Aterosclerose

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HISTRIA NATURAL DA ATEROSCLEROSESRGIO D IOGO GIANNINI

Disciplina de Cardiologia Departamento de Crdio-Pneumologia Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo Endereo para correspondncia: Rua Bais, 156 CEP 05469-040 So Paulo SP

Os dados anatomopatolgicos de estudos realizados em indivduos falecidos por causas no cardiocirculatrias, particularmente violentas (suicdios, acidentes, etc.), demonstraram que a aterosclerose se inicia na primeira dcada de vida. As estrias gordurosas so consideradas as leses mais precoces, s quais se seguem as placas fibrosas (ou fibrolipdicas). Estas habitualmente formam-se na terceira dcada da vida e sua repercusso clnica depender da sbita soltura da placa (placa instvel) e da conseqente formao aguda de trombo, ou da progressiva diminuio do fluxo, por aumento gradativo da placa fibrosa (estenose gradual). H ntidas eviRSCESP (72594)-1033

dncias de que a precocidade e a velocidade da evoluo das placas dependem fundamentalmente de fatores ambientais, tendo sido constatada relao direta dos principais fatores de risco (lipoprotenas, hipertenso arterial, tabagismo) com a extenso das leses aterosclerticas. H suficientes evidncias justificadoras de medidas preventivas desde a juventude naquelas populaes com elevados ndices de morbidade e mortalidade por complicaes cardiocirculatrias. Descritores: aterosclerose, histria natural da aterosclerose, fatores de risco, estria gordurosa, placa fibrosa.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:677-85)

I NTRODUODesde o incio do sculo, vrios pesquisadores estiveram preocupados em estabelecer a histria natural da aterosclerose, pois dados de necropsias indicavam vnculo entre leses arteriais aterosclerticas e distrbios cardiocirculatrios, Entretanto, para tal era indispensvel a avaliao de material obtido de indivduos mortos por causas sem qualquer elo com doenas do sistema cardiocirculatrio, buscando identificar a possvel cronologia de aparecimento das leses aceitas como marcas da aterosclerose (placas elevadas leses salientes na superfcie intimal). Assim, em 1915, Mnckeberg(1, 2) publicou dois artigos que relatavam os resultados de exame de artrias coronrias de 140 soldados combatentes da 1a Guerra Mundial, com mdia de idade de 27,7 anos. Em aproximadamente 50% foram encontradas leses tpicas em artrias coronrias, ficando patente a possibilidade da afeco

em indivduos jovens. Tambm Aschoff, (3) em 1924, e, particularmente, Zinserling (4) , em 1925, publicaram trabalhos analisando leses encontradas em artrias de indivduos que haviam falecido por causas no cardiocirculatrias. Zinserling, em Leningrado, examinou a aorta de indivduos com mais de 15 anos de idade, identificando, em jovens, placas que sups serem precursoras da aterosclerose. Merece tambm citao estudo de Clawson (5) , que analisou material de 30.265 autpsias, com especial ateno em relao idade e ao sexo. Ainda que algumas publicaes posteriores (6-8) tenham enfocado aspectos da histria natural da aterosclerose, inegvel que a minuciosa anlise anatomopatolgica em artrias de soldados americanos mortos na guerra da Coria, realizada por Enos e colaboradores(9) , e estudos dos investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Louisiana representaram marcos fundamentais na determinao da histria natural da aterosclerose. Em 1952, o grupo677

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de Louisiana iniciou investigaes sobre a prevalncia e a extenso das leses grosseiramente visveis na aorta de jovens submetidos a autpsia. Em 1958, pesquisadores desse grupo publicaram dados que buscavam definir a histria natural da aterosclerose(10) . Ficava evidente que indivduos a partir do terceiro ano de vida apresentavam pelo menos algumas finas estrias gordurosas. Pequenos pontos de gordura e estrias gordurosas podiam ser encontradas antes dos 20 anos de idade. Tais manifestaes podiam estar presentes principalmente na superfcie intimal da aorta, em pequenas (1% a 2%) at grandes extenses (70% a 80%). Placas fibrosas surgiam aps os 20 anos, mas sua freqncia mantinha-se estvel at os 40 anos de idade. Em 1962, o mesmo grupo (11) publicou resultados obtidos aps estudo de artrias coronrias de 548 indivduos brancos e negros de 1 a 69 anos de idade. Verificou-se, em homens brancos com idade inferior a 40 anos, alta prevalncia de leses em artrias coronrias, podendo haver extenso acometimento por todos os tipos de leses. As mulheres brancas apresentavam baixos ndices de acometimento, e os homens e as mulheres negras exibiam leses com valores intermedirios. Comparativamente, a extenso das leses em pacientes que haviam morrido por doena coronria era bem maior que a observada em indivduos que morreram por acidentes ou por outras causas. A freqncia e a extenso de leses observadas em todos os indivduos com mais de 60 anos de idade correspondiam, aproximadamente, aos ndices de mortalidade encontrados na populao geral. Esses dados apoiavam a hiptese de ser a aterosclerose a principal determinante das manifestaes da doena coronria. O grupo de Louisiana trouxe, assim, significativa contribuio ao conhecimento da histria natural da aterosclerose e estimulou anlise comparativa com achados de outras regies dos Estados Unidos e de diferentes pases. Nesse sentido, merece referncia a realizao de estudo coordenado por McGill (International Atherosclerosis Project IAP), que teve por objetivo comparar os achados anatomopatolgicos de New Orleans com diferentes regies geogrficas de outros pases. Seguramente o IAP representou a mais ampla investigao com essa caracterstica, pois utilizou 23.207 segmentos de aortas e artrias coronrias, coletadas de pessoas entre 10 e 69 anos de idade, submetidas a autpsia em 14 diferentes pases entre maio de 1960 e setembro de 1965. Para sua realizao, foram reunidos patologistas que discutiram e estabeleceram rigoroso protocolo. (12) Foram comparados os dados obtidos das seguintes cidades: New Orleans,678

Oslo, Durban, Manila, Caracas, So Paulo, Porto Rico, Jamaica, Cali, Lima, Costa Rica, Santiago, Mxico, Bogot e Guatemala. O material recolhido era representativo de cidades com incidncia muito diversa de afeces cardiovasculares e com elevados, intermedirios ou baixos ndices de mortalidade por doena coronria. Os grupos que as compunham etnicamente eram muito variveis, cada um deles exposto a condies ambientais bem diferentes. A anlise do material era centralizada, para ter condies uniformes de estudo do grau de acometimento das artrias. Os achados fundamentais do IAP (13) foram: em adultos, foi encontrada ampla variao na prevalncia e na extenso mdia das leses aterosclerticas para as diferentes populaes; mas, para cada populao estudada, havia correlao entre ndices de mortalidade por doena arterial coronria e intensidade e extenso do comprometimento arterial; a freqncia e a extenso de estrias gordurosas na aorta aumentavam na terceira e na quarta dcadas; a partir desta, sua presena era praticamente constante; nas artrias coronrias elas apareciam mais tardiamente e sua freqncia alterava-se pouco nos grupos etrios mais velhos; para segmentos arteriais correspondentes a indivduos com maior idade, podiam ser encontradas leses elevadas em quaisquer artrias, mas apareciam mais precocemente na aorta abdominal, e cinco a dez anos mais tarde na aorta torcica; praticamente no foram observadas diferenas sexuais em relao extenso das placas elevadas em quaisquer idades; nas artrias coronrias de mulheres jovens, a progresso das placas elevadas era mais lenta; homens no brancos sempre exibiam leses mais pronunciadas que as encontradas no sexo feminino de qualquer grupo tnico. Tambm a distribuio topogrfica de leses arteriais mereceu ateno de vrios pesquisadores, sendo constante a observao de que as leses ocorrem mais precoce e extensamente na aorta, surgindo posteriormente nas artrias coronrias e cerebrais. (14) Os dados do IAP e os obtidos posteriormente em investigaes semelhantes demonstraram que as leses aterosclerticas aparecem na seqncia descrita a seguir. A aorta a primeira a ser atingida, o que se d na infncia, com o aparecimento das estrias gordurosas, que aumentam rapidamente na puberdade. As estrias gordurosas surgem nas artrias coronrias apenas na adolescncia e na juventude; nas populaes em alto risco, as estrias gordurosas podem se transformar em

