquer descontinuidade significativa. No entanto, a despeito de
serem sempre mais evidentes ao intrprete a introduo e a revogao de dispositivos
legais pontuais, propomo-nos nesta oportunidade a abordar, incidentalmente, uma
eventual reformulao sistemtica da relao mantida entre dois institutos civis
especficos: o contrato de mandato e a representao negocial. Alis, essa nossa
investigao ser deliberadamente incidental; de fato, como teremos oportunidade de
justificar mais adiante, nossos estudos necessariamente orientados pelo propsito de
defender o presente trabalho sob a forma de uma tese de doutoramento estiveram sempre
comprometidos metodologicamente to somente com a evoluo histrica daquele tipo
contratual em meio s fontes primrias do direito luso-brasileiro1.
Nota prvia: em cada uma das notas de rodap utilizadas neste estudo, toda aluso a obra anteriormente
referida ser acompanhada de identificao quanto ao local em que foi pela primeira vez mencionada, ento
acompanhada dos dados usuais de uma referncia bibliogrfica exaustiva. A meno aos autores, no corpo do
texto e nas notas de rodap, ser feita mediante o emprego da inicial do prenome e do ltimo sobrenome,
ressalvados os casos relacionados aos juristas espanhis (que ostentam regra de patronmico prpria) e luso-
brasileiros, sendo estes ltimos referidos de acordo com a forma segundo a qual se mostram conhecidos pela
comunidade acadmica brasileira. Assim embora conhecido por FREITAS em toda a Amrica Espanhola a
referncia a Augusto TEIXEIRA DE FREITAS envolver seu sobrenome completo, uma vez que assim referido
pela comunidade acadmica nacional.
Os nomes sero grafados, no corpo do texto e nas notas de rodap, em sua forma moderna: Pascoal (e no
Paschoal) Jos de MELLO FREIRE dos Reis; em caso de dissenso sobre a grafia de prenomes ou sobrenomes
(MELLO FREIRE em lugar de MELO FREIRE), ser adotada a forma utilizada pelo prprio titular (ou
predominantemente empregada pela doutrina). Caso a dvida persista, lanaremos mo da aluso nas obras
de referncia respectivas; desta forma, quanto aos portugueses dos sculos XVIII e XIX por exemplo
tomaremos por base a forma adotada pelo Dicionrio de Histria de Portugal de Joel Serro.
Tendo em vista as finalidades e princpios especficos das regras metodolgicas adotadas neste estudo,
necessrio observar que na bibliografia os nomes sero empregados na forma constante do frontispcio da
obra respectiva, facilitando-se assim ao leitor o confronto direto com o exemplar referido no curso da
presente exposio. Mencione-se, ainda, que a referncia a personagens histricas, inclusive juristas, ser
feita em letras normais. Por sua vez, o emprego de maisculas pequenas (caixa alta ou versalete) ser feito
somente quando se tratar de citaes de autores utilizados como tais. Por tal ordem de raciocnio, ora se ter
Pascoal Jos de Mello Freire dos Reis, ora P. J. de MELLO FREIRE dos Reis; em algumas vezes Jos Carlos
Moreira Alves, e em outras J. C. MOREIRA ALVES. Finalmente, em se tratando de personagem histrica
notria, ser feita aluso ao modo como conhecida a partir da segunda meno no corpo do texto: Marqus
de Pombal, por exemplo, em lugar de Sebastio Jos de Carvalho e Melo.
A respeito das principais regras de metodologia cientfica adotadas neste trabalho, cf. E. C. SILVEIRA
MARCHI, Guia de Metodologia Cientfica (Teses, Monografias e Artigos), Lecce, Edizioni del Grifo, 2002,
passim.
1 A respeito do significado do termo destinatrio no contexto da teoria da norma jurdica utilizamos a
expresso, no texto, para nos referirmos aos sujeitos de direito que desenvolvem suas atividades sob a gide
de uma determinada ordem jurdica; por tal ordem de idias, no nos referimos to somente aos rgos
13
2. As alteraes pouco expressivas quanto disciplina pontual do
contrato de mandato. Uma anlise textual dos dispositivos do Cdigo Civil
especificamente voltados disciplina do contrato de mandato nos revela que grande parte
do acervo tcnico anteriormente disponvel foi aproveitada pelo legislador de 2002: dentre
os quarenta artigos que atualmente disciplinam a matria, trs quintos correspondem, em
larga medida, ao direito anterior seja literalmente, seja mediante singelas adaptaes
(estilstico-redacionais ou de cunho sistemtico evidente). Necessrio destacar que pouco
mais de quinze artigos revelam autntica reformulao de regras de fundo em meio aos
quais to somente trs consagram regras que no encontram qualquer correspondncia no
diploma de 19162.
jurisdicionais, tal qual preconizado por um significativo setor da teoria imperativista do direito. Sobre as
origens e manifestaes mais significativas deste ltimo modelo metodolgico, cf. R. von JHERING, Der
Zweck im Recht I, 2 ed., Leipzig, Breitkopf & Hrtel, 1884, p. 336; H. KELSEN, Allgemeine Theorie der
Normen, trad. it. de Mirella Torre, Teoria generale delle norme, Torino, Giulio Einaudi, 1985, pp. 11-22. Por
um panorama relacionado teoria imperativista do direito e seu estgio ao incio da segunda metade do
sculo XX, cf. N. BOBBIO, Teoria della norma giuridica, Torino, G. Giappichelli, 1958, pp. 142-149; U.
ROCCO, Su la esistenza del problema dei destinatari delle norme giuridiche in Studi in onore di Enrico
Redenti nel suo XL anno dinsegnamento II, Milano, Dott. A. Giuffr, 1951, pp. 281-303.
Como pretendemos desenvolver uma anlise histrica, necessrio observar que toda a cautela parece
oportuna quando se alude a alguma inovao introduzida por meio do Cdigo Civil de 2002; assim, por
exemplo, nos parece historicamente questionvel uma atuao inovadora do legislador quanto regra
estabelecida no art. 157 do Cdigo Civil que dispe a respeito da leso (defeito do negcio jurdico) a
qual, embora sem correspondente no direito nacional imediatamente anterior, encontra antecedente histrico
no apenas no direito das Ordenaes do Reino de Portugal (Ord. Af. IV, 45 pr.; Ord. Man. IV, 30 pr.; Ord.
Fil. IV, 13 pr.), como no prprio direito romano (clssico e ps-clssico) [Diocl. et Max. C. 4, 44, 2 (285) e
Diocl. et. Max. C. 4, 44, 8 (294-305)] em que as fontes portuguesas por reiteradas vezes se fundaram. A
respeito desta especfica questo, quanto ao direito luso-brasileiro anterior codificao civil, cf. M. A.
COELHO DA ROCHA, Instituies de Direito Civil Portuguez para uso dos seus discpulos, s. i. ed., Rio de
Janeiro, H. Garnier, 1907, pp. 266-267 e 427-429; e quanto ao direito romano respectivo com especfica
apreciao da atuao inovadora do legislador civil brasileiro cf. E. M. A. MADEIRA, Laesio enormis, Tese
(Doutorado) Faculdade de Direito da U.S.P., So Paulo, 1998, pp. 129-135 (esp. p. 129).
Por outro lado, tomando-se ainda em considerao o iter de construo de nosso direito civil atual, uma
autntica atividade criadora do codificador deste incio de sculo XXI no mbito legislativo pode ser
entrevista, por exemplo, na disciplina concernente aos direitos da personalidade, os quais, at o advento do
Cdigo Civil de 2002, tinham suas linhas gerais estabelecidas exclusivamente pela doutrina e pela
jurisprudncia. Nesse sentido, a disciplina estabelecida entre os arts. 11 e 21 (52) do Cdigo Civil vigente
realmente parece no encontrar correspondncia em nosso direito positivo anterior.
Conforme afirmamos no corpo do texto, algumas matrias foram objeto de uma disciplina que em nada se
distingue daquela em vigor at o final de 2002, como se pode observar naquilo que concerne confuso (arts.
