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_____________________________________
Programa de Ps-Graduao em Histria
Universidade Federal de So Joo del Rei - UFSJ
Departamento de Cincias Sociais, Polticas e Jurdicas DECIS Programa de Ps-Graduao em Histria - PGHIS
INCIO CORREIA PAMPLONA:
O Hrcules do serto mineiro setecentista
Maria Emlia Aparecida de Assis
So Joo del Rei
2014
_____________________________________
Programa de Ps-Graduao em Histria
Universidade Federal de So Joo del Rei - UFSJ
Departamento de Cincias Sociais, Polticas e Jurdicas DECIS
Programa de Ps-Graduao em Histria - PGHIS
INCIO CORREIA PAMPLONA:
O Hrcules do serto mineiro setecentista
Dissertao de Mestrado apresentada ao
curso de Ps-Graduao em Histria da
Universidade Federal de So Joo del Rei,
como parte dos requisitos necessrios
obteno do grau de Mestre em Histria.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lenia
Chaves de Resende.
Maria Emlia Aparecida de Assis
So Joo del Rei
2014
Ficha catalogrfica elaborada pelo Setor de Processamento Tcnico da Diviso de Biblioteca da UFSJ
Assis, Maria Emlia Aparecida de
A848i Incio Correia Pamplona: o Hrcules do serto mineiro setecentista [manuscrito] / Maria Emlia Aparecida de Assis. 2014. 176f.; il.
Orientadora: Maria Lenia Chaves de Resende.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de So Joo Del Rei. Departamento de Cincias Sociais, Poltica e Jurdicas.
Referncias: f. 177-192.
1. Poder poltico - Teses 2. Entradas e bandeiras Teses 3. Sesmarias Minas Gerais Teses I. Minas Gerais Histria Teses II Pamplona, Incio Correia III. Resende, Maria Lenia Chaves de (orientadora) IV. Universidade Federal de So Joo del Rei . Departamento de Cincias Sociais Polticas e Jurdicas V. Ttulo
CDU: 981.51
Este exemplar da dissertao intitulada INCIO CORREIA PAMPLONA: O HRCULES
DO SERTO MINEIRO SETECENTISTA da mestranda MARIA EMLIA APARECIDA DE
ASSIS, corresponde redao final aprovada pela Banca Examinadora, em 03 de
fevereiro de 2014, constituda pelos seguintes membros:
_______________________________________________
Profa. Dra. Maria Lenia Chaves de Resende Universidade Federal de So Joo del-
Rei
Orientadora
_______________________________________________
Profa. Dra. Nbia Braga Ribeiro Universidade do Estado de Minas Gerais
Membro Titular
________________________________________________
Prof. Dr. Danilo Jos Zioni Ferretti Universidade Federal de So Joo del-Rei
Membro Titular
Programa de Ps-Graduao em Histria
Agradecimentos
Aos meus pais, Mrio e Maria Natividade, com todo amor e carinho!
A vida repleta de etapas a serem cumpridas e nenhuma delas seria vencida se
caminhssemos ss. Assim, ao fim deste trabalho restaram vrias pessoas as quais devo
algum tipo de gratido.
Inicialmente, devo agradecer a Deus, pelo dom da vida e por ter me concedido
fora e sabedoria para prosseguir nos momentos mais difceis desta caminhada.
Com muito amor, a minha me, Maria Natividade, baluarte de minha vida, por
toda dedicao, valores transmitidos, e por no ter poupado esforos, dentro de suas
possibilidades, para que eu pudesse chegar at aqui. A meu pai, Mrio, que a cada
encontro me fazia retornar a doce infncia e esquecer por alguns instantes meus
problemas! Agradeo pela cumplicidade e incentivo. Obrigada por entenderem muitas
vezes minha ausncia e por terem sido meus amigos e meus maiores cmplices e por
terem me mostrado que os desafios fortalecem e que necessrio encar-los com
coragem, e que os fracassos existem para que exercitemos a humildade e saibamos
sempre recomear. Nos momentos difceis de minha vida sempre me espalharei em
vocs!
Aos meus irmos, Karina e Mrio Henrique, pelo exemplo de luta e carter. A
minha madrinha, Leila Dias pelas preces e serenidade em momentos essenciais desta
jornada.
A minha orientadora, Professora Maria Lenia, devo eterna gratido por todos os
documentos coletados para suas prprias pesquisas e que gentilmente me concedeu,
como por exemplo, seo de alguns manuscritos da Biblioteca Nacional e obras de
difcil obteno que foram de grande importncia na reflexo empreendida. Por suas
leituras sempre crticas, rigorosas e justas, e, principalmente por me instigar a ler e
produzir Histria na contramo das velhas verdades. Ensinou-me a olhar por outro
ngulo a Histria do Brasil Colonial e foi de fundamental importncia na minha opo
pela Histria de Minas Gerais Setecentista. Agradvel e nico encontro!
A Professora Nbia Braga devo muito mais que agradecimentos. Pela
interlocuo, pelas preciosas sugestes e indicaes bibliogrficas por correio eletrnico
na fase do Bacharelado e que muito ajudaram na consolidao e amadurecimento do
texto que viria se tornar uma dissertao. Pelas leituras crticas e atenciosas trazendo
ponderaes pertinentes e interessantes.
Ao Professor Danilo Jos Zioni Ferretti, cuja participao na banca de
qualificao foi essencial para a tomada de novas posies. Sua generosidade, sua
capacidade de trabalho e seu compromisso com a Histria so, sob todos os aspectos,
dignos de admirao.
Ao Professor Francisco Eduardo de Andrade que participou do exame de
qualificao, pelas observaes, crticas e sugestes, que foram primordiais para o
aprimoramento do estudo.
Sou grata a Professora Slvia Brgger, que na disciplina, Seminrios de
Pesquisa, me ensinou a desconfiar dos discursos.
Aos funcionrios do Arquivo Regional do IPHAN de So Joo del Rei, que
viabilizaram a digitalizao do testamento e do inventrio de Incio Correia Pamplona e
aos servidores do Arquivo Pblico Mineiro pela receptividade e presteza.
Ao diretor da Casa Setecentista, Cssio Sales, e ao Monsenhor Flvio Carneiro
Rodrigues, do Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana que me acolheu e
permitiu o acesso ao Processo Matrimonial de Incio Correia Pamplona e do Processo
de Habilitao de Genere, Vitae et Moribus, de seu filho, o Pe. Incio Correia Pamplona
Corte Real. Documentos inditos e de extrema relevncia para compreender a trajetria
de vida de Incio Correia Pamplona.
Ao Alton, secretrio do Programa de Ps-Graduao em Histria da
Universidade Federal de So Joo del Rei, por sua generosidade e agilidade na
deliberao de todas as questes burocrticas.
Aos funcionrios da E. E. Padre Crispiniano Ritpolis/MG -, pelo incentivo.
Agradeo com imensa alegria a minha amiga, Joyce, A sinhazinha das Lavras
Novas do Funil, pelo reencontro acadmico e por dividirmos as angstias da escrita.
Aos meus amigos nos momentos difceis e incertos, em especial Jlio, Cludia,
Sheila e Slvia Costa: palavras, atos, felicidade e companheirismo so para sempre.
Amigos de verdade so aqueles que nos marcam para sempre, estando sempre conosco
independente de qualquer circunstncia da vida.
A So Joo del Rei, cidade dos sinos, da msica e da Histria, conhecida como
Princesa do Oeste! Foi nesta cidade cheia de histrias e tradies, de um corao
cheio de estudantes de vrios lugares, alm de seu povo sempre acolhedor que objetivei
tornar-me historiadora. Nada mais prazeroso que estudar Histria em uma cidade to
rica como esta! por isso que neste momento, orgulho-me de ter dado aqui meus
primeiros passos, concluindo um dos perodos mais importantes de minha vida!
Resumo
A proposta desta pesquisa analisar e compreender as estratgias utilizadas por
um representativo potentado local, Incio Correia Pamplona, de usar o poder lusitano
para projetar-se no serto oeste da Capitania de Minas Gerais na segunda metade do
sculo XVIII. O presente estudo considera as relaes de poder estabelecidas no serto
num emaranhado de interesses entre potentados e autoridades coloniais com a Coroa.
Da a discusso das estruturas de poder, das trocas de interesses serem parte para
compreenso da atuao dos sertanistas e em especfico de Pamplona. O sertanista
conseguiu a confiana de importantes governadores das dcadas de 1760 a 1780 se
projetando no cenrio colonial como um altivo representante das autoridades coloniais
na esfera pblica. Como lder sertanista foi responsvel por inmeras campanhas
militares com o objetivo de civilizar e limpar os sertes de seus habitantes considerados
brbaros, ou seja, quilombolas, gentios e vadios. Para legitimar essas expedies foram
criadas vrias representaes negativas dessa populao. Assim atravs dessas
expedies, o sertanista conquistou todo o serto do Campo Grande sob a justificativa
de um projeto civilizatrio. No entanto, Pamplona ficou conhecido, antes de tudo, como
o terceiro delator da Inconfidncia Mineira.
Palavras-chave Poder poltico - entradas e bandeiras sesmarias Minas Gerais
colonial.
Abstract
The aim of this research is analyze and understand the strategies of a
representative local potentate, Incio Correia Pamplona, in order to protrude himself
into the west backlands of Minas Geraiss Captaincy in the second half of the eighteenth
century. This study considers the power relations between stablished in the west
backlands among potentates, colonial authorities, and the Portuguese Crown interests.
Pamplona got the confidence of important rulers of the 1760s and 1780s, projecting
himself as a proud representative of the colonial authorities in the public sphere. The
power structures discussion and the exchange of interests are important to understand
the role of sertanistas and, in particular, of Pamplonas role. As a sertanista leader he
was responsible for numerous military campaigns with the goal of civilizing and
clearing the backlands of its inhabitants considered barbarians: quilombolas, gentios and
vadios. To legitimize these expeditions, several negative representations of this
population were created. So through these expeditions, the sertanista conquered all the
backlands of Campo Grande on the promise of grounds of putting on a civilizing
project.
Keywords - Political Power colonial expeditions - sesmarias - colonial Minas Gerais.