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placas fibrosas no fim da segunda ou da terceira dcadas de vida. Nas artrias cartidas, as estrias gordurosas surgem aproximadamente na mesma faixa etria que o comprometimento da aorta, ao passo que as artrias cerebrais comeam a apresentar leses em correspondncia de idade com as coronrias. As placas fibrosas das cartidas surgem no mesmo perodo das encontradas na aorta, mas aparecem nas artrias vertebrais e intracranianas bem mais tardiamente. Portanto, ao longo das dcadas de 50 e 60 houve expressiva contribuio para a determinao da histria natural da aterosclerose por meio de material de autpsias obtidas em uma(10) ou mais populaes(15,16) , ou, ainda, por meio de estudos internacionais de larga escala (12, 17). Em funo dos achados desses estudos, foram estabelecidos alguns dados de consenso sobre as leses representativas da doena aterosclertica e tornou-se aceita a seqncia proposta por McGill e colaboradores (18) , expressando a histria natural da aterosclerose. Embora pontos de gorduras nas artrias possam estar presentes desde a primeira infncia, as leses evolutivas da aterosclerose seriam as que seguem:

a) estrias gordurosas (fatty streaks) leses planas, de colorao amarelada, sob a forma de faixas com elevado teor de gorduras, consideradas as leses mais precoces da aterosclerose, podendo ser observadas nas primeiras dcadas de vida; b) placas fibrosas ou fibrolipdicas formaes de consistncia aumentada, elevadas na superfcie da ntima, diminuindo mais ou menos intensamente a luz do vaso; c) leses complicadas determinadas por distrbios (hemorragia, ulcerao, trombose, calcificao) na placa fibrosa, podendo ser responsveis por importantes manifestaes clnicas, por reduzir ou interromper a circulao em diferentes rgos (corao, crebro, membros, etc.). Profundos, sistemticos e detalhados estudos com microscopia convencional e eletrnica(19,20) permitiram melhor e mais detalhada caracterizao histopatolgica das diferentes leses identificadas macroscopicamente. Baseado na estrutura microscpica e na composio histoqumica das leses, o autor props a classificao das leses em oito diferentes tipos (Fig. 1).

Primeiras duas dcadas de vida

Tipo I (leso inicial) Tipo IIa (estria gordurosa potencial evolutivo) Tipo III (pr-ateroma) Tipo IV (ateroma) Tipo V (fibroateroma) Fase com doena clnica ousilenciosa Fase silenciosa clinicamente

A partir da terceira dcada

A partir da quarta dcada

Tipo VI (hematoma-trombo) Tipos VII, VIII (leses fibrocalcificadas)

Figura 1. Evoluo de leses aterosclerticas (baseado em Stary HC (19, 20) ).Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo Vol 10 N o 6 Nov/Dez 2000 679

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Tipo I (leso inicial) Acmulo de lipoprotenas na ntima; lpides em macrfagos. Essas modificaes s podem ser identificadas por meio microscpico ou quimicamente. No h dano tecidual visvel. Tipo II (estria gordurosa) Acmulo de lipoprotenas na ntima; lpides em macrfagos e em clulas musculares lisas; quantidades suficientemente grandes que tornam as leses visveis a olho nu, mas no se identifica dano tecidual. Consideram-se dois subtipos: IIa, potencialmente capazes de evoluir, observando-se espessamento adaptativo; e IIb, menos suscetveis a transformaes, sendo resistentes progresso e passveis de regresso. Tipo III (pr-ateroma) Apresenta todas as caractersticas do tipo II, acrescentando-se depsitos extracelulares de lpides; evidncia de dano e desordem tecidual. Tipo IV (ateroma) Alteraes do tipo IIa, acrescidas de massa de lpides extracelulares formando um ncleo de gordura (lipid core), com acentuado dano estrutural da ntima. Tipo V (fibroateroma) Mesmo tipo de alteraes encontradas no tipo IV, associadas ao desenvolvimento de camadas de colgeno e de clulas musculares lisas, que se colocam sobre o ncleo de lpides (lipid core). Tipo VI (leses complicadas) Alteraes do tipo V, associadas presena de material trombtico e/ ou hematoma e/ou eroso ou fissura. Considera-se tipo VIa a ocorrncia de fissura ou eroso; tipo VIb, a presena de hematoma ou hemorragia; e tipo VIc, a constatao de trombo. Tipo VII (leso calcificada) Qualquer leso avanada com predomnio de clcio; presena de acentuada deformidade estrutural. Tipo VIII (leso fibrtica) Qualquer leso avanada com composio predominante de colgeno; lpides em mnima quantidade ou ausentes. Vrias evidncias induziram os pesquisadores a aceitar que a progressiva complexidade das leses e, por conseguinte, a histria natural da aterosclerose tinham alguma relao com influncias genticas e ambientais, as quais sero analisadas nesta reviso.

a Fuster e colaboradores(21) , as sndromes coronarianas puderam ser mais bem entendidas em suas relaes com o tipo de leso supostamente presente nas artrias comprometidas. Como foi referido anteriormente, podem ser consideradas cinco fases na histria natural da aterosclerose. A primeira fase silenciosa (sem sintomas), sendo representada por leses dos tipos I (leso inicial), IIa (estria gordurosa com potencial evolutivo para ateroma) e III (pr-ateroma). A segunda fase consiste na presena de placa (tipos IV e V) no necessariamente estentica, mas que, por caractersticas prprias, pode se tornar obstrutiva de duas maneiras: 1) agudamente, pela ocorrncia de fissuras e rotura da capa que envolve a leso, com imediata formao de trombo, impedindo o livre fluxo sanguneo as placas ricas em gorduras sofrem essas alteraes com mais freqncia (placas instveis); 2) cronicamente, quando a leso se torna francamente fibrtica, com progressivo aumento de seu tamanho, determinando gradual reduo da luz do vaso, podendo chegar a processo oclusivo total. Portanto, na primeira forma de evoluo h eventos agudos (infarto do miocrdio, angina instvel ou morte sbita) e na segunda, pode estar presente angina estvel, pela possvel formao de circulao colateral ou, ainda, processo oclusivo totalmente silencioso. Consideraes sobre variaes intergrupais e intragrupais na histria natural da aterosclerose Dados do IAP foram muito expressivos em relao a diferenas na histria natural da aterosclerose, quando os investigadores procederam a comparaes de segmentos arteriais obtidos das vrias regies geogrficas. Ficou claro que a aterosclerose praticamente universal, com leses diferindo em intensidade segundo a regio, diferenas que eram mais marcantes que as observadas em relao aos sexos ou s diferentes raas. Alm disso, ficou evidenciada a possibilidade de aparecimento de leses mais elementares desde a primeira infncia, em quaisquer grupos de regies geogrficas as mais variveis. Entretanto, h evidente influncia de fatores ambientais para a progressiva passagem das leses iniciais para placas fibrosas e suas complicaes. Outro dado importante que a aterosclerose varia amplamente entre pessoas de um mesmo grupo, ainda que seja homogneo. Mesmo em grupos em que a doena aterosclertica tem baixa incidncia e apresenta caractersticas de pequeno acometimento das artrias, algumas pessoas podem ter severa aterosclerose. Inversamente, em grupos com doena aterosclertica de