381 a 384). Em contrapartida, uma anlise dos ttulos que integram o livro vigente sobre o Direito das Coisas
comparados estruturao correspondente do Cdigo Civil anterior nos revela que o direito de
propriedade perdeu a primazia sistemtica de que dispunha durante a vigncia do paradigma positivo
anterior. Teremos oportunidade de destacar que um fenmeno semelhante embora menos evidente afetou
de modo significativo o tema que constitui nosso objeto especfico de estudo.
2 A partir de uma abordagem meramente textual dos dispositivos legais que atualmente disciplinam o
contrato de mandato, podemos perceber que guardam exata correspondncia com regras do Cdigo Civil de
1916 os seguintes preceitos: art. 653 (art. 1.288); art. 656 (art. 1.290); art. 659 (art. 1.292); art. 660 (art.
1.294); art. 661 (art. 1.295); art. 668 (art. 1.301); art. 669 (art. 1.302); art. 674 (art. 1.308); art. 675 (art.
1.309); art. 677 (art. 1.311); art. 680 (art. 1.314); art. 687 (art. 1.319); art. 690 (art. 1.322) e art. 691 (art.
1.323). Por sua vez, observou-se mera adaptao redacional (sem qualquer reformulao de fundo) quanto
14
3. A insero na Parte Geral do Cdigo Civil de um captulo
especificamente voltado disciplina da representao. Situao diversa se verifica naquilo
que concerne disciplina da representao, com relao qual se observou a introduo
de um tratamento sistemtico autnomo (completamente distinto daquele que lhe era
atribudo pelo Cdigo Civil revogado); e para demonstrar o alegado basta observar que
dentre os seis artigos do Cdigo Civil vigente que regulam a matria, to somente um
encontra antecedente na legislao civil anterior: justamente o art. 118, correspondente ao
art. 1.305 do diploma de 1916 situado este, por sua vez, em meio aos dispositivos
voltados ao contrato de mandato3.
aos seguintes dispositivos: art. 655 (art. 1.289, 2); art. 665 (art. 1.297); art. 670 (art. 1.303); art. 676 (art.
1.310); art. 678 (art. 1.312); art. 679 (art. 1.313); art. 682 (art. 1.316) e art. 689 (art. 1.321). Finalmente,
destacam-se como adaptaes sistemticas evidentes os arts. 666 (art. 1.298) e 673 (art. 1.306)
respectivamente voltados compatibilizao do texto antigo com a reduo da maioridade civil e com o
acolhimento legislativo da teoria do negcio jurdico.
Sob a forma de alterao quanto orientao anteriormente adotada, inovaes relativas podem ser
vislumbradas nos seguintes dispositivos: art. 654 (art. 1.289); art. 657 (art. 1.291); art. 658 (art. 1.290,
nico); art. 662 (art. 1.296); art. 663 (art. 1.307); art. 664 (art. 1.315); art. 667 (art. 1.300); art. 672 (art.
1.304); art. 681 (art. 1.315); art. 684 (art. 1.317, II); art. 685 (art. 1.317, I); art. 686 (arts. 1.318 e 1317, III) e
art. 688 (art. 1.320). Por fim, diante da ausncia de qualquer correspondncia com os dispositivos do Cdigo
Civil de 1916, merecem destaque as inovaes promovidas pelos arts. 671, 683 e 692 feita a devida
ressalva quanto ao teor do art. 152 do Cdigo Comercial derrogado.
Pelas abordagens mais genricas dedicadas ao estudo do contrato de mandato segundo o Cdigo Civil de
2002, cf. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Curso de Direito Civil Direito das Obrigaes (2 parte)
dos contratos em geral, das vrias espcies de contrato, dos atos unilaterais, da responsabilidade civil V, 34
ed. (revista e atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf e Regina Beatriz Tavares da Silva, de acordo com o
novo Cdigo Civil, Lei n 10.406, de 10-1-2002), So Paulo, Saraiva, 2003, pp. 260-299; SILVIO RODRIGUES,
Direito Civil Dos Contratos e das Declaraes Unilaterais da Vontade III, 29 ed., So Paulo, Saraiva,
2003, pp. 285-307; CAIO MRIO da Silva Pereira, Instituies de Direito Civil Contratos, Declarao
unilateral de vontade, Responsabilidade civil III, 12 ed. (revista e atualizada por Regis Fichtner, de acordo
com o Cdigo Civil de 2002), Rio de Janeiro, Forense, 2006, pp. 397-420; MARIA HELENA DINIZ, Curso de
Direito Civil Brasileiro Teoria das Obrigaes Contratuais e Extracontratuais, 20 ed., So Paulo,
Saraiva, 2004, pp. 351-382; S. de S. VENOSA, Direito Civil Contratos em Espcie III, So Paulo, Atlas,
2007, pp. 249-278; N. G. B. DOWER, Curso Moderno de Direito Civil Contratos e Responsabilidade Civil,
3 ed., So Paulo, Nelpa, 2007, pp. 281-303; S. L. F. da ROCHA, Curso Avanado de Direito Civil
Contratos III, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, pp. 295-316; FBIO ULHOA COELHO, Curso de
Direito Civil III, So Paulo, Saraiva, 2005, pp. 311-328; C. A. BITTAR FILHO - M. S. BITTAR, Cdigo Civil
2002 Inovaes, So Paulo, IOB Thomson, 2005, pp. 56-57; N. NERY JUNIOR - R. M. de ANDRADE NERY,
Cdigo Civil Anotado e legislao extravagante, 2 ed., So Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, pp. 419-433;
C. E. N. CAMILLO - G. M. TALAVERA - J. S. FUJITA - L. A. SCAVONE JR. (coords.), Comentrios ao Cdigo
Civil artigo por artigo, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, pp. 584-601; R. FIUZA (coord.), Novo
Cdigo Civil Comentado, 5 ed., So Paulo, Saraiva, 2006, pp. 533-570; A. VILLAA AZEVEDO - S. de S.
VENOSA, Cdigo Civil Anotado e Legislao Complementar, So Paulo, Atlas, 2004, pp. 353-370; A. C. da
COSTA MACHADO - JUAREZ DE OLIVEIRA - Z. BARRETO, Cdigo Civil de 2002 Comparado e Anotado, 2 ed.,
So Paulo, Juarez de Oliveira, 2003, pp. 156-165; R. LOTUFO, Cdigo Civil Comentado I Parte Geral: arts.
1 a 232, So Paulo, Saraiva, 2003, pp. 319-340 (a propsito de sua distino em relao representao
negocial). Ressalte-se que teremos ocasio de efetuar em momento mais apropriado uma abordagem mais
cuidadosa dos textos legais acima referidos, bem como da doutrina mencionada nesta oportunidade.
3 Dos seis dispositivos voltados disciplina da representao, um deles concerne s suas fontes (art. 115),
dois aos seus efeitos (arts. 116 e 118), dois a hipteses de anulabilidade do negcio concludo pelo
representante (arts. 117 e 119) e um estabelece uma norma de reenvio (art. 120). Em estudo futuro, que
15
4. Uma regulamentao da representao na Parte Geral do Cdigo
Civil de 2002 concernente suas variantes legal e negocial. No se pode esquecer, no
entanto, que a referida disciplina da representao articulada entre os artigos 115 e 120
do Cdigo Civil no se resume quele modelo j familiar aos estudiosos do contrato de
mandato; no apenas se estabeleceu uma disciplina sobranceira (a abranger a um s tempo
as suas variantes legal e negocial), como ainda se estendeu o mbito de aplicao da
representao ex voluntate que passou a abarcar hipteses em que se verifica uma
autntica representao sem mandato4.
extrapola os limites metodolgicos da presente investigao, teremos oportunidade de observar que,
exceo do disposto no art. 120, todas as demais regras revelam influncia dos direitos alemo (1896),
italiano (1942) e portugus (1966); alis, especificamente no que concerne ao Cdigo Civil portugus,
cumpre assinalar que muito clara se mostra sua influncia quanto disciplina pontual da representao;
entretanto, no que toca conformao sistemtica eleita pelo legislador lusitano, houve como que uma
espcie de adeso parcial ao modelo referido, fato esse que no passou despercebido oportuna crtica de J.