Lista de Ilustraes
1. Capela de Nossa Senhora da Glria do Arraial da Passagem Mariana -
Edificao do sculo XVIII
35
2. Genealogia da ascendncia de Incio Correia Pamplona 38
3. Genealogia da descendncia de Incio Correia Pamplona
39
9
Lista de mapas
1. Mapa da Comarca do Rio das Mortes com os termos das Vilas de So Joo del
Rei matizado e So Jos branco.
44
2. Carta Geographica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luiz de Miranda,
1804, Arquivo Histrico do exrcito, RJ].
45
3. Mapa do itinerrio feito pela comitiva de Lus Diogo Lobo da Silva em 1764. 95
4. Mapa da conquista do mestre de campo Incio Correia Pamplona. 109
5. Mapa da conquista do mestre de campo, regente, chefe da legio Incio Correia
Pamplona (cerca de 1784).
116
X
Sumrio
Lista de Ilustraes
IX
Lista de mapas X
Introduo ----------------------------------------------------------------------------------- 13
Captulo 1 -
O personagem e seu tempo: Incio Correia Pamplona - trajetria pessoal e
familiar ---------------------------------------------------------------------------------------- 27
1.1 - Origem, destinos e famlia ------------------------------------------------------------ 27
1.2 - Comarca do Rio das Mortes: uma terra promissora espera de Pamplona ---- 41
1.3 - Administrao, busca pela honra e remunerao dos vassalos na Amrica
portuguesa do Antigo Regime -------------------------------------------------------------- 47
Captulo 2 Uma trajetria de conquista e civilizao: o serto oeste das
Minas Gerais setecentista ----------------------------------------------------------------- 67
2.1 O serto: uma s terra e vrias simbologias ------------------------------------------ 67
2.2 Palco de disputas e um mundo cheio de incertezas - regio oeste mineira
setecentista: o serto gentlico e quilombola --------------------------------------------- 72
2.3 As entradas nos sertes do Eldorado mineiro e a perenidade da instituio das
sesmarias -------------------------------------------------------------------------------------- 80
2.4 As expedies de Pamplona no serto oeste mineiro ------------------------------- 87
2.4.1 Ensaio da primeira experincia sertanista de Pamplona ------------------------- 89
2.4.2 As expedies de 1764 e a de 1767 primeira marcha de Pamplona ao oeste
mineiro ---------------------------------------------------------------------------------------- 93
2.4.3 A expedio de 1769 Incio Correia Pamplona em marcha para civilizar
um serto rebelde ---------------------------------------------------------------------------- 103
2.4.4 As expedies de 1773-1781-1782 o serto da riqueza: terra, ouro e ndios 117
2.5 Um heri para o serto ------------------------------------------------------------------ 120
Captulo 3 Da sedio seduo: as manobras do Visconde de Barbacena e
de Pamplona na Inconfidncia Mineira (1789), e a morte de um revoltoso
astucioso (1810). ---------------------------------------------------------------------------- 1135
3.1 Inconfidncia Mineira: um breve dilogo com a historiografia ---------------- 1135
3.2 - Visconde de Barbacena: leal ou desleal vassalo? -------------------------------- 139
3.3 Quando Pamplona joga seu jogo mais arriscado: a Inconfidncia Mineira -- 149
3.4 A morte de Pamplona: um revoltoso agoniado (1810) ------------------------ 165
Consideraes Finais ---------------------------------------------------------------------- 174
Fontes ----------------------------------------------------------------------------------------
177
Bibliografia ---------------------------------------------------------------------------------
180
13
Introduo
Que intrpido, que ardente, que pasmoso!
Vencendo vai ao monte desmedido
Um novo heri buscando o cume erguido,
Onde a fama erigiu seu templo honroso (...).
*
Hrcules lhe d a clava e diz a fama
Respeitem as idades o meu brado;
Aqui um Alcides novo hoje se aclama.
*
J que foi como Hrcules esforado
Cinja o grande Pamplona a verde rama
Que o faa sempre eterno e decantado1.
Durante a dcada de 70, a historiografia sobre a Amrica portuguesa sofreu um
duplo abalo. Internamente, as obras de Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender2
questionaram a mxima inaugurada e perpetuada nos anos anteriores que enrijecia a
relao entre Portugal e suas conquistas americanas, bem como apontava a dependncia,
atravs do pacto colonial, destas ltimas em detrimento da primeira. Na prtica, estes
autores colocaram em xeque a teoria do sentido da colonizao de Caio Prado Jnior,
mas respaldada por autores como Celso Furtado e Fernando Novais3. Preocupados em
entender a dinmica interna, Cardoso e Gorender tentavam demonstrar que havia uma
vida prpria e autnoma nos confins da Amrica, e que as necessidades da Coroa
1 Ao senhor Incio Correia Pamplona condecorado com vrios honrosos postos na sua expedio para a
conquista do Campo Grande, cabeceiras do Rio So Francisco, Indai e Pernaba [sic]. In: NOTCIA diria e individual. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 108, pp. 53-113, 1988, p.56. 2 CARDOSO, Ciro Flamarion. As concepes acerca do sistema econmico mundial: a preocupao
obsessiva com a extrao de excedente. In: LAPA, Jos Roberto do Amaral. Modos de produo e realidade brasileira. Petrpolis: Vozes, 1980. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo,
tica, 1978. 3 PRADO JR, Caio. Formao do Brasil Contemporneo. Colnia. 16 edio. So Paulo: Brasiliense,
1942. FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. 17 edio. So Paulo: Editora Nacional,
1980. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). So Paulo:
Hucitec, 1979.
14
portuguesa no impediam a proliferao de outros modos de uso do negro e de
atividades agrcolas.
Externamente, o complexo colonial lusitano e as estruturas do Antigo Regime
tambm foram questionadas com os trabalhos de Charles R. Boxer, A.J.R. Russell-
Wood, Antnio Manuel Hespanha4 e outros. De um lado, Portugal passava a no ser
visto mais isoladamente e sim inserido em um complexo ultramarino, marcado por uma
teia de relaes sociais que o dotavam de amplos tentculos imperiais que precisavam
ser harmonizados; do outro, sua estrutura poltica absolutista foi relativizada,
demonstrando a existncia de um corpo administrativo auxiliar e de um poder
corporativo.
Entender a lgica de funcionamento da sociedade colonial brasileira nesse
contexto tem sido o mote dessa linha interpretativa. Os reflexos desses novos olhares,
novas propostas e descobertas empurraram a historiografia colonial a tentar enxergar
peculiaridades, especificidades e individualidades nas dcadas seguintes. Joo Fragoso,
Maria Fernanda Baptista Bicalho, Maria de Ftima Gouva5, Stuart Schwartz
6, s para
ficar em alguns casos, aprofundaram os estudos iniciados pelos historiadores dos anos
70 e descortinaram uma nova Amrica portuguesa: com uma economia multifacetada,
uma base poltica marcada pela negociao, com uma sociedade ampla, complexa e
desenhada por caractersticas lusitanas adaptadas. Noes como economia do dom7,
economia de servios circular8, economia poltica de privilgios
9, dentre outras, tm
informado os trabalhos empricos sobre o perodo.
Tomando a historiografia sobre Minas Gerais, confere-lhe uma conotao
poltica tambm diferente, no tocante as relaes verticais, distendendo as relaes de
dominao que se verificam de cima para baixo e enfatizando a capacidade de
4 BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de um crescimento de uma sociedade colonial.
Trad. Nair de Lacerda. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. RUSSEL-WOOD, A. J. R. O
governo local na Amrica portuguesa: um estudo de divergncia cultural. Revista de Histria USP, ano 25, v. 55, pp. 25-80, 1977. XAVIER, ngela Barreto e HESPANHA, Antnio Manoel. As redes
clientelares. In: MATOSO, Jos (Direo). Histria de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa,
1998. 5 FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime
nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2001. 6 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. So Paulo:
Companhia das Letras, 1999. 7 XAVIER, ngela Barreto e HESPANHA, Antnio Manoel. As redes clientelares. Op. cit.
8 MONTEIRO, Nuno Gonalo. O crepsculo dos grandes. A casa e o patrimnio da aristocracia em
Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional da Casa-Moeda, 1998. 9 FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime
nos trpicos. Op. cit.
15
habitantes da colnia comunicarem-se diretamente com a metrpole. Reconhecendo o
potencial interpretativo possibilitado por esse vis, a eficcia da elite colonial com a
capacidade de tecer redes clientelares, descortina-se os emaranhados das relaes de
poder na capitania mineira setecentista.
Esse retrato comeou a ser repensado no incio dos anos oitenta. Atravs de um
tratamento documental diferenciado, os autores contemporneos perceberam outras
perspectivas para se abordar o universo setecentista mineiro. A tese da centralidade
poltica portuguesa na Amrica foi enfaticamente refutada. Desta forma, os
pesquisadores instigaram a repensar os discursos que permeiam a relao dicotmica
entre Colnia e Metrpole10
.
A riqueza de situaes particulares revela a natureza da poltica e da prtica
administrativa, talhada nos inmeros levantes e represso; o nascimento de uma
sociedade pluritnica e pluricultural, tributria de moldes europeus, mas fadada a buscar
arranjos novos para camuflar sua natureza. O olhar sobre o mercado interno, a tentativa
de percepo das estratgias de potentados locais e de sua jus particular possibilitam
ricas interpretaes histricas sobre o serto de Minas Gerais ampliando a compreenso
sobre o cotidiano desse espao histrico complexo. Assim buscamos ilustrar esses
aspectos, rastreando a trajetria de Incio Correia Pamplona, que muito contribui para
dar carne e ossatura ao que, sem as personagens, seria apenas cogitao.
10
Destacam-se os trabalhos luminosos das atuais perspectivas e suas consequentes inovaes nas
interpretaes da diversidade e complexidade da economia, do cotidiano, da poltica e da administrao
na Capitania de Minas Gerais no perodo setecentista. Para citar apenas alguns trabalhos, entre outros
tantos: SOUZA, Laura de Mello e. Poltica e administrao colonial: problemas e perspectivas. In: O sol e
a sombra: poltica e administrao na Amrica Portuguesa do sculo XVIII. So Paulo, Cia. das Letras,
2006. pp. 27-77. FURTADO, Jnia Ferreira. Dilogos Ocenicos: Minas Gerais e as novas abordagens
para o imprio martimo portugus no sculo XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Jnia
Ferreira & BICALHO, Maria Fernanda. O Governo dos Povos. So Paulo: Alameda, 2009, pp. 107-130.