CONEXO

ENTRE LESES E A EXTERIORIZAO CLNICA DA ATEROSCLEROSE

A classificao das leses aterosclerticas proposta por Stary foi adotada pelo American Heart Association Committee on Vascular Lesion; e graas680

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elevada incidncia e de severos comprometimentos vasculares, encontram-se indivduos com mnimas leses. Muitas dessas variaes individuais podem estar ligadas a diferenas genticas, que podem ser importantes para definir respostas diversas diante de influncias ambientais equivalentes (22) . Consideraes sobre achados anatomopatolgicos nas duas primeiras dcadas da vida Strong e McGill (23) fizeram detalhada investigao em aortas e coronrias de indivduos entre 10 e 39 anos de idade, de seis diferentes regies do IAP. Constataram que aos 10 anos de idade estrias gordurosas estavam presentes na totalidade das aortas analisadas. Nas coronrias, a presena de estrias gordurosas no foi to freqente, mas podiam ser observadas em alguns indivduos entre 10 e 14 anos de idade. Estrias gordurosas tambm estavam presentes na totalidade das artrias coronrias de pessoas com mais de 20 anos de idade da cidade de New Orleans; em outras regies geogrficas, estiveram presentes em 90% de indivduos com mais de 30 anos de idade. Em raros casos encontraram-se placas fibrosas antes dos 20 anos de idade, mas a prevalncia aumentava rapidamente nas dcadas seguintes. Tambm merece ser ressaltado que Stary (24,25) realizou estudo microscpico (microscopia convencional e eletrnica) em 691 homens e mulheres que morreram seja no nascimento ou antes dos 39 anos de idade. Verificou que mais da metade das crianas entre 10 e 14 anos tinha nas coronrias leses que microscopicamente eram caracterizadas por acmulo de clulas espumosas, por fibras musculares lisas com lpides na sua estrutura e presena de gorduras no extracelular. Verificou tambm que aproximadamente 8% dos indivduos entre 10 e 14 anos tinham leses com grande quantidade de gorduras no extracelular e cuja estrutura sabidamente tinha as caractersticas das observadas em adultos com manifestaes clnicas de doena coronria. Consideraes sobre a influncia dos fatores de risco na determinao das leses aterosclerticas; influncia da dieta e da colesterolemia na histria natural da aterosclerose Dados do IAP(22) sugeriam que a severidade da aterosclerose estava intimamente associada proporo de calorias da dieta derivadas de gorduras e concentrao plasmtica de colesterol das populaes estudadas. Em 1983, Solberg e Strong (26) avaliaram os conhecimentos disponveis sobre as relaes entre fatores

de risco e leses aterosclerticas. Baseados nos dados de autpsias em que os fatores de risco foram obtidos retrospectiva ou prospectivamente, concluram: 1) que a colesterolemia e os nveis de presso arterial esto positiva e significativamente relacionados ao grau de leso arterial; 2) que os nveis de HDL-colesterol esto inversamente relacionados s leses coronrias e, provavelmente, tambm, s leses das artrias cerebrais; e 3) que a associao entre consumo de cigarros e grau de leses articas no foi significativa para as artrias coronrias. Dados do Community Pathology Study(27-31) , de New Orleans, indicaram que a extenso mdia da aterosclerose em uma populao pode ser modificada em curto espao de tempo, em paralelo com modificaes (para mais ou para menos) na intensidade de atuao dos diferentes fatores de risco, interferindo, portanto, na histria natural da aterosclerose. Estudos comparativos (32,33) das leses de homens submetidos a autpsia em New Orleans, Tquio e Oslo demonstraram grandes diferenas que merecem comentrios. Nos japoneses, a extenso e a freqncia de leses eram bem menores que as observadas nos americanos de New Orleans e nos noruegueses, ainda que com idades comparveis. Houve tambm paralelismo dos achados com a colesterolemia mdia dos indivduos. Por exemplo, os nveis de colesterol dos homens de Oslo e de Tquio eram acentuadamente diferentes, havendo pequena superposio de valores, indicando populaes extremamente diversas nesse aspecto, coincidindo com o comprometimento das artrias dos indivduuos submetidos a autpsia. Talvez um dos estudos mais importantes nesse sentido tenha sido o realizado no Hava. Por meio do Honolulu Heart Program(34) era feita determinao rotineira do perfil lipdico em indivduos que dele participavam. Tendo o programa carter prospectivo, vrios indivduos faleceram por diferentes causas, possibilitando a anlise quantitativa das leses aterosclerticas e sua correlao com valores sricos de lipoprotenas que haviam sido determinados anteriormente. Estudo estatstico demonstrou correlao positiva entre extenso das leses encontradas em aortas, artrias coronrias e cerebrais e quantidade de colesterol no de HDL, mas com associao mais fraca com as ltimas. Nesse estudo, leses em coronrias no estiveram correlacionadas com valores de HDLcolesterol, embora o fossem para artrias do crculo de Willis e aortas. Em anlise multivariada, as associaes encontradas foram independentes de outros fatores de risco. Tambm em estudo epidemiolgico semelhante681