C. MOREIRA ALVES: o Projeto, suprindo lacuna do Cdigo Civil brasileiro em vigor, reservou, na Parte
Geral, um captulo para os preceitos gerais sobre a representao legal e a negocial. Ao contrrio, porm, do
que ocorre no Cdigo Civil portugus de 1967 que regula a representao negocial na Parte Geral (arts.
262 a 269) o Projeto, seguindo a orientao do Cdigo Civil brasileiro atual, disciplina essa matria no
captulo concernente ao mandato, uma vez que, em nosso sistema jurdico, a representao da essncia
desse contrato (A Parte Geral do Projeto de Cdigo Civil Brasileiro com anlise do texto aprovado pela
Cmara dos Deputados, So Paulo, Saraiva, 1986, p. 105).
Por ora, mencione-se apenas que a razo desta adeso parcial ser posta em evidncia logo adiante. De
fato, observaremos que a promulgao do Cdigo Civil de 2002 parece denunciar uma reformulao
sistemtica da relao mantida entre os institutos do contrato de mandato e da representao negocial;
todavia, desde logo podemos assinalar que a terminologia empregada pelo legislador no art. 118 do Cdigo
Civil vigente evidencia de modo singular uma situao de desconforto quanto relao promscua at
ento mantida entre os referidos institutos: de fato, em lugar das expresses mandante, mandatrio e
instrumento do mandato, encontramos uma terminologia diversa: art. 118. o representante obrigado a
provar s pessoas, com quem tratar em nome do representado, a sua qualidade e a extenso de seus poderes,
sob pena de, no o fazendo, responder pelos atos que a estes excederem. Pergunta-se: o que se poderia
depreender de uma tal substituio? uma das questes incidentais que pretendemos analisar neste trabalho.
4 A dissociao sistemtica entre a representao negocial e o contrato de mandato abriu espao para a
produo de dois resultados potenciais: a representao (negocial) sem mandato e o mandato sem
representao; embora, por razes metodolgicas, este ltimo seja abordado com maior freqncia neste
trabalho, no podemos deixar de lembrar que a prpria representao sem mandato j encontrava
acolhimento por parte da doutrina anterior ao Cdigo Civil vigente, a propsito, por exemplo, da hiptese de
procurao em causa prpria em que o representante atua em nome alheio (embora em seu prprio
interesse e sem acatar quaisquer instrues provenientes do mandante). A respeito da procurao em causa
prpria no direito brasileiro anterior ao advento do Cdigo Civil de 2002, cf. D. R. FLORES, Notas sobre o
Mandato em Causa Prpria o que tal mandato e como faze-lo, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1933; J.
MIR JUNIOR, A procurao em causa prpria e seus efeitos, Curitiba, Tese (Livre-Docncia) Faculdade de
Cincias Econmicas da Universidade do Paran, Curitiba, 1952; M. FERREIRA, Do mandato em causa
prpria no direito civil brasileiro, So Paulo, Saraiva, 1933; M. M. da C. CRUZ, A procurao em causa
prpria definida e aplicada pela jurisprudncia, So Paulo, Typ. Univeral, s.d.; D. S. B. de LIMA, Origem e
evoluo da procurao em causa prpria, So Paulo, DIP, 1977.
Com a representao (negocial) sem mandato no deve ser confundida a atuao orgnica que F. C.
PONTES DE MIRANDA designa por presentao , tpica da hiptese de ao do rgo da pessoa jurdica, em
que aquele manifesta a vontade desta, aplicando-se ao primeiro, por exemplo, a disciplina concernente aos
defeitos do negcio jurdico (arts. 138 e seguintes do Cdigo Civil). Neste sentido, pois, a advertncia de F.
C. PONTES DE MIRANDA: h podres de representao e de ao jurdica, desde o de praticar atos jurdicos
unilaterais e de concluir contratos at o de administrar, que permitem que os atos de algum tenham eficcia
16
5. A remisso operada pelo art. 120 do Cdigo Civil. Haveria uma
vinculao entre a disciplina concernente ao contrato de mandato e aquela afeta
representao (negocial)? A despeito das diversas vicissitudes extra-jurdicas inerentes a
uma fenomenologia da representao (que em princpio no sero por ns abordadas neste
trabalho), cremos que incorreria em equvoco metodolgico grave o estudioso que se
propusesse a analis-la sob uma perspectiva completamente apartada de suas respectivas
na esfera jurdica de outrem, como se fssem atos dsse, ou, at, como atos dsse. Quem representa pratica
atos que no so do representado, mas perfazem relaes jurdicas em que o representado figura. No o que
se passa, certamente, com os rgos das pessoas jurdicas: sses presentam, no representam (F. C.
PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado Parte Especial Direito das Obrigaes: Mandato.
Gesto de negcios alheios sem outorga. Mediao. Comisso. Corretagem XLIII, 3 ed., Rio de Janeiro,
Borsoi, 1972, p. 11, itlicos nossos); em idntico sentido, cf. E. BETTI, Teoria generale del negozio giuridico,
2 ed., Torino, Unione Tiprografico-Editrice Torinese, 1960, p. 572. Entre ns, cf. M. G. MAIA JNIOR, A
Representao no Negcio Jurdico, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, pp. 55-56; bem como A.
VILLAA AZEVEDO, Cdigo Civil Comentado II Negcio Jurdico, Atos Jurdicos Lcitos, Atos Ilcitos, So
Paulo, Atlas, 2003, pp. 86-87.
necessrio destacar que da mesma forma como no se devem confundir representao e a presentao
defeso baralhar representao e nunciatura: na primeira hiptese o representante declara, por si, em
nome do representado; em outras palavras, por declarao negocial prpria percute a esfera jurdica do
representado. J na nunciatura as coisas se do de modo diverso: o porta-voz no representa (declara por si
em nome de outrem), mas simplesmente reproduz a declarao (que de outrem e sempre foi). Por tal ordem
de idias que no se h de investigar jamais na pessoa do nncio a ocorrncia de vcios quanto
manifestao de vontade; deve-se perquiri-los na esfera da pessoa que se utiliza do mensageiro. No mesmo
sentido a manifestao de F. C. PONTES DE MIRANDA: se o mensageiro transmite outra manifestao de
vontade que aquela de que foi incumbido, transmite a vontade do manifestante, erradamente. Da ter sse de
anul-la. Tem, todavia, de reparar o intersse negativo. Tudo isso assaz diferente do que se passa com os
procuradores. Da a necessidade de se saber de que figura se trata, se de representante, ou se de mensageiro.
Se nenhuma liberdade tem no que transmite, trata-se de mensageiro (...) se recebe procurao escrita, ou pode
assinar, ou verificar papis, impostos ou outros dados, procurador. Quanto ao rro, que mais ressalta, nos
resultados, a diferena. Se B diz que A manda dizer, B mensageiro, porm, a, mais importam as
circunstncias que as palavras; se entra em ajustes, exames de ofertas ou contra-ofertas, se toma parte em
tratos preliminares, de procurador que se trata. So circunstncias que pesam: se B criado ou empregado
domstico de A, e atua como comprador de objetos de uso pessoal, ou da casa, mensageiro; se B
administrador e trata de assuntos de sua profisso, mandatrio (Tratado de Direito Privado Parte Geral
Negcios Jurdicos. Representao. Contedo. Forma. Prova III, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, pp. 316-
317). Perceba-se, pela expresso final por ns destacada, que ao prprio autor ora referido as questes
concernentes ao mandato e representao negocial parecem, por vezes, confusas. No mesmo sentido da
diferenciao proposta, cf. M. A. D. de ANDRADE, Teoria Geral da Relao Jurdica Facto Jurdico, em
especial Negcio Jurdico II, Coimbra, Almedina, pp. 291-292; M. G. MAIA JNIOR, A Representao cit.