PAULA, Joo Antnio de. A minerao de ouro em Minas Gerais do sculo XVIII. In: RESENDE, Maria
Efignia Lage de; VILLATA, Luiz Carlos. Histria de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Vol. 1.
Belo Horizonte: Autntica, Companhia do Tempo, 2007, pp. 279-301. FURTADO, Jnia Ferreira. O
Distrito dos diamantes: uma terra de estrelas. In: RESENDE, Maria Efignia Lage de; VILLATA, Luiz
Carlos. Histria de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Op. cit. pp. 303-320. GUIMARES, Carlos
Magno; REIS, Flvia Maria da Mata. Agricultura e minerao no sculo XVIII. In: RESENDE, Maria
Efignia Lage de; VILLATA, Luiz Carlos. Histria de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Op. cit. pp.
321-336. MENESES, Jos Newton Coelho. A terra de quem lavra e semeia: alimento e cotidiano em
Minas Gerais colonial. In: RESENDE, Maria Efignia Lage de; VILLATA, Luiz Carlos. Histria de
Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Op. cit. pp. 337-358. SILVA, Flvio Marcus. Prticas comerciais
e abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do sculo XVIII. In: RESENDE, Maria
Efignia Lage de; VILLATA, Luiz Carlos. Histria de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Op. cit. pp.
359-376.
16
A Capitania de Minas Gerais foi marcada desde a origem pela atividade
mineradora que, embora no sendo atividade econmica exclusiva, foi um dos
principais fatores que configurou a estrutura socioeconmica regional. A capitania
passou a ocupar lugar central nas articulaes poltico-econmicas do mundo luso-
brasileiro setecentista. Tendo atrado grandes contingentes populacionais, aventureiros
de vrias partes do reino e tambm de outras regies da prpria Amrica Portuguesa, os
governos impuseram a capitania algumas adaptaes. Atravs de um rpido processo de
diferenciao socioeconmica, para receber e abrigar um elevado nmero de recm-
chegados, a maioria deles movidos pela mais desenfreada ambio e potencialmente
propensos a entrar em conflitos de interesse, quer com seus iguais, quer com o Estado
Portugus.
Nas primeiras dcadas do sculo XVIII, as Minas Gerais passaram por um
processo de urbanizao considervel marcado pela desorganizao, todavia verificam-
se as estruturas de poder criadas nos ncleos urbanos e possivelmente sem par na
histria da colonizao portuguesa at ento conhecida.
O cenrio dominante nas Minas era de um permanente confronto dos novos
habitantes desejosos de enriquecer rapidamente, e, portanto, tentando fugir da ao
limitadora do Estado com as autoridades designadas para controlar o territrio,
prontas a utilizar instrumentos de poder que a Coroa lhes conferia11
.
Na medida em que se consolidavam as Minas de ouro, intensificou-se, a partir
dos focos de povoamento, a explorao do serto oeste e a expanso das fronteiras das
terras agropastoris. Da terra sertaneja das Minas Gerais setecentista, emergiam do cho
mais que ouro e diamantes. A terra abrigava uma rede de muitas teias a entrelaar
interesses de potentados, sesmeiros e posseiros.
As autoridades coloniais descreviam o imenso espao do serto oeste,
principalmente do Campo Grande e das nascentes do rio So Francisco, com os seus
usuais, e indesejveis, ocupantes - negros quilombolas, ndios bravos e mestios sem
posio definida. Nas dcadas de 1740 e 1750, com a expanso territorial da capitania
de Minas Gerais e a instituio da rota de Gois, aumentaram as tenses sociais naquele
serto, resultante da entrada constante de sesmeiros, roceiros, mineradores e faiscadores.
Estes novos entrantes das Minas situaram-se no territrio, especialmente nos pontos
estratgicos das rotas, ou nas reas que dessem sada para os ncleos de povoamento
11
FURTADO, Joo Pinto. O manto de Penlope: histria, mito e memria da Inconfidncia Mineira de
1788-1789. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.15.
17
mais antigos. Advm dessa ocupao, marcada por interesses econmicos e polticos
dos coloniais, os conflitos de jurisdio num territrio constitudo pelo enquadramento
realizado pelos poderes eclesisticos e civis.
Alguns aspectos da ao poltica desencadeada na segunda metade do sculo
XVIII tiveram por objetivo geral assegurar, para a Coroa portuguesa, a posse de seus
domnios na Amrica. Em larga medida, visava-se a formao de vassalos teis
desejada grandeza do imprio colonial portugus. Entendemos que Sebastio Jos de
Carvalho e Melo, o marqus de Pombal, foi o principal formulador da fundamentao
terica e das prticas polticas adotadas no projeto civilizador em terras coloniais. Nesse
sentido, percebemos que, aos poucos, foi definido um "sistema poltico, civil e militar"
para ser aplicado s capitanias do Estado do Brasil, o qual estava estabelecido sob um
princpio geral: a Coroa portuguesa, para assegurar a posse de seus domnios
americanos, precisava adotar aes que garantissem o aumento do "nmero dos fiis
alumiados da Luz do Evangelho, pelo prprio meio de multiplicao das povoaes
civis e decorosas" 12
.
Nesse perodo, consideramos que os domnios portugueses na Amrica,
passaram a receber, efetivamente, maiores atenes, especialmente quanto delimitao
de suas fronteiras com as terras espanholas e a consequente ocupao das terras do
serto, com o intuito de, povoando-as, garantir, sua posse.
As autoridades coloniais e metropolitanas entendiam que o serto mineiro
precisava ser controlado e civilizado com base em suas prprias concepes do que
viria a ser civilizado devido s suas riquezas e possibilidades econmicas - para isso
era imprescindvel sua conquista13
.
Pode-se perceber que junto ideia de conquista havia claramente definida a
busca por algo que era identificado com o conceito de riqueza. No caso de Minas
12
INSTRUO de Governo de Mendona Furtado. In MENDONA, Marcos Carneiro de. Rios Guapor
e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1985, pp. 42-47. 13
Durante o sculo XVIII, o conceito de civilizao desempenhou um papel importante no discurso da
colonizao nas terras portuguesas. Carregado de uma dimenso metropolitana, o conceito alcanou uma
ampla extenso, penetrando tambm em reas que praticamente no tinham ainda sido influenciadas pelos
poderes coloniais. A funo poltica e scio-cultural do uso do conceito variou bastante de acordo com o
contexto histrico. No caso, do territrio colonial, o termo passou a designar de acordo com os interesses
portugueses uma oposio entre o progresso metropolitano - e a barbrie sertes. BOER, Pim den. Civilizao: comparando conceitos e identidades. In: FERES JNIOR, Joo e JASMIN, Marcelo.
Histria dos conceitos: dilogos transatlnticos. 1 Ed. Rio de Janeiro: Editora PUC-Loyola-IUPERJ,
2007. pp. 121-128. Um dos elementos constituidores da ao poltica desencadeada na segunda metade
do sculo XVIII e que teve por objetivo geral assegurar para a Coroa portuguesa na Amrica foi a
delimitao das fronteiras e a ocupao das terras no serto, com o intuito de, povoando-as, garantir, a sua
posse. E para isso, o governo no hesitou em adentrar as reas proibidas e dominar todo tipo de resistncia frente ao processo de ocupao da terra.
18
Gerais, esta era associada principalmente ao ouro e aos diamantes, a concesses de
sesmarias e a escravizao indgena, ainda que residual14
. E para obter estas riquezas
nenhum esforo seria medido. Era por elas que todas as foras eram reunidas e tudo era
justificado. As expedies enviadas ao serto exemplificam isto, ou seja, empreendiam
implacveis guerras contra as populaes nativas e at mesmo a dizimao de muitas
delas com o objetivo de localizar ouro e transformar aquelas terras em reas seguras aos
mineradores.
Em Minas Gerais, o povoamento da regio oeste15
e do leste tambm
apresentava um problema de difcil soluo: por mais que as autoridades tentassem por
meios diversos controlar essa regio, ela continuou a ser pelo menos at meados do
sculo XIX esconderijo de inmeros quilombolas e palco de tribos consideradas como
selvagens e brbaras16
. Essa populao passou a ser associada a empecilhos expanso
e, por que no, civilidade apregoada pelas autoridades. Eram vistos como verdadeiros
inimigos pblicos.
O serto oeste mineiro era um local fora de controle das autoridades. Por mais
que tentassem controlar as terras e os homens, pouco ou nada conseguiam. Diante disso,
pode-se afirmar que durante o sculo XVIII houve um projeto de civilizao voltado
para a Colnia. Embora tenha sido desenvolvido na Metrpole tal projeto foi, em linhas
gerais, apropriado pelas elites coloniais. Uma das principais ideias era a crena de que a
sociedade branca vista como a civilizada deveria incorporar outras reas fronteira
colonial, preferencialmente ricas e com possibilidades de produzirem, mas que estavam
sob controle de brbaros, ou seja, daqueles que no compartilhavam dos mesmos
14
Para uma anlise das conquistas ou entradas em Minas Gerais do sculo XVIII, remeto ao excelente
estudo de RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Gentios Braslicos: ndios coloniais na Minas Gerais
Setecentista. 2003, 401 f. Tese (Doutorado em Histria). Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, 2003. Cf. tambm: LANGFUR, Harold
Lawrence. The Forbidden Lands: frontier, Settlers, Slaves and Indians in Minas Gerais, Brazil, 1760-
1830. Faculty of the Graduate School, University of Texas/Austin, 1999. 15
Foi justamente essa a parte da Capitania onde o confronto de agricultores potenciais e quilombolas se
manifestou com maior intensidade, assim como a que hoje mais propriamente se conhece como Tringulo
Mineiro. Proliferaram os quilombos: por todo o perodo, o do Ambrosio ou o do Campo Grande; e ainda
o de Indai, Pedra Menina e Abaet, em 1768; o de Paraibuna, em 1769; o de Bambu e o de Tamandu,
em 1770. Para uma lista bastante completa dos Quilombos em Minas Gerais setecentista, ver
GUIMARES; Carlos Magno. A Negao da Ordem Escravista: quilombos em Minas Gerais no Sculo
XVIII. So Paulo: cone, 1988. AMANTINO, Mrcia Sueli. O Mundo das Feras: Os moradores do serto
oeste de Minas Gerais sculo XVIII. 2001. 426 f. Tese (Doutorado em Histria). Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2001. 16
AMANTINO, Mrcia Sueli. O Mundo das Feras. Op. cit. p.248.