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desenvolvido em Bogalusa (Bogalusa Heart Study) com crianas em seguimento clnico e laboratorial, houve possibilidade de analisar relaes entre lpides e leses. Newman e colaboradores (35) , em 1986, e Freedman e colaboradores (36) , em 1988, relataram resultados de estudos que puderam cotejar extenso e intensidade de leses em jovens que morreram violentamente (suicdios, acidentes, etc.), com valores de lpides sricos determinados antes da morte. Nos indivduos entre 7 e 34 anos de idade, esses autores observaram correlao positiva com colesterolemia total e com LDL-colesterol, e negativa para relao de HDLcolesterol/LDL-colesterol + VLDL-colesterol, colesterol total/HDL-colesterol e LDL-colesterol/ HDL-colesterol, independentemente de sexo, raa e idade. Em anlise posterior(37) , com maior nmero de indivduos, o mesmo estudo de Bogalusa mostrou que nveis de LDL-colesterol estavam relacionados com estrias gordurosas; alm disso, foi encontrada correlao positiva entre LDL-colesterol e prevalncia de placas fibrosas em aortas e artrias coronrias de crianas e adolescentes Especialmente em relao s correlaes dos fatores de risco e leses nas artrias coronrias no estudo de Bogalusa, em 1992, Berenson e colaboradores (38) demonstraram que as estrias gordurosas em indivduos brancos estiveram tambm significativamente associadas a trigliceridemia, VLDLcolesterol, presses sistlicas e diastlicas e ndice de massa corprea. Esse conjunto de dados enfatizou a necessidade de preveno da aterosclerose desde muito jovem. Havendo evidncias da possvel presena de leses aterosclerticas desde as primeiras dcadas da vida, foi idealizado um detalhado e extenso estudo para investigar suas possveis causas. A coordenao esteve a cargo de Robert Wissler (39) , da Universidade de Chicago. Esse estudo (Pathobiological Determinants of Atherosclerosis in Youth PDAY) objetivou analisar indivduos entre 15 e 34 anos de idade, que tiveram morte violenta (traumas e acidentes), dos quais eram obtidas amostras de aortas, artrias coronrias, outros tecidos e sangue colhido imediatamente aps a morte. Para a determinao do perfil lipdico e da quantidade de tiocianato (marcador de tabagismo), participaram da coleta do material 14 laboratrios dos Estados Unidos. Os primeiros resultados (40) foram relatados com material de autpsia de 390 jovens do sexo masculino. Leses encontradas na aorta torcica, na aorta abdominal e na artria coronria direita estiveram associadas, positivamente, com concentraes sricas de682

VLDL-colesterol + LDL-colesterol e negativamente com as de HDL-colesterol. Houve tambm associao altamente significativa da concentrao de tiocianato com a presena de leses elevadas, particularmente na aorta abdominal. Publicao posterior(41) analisando material coletado de 600 homens demonstrou tambm, alm das associaes referidas, associao com outros marcadores de risco para doena arterial coronria, dentre os quais hemoglobina-glicosilada e espessura do panculo adiposo. A idade tambm esteve estatisticamente associada com o total das leses encontradas na aorta e nas coronrias. Esses e outros dados confirmavam a precocidade de aparecimento de leses e sugeriam fortemente que, para sua preveno, era indispensvel a interveno sobre os fatores de risco desde a juventude. Em 1995, Wissler (42) publicou uma sntese da sistemtica do PDAY, que se iniciara em 1986, e analisou a influncia quantitativa de diferentes fatores de risco na progresso da aterosclerose em jovens americanos, chamando a ateno para importantes aspectos da patognese da aterosclerose, at ento no levados em considerao pelos pesquisadores. Os achados relativos a 1.532 casos permitiram demonstrar que: as estrias gordurosas esto sempre presentes em jovens americanos; as leses coronrias se desenvolvem em jovens, mas mais lentamente que as observadas na aorta; as placas gordurosas se desenvolvem a partir de estrias gordurosas; a aterosclerose raramente atinge estgio avanado antes dos 35 anos de idade; a aorta abdominal particularmente vulnervel progresso da aterosclerose; o tabagismo deve ser proscrito nos jovens para se evitar dano arterial precoce; a hipertenso arterial condiciona risco de acelerada aterosclerose em todas as artrias; desde jovem h associao de sexo e de raa com o desenvolvimento da aterosclerose; a obesidade pode condicionar especial risco para doena coronria; a dificuldade de metabolizao da glicose pode exercer seu efeito aterognico bem antes da evidncia clnica de diabete. O conjunto de elementos fornecidos pelos vrios estudos que buscaram estabelecer a histria natural da aterosclerose permite assegurar que leses aterosclerticas podem estar presentes desde criana, sendo as estrias gordurosas leses universais, mas nem todas evoluem para placas fibrosas, que podem ser

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encontradas a partir da juventude. Embora seja essa a seqncia dos eventos, indubitavelmente a aterosclerose se desenvolve em velocidades variveis em indivduos que vivem sob diferentes condies ambientais e hbitos, fato patente quando se consideram diferentes pases ou regies geogrficas. Algumas consideraes so pertinentes em relao histria natural da aterosclerose em portadores de hipercolesterolemia familiar e de disbetalipoproteinemias. Os dados anatomopatolgicos obtidos em tais dislipidemias derivam de pacientes que morreram em decorrncia das complicaes precoces da doena aterosclertica(43) . No h, na literatura consultada,

referncia a dados anatomopatolgicos obtidos em indivduos com essas dislipidemias que tenham morrido por causas violentas (acidentes, suicdios, etc.), o que impossibilita avaliar as caractersticas evolutivas das leses. Entretanto, o surgimento de complicaes precoces e a realizao de estudos angiogrficos permitem mostrar leses primrias da aterosclerose nessas afeces nos primeiros anos de vida, talvez nos primeiros meses, pois so relatados casos de infarto do miocrdio antes dos 10 anos de idade. Portanto, h acentuada precocidade no aparecimento das leses descritas anteriormente, no obedecendo a cronologia referida na Figura 1.

NATURAL

HISTORY OF ATHEROSCLEROSIS

SRGIO DIOGO GIANNINIAutopsy data showed that atherosclerotic lesions develop early in life. Fatty streak is the most precocious lesion and appears on first decade of life. Since third decade more advanced lesions (fibrous plaques and complicated lesions) appear in arterial segments in the same sites of early lesions, suggesting the same origin. Nevertheless not all fatty streaks progress to fibrous plaques or more advanced lesions. The plaque content is responsible for the clinical expression of the disease. Fibrous plaque enriched with lipids are prone to rupture (unstable plaques) with acute clinical manifestations (myocardial infarction, unstable angina). Gradual enlargement of fibrous plaque is responsible for satle angina or silent infarction. Many investigations with clinical and laboratorial antemortem data showed the relation between risk factors and atherosclerotic lesions. It is clear that efforts to prevent the development and progression of atherosclerosis should be directed to youth and young adults. Key words: atherosclerosis, natural history of atherosclerosis, risk factors, fatty streak, fibrous plaque.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:677-85) RSCESP (72594)-1033

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IMPACTO DOS FATORES DE RISCO TRADICIONAISDIKRAN A RMAGANIJAN, MICHEL BATLOUNI

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia Endereo para correspondncia: Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 CEP 04012-909 So Paulo SP

Estudos diversos demonstraram a associao consistente entre doena aterosclertica e fatores de risco independentes, cardinais ou tradicionais. Entre esses destacam-se idade avanada, sexo masculino, hipertenso arterial sistmica, nveis sricos elevados das lipoprotenas de baixa densidade (LDLcolesterol), nveis sricos baixos das lipoprotenas de alta densidade (HDL-colesterol) e diabete melito. Esses fatores de risco tradicionais isoladamente tm a capacidade de induzir doena cardiovascular. Entretanto, h necessidade de identificao e interveno simultnea ou global em todos os fatores de risco. Associao entre envelhecimento, aterosclerose e impacto dos fatores de risco sugere a importncia da interveno no idoso. A correo dos nveis tensionais reduz significativamente a mortalidade por complicaes cerebrovasculares. A interrupo do tabagismoRSCESP (72594)-1034

propiciou reduo significativa de angina, infarto do miocrdio e necessidade de interveno cirrgica. A reduo dos nveis sricos do LDL-colesterol foi proporcional reduo de eventos clnicos. A elevao dos nveis sricos do HDL-colesterol resultou em menor progresso e regresso das alteraes aterosclerticas prvias. Os resultados da interveno demonstram que a reduo de eventos coronrios e mortalidade foi semelhante nos diabticos e nodiabticos, sugerindo que na preveno fundamental o controle de todos os fatores de risco. Freqentemente, os indivduos tm mltiplos fatores de risco e h necessidade de avaliar o risco global. Tais estimativas so teis na preveno a curto e a longo prazos. Descritores: doena arterial coronria, fatores de risco tradicionais, impacto da interveno.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:686-93)