(nota 04), So Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, pp. 47-50; E. BETTI, Teoria generale cit. (nota 04), p. 572;
L. ENNERCCERUS - T. KIPP - M. WOLFF, Lehrbuch des Brgerlichen Rechts Einleitung Allgemeiner Teil,
trad. esp. de Blas Prez Gonzlez e Jos Alguer, Tratado de Derecho Civil Parte General nacimiento,
extincin y modificacin de los derechos subjetivos, pretensiones y excepciones, ejercicio y aseguramiento
de los derechos, Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1935, pp. 231-234; F. GALGANO, Il negozio giuridico,
Milano, Dott. A. Giuffr, 1988, pp. 352-354; A. GIOVENE, Negozio giuridico rispetto ai terzi, Torino, Unione
Tipografico-Editrice Torinese, 1917, pp. 27-32; L. CARIOTA FERRARA, Il negozio giuridico nel diritto privato
italiano, Napoli, Morano, 1956, pp. 678-679; V. SCIALOJA, Negozi giuridici corso di diritto romano nella r.
Universit di Roma nellanno accademico 1892-1893 raccolto dai dottori Mapei e Giannini, pp. 216-219.
Observe-se, finalmente, que embora as hipteses de representao sem mandato no tivessem a consagrao
do Cdigo Civil anterior, j havia previso implcita de mandato sem representao a qual se pode
depreender dos arts. 1.307, 1.297, 1.301 e 1.309 do aludido diploma legal (e que merecero, oportunamente,
nossa especfica ateno).
17
manifestaes especiais; assim, nosso dever ressaltar que em nenhum momento
consideramos inoportuna uma abordagem em que estivessem funcionalmente conjugados a
representao negocial e o contrato de mandato (e por meio da qual se compreenda a
primeira como instrumento indispensvel ao adimplemento de uma das figuras
relacionadas ao segundo instituto). Bem ao contrrio, to somente preocupamo-nos em
esclarecer, desde logo, nossa posio (no sentido de que uma eventual coordenao
funcional no pode obscurecer a autonomia estrutural existente entre os dois institutos
jurdicos); e de fato tendo-se em vista que o art. 120 do Cdigo Civil estabelece que os
requisitos e os efeitos da representao legal so os estabelecidos nas normas respectivas;
os da representao voluntria so os da Parte Especial deste Cdigo parece-nos que a
vinculao funcional apontada foi expressamente determinada pelo prprio legislador
redirecionando a ateno do intrprete para outros destinos (os quais sero abordados ao
longo da exposio)5.
5 Perceba-se, pois, que no negamos a existncia de um vnculo entre o instituto do contrato de mandato e
a figura da representao negocial. Apenas afirmamos que nos parece imprescindvel realizar uma espcie
de destilao jurdica por meio da qual se separem os elementos integrantes dessa mistura (levada a
efeito pela realidade jurdica e corroborada pelo ordenamento jurdico positivo nacional) a fim de que se
chegue quilo que poderamos designar por nota tpica do contrato de mandato por reiteradas vezes
mencionada no presente estudo e que ser objeto de considerao mais detida no contexto de uma outra
investigao, tambm filiada linha de pesquisa adotada por este investigador.
Ora, como desde logo nos declaramos partidrios da possibilidade de dissociao entre mandato e
representao (dotados de eficcias jurdicas inteiramente distintas), acreditamos que esta ltima no
corresponde, pois, quilo que usualmente se tem designado por essncia do contrato de mandato; mesmo
porque, como veremos ao longo da primeira parte da pesquisa, embora entre os romanos o mandatum fosse
um contrato tpico, a representao direta no era admitida inicialmente pelo sistema. Certamente algum
cogitar que, a despeito da identidade quanto ao nomen juris, no haveria uma maior correspondncia entre o
mandatum romano e o seu correspondente moderno (e que o sistema jurdico brasileiro, alis, adotara um
mandato essencialmente representativo). Nesse sentido preleciona F. C. de SAN TIAGO DANTAS: a
caracterstica principal desse contrato [o mandato] essa incumbncia para celebrar um certo negcio, que o
mandante confere ao mandatrio. Esta caracterstica (...) implica em que uma pessoa (representante),
emitindo uma declarao de vontade, d vida a um negcio jurdico, que surge diretamente com referncia a
uma outra pessoa (representado), de modo que a primeira s no interesse deste age (...) a representao ,
portanto, a idia suprema do mandato, alm de s a ele pertencer entre todas as espcies de contrato (...) o
mandato a maneira de fazer-se a representao direta negocial. esta representao que distingue o
instituto em estudo de todas aquelas figuras que lhes so afins (Programa de Direito Civil II - aulas
proferidas na Faculdade Nacional de Direito (fim de 1943- 1945) - Os Contratos, Rio de Janeiro, Editora
Rio, 1978, pp. 369-370). Note-se que essa posio j podia ser entrevista em CLVIS BEVILQUA (o que
caracteriza o mandato a representao, Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado V-2, 5
ed., Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1943, p. 29), J. M. de CARVALHO SANTOS (o mandato, como
se v, justamente por envolver sempre uma representao, apresenta-se como uma figura inconfundivel,
mesmo em face de outros contractos que com elle apresentam semelhanas, Codigo Civil Brasileiro
Interpretado principalmente do ponto de vista pratico Direito das Obrigaes (arts. 1265-1362) XVIII, 2
ed., Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1938, p. 109) e em JOO LUIZ ALVES: o que o
caracteriza e distingue [contrato de mandato] de outros contractos a representao (Cdigo Civil da
Repblica dos Estados Unidos do Brasil promulgado pela Lei n. 3.071, de 1 de janeiro de 1916 annotado II,
2 ed., So Paulo, Saraiva, 1935, p. 348). No mesmo sentido, R. LIMONGI FRANA: a essncia do mandato
est na idia de representao, de tal forma que, aqule que recebeu os podres, como se fsse o contraente
que os outorgou (Manual de Direito Civil IV-2 Doutrina das obrigaes contratuais, Doutrina das
18
6. Sobre a necessidade de uma definio quanto aos limites da remisso
Parte Especial operada pelo art. 120 do Cdigo Civil. Tais premissas ensejam, pois,
algumas indagaes: qual seria o alcance hermenutico dos termos requisitos e efeitos,
empregados pelo art. 120 do Cdigo Civil? Quais os obstculos que a estrutura peculiar ao
contrato de mandato poderia oferecer a uma indiscriminada comutao de regras com a
heterognea disciplina da representao negocial? Pretendemos, assim, oferecer as
respectivas respostas ao longo do presente estudo para tanto lanando mo,
freqentemente, da variante no representativa do tipo contratual mencionado6.
obrigaes extracontratuais, So Paulo, Revista dos Tribunais, 1969, p. 184); J. F. DE LIMA: tendo por
contedo essencial o poder dado ao mandatrio de agir em nome do mandante, o carter do contrato de
mandato a representao (Curso de Direito Civil Brasileiro II-2 Direito das Obrigaes Dos contratos
e das Obrigaes por Declarao Unilateral de Vontade, 3 ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, p. 565); e F.
R. LEITE FILHO (Curso de Direito Civil Parte Geral, Direito das Obrigaes, So Paulo, Edies Lael,
1973). O prprio M. M. de SERPA LOPES no afasta a representao da essncia do contrato de mandato,
conquanto j divisasse a necessidade sistemtica de uma considerao autnoma de tais institutos: embora,
em nosso direito, a representao constitua elemento essencial do mandato, diferentemente do direito
alemo, impe-se, contudo, manterem-se inconfundveis as duas figuras (Curso de Direito Civil Fontes
das Obrigaes: Contratos IV, Rio de Janeiro-So Paulo, Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 240).
J sob o contexto do Cdigo Civil de 2002, G. TEPEDINO observa que embora configurem institutos
jurdicos autnomos, no direito brasileiro, por expressa opo legislativa, a representao compe a causa do
contrato de mandato no cabendo, por isso mesmo, falar em mandato sem representao, ainda que
ontologicamente seja possvel tal figura contratual (...) repugnava o esprito do Direito Romano a idia de
que uma pessoa pudesse agir em nome de outra, uma vez que o carter personalssimo e solene dos atos era
incompatvel com a idia de representao. Mas o Direito Cannico reagiu a isso, acolhendo o conceito de
representao e posicionando-o ao lado do mandato, fazendo com que a representao passasse a ser
elemento essencial do referido contrato (A tcnica da representao e os novos princpios contratuais in
Direito Civil Direito Patrimonial e Direito Existencial: Estudo em homenagem professora Giselda Maria
Fernandes Novaes Hironaka, So Paulo, Mtodo, 2006, pp. 79-80).