19
sistemas culturais e de valores. Para isso era necessrio eliminar de uma forma ou de
outra, estes elementos17
.
O projeto civilizador proposto para Minas Gerais s seria levado a esse efeito se
houvesse um controle sobre a existncia daqueles que viviam no serto, e se esse
controle fosse estendido tambm s terras. O controle sobre essas terras era
teoricamente de fcil soluo, uma vez que eram doadas sob a forma de sesmarias a
quem tivesse condies de desenvolv-las18
. Os srios obstculos com relao ao
povoamento das reas mais afastadas eram os grupos indgenas e os quilombolas.
Assim com o objetivo de controlar essa regio e sua populao, vrias
expedies foram enviadas aos sertes. O objetivo era destruir qualquer elemento que
estivesse prejudicando o povoamento e desenvolvimento da regio. Aps ter
solucionado este problema, sesmarias deveriam ser distribudas a fim de que pessoas
passassem a arcar com a responsabilidade de manter a rea livre dos quilombolas e dos
ndios. Durante a expedio era preciso tambm criar Igrejas, smbolo do poder
espiritual sobre os homens, cuidar das pendncias judiciais que fossem encontradas,
casar as pessoas que viviam em concubinato e iniciar plantaes que facilitassem novas
expedies19
.
Incio Correia Pamplona, portugus de origem, cumpriu bem esse papel, tendo
sua vida marcada pelas atividades desbravadoras nos sertes da capitania mineira,
exterminando ndios e quilombolas que se localizavam no oeste de Minas Gerais e pelo
controle quase que absoluto que detinha da regio em funo de possuir muitas terras e
poderes conferidos pelos prprios Governadores20
.
Pamplona apresentou-se, dessa forma, como um pacificador do serto,
administrando a justia aos litigantes, at contra o prprio interesse, e promovendo o
17
O caso de Minas peculiar. Ver construo ideolgica dos ndios como barreira ao progresso de Minas,
justificando inclusive a Guerra contra os Botocudos. RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Gentios
Braslicos. Op. cit., pp. 141-210. 18
Conforme determinao de 1731, do Conselho Ultramarino, cabia meia lgua de quadra de terra sob a
condio de possuir escravaria o bastante para cultivar a terra. Para tanto s poderia ser reivindicada em
sesmaria uma possesso de terra devoluta, ouvidas as Cmaras e devidamente confirmada pelo crivo real.
Porm, na prtica, o que ocorreu foi a invaso reiterada de terras indgenas. Eram os prprios colonos que
se incumbiam de recorrer a muitas artimanhas para burlar as restries legais. A unidade da rea utilizada
era a de lgua em quadra ou lgua quadrada. A lgua de sesmaria equivale a 6,6 quilmetros, e a lgua em
quadra, portanto a 43,56 quilmetros quadrados ou a 4.356 hectares. Sobre a legislao que vigorou nas
concesses de sesmarias, ver BARBOSA, Waldemar. Histria de Minas. Belo Horizonte: Ed.
Comunicao, 1979, pp.231-251. De acordo com Maria Lenia a maior benesse nas Minas Gerais
Setecentistas girou em torno das concesses de sesmarias aos entrantes nos sertes inspitos que rompiam
a esmo. Cf. RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Gentios Braslicos. Op. cit., pp.141-210. 19
NOTCIA diria e individual. Op. cit. pp. 66-67. 20
BARBOSA, Waldemar de Almeida. A capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa oficial,
1970.
20
bem comum de todos. Representante do governador, ele era instrumento da paz, e por
isso sua presena era necessria; revelava-se aqui a responsabilidade tradicional do
poder rgio na pacificao social.
Incio Correia Pamplona, lder de vrias expedies enviadas aos sertes
mineiros, fazia questo de resolver as pendncias judiciais, prender criminosos,
processar outros e matar os inimigos indgenas e quilombolas21
.
Foi aclamado por seu squito em todas as entradas que rompiam a esmo pelos
sertes. Enaltecido por seus companheiros de jornada como um semideus, foi por vrias
vezes igualado aos grandes personagens mitolgicos e heris da antiguidade, remetendo
sempre a atos de honra e valentia. Assim chegavam a compar-lo a Hrcules, a Moiss e
ao rei Xerxes, da Prsia 22
.
Figura extraordinria por seus feitos guerreiros, seu valor e sua magnanimidade.
Um heri. esse o modelo que transpira da pose altiva, do olhar penetrante, das
armas e dos atos de coragem que compunham o esteretipo de Pamplona. Essa viso
romantizada foi fruto das motivaes polticas especficas que acabaram por tornar o
sertanista uma figura transcendental aos olhos de seus homens. O poderoso Hrcules
do serto no passava de um homem bruto e rstico que usava da violncia para
dominar a populao do serto e que se valia de poderes repassados pelas autoridades
coloniais para se afirmar enquanto liderana maior nas reas em que o poder central no
tinha acesso.
Homem multifacetado, Pamplona era guardio de um mosaico de interesses que
muito usou do serto para reclamar inmeras benesses. A construo de uma retrica
exagerada em torno de sua imagem, na verdade apenas uma forma de vangloriar seus
feitos, ora mais evidente, ora mais camuflada, sendo necessrio perscrutar atravs do
serto. O impacto desse territrio, contudo, provocou uma mudana radical no esprito
dos homens que acompanham o sertanista: metamorfoseavam a natureza e o lder em
matria potica. A partir da, Pamplona passaria a oscilar em frequncia cada vez maior
entre as imagens que danavam na imaginao, vindas dos matos, montes, rios e dos
descampados que a comitiva percorria.
21
SILVEIRA, Marco Antnio. O Universo do Indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Gerais
Setecentista 1735-1808. 1994. 203 f. Dissertao (Mestrado em Histria). Faculdade de Filosofia, Letras
e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1994. Cf. p.27 e ss. 22
Cf. os poemas recitados em homenagem a Pamplona durante a expedio de 1769. Notcia diria e
individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o senhor mestre de campo
regente e guarda mor Incio Correia Pamplona, desde que saiu de sua casa e fazenda do Capote s
conquistas do serto, at de retornar a sua dita fazenda. In: NOTCIA diria e individual. Op. cit.
21
O serto oeste representado como um lugar de onde se esperava algo, como o
ponto de referncia daquele que tinha alguma esperana. Mas esse lugar de onde se
espera pode ser tambm o ponto de onde algo pode ser esperado, o lugar do outro: do
quilombola ou do indgena prestes a atacar, a indolncia do homem rude, a violncia das
prticas polticas e da frouxido da justia. Assim diante de um terreno movedio,
pantanoso qualquer feito do lder representava segurana e ordem para seus homens. A
viso de seus seguidores estava impregnada da emoo tpica do testemunho em
primeira pessoa, em que se no relativiza a representao fantasiosa que se faz sobre o
sertanista.
Ao longo do setecentos, as entradas nos sertes chamadas tambm de reas
proibidas compreendeu o apogeu dos entrantes23 nas Minas Gerais conferindo-lhes
inmeras benesses, como no caso de Pamplona24
. As inmeras sesmarias concedidas
famlia Pamplona, graas s entradas que realizou ao longo dos anos de 1760 a 1780,
alm de simbolizarem prestgio social e poltico, forneceram todos os crditos
necessrios s suas pretenses. Alm do mais, as terras foram concedidas de modo que
uma fizesse fronteira com a outra, o que acabou por acarretar um gigantesco latifndio
controlado por Incio Correia Pamplona sendo considerado, talvez, como o maior
latifundirio das Minas por Laura de Mello e Souza25
.
A ambivalncia colonial em ocupar as terras no serto resultou em inmeros
conflitos, que, a despeito das hesitaes da poltica de governadores da capitania,
implementou uma prtica de invaso de territrios indgenas a partir de 1760. Desde
ento, as entradas passam a ser cada vez mais uma atribuio direta do governo, que
passou a delegar aos seus agentes diretos ou at mesmo agindo in loco por meio de
visitas dos prprios governadores, por conta e risco da Coroa, a incumbncia de realizar
as bandeiras26
.
O interesse dos entrantes pela terra no era gratuito por motivos bastante
evidentes. Estudos como de Sheila Faria de Castro e Maria Lenia Chaves de Resende
tm demonstrado o quanto os negcios com a terra foram lucrativos ao lado da
explorao mineral e do trabalho escravo no Brasil Colonial. Seguramente em Minas o
23
Tambm conhecidos indistintamente como bandeirantes e sertanistas. 24
Sobre este debate, veja RESENDE, Maria Lenia Chaves. Gentios Braslicos. Op. cit. MONTEIRO,
John Manuel. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia
das Letras, 1994. LANGFUR, Harold Lawrence. The Forbidden Lands. Op. cit. 25
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da histria de Minas no sculo XVIII. Belo
Horizonte: UFMG, 1999. 26
LANGFUR, Harold Lawrence. The Forbidden Lands. Op. cit. pp. 19-20; 72-119.
22
acesso s possesses territoriais, por meio das conquistas, foi a fora propulsora da
riqueza de inmeros colonos27
.
Todos os privilgios concedidos Pamplona estavam em perfeita harmonia com
as regras sociais e polticas do Antigo Regime. Nessa economia de distribuio de
benesses e privilgios, as alianas familiares e clientelistas so decisivas para
acumulao de fortunas. Em suas cartas ao Governador Valadares ou mesmo ao Rei,
Pamplona apresenta-se sempre lisonjeando as autoridades, afirmando tudo o que fez em
nome e em honra do Rei ou do Governador e deixando claro que estar sempre a
disposio para qualquer servio que se faa necessrio.
Em vrios momentos, Pamplona relembra todos esses servios ao solicitar
favores. Estas prticas seriam normais na sociedade do Antigo Regime, pautada pela
economia do Dom. Esta seria uma cadeia de benefcios em que as partes envolvidas se
dividiam entre aquele que tinha disponibilidade de dar e, portanto, com maiores poderes
do que aqueles que apenas recebiam. Estes ltimos em troca deviam respeito, ateno e
prestaes de servios. Acima de todos, estava o Rei, o elo mais poderoso da cadeia28
.