I NTRODUOApesar da alta prevalncia das doenas cardiovasculares, desde 1960, o principal vis de aferio do perfil de mortalidade sugeria que as doenas cardacas eram prprias da senescncia. Dados epidemiolgicos do Ministrio da Sade de 1993 demonstraram que aproximadamente 300 mil brasileiros so vtimas de complicaes cardiovasculares ao ano e responsveis por 820 bitos/dia. As doenas isqumicas do corao ocorrem numa faixa etria ampla da populao e consomem 16,22% do gasto total do Sistema nico de Sade (1) . Ancel Keys, em 1953, props a teoria do coleste686

rol, e a partir dessa formulao desenvolveram-se novas diretrizes, visando modificao do estilo de vida e correo dos fatores de risco. Os estudos epidemiolgicos prospectivos experimentais demonstraram que determinados fatores se associam ao desenvolvimento mais precoce e acelerado da aterognese. Esses fatores so denominados fatores de risco desde que sua relao com a doena coronria aterosclertica preencha os critrios de causalidade de Susser (2) . Alguns fatores no preenchem os critrios de causalidade, porm associam-se maior probabilidade da doena e so denominados marcadores de risco. (3, 4). Estudos diversos demonstraram a associao consistente entre doena aterosclertica e fatores de risco

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independentes, cardinais ou tradicionais. Entre esses destacam-se idade avanada, sexo masculino, hipertenso arterial sistmica, tabagismo, nveis sricos elevados das lipoprotenas de baixa densidade (LDL-colesterol), nveis sricos baixos das lipoprotenas de alta densidade (HDL-colesterol) e diabete melito. A concepo atual de fator de risco para aterosclerose foi ampliada, incluindo: inatividade fsica, outras fraes lipdicas, variveis hematolgicas e marcadores genticos. Nveis sricos elevados de triglicrides, lipoprotena a [Lp(a)], homocistena, subclasses de LDL-colesterol, LDL-oxidada, resistncia insulina, inibidores da atividade do plasminognio, nveis plasmticos de fibrinognio, estresse oxidativo, estresse psicossocial, marcadores de inflamao, como a protena Creativa, e agentes infecciosos tm sido considerados tambm possveis fatores de risco. Os resultados do Estudo de Framingham(5) demonstraram relao quantitativa entre os fatores de risco tradicionais e o risco de doena coronria. Todos os fatores de risco tradicionais, isoladamente, tm a capacidade de induzir a doena cardiovascular aterosclertica. O National Cholesterol Education Program (NCEP)(6) , o Sixth Report of the Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure(7) e a American Diabetes Association(8) comprovaram tal fato e propuseram diretrizes baseadas em apenas um fator de risco. Recentemente, os investigadores do Estudo de Framingham e de vrias Sociedades Europias de Cardiologia propuseram a identificao e a interveno simultnea ou global em todos os fatores de risco. A American Heart Associations Task Force on Risk Reduction(9) concordou com essa proposta e concluiu que a abordagem global permite identificar os pacientes de alto risco, aumenta a adeso ao tratamento e reduz o risco de coronariopatia. Segundo os investigadores de Framingham, as tabelas de associao devem substituir os tradicionais escores dos fatores de risco. O tratamento clnico agressivo mostrou sua potencialidade para reduzir a incidncia de coronariopatia (preveno primria) e para reduzir substancialmente sndromes coronrias recorrentes (preveno secundria), inclusive nos pacientes submetidos a intervenes invasivas (preveno terciria).

cionalmente consideradas como pertinentes ao sexo masculino e idade avanada. Estudos epidemiolgicos das duas ltimas dcadas demonstraram a potencialidade do desenvolvimento da aterosclerose desde a infncia. Evidncias histolgicas e anatomopatolgicas confirmaram que, apesar da reversibilidade das estrias gordurosas, estas podem evoluir para placas aterosclerticas, comprometendo a luz da artria coronria e precipitando eventos isqumicos variveis na intensidade e na evoluo temporal. No Estudo de Bogalusa(10) , houve elevada prevalncia de estrias gordurosas e placas aterosclerticas nas artrias coronrias de crianas e adolescentes. Houve tambm relao direta entre o grau de leso e prevalncia dos fatores de risco tradicionais. O aumento da mortalidade cardiovascular na mulher ocorre, em mdia, 10 anos aps a dos homens. Embora a doena arterial resulte de mecanismos multifatoriais, 25% a 50% da reduo do risco so atribudos s alteraes metablicas favorveis das lipoprotenas na pr-menopausa. A proteo temporal da mulher resulta dos benefcios do estrgeno endgeno. Deficincia estrognica prematura, de causa natural ou cirrgica, aumenta em trs vezes o risco de doena cardiovascular. A simples relao entre idade e aterosclerose um modelo primrio que enfatiza apenas o tempo de vida, sem considerar os fatores genticos, bioqumicos e biolgicos do envelhecimento. Um modelo secundrio correlaciona a idade avanada com a perda da integridade do endotlio comprometida por alguns fatores de risco e incapaz de ser reparada devido ao envelhecimento das clulas endoteliais e substratos subendoteliais. O modelo tercirio correlaciona os dois modelos iniciais com as alteraes fisiolgicas do envelhecimento: modificaes no metabolismo glicdico e lipdico, e concentrao plasmtica dos hormnios sexuais. Um modelo quaternrio mostra que a relao idade e aterosclerose pode ser modificada pela correo dos fatores de risco tradicionais e mudanas no estilo de vida. Esse modelo confirma a associao entre envelhecimento, aterosclerose e impacto dos fatores de risco, sugerindo tambm a importncia da interveno no idoso. Hipertenso arterial sistmica Aproximadamente 20% da populao adulta so portadores de hipertenso arterial. A prevalncia dos fatores de risco tradicionais varia entre 75% e 80% nas doenas cardiovasculares e entre 40% e 70% so hipertensos, de acordo com a faixa etria. A identificao da hipertenso arterial no requer687