De fato, os exemplos acima reproduzidos que nos parecem suficientes para evidenciar a concepo da
maior parte da doutrina brasileira desconsideram a figura do mandato sem representao. Mas algumas
consideraes nos parecem inevitveis: se o Cdigo Civil brasileiro alude possibilidade de que o
mandatrio aja em seu prprio nome, devendo transferir ao mandante todas as vantagens provenientes do
mandato, o qual tem no apenas uma ao adjudicatria especfica, como tambm o dever de satisfazer as
obrigaes assumidas pelo mandatrio (arts. 663, 668, 671 e 675), nos parece com toda a honestidade
cientfica possvel inteiramente invivel sustentar, no Brasil, o carter essencialmente representativo do
contrato de mandato. Aludisse-se a um carter naturalmente representativo e nosso trabalho j estaria
reduzido em grande parte; no teramos que provar que so dois aquilo que considerado pela doutrina como
sendo um s. contra a essencialidade do elemento representativo que lutaremos na primeira parte deste
estudo. E para tanto ser imprescindvel uma historiografia geral a respeito da relao entre o instituto do
contrato de mandato e a figura da representao negocial.
6 Observe-se que a redao conferida ao art. 120 do Cdigo Civil brasileiro (supra transcrito, 5)
induvidosamente clara; no entanto, no se pode afirmar o mesmo quanto ao alcance do referido dispositivo
jurdico; de fato, uma vez admitida a essncia representativa do contrato de mandato, pouco resta ao
intrprete seno efetuar uma simples adio entre as regras sobre representao estabelecidas na Parte Geral
(arts. 115 a 120) e as disposies referentes ao contrato de mandato, constantes da Parte Especial (arts. 653 a
692) como se tudo concernisse a uma simples relao entre gnero (representao) e espcie
(representao negocial = eficcia do contrato de mandato).
Contudo, com isso no concordamos. Pergunta-se: quais assinaturas constam da procurao, instrumento do
mandato, na terminologia adotada pelo legislador no art. 653 do CC/2002? Se na resposta oferecida se
prescinde da meno ao mandatrio leia-se outorgado porque, em verdade, de contrato no estamos a
tratar. Ou, margem de inequvoca disposio legislativa, pode haver contrato defluente unicamente de
19
um negcio jurdico unilateral? No nos parece razovel sustent-lo. Estaria a prtica a negar a realidade
constante do Cdigo Civil, em uma manifestao de rebeldia ao carter contratual do ato jurdico
consubstanciado no instrumento de procurao? Ou seria foroso reconhecer que na procurao estaria
instrumentado outro negcio jurdico (unilateral), vizinho ao contrato de mandato, mas que com ele no se
confunde? Aderimos, pois, a esta ltima posio. A este respeito, cf. E. A. SANCHEZ URITE, Mandato y
representacion, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1986, p. 25 (trecho que ser transcrito e melhor explorado em
nota de rodap posterior).
Dito isso, contudo, deparamo-nos com outras questes: ora, tudo que existe na Parte Geral do Cdigo Civil
concerne exclusivamente representao (ainda que negocial)? Por sua volta, tudo o que existe em meio
Parte Especial do Cdigo Civil respeita exclusivamente ao contrato de mandato? Parece-nos que s duas
perguntas se deve responder negativamente. Com efeito, acreditamos que muito existe na Parte Especial, sob
a rubrica do contrato de mandato, que em verdade respeita representao (negocial); da mesma forma, em
alguns pontos do disposto entre os arts. 115 e 120 do Cdigo Civil, sentimos que estamos diante de preceitos
que afetam, ainda que reflexamente, a disciplina do contrato de mandato. exatamente este, pois, um dos
principais objetivos de nossa tarefa: para segregarmos da disciplina do contrato de mandato a matria
concernente representao, teremos de avaliar aquilo que sobre a representao se diz quando se
empregam na legislao civil codificada as expresses mandato, mandante, mandatrio, instrues e
congneres. Por essa razo reputamos, portanto, indiscriminada a comutao promovida pela via do art.
120 do Cdigo Civil de regras entre institutos que, a despeito de sua vinculao funcional, guardam uma
autonomia estrutural que ser decisiva para a delimitao da eficcia jurdica de cada negcio decorrente.
Um exemplo, pois, dessa comutao indiscriminada pode ser depreendido da obra de WASHINGTON DE
BARROS MONTEIRO: convencionais so os representantes munidos de mandato, expresso ou tcito, verbal ou
escrito, do representado, como os procuradores (no contrato de mandato) e o comissrio (no contrato de
comisso mercantil) [Curso de Direito Civil Parte Geral I, 40 ed. (revista e atualizada por Ana Cristina
de Barros Monteiro Frana Pinto), So Paulo, Saraiva, 2005, p. 220]; note-se que no entraremos, por ora, no
mrito de uma anlise do art. 693 do Cdigo Civil, custa de cuja redao parece insustentvel a tese do
comissrio representante, a menos que se empreste um sentido consideravelmente amplo a esta ltima
expresso (para abranger a chamada representao indireta). No mesmo sentido por ns ora condenado no
advertindo, portanto, quanto aos limites comutao entre as disposies legais referidas cf. SILVIO
RODRIGUES, Direito Civil Parte Geral I, 34 ed., So Paulo, Saraiva, 2003, pp. 165-167; CAIO MRIO da
Silva Pereira, Instituies de Direito Civil Introduo ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil I, 21
ed. (revista e atualizada de acordo com o Cdigo Civil de 2002 por Maria Celina Bodin de Moraes), Rio de
Janeiro, Forense, 2006, p. 625; MARIA HELENA DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro Teoria Geral do
Direito Civil I, 23 ed., So Paulo, Saraiva, 2006, pp. 445-447; S. de S. VENOSA, Direito Civil Parte Geral
I, 7 ed., So Paulo, Atlas, 2007, pp. 335-342 (de onde extramos o trecho seguinte: o mandato a forma
pela qual se torna conhecida a representao por vontade dos interessados (...) por isso se diz que o mandato,
um contrato, que se instrumentaliza pela procurao, p. 338); N. G. B. DOWER, Curso Moderno de Direito
Civil Parte Geral I, 4 ed., So Paulo, Nelpa, 2007, pp. 297-301; S. L. F. da ROCHA, Curso Avanado de
Direito Civil Contratos III, So Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 295 (que em verdade nos pareceu
pouco claro quanto s suas prprias concluses a respeito da questo); FBIO ULHOA COELHO, Curso de
Direito Civil I, 2 ed., So Paulo, Saraiva, 2006, pp. 297-303 [de onde extramos que o negcio jurdico de
outorga de poderes de representao pelo prprio representado o contrato de mandato, que se
instrumentaliza na procurao (...) desse modo, o que recebe os poderes de representao (chamado
mandatrio ou procurador) o representante investido nos seus poderes por vontade do prprio interessado,
p. 299]; C. A. BITTAR FILHO - M. S. BITTAR, Cdigo Civil cit. (nota 02), p. 24; N. NERY JUNIOR - R. M. de
ANDRADE NERY, Cdigo Civil cit. (nota 02), p. 66; C. E. N. CAMILLO - G. M. TALAVERA - J. S. FUJITA - L. A.
SCAVONE JR. (coords.), Comentrios cit. (nota 02), p. 228; R. FIUZA (coord.), Novo Cdigo cit. (nota 02), p.