Assim, o que parece bajulao nas cartas de Pamplona nada mais do que a
manuteno de uma regra social aceita por todos como natural.
Em seu livro As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, merc e
venalidade em Portugal (1641-1789), Fernanda Olival nota que o desempenho de
servios era acompanhado da expectativa de prmios que deveriam ser atribudos de
uma forma considerada justa. Nesse sentido a obrigao rgia de dar devia ser feita de
acordo com determinadas normas [...]. A liberalidade no era assim espontnea; devia
obedecer a preceitos para ser adequada e politicamente geradora do amor dos vassalos
[...] 29. Tem sido assim identificado um processo no qual a construo dessas trajetrias
tornou possvel a combinao de uma poltica de distribuio de cargos, e, portanto de
mercs e privilgios, a uma de hierarquizao de recursos humanos, materiais e
territoriais por meio do complexo territorial.
27
Sheila de Castro Faria rev sua posio em trabalhos anteriores que difundia a noo de terras livres no Brasil escravista. Para a autora, no possvel deixar de reconhecer os embates entre as populaes
indgenas que barraram a expanso ilimitada do europeu. FARIA, Sheila de Castro. Colnia em
Movimento: fortuna e famlia no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998. p.122.
RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Gentios Braslicos. Op. cit. p. 98. A autora justamente tenta
demonstrar como os entrantes se tornaram donos de possesses territoriais e que isso significou boa parte
da sua riqueza. 28
XAVIER, ngela Barreto e HESPANHA, Antnio Manoel. As redes clientelares. Op. cit. 29
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, merc e venalidade em Portugal
(1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, pp.15-38.
23
A expanso ultramarina portuguesa resultou na progressiva conquista de
territrios, concorrendo para que a Coroa passasse a atribuir ofcios e cargos civis,
militares e eclesisticos aos indivduos encarregados do governo nessas novas reas30
.
Passava tambm a Coroa a conceder privilgios comerciais a indivduos e grupos
associados ao processo de expanso em curso. Tais concesses acabaram por se
constituir no desdobramento de uma cadeia de poder e redes de hierarquia que se
estendiam desde o reino dinamizando ainda mais a progressiva ampliao de interesses
metropolitanos, ao mesmo tempo em que estabelecia vnculos estratgicos com os
vassalos no ultramar. Materializava, assim, uma dada noo de pacto e de soberania,31
caracterizadas por valores e prticas tipicamente de Antigo Regime, ou, dito de outra
forma, por uma economia poltica de privilgios partindo de um denominador, o das
relaes de poder na administrao do mar lusitano.
Como ocorreu nas diversas partes dos domnios portugueses, em Minas Gerais
se estruturou uma prtica governativa que necessitava da cooptao do poder local e de
diversas estratgias que facilitaram a manuteno do domnio. Por outro lado, a
distncia do centro referencial do poder, a monarquia proporcionava queles homens
legitimidade para agir em prol do bom governo. Ante as mltiplas possibilidades
oferecidas pelo cotidiano complexo da Amrica, onde os arranjos e alianas flutuavam
ao sabor das circunstncias nem sempre claras, tais relaes, legtimas dentro da
dinmica da poca, concediam vozes s mltiplas representaes do poder e geravam
um ambiente de conflito constante, sem necessariamente caracterizar deformaes no
universo poltico-administrativo da poca.
A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa substituda
pela imagem de um espao de negociao, que edifica as relaes mutualistas ou
simbiticas entre a grande autonomia das cmaras municipais, instituies eclesisticas
ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negcios
coloniais32
. Afinal a economia poltica dos privilgios, institucionalizada pelas
30
HESPANHA, Antnio Manuel. s vsperas do leviathan: instituies e poder poltico. Portugal: sculo
XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 496. 31
BICALHO, Maria Fernanda. Pacto colonial, autoridades negociadas e o imprio ultramarino portugus.
In: SOIHET, R.; BICALHO, Maria Fernanda Baptista Bicalho e GOUVA, Maria de Ftima Silva.
(Orgs.) In: Culturas polticas: ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Rio de
Janeiro: Mauad, 2005, pp. 85-105. 32
HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Reviso de alguns
enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de
Ftima (Org.). O Antigo Regime nos trpicos. Op. cit. pp.163-188. BICALHO, Maria Fernanda Baptista.
As Cmaras ultramarinas e o governo do Imprio. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda &
GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime nos trpicos. Op. cit. pp.189-222. MONTEIRO.
24
monarquias do Antigo Regime nas colnias, estava assentada numa cadeia de
negociaes entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano,
hierarquizando os homens e o acesso obteno das benesses imperiais. O outro lado
desta realidade seria a coeso poltica necessria para o governo do Imprio.
Antnio Manuel Hespanha33
, investigando as regras formais para a atuao das
instituies coloniais diante do poder real, indicar as inconsistncias da suposta
uniformidade da estrutura jurdica do Imprio, como corolrio da idealizao do
centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de
situaes entre a organizao da justia em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Hespanha torna
visvel a pluralidade dos laos de polticos que iriam se estabelecer entre o poder local e
a Coroa a partir das distncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial
moderno se ajustava e os colonos estabeleciam suas prticas legislativas prprias.
Portanto, a centralizao no poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o
poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.
Na medida em que se desencadeava a histria poltico-administrativa do
complexo Atlntico, dinamizava-se uma economia poltica de privilgios viabilizada
pela concesso de mercs e privilgios dispensados tanto ao Brasil quanto aos homens
inter-relacionados pelo conjunto de polticas ento articuladas pela Coroa e seus
vassalos34
.
A proposta desta pesquisa , nessa perspectiva, analisar e compreender as
estratgias utilizadas por um representativo potentado local, Incio Correia Pamplona,
ao recorrer ao poder lusitano para projetar-se no serto oeste da capitania mineira na
segunda metade do sculo XVIII. Para isso, o trabalho modelado na forma de uma
biografia.
Estudos que abordam a trajetria de um indivduo merecem ateno devido aos
percalos com os quais o historiador poder se deparar. Uma atitude individual, que,
Nuno Gonalo F. Trajetrias sociais e governo das conquistas: Notas preliminares sobre os vice-reis e
governadores- gerais do Brasil e da ndia nos sculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO,
Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime nos trpicos. Op. cit. pp.249-
284. GOUVA, Maria de Ftima. Poder poltico e administrao na formao do complexo atlntico
portugus (1645-1808). In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima
(Org.). O Antigo Regime nos trpicos. Op. cit. pp. 285-316. 33
HESPANHA, Antnio Manuel. A constituio do Imprio portugus. Op. cit. In: FRAGOSO, Joo;
BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O Antigo Regime nos trpicos. Op.
cit. 34
GOUVA, Maria de Ftima. Poder poltico e administrao na formao do complexo atlntico
portugus. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (Org.). O
Antigo Regime nos trpicos. Op. cit. pp. 285-316.
25
primeira vista poderia ser considerada uma contradio, nada mais pode indicar que o
homem no segue uma linha reta, que ele no possui uma linearidade e que tudo o que
esse indivduo faz parte de vrias influncias, experincias e expectativas, que esto
em profunda confluncia, j que no so estticas e esto em constante tenso.
A biografia desse entrante torna-se importante para que entendamos o contexto
em que ele viveu, algumas de suas escolhas e transformaes com o passar do tempo. O
trabalho envolve a noo de trajetria que coaduna com o indivduo sem isol-lo de seu
contexto. A documentao analisada neste trabalho acena para investigaes de carter
social, cultural, poltico e econmico dentro da realidade em que o entrante est
inserido. A partir da anlise da documentao, estruturamos a dissertao da seguinte
forma:
No primeiro captulo, trataremos de recuperar alguns elementos cruciais de uma
biografia: parte de sua trajetria pessoal e familiar sua origem, matrimnio e
descendncia. Ao mesmo tempo, pretendemos iniciar uma discusso sobre a concesso
de mercs na Amrica Portuguesa. A recriao dos laos de vassalagem entre a
monarquia e seus sditos no alm-mar fez com que a economia de merc exercesse um
papel muito importante, inserida em uma sociedade com caractersticas estamentais.
Servir Coroa tornou-se um modo de vida e estratgia de ascenso social para certos
grupos. Os hbitos das Ordens Militares Avis, Cristo e Santiago , e as sesmarias
concedidas em territrio mineiro ao longo do setecentos representavam grande parte das
mercs devido importncia social e aos privilgios que acarretavam aos entrantes,
principalmente a Pamplona, que amealhou diversas sesmarias recebidas por suas
entradas em territrio mineiro e inmeros ttulos.
No segundo captulo, elucidaremos alguns aspectos desta figura emblemtica e
paradoxal da histria colonial mineira, o mestre de campo Incio Correia Pamplona: as
entradas que realizou durante as dcadas de 1760-1780, principalmente a de 1769,
capitaneada por ele prprio, com o objetivo de identificar e destruir os quilombos da
regio oeste de Minas Gerais, analisando seu carter civilizatrio e seu enriquecimento.
Para tanto, faremos algumas consideraes sobre o serto em geral, visto pelo mundo
dito civilizado como espao de barbrie e rebeldia, numa perspectiva colonial.
Segue-se tambm a constituio do mito Pamplona construdo pelos homens
que integravam as expedies ao serto mineiro. Assinalou-se a construo alegrica do
personagem a partir de sonetos que foram compostos durante a expedio de 1769.
Observou-se como esses poemas construram um heri para o serto. Em contraponto
26
a isso, procurou-se colocar a figura mtica no seu devido lugar: o serto oeste das Minas
Gerais na segunda metade do setecentos. Se inicialmente debatemos de frente com o
mito, passa-se a narrar os acontecimentos que marcaram o surgimento dele.
Incio Correia Pamplona estava inserido entre os principais potentados de Minas
Gerais setecentista, regio com contornos e nimos instveis. Sobretudo, os registros
das expedies chefiadas por ele denunciavam a necessidade de ampliar e de controlar o
territrio. Outro ponto a ser abordado a atuao de Pamplona como sesmeiro.
Pamplona foi sesmeiro nas duas conotaes do termo: ao mesmo tempo que recebeu
tambm concedeu sesmarias aos companheiros de suas expedies. Distribuir terras em
sesmarias era um privilgio do Rei, que, no Brasil, foi facultado aos governadores. O
governador das Minas, conde de Valadares, estendeu essa regalia ao coronel Incio
Correia Pamplona.