IMPACTO

DA INTERVENO NOS FAT ORES DE RISCO TRADICIONAIS

Idade avanada e sexo masculino As complicaes da aterosclerose tm sido tradi-

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recursos tcnicos sofisticados e onerosos, as medidas preventivas reduzem sua incidncia e os esquemas teraputicos so eficazes e bem tolerados. Durante os ltimos 30 anos, o conceito de hipertenso arterial como fator de risco tem se modificado. Em 1966, foi publicado o primeiro estudo que avaliou os efeitos da teraputica anti-hipertensiva. Contudo, o estudo Veterans Administration Cooperative Study Group(11) , publicado em 1970, foi o primeiro que demonstrou o impacto da teraputica antihipertensiva e a conseqente reduo da mortalidade cardiovascular. Os resultados dos estudos epidemiolgicos da dcada de 70 suscitaram algumas dvidas e/ou vises, inclusive na dcada de 1980: a reduo da mortalidade pelo tratamento anti-hipertensivo foi decorrente da menor incidncia de complicaes cerebrovasculares (42%) associada discreta reduo de eventos coronrios (14%). Aventou-se que essas diferenas estariam associadas aos efeitos metablicos deletrios dos medicamentos anti-hipertensivos utilizados nesses estudos (diurticos e/ ou betabloqueadores). Por outro lado, a simples correo dos nveis tensionais no reduziu significativamente a mortalidade por coronariopatia. Nessa, h necessidade de correo simultnea dos demais fatores de risco. A partir dos anos 90, a introduo de novos medicamentos anti-hipertensivos com efeitos metablicos favorveis e a correo simultnea de vrios fatores de risco proporcionou reduo de risco na mortalidade por coronariopatia em pacientes hipertensos. O estudo Systolic Hypertension in Europe (SYST-EUR)(12) , que envolveu 4.695 pacientes com idade > 60 anos, com presso arterial sistlica de 160 mmHg a 219 mmHg e presso arterial distlica < 95 mmHg, utilizou como droga de primeira escolha a nitrendipina (10 mg a 20 mg, duas vezes por dia), com a possvel adio de enalapril (5 a 20 mg/dia) e hidroclorotiazida (12,5 a 25 mg/dia) ou placebo. Aps seguimento mdio de dois anos, o grupo que recebeu o tratamento ativo apresentou reduo da incidncia total de acidente vascular cerebral de 42% (p = 0,003) e de acidente vascular cerebral no-fatal de 44% (p = 007). Ademais, todos os desfechos cardacos, fatais ou no, incluindo mortalidade (sbita), declinaram 26% (p = 0,03), todos os eventos cardiovasculares, fatais ou no, declinaram 31% (p < 0,001), e a incidncia de infarto do miocrdio foi reduzida em 30% (p = 0,12). A mortalidade cardiovascular foi ligeiramente menor no grupo tratamento (-27%; p = 0,07), porm a mortalidade por todas as causas no foi influ688

enciada (-14%; p = 0,22). Tabagismo As relaes entre tabagismo e aterosclerose so consistentes e foram demonstradas em estudos anatomopatolgicos e epidemiolgicos. Auerbach e colaboradores(13) observaram, em 1.372 necropsias, relao direta entre o nmero de cigarros fumados diariamente e a extenso das leses coronrias, sendo significativas tambm as diferenas entre fumantes e no-fumantes. Estudos epidemiolgicos prospectivos demonstraram dados significativos sobre a complicao aterosclertica entre os fumantes. O risco de doena coronria duas a quatro vezes maior entre os fumantes e relaciona-se ao nmero de cigarros consumidos por dia. Nos jovens, o risco mais expressivo se o consumo for superior a 20 cigarros por dia. Nas mulheres, o risco aumenta com o uso simultneo de anticoncepcionais. Nos fumantes com idade acima de 40 anos, portadores de hipertenso arterial e hipercolesterolemia, a probabilidade de evento coronrio de 40% em 10 anos. Apesar das inmeras evidncias que apontam malefcios do tabagismo, aproximadamente um quarto da populao mundial fumante. A incoerncia desse fato relaciona-se, possivelmente, com a dependncia qumica pela nicotina e o incentivo de seu consumo pelo interesse econmico. Dados da Diviso de Doenas Crnicas do Estado de So Paulo demonstram que, na populao adulta, 45% dos homens e 32% das mulheres so fumantes no Estado de So Paulo (14) . As projees para o Brasil sugerem a existncia de aproximadamente 33 milhes de fumantes. O tabagismo, ao lado da hipertenso arterial e da hipercolesterolemia, o maior fator de risco independente para doena aterosclertica coronria. A manuteno do tabagismo aumenta tambm a incidncia de eventos coronrios recorrentes em pacientes coronariopatas. O impacto do tabagismo sobre a doena arterial coronria observada nos estudos epidemiolgicos prospectivos foi comprovado pelos resultados decorrentes da supresso do fumo nos estudos de preveno primria e secundria. No estudo que envolveu 34.439 mdicos ingleses, durante 40 anos, a mortalidade por doena cardiovascular foi duas vezes maior nos fumantes. O estudo mostrou, tambm, que a interrupo do tabagismo antes dos 35 anos de idade reduziu o risco cardiovascular para taxas semelhantes s dos no-fumantes(15) .

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As investigaes que avaliaram o impacto da interrupo do tabagismo aps infarto do miocrdio demonstraram resultados semelhantes aos da preveno primria. No estudo Cardiac Arrhythmia Suppresion Trial (CAST) (16) , a interrupo do tabagismo reduziu a mortalidade, principalmente nos pacientes com disfuno ventricular esquerda. No estudo Coronary Artery Surgery Study (CASS)(17) , a interrupo do tabagismo propiciou reduo significativa de episdios de angina, infarto do miocrdio e necessidade de interveno cirrgica. Nveis sricos elevados das lipoprotenas de baixa densidade (LDL-colesterol) Dados anatomopatolgicos e de investigaes experimentais, clnicas e epidemiolgicas demonstraram a relao de causalidade entre as dislipidemias em particular a hipercolesterolemia e a doena arterial coronria. Em 1930, foi descrita pela primeira vez a associao entre nveis sricos elevados de colesterol e doena aterosclertica. Subseqentemente, alguns estudos epidemiolgicos prospectivos, como o Coronary Heart Disease in Seven Countries(18) e o Estudo de Framingham(19) confirmaram a relao entre nveis sricos elevados de colesterol e doena arterial coronria. No The Lipid Research Clinics Coronary Primary Prevention Trial(20) , aps 10 anos de seguimento, os nveis sricos elevados da lipoprotena de baixa densidade (LDL-colesterol) estavam fortemente associados com a incidncia de doena arterial coronria em homens com ou sem doena prvia, poca em que entraram no estudo. Esses e outros estudos epidemiolgicos e observacionais constituram a base da hiptese colesterol, sugerindo que os nveis sricos elevados aumentariam e os nveis sricos reduzidos de colesterol diminuiriam a incidncia de doena aterosclertica. As pesquisas relacionadas preveno primria de aterosclerose coronria envolveram modificaes do estilo de vida e uso de hipolipemiantes. Para a preveno secundria, avaliaram-se as medidas de interveno que modificam o perfil lipdico, reduzindo o colesterol total e o LDL-colesterol. Dois estudos de preveno primria avaliaram os efeitos das modificaes do estilo de vida. Os estudos da Administrao dos Veteranos de Los Angeles (21) e dos Hospitais Psiquitricos de Helsinque(22) analisaram a dieta como interveno unifatorial. O primeiro no trouxe informaes sobre os benefcios potenciais da dieta isoladamente e o segundo mostrou que a reduo da colesterolemia foi acompanhada de redu-