109; A. VILLAA AZEVEDO - S. de S. VENOSA, Cdigo Civil cit. (nota 02), pp. 111-112; A. C. da COSTA
MACHADO - JUAREZ DE OLIVEIRA - Z. BARRETO, Cdigo Civil cit. (nota 02), p. 44; F. TARTUCE, Direito Civil
Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espcie III, 2 ed., So Paulo, Mtodo, 2007, p. 465; P. S.
GAGLIANO - R. PAMPLONA FILHO, Novo Curso de Direito Civil Brasileiro Parte Geral I, 8 ed., So Paulo,
Saraiva, 2006, p. 342; G. R. NICOLAU, Direito Civil Parte Geral, 2 ed., So Paulo, Atlas, 2006, p. 124.
Em abono da posio por ns defendida, encontramos, no Brasil, as manifestaes de F. C. PONTES DE
MIRANDA, Tratado III cit. (nota 04), pp. 235-236; F. M. DE MATTIA, Aparncia de Representao, So
Paulo, CID, 1999, pp. 3-5; A. VILLAA AZEVEDO, Cdigo Civil cit. (nota 04), pp. 85-112; R. LOTUFO,
Cdigo Civil cit. (nota 02), pp. 319-340; e M. G. MAIA JNIOR, A Representao cit. (nota 04), pp. 153-155
dentre outros autores mais adiante devidamente referidos.
Ou seja, como no negamos que exista um vnculo funcional entre os institutos jurdicos referidos, no
seremos jamais contrrios naturalmente a um estudo que aborde conjugadamente as duas matrias.
20
7. O advento do Cdigo Civil de 2002 e a discrepncia entre as posies
do relator do Anteprojeto parcial de 1970 e da Comisso Elaboradora e Revisora.
Especificamente no que concerne representao negocial, devemos observar desde logo
que a verso promulgada do Cdigo Civil de 2002 destoa consideravelmente do
Anteprojeto da Parte Geral do Cdigo Civil de 1970; com efeito, este retomava uma
premissa que, quase trinta anos antes, havia sido salientada por Orosimbo Nonato,
Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimares, os quais na Exposio de Motivos do
Anteprojeto da Parte Geral do Cdigo das Obrigaes de 1941 postulavam uma
libertao do instituto da representao quanto sua subservincia ao contrato de
mandato. No tendo sido integralmente acolhida pela Comisso Elaboradora e Revisora a
proposta do autor do referido Anteprojeto parcial (Jos Carlos Moreira Alves), restou
malograda a tentativa de se promover uma separao metodolgica plena entre os
institutos; ainda assim impelidos pela dissociao pretendida pelo prprio legislador
temos a convico de que so perfeitamente definveis os limites entre esses, cabendo
doutrina a tarefa de precis-los, a partir de critrios que proporcionem suficiente segurana
ao intrprete7.
Nosso principal bice ao tratamento pretendido por grande parte da doutrina reside numa corriqueira mistura
entre as respectivas estruturas jurdicas; o que acabar por produzir resultados significativos (ao ensejo da
apreciao da eficcia concernente a cada uma delas).
7 A respeito da tentativa de um apartamento pleno entre o instituto do contrato de mandato e a figura da
representao negocial, oportuna se mostra a manifestao do prprio autor do Anteprojeto parcial (da Parte
Geral), Jos Carlos Moreira Alves: ocupa-se o Captulo II com a representao. Nesse ponto, orientou-se o
Anteprojeto no sentido de incluir, na Parte Geral, as regras referentes representao legal e convencional. E,
quanto a esta ltima a fim de que no se fracionasse sua disciplina regulou-a sob todos os aspectos que,
no Cdigo vigente, vm tratados no instituto do mandato. Se acolhida a idia, o futuro Cdigo Civil, em sua
Parte Especial, ao tratar do mandato, dever estabelecer apenas as normas relativas ao contrato de mandato,
no se ocupando com a representao (J. C. MOREIRA ALVES, A parte geral cit. (nota 03), p. 79).
Como dissemos, a proposta articulada pelo relator do Anteprojeto reconduzia a uma iniciativa que j havia
sido prestigiada pelo Anteprojeto de Parte Geral do Cdigo das Obrigaes de 1941 (elaborado por
Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimares). Com efeito, em sua exposio de
motivos a Comisso responsvel pela obra anterior foi categrica ao asseverar a imprescindibilidade de uma
autntica libertao do instituto da representao (inclusive a sua variante negocial): o instituto da
representao foi libertado da sua condio servil ao mandato, deixando-se disciplina deste contrato apenas
as relaes entre as prprias partes contratantes. A representao, seja qual for a sua origem, legal ou
convencional, obedecer a preceitos uniformes, que devem resguardar a boa-f de terceiros, obrigados a
tratar com interposta pessoa (Exposio de motivos do Anteprojeto de Cdigo das Obrigaes Parte Geral
(1941) in Cdigo Civil Anteprojetos I, Braslia, Senado Federal Subsecretaria de Edies Tcnicas, 1989,
p. 59).
Todavia, mister efetuar desde logo um imprescindvel reparo terminologia empregada em ambas as
ocasies: alude-se representao convencional, quando cremos que seria adequada referncia
representao voluntria (ou mais precisamente negocial). De fato, como teremos a oportunidade de
evidenciar mais adiante, a representao manifestao da eficcia decorrente da celebrao de um negcio
jurdico unilateral de outorga de poderes (dispensada a aceitao do outorgado para que produza seus
respectivos efeitos perante este); assim, no nos parece possvel, portanto, sustentar a existncia de uma
representao convencional, eis que despicienda a aceitao do representante para que a outorga pretendida
21
8. A atuao da Comisso Elaboradora e Revisora do Anteprojeto de
Cdigo Civil. A Comisso Elaboradora e Revisora do Anteprojeto de Cdigo Civil
deliberou por maioria no sentido da reformulao parcial do captulo da Parte Geral
dedicado representao; entrevendo acertadamente uma unidade cimeira entre suas
variantes legal e negocial, concluiu, todavia, pela oportunidade da manuteno da
disciplina desta ltima em meio regulamentao do contrato de mandato. Ou seja, em
lugar de se promover uma separao entre as modalidades representativas por meio de uma
natural tripartio em sees (disposies gerais, da representao legal e da
representao negocial), optou o legislador por uma cmoda remisso que acaba por
turvar os limites entre as categorias acima referidas; e com isso, ficou-se a meio caminho
da completa reestruturao sistemtica da matria8.
surta efeitos. Nesse sentido, bastante elucidativa a manifestao de E. A. SANCHEZ URITE: la representacin,
conforme a su origen, se la clasifica en voluntaria y en legal o necesaria. La representacin voluntaria ha
sido tambin denominada errneamente convencional; debemos alertar sobre esta ltima denominacin, ya
que la representacin, si bien en algunos casos puede nacer de una relacin contractual, la mayora de las
veces ella tendr por origen el poder, que es un acto jurdico unilateral, que para configurarse no necesita de
ninguna aceptacin de la persona a la que se lo ha conferido, de modo que de ninguna manera puede
llamrsela convencional (Mandato y representacion, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1986, p. 25). No
podemos deixar de notar, ainda, que tal equvoco terminolgico nos parece, enfim, um resqucio daquela
profunda imbricao estabelecida, no direito brasileiro, entre a outorga de poderes de representao e o
contrato de mandato. Contudo, mesmo a expresso representao voluntria no nos parece imune a crticas
uma vez que os efeitos representativos no derivaro da vontade do sujeito de direito representado, mas
sim do negcio jurdico de outorga de poderes de representao (e da nossa predileo pela expresso
representao negocial).
Finalmente, observe-se que no nos parece que a posio adotada nas duas oportunidades Anteprojeto da
Parte Geral do Cdigo das Obrigaes e Anteprojeto da Parte Geral do Cdigo Civil explicite uma
consagrao do mandato sem representao entre ns. A bem da verdade, podemos depreender, to somente,
um intuito evidente de destacar a autonomia tcnica da relao jurdica decorrente do negcio de outorga de
poderes representativos (suscetvel de produzir efeitos perante terceiros) em relao relao jurdica afeta
ao contrato de mandato (propriamente dito). Todavia, como teremos ocasio de abordar oportunamente, da
prpria disciplina articulada pelo legislador (no que concerne ao contrato de mandato) que pretendemos
depreender o acolhimento ainda que inconsciente daquela variante que corresponde a uma de nossas
principais ferramentas de trabalho.