No terceiro captulo, trataremos do lado rebelde e dissimulador de Pamplona
em seu envolvimento na Inconfidncia Mineira e as consequncias dessa ao para os
ltimos anos de sua vida. Acerca da Inconfidncia Mineira, muito j se pesquisou e se
escreveu. Embora no seja um tema esgotado, no interesse desse captulo entrar em
suas mincias. dentro de uma oligarquia insurrecionada que vamos encontrar nosso
personagem. Inserir Pamplona entre os rebeldes de 1789, nas Minas Gerais, no uma
tarefa simples. As dificuldades surgem no pelo fato de ter ou no certeza de seu papel
na Inconfidncia, mas, sim, pela falta de relatos de seu envolvimento. Pamplona,
astucioso e arguto nas prticas polticas de seu tempo, soube muito bem dissimular sua
participao na conjura.
Trataremos tambm neste captulo da morte de um delator angustiado. Foi na
atmosfera barroca carregada de medos que Pamplona morreu em 1810 em So Joo del
Rei. Homem que acumulou uma srie de ttulos e patentes ao longo de sua vida, desde
que deixou a Ilha Terceira para se fixar na Amrica Portuguesa, Pamplona terminou
seus dias no esquecimento. Mesmo conseguindo no ser envolvido entre os rus da
Inconfidncia em 1789, sobre seus ltimos vinte anos de vida pesaram o descaso das
autoridades metropolitanas e as enormes dvidas que consumiram boa parte de sua
fortuna.
27
Captulo 1 O personagem e seu tempo: Incio Correia Pamplona - trajetria
pessoal e familiar
1.1 Origem, destinos e famlia
possvel reconstituir significativa parte da histria pessoal e familiar de Incio
Correia Pamplona a partir de quatro importantes documentos: a carta testamento com
data de 13 de agosto de 1810 , o inventrio que fora aberto em fins desse mesmo ano,
seu processo matrimonial datado em 1 de janeiro de 1751 e o De Genere et
Moribus de seu filho, o padre Incio Correia Pamplona Corte Real, de 1790.
O testamento extenso e detalhado. J o inventrio parece estar incompleto.
Provavelmente, ele seria muito maior, considerando os muitos bens a declarar e,
sobretudo, os litgios que ocorreram entre os herdeiros e a demora de sua concluso: em
1834, ainda eram juntados documentos ao processo. Faltam partes importantes, como o
termo de abertura e de encerramento. A listagem dos bens com sua avaliao sugere que
algumas propriedades da famlia no foram arroladas, como a famosa Fazenda do
Capote, de onde Pamplona partiu, em 1769, para a entrada rumo ao serto do Campo
Grande. Desaparecido tambm se encontra o inventrio de seu testamenteiro e principal
herdeiro, o padre Incio Correia Pamplona Corte Real, que parece ter se autobenefiado
no processo prejudicando assim suas irms, igualmente herdeiras.
O processo matrimonial pequeno em laudas, porm de grande riqueza
documental e de fundamental importncia para a recomposio da histria familiar e
pessoal de Incio Correia Pamplona. O De Genere et Moribus de seu filho, o padre
Incio Correia Pamplona Corte Real denso e seu estudo foi de inestimvel
contribuio para a pesquisa, pois nos possibilitou traar parte da genealogia da famlia
Pamplona.
At o presente momento, os estudos35
realizados que remetem origem de
Pamplona foram de carter apenas pontual, com dados parcos, extrados, sobretudo, de
seu testamento, tornando os anos iniciais de sua vida e de sua chegada Amrica
35
Como os de LARA, Mrio. Nos confins do serto da Farinha Podre: povoamento, conquistas e
confrontos no Oeste de Minas. Belo Horizonte: Lastro, 2009. MARTINS, Tarcsio Jos. Quilombo do
Campo Grande: histria de Minas que se desenvolve do povo. Contagem: Santa Clara, 2008. E
historiadores como AMANTINO, Mrcia Sueli. O Mundo das Feras. Op. cit. BARBOSA, Waldemar de
Almeida. A capitania de Minas Gerais. Op. cit. PINTO, Francisco Eduardo. Potentados e conflitos nas
sesmarias da Comarca do Rio das Mortes. 2010. 423 f. Tese (Doutorado em Histria). Instituto de
Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niteri, 2010. SOUZA, Laura de
Mello e. Norma e Conflito. Op. cit.
28
Portuguesa uma incgnita. Todavia, debruamo-nos em novos documentos com vistas a
explorar aspectos desconhecidos at ento pelos pesquisadores. Duas das fontes citadas
o processo matrimonial e o De Genere et Moribus so de carter inditos.
Desejamos, luz dessa nova documentao, descortinar fraes expressivas sobre a
origem pessoal e familiar desse portugus, indo no rastro da riqueza que acumulou em
Minas Gerais no sculo XVIII.
Incio e Rita, filhos gmeos dos portugueses Manuel Correia de Mello e
Francisca Xavier Pamplona, naturais da Santa S do Salvador da Ilha Terceira e cidade
de Angra, nasceram no dia 5 de setembro de 1729 e foram batizados na dita S pelo
Reverendo Vigrio Antnio Vieira da Fonseca em 11 de setembro do mesmo ano.
Foram padrinhos de Incio Correia Pamplona, Manuel Sebastio e Dona Estcia Isabel,
e de sua irm gmea Rita Pamplona, Luis Diogo Leite e sua filha Dona Maria Incia,
todos naturais e moradores da referida S36
.
Os dados genealgicos indicam que os pais de Pamplona, Manuel Correia de
Mello e Francisca Xavier Pamplona, eram naturais da freguesia de So Pedro da cidade
de Angra. A me era filha de Francisco Ferreira e Maria Pamplona, batizada em 05 de
maro de 1697. J no que se refere procedncia paterna, a documentao no
menciona os antepassados. A origem inequvoca: os pais no eram bem situados na
escala social, formando uma famlia simples e humilde. A inquirio das testemunhas
no processo de Habilitao de Genere, Vitae et Moribus, de seu filho, o Pe. Incio
Correia Pamplona Corte Real confirma essa evidncia, apontando o modesto ofcio de
Manuel Correia de Mello, que vivia da ocupao de feitor e criado particular de Dona
Francisca Roslia e Manuel Sebastio, sendo estes pessoas das principais famlias
destas Ilhas. Ainda reiteraram que os pais de Pamplona viveram at sua morte na
freguesia da Santa S do Bispado de Angra da Ilha Terceira. Alm disso,
[...] foram tidos e reputados sempre por legtimos cristos vivendo
sempre na obedincia da Santa Madre Igreja, sem crime algum, nem
pena vil ou infmia pblica, nem foram sentenciados e condenados
com as penas impostas pelas leis do reino, [...], nem hereges, nem
presos ou punidos pelo Santo Ofcio [...]37
.
36
PROCESSO Matrimonial de Incio Correia Pamplona e Eugnia Lusa da Silva. Arquivo Eclesistico
da Arquidiocese de Mariana. Registro 3037; Armrio 03; Pasta 304. fl. 16. 37
PROCESSO de Habilitao de Genere, Vitae et Moribus, do Pe. Incio Correia Pamplona Corte Real.
Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana. Armrio 04; Pasta 689. fls. 12, 14.
29
Segundo consta em seu prprio depoimento e os das testemunhas arroladas em
seu processo matrimonial, Pamplona havia deixado sua ptria Portugal com idade de
dez para onze anos38. Como nasceu em 1729, o que est registrado em sua certido de
batismo anexada ao processo de banho, a viagem para a Amrica Portuguesa teria
ocorrido entre 1739 e 1740. Essa nova evidncia, surgida na pesquisa, embaralha as
datas acerca do ano de seu nascimento, pois, em seu testamento, a data remetida a tal
fato a de 1731. Optamos aqui pela primeira, uma vez que em seu processo
matrimonial consta a compilao da certido de batismo endossada pelo Reitor
Domingos da Costa da freguesia da S de Salvador da cidade de Angra, onde havia
nascido Incio Correia Pamplona, e dizia: [...] Certifico que em um dos livros em que
se lanam os termos dos batizados deste mesmo na folha 282 se acha o registro de
batismo de Incio e Rosa [...]39.
Pamplona sara de Portugal em companhia de um tio que era frade franciscano,
o qual, depois de chegar ao Rio de Janeiro, fora para Santos. O ento menino passou
para as Minas Gerais, ficando no Rio apenas oito dias. Ao chegar s terras mineiras, seu
destino fora a freguesia de Congonhas do Campo, onde passou a residir na casa de um
outro tio, chamado Incio Cardoso Pamplona, morador na Santa Cruz do Salto,
pertencente dita freguesia. Logo principiou em fazer viagens em companhia do dito tio
com tropas de mulas pelo caminho do Rio de Janeiro e vinha pelas freguesias mineiras
principalmente Congonhas, Itabira e Vila Rica40
, vendendo as mercadorias e
mantimentos. Nelas, no se detinham por muito tempo, variando sua passagem entre
cada uma delas de dois a oito dias.
Passados alguns anos, Pamplona estabeleceu residncia no Arraial da Passagem,
nas cercanias de Mariana, a mais antiga vila da capitania de Minas Gerais. Incio
Correia Pamplona prosperou a sem, contudo, enriquecer de fato o que viria a
acontecer somente a partir da dcada de 1760 com as atividades sertanistas , e criou a
prole que ia chegando.
Ali, conheceu Eugnia Lusa da Silva, mulata e filha natural de Eugnio Lus da
Silva e de Teresa Francisca Santarm, escrava negra da nao Mina batizada na cidade
da Bahia e que viera para as Minas Gerais em companhia de seu senhor, que,
posteriormente, [...] a libertara por dinheiro [...]. Teresa Fonseca fixou-se no Arraial
38
PROCESSO Matrimonial de Incio Correia Pamplona e Eugnia Lusa da Silva. Arquivo Eclesistico
da Arquidiocese de Mariana. Op. cit. fls. 3-3 v; 4-4 v; 6; 8. 39
Idem. fl. 16. 40
Idem. fl. 8
30
da Passagem na condio de forra, lugar que futuramente viria a ter duas filhas. De
acordo com as testemunhas, a preta forra se ocupava como fazia a grande maioria das
mulheres forras nas vilas mineiras setecentista em seu negcio de quitandas, vendendo
ao povo fazenda comestvel de secos e molhados. Conforme consta na documentao,
viveria at sua morte no dito Arraial41
.