o da mortalidade por doena arterial coronria. Para avaliar os resultados decorrentes das modificaes do estilo de vida pela interveno multifatorial, foram realizados quatro estudos: Oslo Study Group of a Randomized Trial in Health Men(23) , Multiple Risk Factor Intervention Trial (MRFIT) (24) , North Karelia Project(25) e Estudo Europeu de Preveno Multifatorial(26) . No estudo de Oslo, a incidncia de infarto fatal e no-fatal e de morte sbita foi semelhante em ambos os grupos. Contudo, a mortalidade total foi significativamente menor no grupo submetido interveno multifatorial. No Estudo Europeu de Preveno Multifatorial, aps seis anos de seguimento, na populao que modificou os hbitos dietticos, aumentou a atividade fsica, abandonou o tabagismo e controlou a hipertenso arterial, a reduo de infarto do miocrdio fatal foi de 6,9% e de infarto no-fatal, de 5,3%; porm, no houve reduo da mortalidade total (no relacionada com a doena arterial coronria). Os estudos Cooperativo Europeu(27), Lipid Research Clinics Coronary Prevention Trial(28) , Helsinque(29) e Progresso Assintomtica na Artria Cartida (ACAPS)(30) avaliaram os efeitos da orientao diettica e o uso de medicamentos hipolipemiantes na preveno primria da doena arterial coronria. No Estudo Cooperativo Europeu, aps cinco anos de seguimento, a reduo da hipercolesterolemia pelo clofibrato resultou em diminuio de 25% na incidncia de infarto no-fatal. Contudo, houve aumento da mortalidade total e maior incidncia de acidente vascular cerebral, neoplasias e calculose biliar no grupo tratado. Holme(31) , em 1993, revendo e analisando os estudos de preveno primria, concluiu que a incidncia de eventos coronrios significativamente menor nos indivduos que receberam medicamentos hipolipemiantes, mas no se modificou naqueles submetidos somente orientao diettica. Para a preveno secundria da doena arterial coronria, alguns estudos populacionais utilizaram apenas modificaes do estilo de vida, principalmente a dieta e a atividade fsica, e os pacientes foram controlados por cinecoronariografia quantitativa. Outros estudos analisaram os resultados da reduo dos nveis sricos do LDL-colesterol e sua relao com a reduo da morbidade e da mortalidade, independentemente da avaliao angiogrfica. No Scandinavian Simvastatin Survival Study (4S)(32) , 4.444 coronariopatas com colesterol total entre 212 mg/dl e 310 mg/dl foram submetidos a dieta hipocolesterolmica e randomizados para os grupos placebo ou sinvastatina (duplo-cego). A variao do689

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colesterol total, do LDL-colesterol e do HDL-colesterol, aps seguimento mdio de 5,4 anos, foi de -25%, -35% e +8%, respectivamente. No grupo placebo, faleceram 256 (12%) pacientes, em comparao com 182 (8%) no grupo tratado com sinvastatina (RR = 0,70; p = 0,00003). A reduo do risco relativo de mortalidade por doena arterial coronria foi de 0,58 (42%). O risco de revascularizao miocrdica foi reduzido em 37% no grupo sinvastatina. No estudo Cholesterol and Recurrent Events (CARE)(33) , a pravastatina foi administrada na dose mxima (40 mg/dia), durante cinco anos, a 2.081 pacientes aps infarto do miocrdio e que apresentavam valores pouco aumentados de colesterol total (< 240 mg/dl; mdia, 209) e de LDLcolesterol (115 mg/dl a 174 mg/dl; mdia, 139). Esse grupo, em relao ao placebo, apresentou reduo de risco de evento coronrio fatal ou de infarto do miocrdio no-fatal (25%), de necessidade de cirurgia de revascularizao (27%) e de acidente vascular cerebral (31%). No foram observadas diferenas significativas nos ndices globais de mortalidade e de mortalidade cardiovascular. O estudo Long term Intervention with Pravastatin Ischemic Disease (LIPID)(34) utilizou pravastatina ou placebo de maneira prospectiva e randomizada, por um prazo de sete anos. Participaram pacientes com infarto agudo do miocrdio ou angina instvel e colesterol total variando de 155 mg/dl a 251 mg/ dl. Foram avaliados o efeito da reduo do LDLcolesterol na mortalidade total, a ocorrncia de morte dependente de doena arterial coronria e infarto agudo do miocrdio no-fatal, acidente vascular cerebral, mortalidade cardiovascular e necessidade de revascularizao. Houve reduo de 24% (p < 0,0004) na mortalidade dependente de doena arterial coronria, de 24% de infarto agudo nofatal e de 31% na mortalidade total do grupo pravastatina em relao ao grupo placebo. A meta-anlise de 14 estudos angiogrficos randmicos demonstrou que a mudana do estilo de vida e as estatinas reduziram em mdia 26% os nveis sricos das lipoprotenas de baixa densidade (LDL-colesterol)(35). Nos grupos tratamento e controle, a progresso da doena coronria aterosclertica foi de 34% e 50% e a regresso da doena foi de 18% e 9%, respectivamente(33) . Deve-se ressaltar que as mudanas verificadas nas leses aterosclerticas no foram proporcionais reduo de eventos clnicos. Os benefcios clnicos tiveram melhor correlao com os nveis sricos de LDLcolesterol.690

Nveis sricos baixos das lipoprotenas de alta densidade (HDL-colesterol) Em 1984, a experincia adquirida com os estudos de Framingham, Lipid Research Clinics Prevalence Mortality Follow-up Study, Coronary Primary Prevention Trial e Multiple Risk Factors Intervention Trial (MRFIT) estabeleceu, consistentemente, o HDLcolesterol como fator de risco independente para doena arterial coronria em ambos os sexos. As pesquisas angiogrficas nos estudos CLAS, FATS, SCOR e MARS comprovaram que a reduo do LDL-colesterol e a elevao do HDLcolesterol, por ao de agentes hipolipemiantes, resultaram em menor progresso e at regresso das leses prvias. A interpretao dos valores de HDL-colesterol na prtica clnica sugere que a elevao de 1 mg/dl de HDL-colesterol se associa reduo do risco de 1,9 para o sexo masculino e de 2,3 para o sexo feminino. Segundo o Consenso sobre Lpides do Instituto Nacional de Sade, dos Estados Unidos, valores de HDLcolesterol superiores a 60 mg/dl passaram a ser considerados fator de risco negativo e permitem excluir outro fator na avaliao da suscetibilidade individual para doena arterial coronria. Diabete melito O risco para aterosclerose duas a trs vezes maior em diabticos que em no-diabticos, independentemente de outros fatores de risco, sendo essa proporo ainda maior no sexo feminino. Segundo os estudos de Framingham, o risco 4,9 vezes maior para as mulheres e 2,1 vezes maior para os homens. Aproximadamente 75% de todas as medicaes e intervenes em diabticos so decorrentes de doenas cardiovasculares. O estudo MRFIT, aps seguimento de doze anos, demonstrou que o risco absoluto de morte por doenas cardiovasculares foi trs vezes maior em homens diabticos, de todas as faixas etrias, aps o ajuste dos demais fatores de risco. Apesar de o diabete ser um fator de risco independente, freqentemente acompanhado por outras alteraes metablicas dos lpides sanguneos. A anormalidade lipdica mais freqente no diabete II est relacionada ao metabolismo dos triglicrides e do HDLcolesterol. Os diabticos sem doena cardiovascular devem ter seu perfil lipdico monitorado anualmente e devidamente corrigido. Nos estudos 4S e CARE foram includos tambm pacientes diabticos. Os resultados da interveno demonstraram que a reduo de eventos coronrios e mortalidade foi semelhante dos no-diabticos, su-

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ARMAGANIJAN D e col. Impacto dos fatores de risco tradicionais

gerindo que na preveno secundria fundamental o controle rigoroso de todos os fatores de risco.