8 Com efeito, pode-se depreender da prpria manifestao do relator do Anteprojeto de Parte Geral do
Cdigo Civil que a maioria da Comisso Elaboradora e Revisora optou por trilhar um caminho diferente,
como que a exato meio passo de um completo apartamento sistemtico entre os institutos jurdicos
envolvidos (contrato de mandato e representao). Nas palavras do referido autor: a sugesto no foi
acolhida pela maioria da Comisso Elaboradora e Revisora. Por isso, no captulo do Anteprojeto de 1972
relativo representao, s se disciplinam alguns aspectos gerais da representao legal e da representao
convencional, dispondo-se, no art. 120, que os requisitos e os efeitos da representao legal so os
estabelecidos nas normas respectivas; e os da representao convencional, os da parte especial deste
Cdigo (J. C. MOREIRA ALVES, A parte geral cit. (nota 03), p. 79).
Assim, inicialmente, parece-nos existir quatro graus possveis de relao entre o instituto do contrato de
mandato e a figura da representao negocial: a) juno metodolgica, tal qual pretendido pela doutrina que
reputa a representao essencial ao contrato de mandato; b) autonomia parcial entre o contrato de mandato
e a representao negocial (admitida apenas para que se abra caminho a um tratamento nico das
representaes legal e negocial); c) apartamento pleno sem autonomia sistemtica da figura do mandato sem
representao (embora se reconhea que o contrato de mandato e a representao negocial no se
confundem, no se admite, expressa ou implicitamente, o mandato no representativo); e d) apartamento
22
9. A existncia de um vnculo indissocivel entre o contrato de mandato e
a representao negocial: as experincias jurdicas estrangeiras. Tomando-se por base o
panorama legislativo prevalecente no sistema jurdico de tradio romano-germano-
cannica, podemos afirmar que preponderam duas orientaes a respeito da relao entre a
representao negocial e o contrato de mandato: de um lado, filiados tradio
derivada do Code Civil, posicionam-se os adeptos da indissociabilidade entre uma e outro;
de outra banda, restam os partidrios da corrente germnica que defendem, por sua vez, a
completa autonomia entre os dois institutos jurdicos ora considerados. Desta forma, ainda
que a anlise do direito comparado no corresponda ao objeto deste estudo, parece-nos de
todo evidente que tal dado h de ser levado em considerao ao menos como elemento
informativo de nossa investigao9.
pleno com autonomia sistemtica da figura do mandato sem representao (reconhece-se a independncia
metodolgica entre o contrato de mandato e a representao negocial, com a admisso da figura do mandato
sem representao). Acreditamos que as posies do autor do Anteprojeto Parcial (de Parte Geral) e da
Comisso Elaboradora e Revisora correspondam, respectivamente, quilo que acima mencionamos sob os
itens c e b. Defendemos, todavia, que a reformulao sistemtica promovida pelo legislador de 2002 d
ensejo a uma concluso consentnea com o item d sem que se faa necessrio um esgaramento sistemtico
por meio do apelo categoria dos contratos inominados (art. 425 do CC/2002).
De todo modo, a se admitir a mais conservadora das hipteses a de que o intuito do legislador foi to
somente o de abrir caminho a um tratamento nico das representaes legal e negocial (b) j resulta claro
que se mostraria de todo conveniente uma diviso entre os preceitos comuns, os afetos representao legal
e os concernentes representao negocial, sob a forma de sees autnomas tal como expressamente
preceituado pela Lei Complementar n 95/98 (art. 10, V). No foi essa, todavia, a orientao adotada pelo
legislador, que reputou adequado disciplinar de maneira idntica as duas modalidades representativas
dominadas, no entanto, por princpios peculiares.
9 Observe-se que o emprego da expresso tradio derivada do Code Civil revela o papel de extrema
relevncia deste diploma, em particular no que respeita difuso de um paradigma estribado em uma
autntica juno metodolgica entre os institutos do contrato de mandato e da representao como
mencionamos na nota de rodap imediatamente anterior. Pelo acolhimento, em geral, do Cdigo Civil francs
pelo mundo, cf. F. WIEACKER, Privatrechtgeschichte der neuzeit, trad. port. de Antnio Manuel Botelho
Hespanha, Histria do Direito Privado Moderno, 2 ed., Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, pp.
385-395; J. GILISSEN, Introduction Historique au Droit, 1979, trad. port. de Antnio Manuel Botelho
Hespanha, Introduo Histrica ao Direito, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 448-460
(especialmente pp. 456-457); R. DAVID, Les grands systmes de droit contemporains, 7 ed., Paris, Dalloz,
1978, pp. 62-76; A. M. HESPANHA, Panorama histrico da cultura jurdica europia, 2 ed., Mira-Sintra,
Publicaes Europa-Amrica, 1998, pp. 176-180; Cultura jurdica europia sntese de um milnio,
Florianpolis, Fundao Boiteux, 2005, pp. 376-383; M. J. de ALMEIDA COSTA, Histria do Direito
Portugus, 3 ed., Coimbra, Almedina, 2000, pp. 394-396; A. CASTANHEIRA NEVES, Digesta Escritos
acerca do direito, do pensamento jurdico, da sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995,
pp. 181-191; M. R. MARQUES, Codificao e paradigmas da modernidade, Coimbra, Coimbra Editora, 2003,
passim; J. BONNECASE, La pense juridique franaise de 1804 a lheure prsente ses variations et ses traits
essentiels I, Bordeaux, Delmas, 1933, passim.
Como j observado, o mandato sem representao desempenhou, sob a perspectiva dogmtica, um papel de
indiscutvel importncia no processo de dissociao entre o negcio jurdico unilateral de outorga de poderes
representativos (procurao) e o contrato de mandato. Por tal razo, a bibliografia ao mesmo concernente nos
parece extremamente elucidativa quanto s orientaes noticiadas no corpo do texto. A respeito, cf. F. de S.
L. PESSOA JORGE, O mandato sem representao, Lisboa, Edies tica, 1961, pp. 89-95; F. A. P. LANDIN
FILHO, O mandato civil sem representao, Campinas, Ag Juris, 2000, pp. 36-37; C. P. M. CRUZ E TUCCI,
23
10. A proposta de anlise dogmtica inerente ao presente estudo:
afastamento preliminar da representao legal; necessidade de abordagem da relao
entre o contrato de mandato e a representao negocial luz das imbricaes desta no
regime jurdico daquele. O que pretendemos com este estudo? Obviamente que, em
primeiro lugar, segregar os elementos indispensveis definio dos contornos histricos
assumidos pelo mandato luso-brasileiro. No entanto, para que possamos nos desincumbir
deste compromisso historiogrfico central, mostra-se oportuna uma anlise dogmtica de
feio instrumental e circunscrita s mesmas fontes primrias voltada ao estudo da
relao mantida entre o contrato de mandato e a representao negocial. Desta forma,
afastamo-nos desde j e expressamente da temtica afeta representao legal (que
poder ser tangenciada, excepcionalmente, em notas de rodap). Ora, feito este primeiro
grande corte quanto ao objeto dogmtico de estudo, ainda outro se afigura necessrio: pois
vista das grandes propores dos institutos a serem cotejados, parece-nos adequado evitar
um enfrentamento direto de ambos os termos da relao em questo. Assim, em lugar de
contemplar ex professo a representao negocial, pretenderemos analis-la unicamente em
suas imbricaes sobre a disciplina do contrato de mandato10
.
Interposio de pessoa nos negcios jurdicos, Tese (Doutoramento) Faculdade de Direito da Universidade
de So Paulo, So Paulo, 2004, pp. 127-146.