Mulheres africanas e suas descendentes, destacadamente da poro ocidental da
frica adentraram sertes da Amrica Portuguesa e neles se envolveram com a venda
de alimentos e objetos de baixo valor denominados genericamente de miudezas. O
comrcio de secos e molhados renderia a essas pessoas meios de sobreviver e mesmo de
acumular algum peclio. Concomitantemente, a presena dessas agentes mercantis
garantia o abastecimento de uma parcela importante da populao das vilas
setecentistas.
Os estudos ligados participao de mulheres negras de origem africana e suas
descendentes no mercado, como agentes mercantis na colnia so recentes42
, pois o
tema na maioria das vezes aparece destinado apenas a analisar aspectos do mercado ou
das relaes escravistas na Amrica Portuguesa.
Em pesquisa intitulada As donas da rua: comerciantes de ascendncia africana
em Vila Rica e Mariana (1720-1800), Dbora Cristina de Gonzaga Camilo43
, analisa a
presena negra no mercado de alimentos, produtos de baixo valor e crdito na regio
41
PROCESSO de Habilitao de Genere, Vitae et Moribus, do Pe. Incio Correia Pamplona Corte Real.
Op. cit. fl. 65. 42
FURTADO, Jnia Ferreira & VENNCIO, Renato Pinto. Comerciantes, tratantes e mascates. In:
PRIORE, Mary Del (Org.). Reviso do Paraso: os brasileiros e o Estado nos 500 anos de histria. Rio de
Janeiro, 2000. p. 104. SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Comrcio, Nao e Gnero: As negras minas
quitandeiras no Rio de Janeiro. 1835-1900. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira; MATTOS, Hebe
Maria; FRAGOSO, Joo. Escritos sobre Histria e Educao: Homenagem a Maria Yeda Leite Linhares.
Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2001. FARIA, Sheila de Castro. Sinhs pretas, damas mercadoras:
As pretas minas na cidade do Rio de Janeiro e de So Joo Del Rei (1700-1850). Tese apresentada ao
Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense. Concurso para Professor Titular. 2004
(mimeo). ______. Sinhs pretas: acumulao de peclio e transmisso de bens de mulheres forras no
sudeste escravista (sculos XVIII e XIX). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe
Maria; FRAGOSO, Joo. (Org.). Ensaios sobre Histria e Educao. Op. cit. pp.289-329.
PAIVA, Eduardo Frana. Escravido e universo cultural na Colnia. Minas Gerais, 1716-1789. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2001. ML, Cludia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material
em Vila Rica (1750-1800). 2002. 210 f. Dissertao (Mestrado em Histria). Faculdade de Filosofia e
Cincias Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. FURTADO, Jnia
Ferreira. Prolas negras. Mulheres livres de cor no Distrito Diamantino. In: ______ (Org.). Dilogos
ocenicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma histria do Imprio Ultramarino Portugus.
Belo Horizonte: UFMG, 2001. PUFF, Flvio Rocha. Os pequenos agentes mercantis em Minas Gerais no
sculo XVIII: perfil, atuao e hierarquia (1716-1755). 2006. 140 f. Dissertao (Mestrado em Histria).
Instituto de Cincias Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora. 2006. 43
CAMILO, Dbora Cristina de Gonzaga. As donas da rua: comerciantes de ascendncia africana em
Vila Rica e Mariana (1720-1800). 2009. 160 f. Dissertao (Mestrado Histria). Instituto de Cincias Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Ouro Preto, 2009.
31
compreendida por Vila Rica e Mariana. Por meio da anlise de bandos, editais,
devassas, testamentos e inventrios, a autora recupera aspectos da participao de
africanas e de suas descendentes ao comrcio local.
Escravas africanas e negras forras representavam no perodo colonial maioria no
comrcio de quitandas e miudezas nas vilas mineiras. No trabalho de Sheila de Castro
Faria, Sinhs pretas, damas mercadoras: as pretas minas na cidade do Rio de Janeiro e
de So Joo del Rei (1700-1850), a autora demonstra a existncia de um grupo tnico
especfico, as minas, ligado ao trabalho no comrcio, perpetuando tradies culturais
oriundas do continente africano. Tais pesquisas nos levam a refletir sobre a relao do
ofcio de quitandeira que Teresa Francisca Santarm exercia e o legado que
possivelmente deixaria s filhas, sendo uma delas, Eugnia Luisa da Silva, a futura
esposa de Incio Correia Pamplona. No entanto, conhecer quem eram essas mulheres
no tarefa fcil, mulheres negras, muitas delas oriundas da escravido, no deixariam
muitos registros documentais que facilitasse a ns, historiadores, a reconstituio de
aspectos da vida 44. Infelizmente no encontramos o testamento e nem o inventrio de
Tereza Francisca Santarm. O grande nmero de homnimos, principalmente entre as
pessoas de ascendncia africana um fator que limita o cruzamento de fontes, mas que
ao mesmo tempo no impossibilita de lanar conjecturas sobre como se originaria o
casamento de um tropeiro com uma mulata, possivelmente ligada ao pequeno
negcio, ofcio que teria herdado da me.
A partir desse ampliado raio de ao surgem interessantes indagaes sobre a
insero das comerciantes de ascendncia africana de Mariana e Vila Rica nas redes
comerciais, principalmente de Teresa Francisca Santarm. Como compreender, em
terras do serto da Amrica portuguesa setecentista, a participao de ex-cativas no trato
mercantil? O que levaria Pamplona, um tropeiro de origem lusa com futuro promissor
de vir a se tornar um negociante de grosso trato a casar-se com uma mulata, filha de
uma forra quitandeira? A mulata, Eugnia Luisa da Silva, poderia ter ajudado Pamplona
a se estabelecer enquanto vindouro comerciante atravs de seu trabalho no pequeno
comrcio?
44
Idem, p. 44. O predomnio de mulheres da Costa da Mina na atividade comercial nas vilas de Mariana e
Vila Rica se deve ao contexto de importao de africanos para a regio. RAMOS, Donald. Community,
control and acculturation: a case study of slavery in Eighteenth Century Brazil. In: The Americas. Vol.
XLII, n 4. p.423. 1986.
32
Certos de que o historiador deve ir alm dos documentos, explorando a
possibilidade e fazendo perguntas nas entrelinhas das fontes, propomos lanar luzes s
questes apresentadas. Tais desafios devem incentivar a busca de alternativas que
permitam conhecer um pouco mais a respeito da aproximao do tropeiro com a mulata
Eugnia, e, se no podemos traar aqui trajetrias dessas mulheres negras, buscaremos
entender suas ligaes sociais mais imediatas.
O desafio do trabalho com comerciantes negras reiterado por alguns
historiadores. Romper com o silncio imputado por uma sociedade escravista e que
valorizava a condio masculina e branca tarefa penosa. Nas palavras dos
historiadores Jnia Ferreira Furtado e Renato Pinto Venncio:
Acompanhar a trajetria de vida dessas pequenas comerciantes algo
bem mais complexo do que investigar a vida dos ento denominados
mercadores de grosso trato, pois as vendeiras e mulheres de tabuleiros
deixaram menos documentos que os magnatas coloniais. (...) as
pequenas comerciantes eram mulheres sem nome de famlia ou com sobrenomes que refletiam devoes e invocaes religiosas do
momento. Da, sem dvida, o carter ambguo das sucintas
informaes presentes na documentao. Tendo em vista esse carter
extremamente fragmentrio da documentao que permitisse
identificar individualmente as comerciantes, procuramos caracteriz-
las como grupo social45
.
O fenmeno das minas de ouro no sculo XVIII atraiu grande nmero de
aventureiros e uma populao de diversas partes da colnia e tambm de fora dela.
Juntamente com aventureiros portugueses e paulistas, vidos pelo metal dourado, um
grande nmero de escravos seguiria para os sertes da Amrica Portuguesa para
trabalhar compulsoriamente na extrao aurfera. Em torno dessa atividade
desenvolveram-se outras visando o abastecimento da populao das vilas mineiras.
Comercializar alimentos, principalmente, tornara-se bastante lucrativo. Como aponta o
trabalho de Dbora Cristina de Gonzaga Camilo46
, entre os anos de 1716 e 1796, para
Mariana e Vila Rica, a presena de indivduos de ascendncia africana envolvidos no
comrcio de pequeno trato aumentaria continuamente, sendo o grupo mais expressivo o
dos forros.
45
FURTADO, Jnia Ferreira e VENNCIO, Renato Pinto. Comerciantes, tratantes e mascates. Op.cit. p.
104. 46
CAMILO. Dbora Cristina de Gonzaga. As donas da rua. Op. cit, p. 46.
33
O pequeno comrcio, atividade essencial s comunidades, deixaria poucos
indcios se comparado aos negcios de grosso trato. Essencial e cotidiano, este mesmo
comrcio seria a base da vida das vilas mineiras do sculo XVIII.
O trabalho de Cludia Maria das Graas Chaves, intitulado Perfeitos
comerciantes: mercadores das minas setecentista47
realiza uma caracterizao dos
agentes comerciais atravs da atividade volante ou fixa,
Havia dois tipos distintos de comerciantes no mercado colonial
mineiro. O primeiro compreendia os comerciantes que transportavam
e vendiam suas mercadorias pelos caminhos de Minas, nas vilas e
arraiais sem localizao fixa ou em feiras. Estes comerciantes eram
abastecidos pelos mercados do Rio de Janeiro e So Paulo, pelos
produtores rurais e artesos de Minas Gerais. E entre eles estavam o
tropeiro, o comboieiro, o boiadeiro, o atravessador, o mascate, a negra
de tabuleiro. A segunda categoria de comerciantes est representada
pelos que compravam e revendiam mercadorias em seus
estabelecimentos fixos. Compunham este grupo os vendeiros, os
lojistas e os comissrios, que eram abastecidos por tropeiros, por
produtores rurais e pelos artesos mineiros48
.
Os produtos mais comumente vendidos pelas comerciantes negras eram
fabricados por elas mesmas, ou por vezes eram oriundos do trabalho delas como
intermedirias entre produtores, tropeiros e a populao das vilas49
. Talvez Pamplona
tivesse conhecido Eugnia Luisa da Silva na troca de mercadorias na atividade
mercantil do tropeirismo e da quitandeira, possivelmente exercida pela mulata. Ressalta-
se aqui, que embora o estigma da cor diferenciasse socialmente o tropeiro portugus e a
mulata, ambos teriam a mesma gnese comercial, pertenciam como bem definiu a
historiadora Cludia Chaves, no primeiro grupo de comerciantes no mercado colonial
mineiro.
Mulheres africanas, sobretudo, da Costa da Mina tornavam comerciantes nas
minas setecentistas atuando no abastecimento de vilas. Isso significa reconhecer que os
agentes aqui referidos situam-se em lugar especfico na sociedade hierarquizada que
caracteriza a Amrica portuguesa escravista. Assim, inserir-se como agente mercantil
em meio a um contexto escravista exigiria certas estratgias, investimentos em relaes
pessoais e uma boa administrao dos negcios. Logo vrias prticas e mecanismos
47
CHAVES, Cludia Maria. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas Setecentistas. So Paulo:
Annablume, 1999. 48
Idem, p. 49. 49
CAMILO. Dbora Cristina de Gonzaga. As donas da rua. Op. cit., p. 52.
34
foram utilizados por essas mulheres como tentativas de fixarem-se na atividade
mercantil, como exemplo o casamento, que era uma forma de acrescentar posses e
demonstrar poder,
[...] agentes mercantis de baixo trato, reconheceriam de forma bastante
clara os caminhos possveis para angariar melhores condies de vida,
o que inclua optar pelo matrimnio, [...]e reproduzir, enfim, costumes
africanos adaptando-os ao contexto da sociedade escravista na
Amrica portuguesa50
.
Esperava-se que o matrimnio trouxesse aumento da riqueza e que ambos
contribussem para a ascenso do casal. Pamplona que tambm havia ingressado no
ramo comercial de pequena monta desde 1740 alcanaria na regio de Mariana e Vila
Rica considervel prosperidade econmica, durante rduo trabalho ao longo de duas
dcadas. O que lhe permitiu expandir sua rede de comrcio e crdito aos pequenos
comerciantes e tambm a outras Comarcas51
.
As circunstncias e os motivos relacionados ao casamento de Pamplona com a
mulata Eugnia ainda se apresentam nebulosos em nosso trabalho. O que pretendemos
ao discorrer sobre as questes propostas foi abrir clareiras a respeito do matrimnio dos
pares e conjecturar a possvel associao das atividades mercantis do tropeirismo
iniciado nos anos de 1740 por Pamplona com o comrcio de pequena monta que
tambm seria praticado por Eugnia. Aqui apontamos indcios do interesse que a mulata
teria em construir patrimnio e assegurar melhores condies de vida ao lado de
Pamplona, e at mesmo o contrrio, ou seja, o tropeiro tambm poderia usar do mesmo
artifcio ao selar o casamento com o objetivo de ampliar suas redes comerciais.
Eugnia Luisa da Silva, como est registrado em seu processo matrimonial, foi
batizada a 18 de outubro de 1736 na Capela de Nossa Senhora da Glria do Arraial da
Passagem, filial da Matriz da Vila de Nossa Senhora do Ribeiro do Carmo, sendo os
padrinhos Manuel de Oliveira e Ana Maria Silva.
50
Idem, p. 60. 51
TESTAMENTO de Incio Correia Pamplona. Test. 1821, Cx. 100 Arquivo Histrico do Museu Regional de So Joo del-Rei. fls. 08 e 09.
35
Figura 1 Capela de Nossa Senhora da Glria do Arraial da Passagem Mariana.
Edificao do sculo XVIII.
Fonte: Arquivo particular da autora.
De seu casamento com Eugnia Lusa da Silva, resultaram seis filhos: o padre
Incio Correia Pamplona Corte Real, Teodora Anglica de Santa Rosa, Rosa Maria do
Sacramento, Incia Felcia Correia Pamplona, Simplcia Correia Pamplona e Bernardina
Correia Pamplona. Foi em nome dessa famlia que Pamplona acumularia um gigantesco
patrimnio rural.
Pamplona declarou em seu testamento, datado de 1810, que havia casado sua
filha Bernardina com um parente, Joo Jos Correia Pamplona, e importou o seu dote
em que entrou:
[...] uma fazenda chamada Tapada com escravatura, gados, guas,
burros e burras, e o enxoval que se lhe deu para o seu casamento, e
antes desse enxoval que sua me fez e deu, e todas as roupas do uso
desta que por morte tambm se lhe deu [...] o que tudo importa em a
quantia de 6:573$000 (seis contos, quinhentos e setenta e trs mil
ris)52
.
52
TESTAMENTO de Incio Correia Pamplona. Op. cit. fl.4 v-5.
36
As demais filhas foram recolhidas Casa de Misericrdia de Macabas53
, na
Comarca de Sabar, o que na prtica lhe custou muito menos do que cas-las, pois
parece que no pagou todas as despesas. Dizia, em testamento, Incio Correia Pamplona
que:
[...] desde o ano de mil setecentos e setenta e um, que recolhi no
Recolhimento das Macabas minhas filhas, e uma prima por nomes:
Teodora, Rosa, Incia, Simplcia e a prima Bernarda, com seus dotes
de trs mil cruzados cada uma das cinco propinas, e novecentos mil
ris de juros enquanto no paguei os dotes, e as cinco celas a trezentos
mil ris cada uma, que com as mais despesas diariamente, e
assistncia como consta do livro, e at o presente importam salvo erro
em a quantia de quatorze contos novecentos e trinta e seis mil e trs
ris [...]54
.
Na colnia, dentro do envoltrio social de mentalidade marcadamente patriarcal,
na qual a cor da pele era um fator de separao social, entre seis filhos legtimos, ter
cinco filhas mulatas era um grande problema que Pamplona enfrentaria. As filhas de um
potentado no poderiam unir-se em matrimnio com um aventureiro ou um homem
qualquer. Alm de encontrar algum de boa famlia, era preciso dot-las de um bom
casamento. Cas-las todas significava dividir o patrimnio da famlia, transferindo a
maior parte para os genros estranhos em prejuzo do nico filho homem. Era preciso
tambm manter a sucesso hereditria da famlia. Alm dessas provveis explicaes
para a imposio do devoto pai enclausurar suas filhas no Recolhimento das
53
Nas Minas Gerais, as filhas dos homens abastados, alm de uma educao de carter eminentemente
domstico, chegavam a ingressar no Recolhimento das Macabas, estratgia comum aplicada, inclusive,
para as meninas nascidas dos relacionamentos de homens brancos com mulheres negras ou mestias. O
Recolhimento de Nossa Senhora da Conceio das Macabas, o mais clebre dos dois existentes na
Capitania de Minas Gerais, recebia filhas de famlias abastadas, em geral moas brancas, cujas famlias
desejavam educ-las e preserv-las dos assaltos do mundo. Apud CARRATO, Jos Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, p. 116. Mas
tambm as filhas mestias, que muitos homens, principalmente portugueses, tinham fora do casamento ou
em sua condio de solteiros. Um dos casos mais conhecidos o das nove filhas da mulata Chica da Silva
e do contratador Joo Fernandes de Oliveira, recolhidas em Macabas e l sustentadas por somas
considerveis enviadas por seu pai. Ver: FURTADO, Jnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos
diamantes: o outro lado do mito. So Paulo, Companhia das Letras, 2003. Waldemar de Almeida Barbosa
traz maiores informaes sobre esse antigo convento na regio de Sabar, fundado em 1714. Uma grande
ala do convento foi construda pelo mestre de campo Incio Correia Pamplona. No nosso entendimento,
essa foi uma forma por ele encontrada para conseguir a recluso de suas filhas mulatas e para o
pagamento de parte de seus dotes. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionrio histrico-geogrfico
de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. De acordo com Mary Del Priore, garantia de sustento de quem integrasse na vida religiosa, o dote podia ser parcelado ou ainda convertido em escravos,
animais, propriedades ou na construo de celas e cmodos na prpria instituio. PRIORE, Mary Del. Ritos da vida privada. In: SOUZA, Laura de Mello (Org.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo:
Companhia das Letras, 1997. v. 1, p. 289. 54
TESTAMENTO de Incio Correia Pamplona. Op. cit. f.4-4v.
37
Macabas, podemos somar o fato de que tambm seria exemplo pblico de proclamao
da religiosidade da famlia e de ostentao de sua posio social.
Quanto ao filho, foi reservado vida eclesistica, o que no impediu que
tambm ele perpetuasse a linhagem do pai. O padre, por sua vez, teve um filho, tambm
destinado ao sacerdcio, o padre Jos Maria Correia Pamplona, o qual, em 1822, veio a
substituir seu pai como inventariante do falecido av, o Coronel Pamplona,
perpetuando-lhe ainda mais a linhagem.
38
Figura 2 Genealogia da ascendncia de Incio Correia Pamplona55
In
55
Para confeco dessa genealogia, contou-se com os documentos citados no texto.
Maria
Pamplona
Francisco Ferreira
Francisca
Xavier
Pamplona
Francisca
Xavier
Pamplona
Manuel Correia
de Mello
Rita
Pamplona
Incio Correia
Pamplona
39
Figura 3 Genealogia da descendncia de Incio Correia Pamplona56
56
Para a confeco dessa genealogia (dados registrados at a terceira gerao), contou-se com os
documentos citados ao longo do texto, e, tambm com o inventrio do neto do mestre de campo, o Padre
Jos Maria Correia Pamplona, filho do Padre Incio Correia Pamplona Corte Real. INVENTRIO post
mortem do Padre Jos Maria Correia Pamplona 1854, caixa 564. Herculano Correa Pamplona, filho mais
velho e com idade de 30 anos foi testamenteiro conjunto com sua me, Dona Senhorinha Cndida
Rodrigues do falecido Padre Jos Maria Correa Pamplona, uma vez que os demais igualmente herdeiros
eram na ocasio menores de idade. Verificar no inventrio, fl. 05.
Incio Correia
Pamplona
Eugnia
Lusa da
Silva
Teodo-
ra
Bernar-
dina
Simpl
-cia
Rosa Incia
In