Como teremos oportunidade de ressaltar mais adiante, a despeito do reconhecimento conferido ao contrato
de mandato (tpico), os romanos no admitiam, inicialmente, a representao direta tal qual se verifica
atualmente. Ao contrrio, em virtude de alguns fatores especficos (dentre os quais se destaca o carter
personalssimo das obrigaes assumidas), havia uma completa dissociao entre estes dois institutos a ser
analisada incidentalmente em meio parte primeira deste trabalho. Por uma apreciao geral da questo,
entre ns, cf. A. CORREIA-G. SCIASCIA, Manual de Direito Romano e textos em correspondncia com os
artigos do Cdigo Civil brasileiro I, 2 ed., So Paulo, Saraiva, 1953, pp. 292-294 (especialmente p. 293); J.
C. MOREIRA ALVES, Direito romano I (Histria do direito romano instituies do direito romano: a) Parte
Geral; b) Parte Especial: Direito das Coisas), Rio de Janeiro, Forense, 2001, pp. 158-160; T. MARKY, Curso
elementar de direito romano, 8 ed., So Paulo, Saraiva, 1995, pp. 60-62.
Oportunamente, teremos ocasio de observar de que forma esta originria autonomia entre os institutos do
mandato e da representao se obscureceu, dando lugar a uma verdadeira contaminao estrutural tal
como aparentemente cristalizada nos Cdigos Civis de 1916 e 2002.
10 A proximidade funcional entre o instituto do contrato de mandato e a figura da representao negocial
tamanha que sobreleva a importncia metodolgica da variante do mandato desprovida de efeitos
representativos diretos (mandato sem representao), pois nela no h sobreposio entre as respectivas
eficcias jurdicas. Explicamo-nos: como pretendemos segregar aquilo que de especfico existe no contrato
de mandato (abrangente a um s tempo de sua variante provida e daquela outra desprovida de
representao), um considervel destaque haver de ser conferido s hipteses de representao sem
mandato e de mandato sem representao.
Ora, como pretendemos evidenciar as peculiaridades da relao entre mandante e mandatrio e que
independem da existncia de um vnculo de representao por meio do qual este declare em nome daquele
resulta evidente a ateno que deveramos dispensar a tais hipteses, ainda que empiricamente paream
menos expressivas do que o paradigma representativo (do tipo contratual).
Pelos sentidos em que se empregam, neste trabalho, os termos sistema, instituio, instituto jurdico, figura e
categoria, cf. M. REALE, Lies preliminares de direito, 27 ed., So Paulo, Saraiva, 2002, pp. 190-192.
Especificamente no que concerne aos termos instituto e figura, eis a distino efetuada pelo autor: as
24
11. Necessidade de abordagem da relao entre o contrato de mandato e a
representao negocial luz das imbricaes desta no regime jurdico daquele: a
importncia metodolgica do mandato sem representao e seu papel como instrumento
decisivo de nossa pesquisa. Assim delimitado o objeto dogmtico de nosso estudo, para
que depuremos a evoluo dos contornos eficaciais do mandato luso-brasileiro, ser
necessrio ainda considerar com especial ateno a variante do instituto desprovida de
efeitos representativos diretos; pois esta, ao lado da representao sem mandato, parece-
nos ostentar uma importncia metodolgica indisfarvel uma vez que ambas contribuem
discriminao entre os efeitos do negcio jurdico unilateral de outorga de poderes
representativos e aqueles derivados do tipo contratual objeto de nossa anlise. Mas em que
consistiria este instrumento to importante para nossas investigaes, designado pela
expresso mandato sem representao11
?
normas da mesma natureza, em virtude de uma comunho de fins, articulam-se em modelos que se
denominam institutos, como, por exemplo, os institutos do penhor, da hipoteca, da letra de cmbio, da
falncia, da apropriao indbita. Os institutos representam, por conseguinte, estruturas normativas
complexas, mas homogneas, formadas pela subordinao de uma pluralidade de normas ou modelos
jurdicos menores a determinadas exigncias comuns de ordem ou a certos princpios superiores, relativos a
uma dada esfera da experincia jurdica (...) j o termo figura indica as vrias modalidades que pode assumir
um instituto (a posse, por exemplo, pode ser de boa ou de m f etc.) (pp. 191-192).
11 Dentre os diversos fatores que despertam a ateno do intrprete para o estudo do mandato sem
representao, importa-nos sobretudo uma razo histrico-metodolgica, uma vez que em razo do
carter secundrio da anlise dogmtica promovida neste estudo ainda que nos desperte interesse o cenrio
atual da relao entre o instituto do contrato de mandato e a figura da representao negocial, deflagra-se
uma oportunidade sem igual para que se delimite um quadro evolutivo evidenciador da maneira segundo a
qual tal relao foi acentuadamente pervertida, ensejando-se, enfim, a transformao da representao
negocial em essncia do contrato de mandato quando, em verdade, essa no teria sido sua misso em
momentos diversificados do evolver histrico.
Observe-se, no entanto, que no se confere neste trabalho a mesma ateno chamada representao
(negocial) sem mandato: pois embora ostente aspectos importantes face autonomia sistemtica preconizada
pelo Cdigo Civil de 2002, a delimitao de suas linhas gerais no pode prescindir vista do disposto no
art. 120 do CC/2002 de um prvio exame da disciplina destinada ao tipo contratual objeto de nossas
investigaes.
Ademais, especificamente quanto representao sem mandato adstrita a uma causa-funo de alienao,
farto material de anlise pode ser obtido a partir de uma generalizao dos princpios da procurao em
causa prpria, j bastante estudada pela doutrina nacional. Alm das referncias constantes de notas
anteriores (nota 04), cf., por todos, V. de S PEREIRA, Da clusula in rem propriam nas procuraes in
Questes de Direito Civil, Criminal e Processual, 2 ed., Rio de Janeiro - So Paulo, Livraria Freitas Bastos,
1958, pp. 102-116; LINO DE MORAES LEME, Mandato em causa prpria: da procurao in rem propria como
ttulo hbil para a transmisso de direitos reais sobre imveis. Controvrsia na doutrina e na
jurisprudncia. Aquisio de domnio pelo prprio mandatrio, mediante interveno em ao divisria.
Inadmissibilidade, mormente tendo-se apoiado em instrumento pblico no levado a registro, sem perfeita
individualizao do imvel e sem assinatura de testemunhas. Prevalncia do ttulo de quem adquiriu o
mesmo bem diretamente do mandante, por meio de escritura pblica devidamente formalizada in Revista dos
Tribunais 182/40.
Deste modo, consideramos importante ter o mandato sem representao sempre nossa volta, a fim de que
nos auxilie em nosso intento de obter, diretamente, o arcabouo afeto ao contrato de mandato; e
indiretamente pela via negativa o material normativo concernente representao negocial.
25
12. A segregao estrutural entre o contrato de mandato e a
representao negocial custa da anlise do mandato sem representao: um ganho de
perspectiva inarredavelmente atrelado a um custo especulativo diretamente proporcional.
Por ora, poderamos definir o mandato sem representao como o contrato por meio do
qual uma das partes incumbe a outra da gesto de seus interesses, sem a outorga de
quaisquer poderes de representao; vale dizer, hiptese em que o mandatrio age no
interesse alheio e custa do mandante (atuando, todavia, em nome prprio). Pergunta-se:
os negcios jurdicos praticados pelo mandatrio vinculam a esfera jurdica do mandante?
Em relao a terceiros? Em relao quele? Qual a repercusso de um descumprimento das
instrues recebidas quanto aos negcios jurdicos ultimados pelo mandatrio? Quais os
efeitos da revogao do mandato sobre a esfera jurdica de terceiros de boa-f? Observe-
se, neste ponto, que as respostas a tais questes dependem fundamentalmente de uma nica
premissa: a ausncia de uma representao (negocial) a imbuir a execuo escorreita do
contrato de mandato. Assim, a admisso da variante do instituto desprovida de efeitos
representativos (diretos) apresenta reflexos dogmticos bastante significativos. No entanto,
h que se observar que a segregao estrutural entre o contrato de mandato e a
representao negocial pode resolver algumas questes, substituindo-as, todavia, por uma
nica outra (de dificlima soluo): apartadas as estruturas jurdicas referidas, qual seria,
enfim,