C ONCLUSESA necessidade de identificao dos fatores de risco relaciona-se a seus efeitos na incidncia e prognstico evolutivo da doena arterial coronria. Os fatores de risco tradicionais exercem efeitos independentes e o impacto de seu controle foi demonstrado nos estudos clnicos e epidemiolgicos. Freqentemente, os indivduos tm mltiplos fatores de risco (risco composto) e h necessidade de avaliar o risco global. A estimativa do risco absoluto a partir dos fatores de risco tradicionais deve ser complementada pela avaliao das eventuais modificaes que podem ocorrer na presena de outros fatores de risco. Tais estimativas so teis na preveno a curto e a longo prazos. Ensaios clnicos recentes tm confirmado significativa reduo de risco mediante controle agressivo dos fatores de risco, principalmente em pacientes de alto ris-

co. Contudo, apenas 30% a 50% desses pacientes so beneficiados durante os primeiros cinco anos de interveno. Os demais no aderem ao tratamento e as teraputicas propostas no seguem as diretrizes dos consensos. A opo teraputica ideal sugere o emprego de tabelas, escores e sensibilidade do clnico, que, aps a avaliao global do risco, permitem maior eficcia das intervenes preventivas. A avaliao do risco global til tanto em adultos como em jovens de meia-idade. Risco nico ou mltiplos fatores de risco moderados, em jovens de meia-idade, podem tornar-se graves a longo prazo. Nesse grupo, a simples modificao do estilo de vida pode beneficiar favoravelmente a evoluo. A concepo de que o excesso de risco acumulado e no tratado durante muitos anos pode ser eliminado pela preveno agressiva a curto prazo no tem bases cientficas. Embora as drogas anti-hipertensivas e hipolipemiantes possibilitem a reduo de risco, os resultados diferem quando os efeitos desses so comparados aos jovens submetidos preveno primria.

IMPACT

OF TRADITIONAL RISK FACTORS

DIKRAN ARMAGANIJAN, MICHEL BATLOUNISeveral studies have shown the consistent association between atherosclerosis and independent risk factors, cardinal or traditional. Such factors include: old age, masculine gender, hypertension, increased serum levels of low-density lipoproteins (LDL-cholesterol), decreased serum levels of high-density lipoproteins (HDLcholesterol), and diabetes mellitus. These traditional risk factors, on their own, may induce cardiovascular disease. However, there is need to identify and intervene, simultaneously or globally, in all risk factors. Association among aging, atherosclerosis and impact of risk factor suggest the importance of intervention in the elderly. The correction of tensional levels significantly reduces the mortality due to cerebral vascular complications. The interruption of tabagism led to significant reduction of angina, myocardial infarction and need of surgery. The reduction of LDL-cholesterol serum levels was proportional to the reduction of clinical events. The increase of HDL-cholesterol serum levels led to slower progression and/or regression of previous atherosclerotic alteration. The results of the intervention show that the reduction of coronary events and of mortality was similar both in the diabetic and the non-diabetic, suggesting that prevention is of major importance in the control of risk factors. Subjects often present multiple risk factors so the need of a global evaluation. The estimates of global risk are useful in the prevention in the short and the long-term. Key words: coronary heart disease, traditional risk factors, impact of intervention.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:686-93) RSCESP (72594)-1034

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A CONEXO ENTRE AS LIPOPROTENAS E A ATEROSCLEROSEMARCELO CHIARA B ERTOLAMI

Seo Mdica de Dislipidemias Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia Endereo para correspondncia: Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 CEP 04012-180 So Paulo SP

Desde a descrio, h vrias dcadas, da importncia dos nveis circulantes de colesterol e triglicrides na aterognese, identificou-se que o papel de seus transportadores no sangue, as lipoprotenas, fundamental para o desenvolvimento das placas aterosclerticas. Entretanto, ainda so discutidos os complexos mecanismos que envolvem tanto o papel agressor desempenhado pelas lipoprotenas que contm apoliRSCESP (72594)-1035

poprotena B como a proteo fornecida pela HDL. Este artigo analisa aspectos recentes envolvendo o papel de cada uma das lipoprotenas circulantes como protagonistas daquela que a maior causa de mortalidade e morbidade do mundo moderno, a doena aterosclertica. Descritores: aterosclerose, lipoprotenas, colesterol, triglicrides.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:694-9)

I NTRODUOO primeiro a relacionar a doena aterosclertica coronria com os nveis sanguneos de colesterol foi Muller (1) , na dcada de 30. Algum tempo depois, Keys e colaboradores(2) , na dcada de 50, chamaram a ateno para a grande diversidade da freqncia da doena aterosclertica coronria entre pases, postulando que ela fosse devida s diferenas na ingesto de gordura existentes entre as populaes. Nessa mesma dcada, Albrink e Mann (3) foram os primeiros a sugerir a ligao dos triglicrides com o infarto do miocrdio (3) . Entretanto, como haviam chamado a ateno Gofman e colaboradores(4) , as relaes entre lpides plasmticos, colesterol total e triglicrides dependiam muito mais de em qual lipoprotena carreadora estavam contidas essas substncias que de seus nveis sanguneos. Assim, caracterizou-se que a relao entre o colesterol total e a doena aterosclertica coronria dependia, particularmente, da frao LDL, ou seja, do colesterol carreado por essa lipoprotena. Outra importante frao, a HDL, demonstrou, em vrios estudos epidemiolgicos, apresentar relao inversa com a694

doena aterosclertica coronria. Tambm verificouse que, embora os triglicrides praticamente no faam parte do material lipdico da placa aterosclertica, as lipoprotenas que o transportam na circulao sangunea podem ser aterognicas, fornecendo colesterol para o desenvolvimento das leses. Desse modo, fica bem caracterizado que, na avaliao dos lpides como fatores de risco para a doena aterosclertica coronria, no so importantes apenas seus valores determinados no sangue, mas tambm em qual lipoprotena esto contidos. Nesse sentido, este artigo tem a finalidade de analisar quais os dados que ligam cada uma das lipoprotenas aterognese. As evidncias que ligam as diversas lipoprotenas doena aterosclertica derivam de estudos epidemiolgicos, experimentais, clnicos e metablicos. Os mecanismos pelos quais as lipoprotenas se relacionam com a doena aterosclertica coronria podem ser vrios, sendo alguns deles abordados em outros artigos: formao de clulas espumosas, alteraes da coagulao, alteraes plaquetrias, alteraes da fibrinlise e alteraes do endotlio. O embasamento para essa conexo entre as lipoprotenas

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BERTOLAMI MC A conexo entre as lipoprotenas e a aterosclerose

e a doena aterosclertica coronria por demais conhecido e no ser o tpico central deste artigo. Assim, o que ser aqui abordado traduz as dvidas ou os esclarecimentos mais recentemente adquiridos quanto ao papel de cada uma das lipoprotenas na aterosclerose, particularmente em sua forma mais comum e deletria, a aterosclerose coronria. O mtodo que permite a melhor separao das lipoprotenas em famlias a ultracentrifugao. Esse processo baseia-se na diferena de densidade existente entre os lpides e as protenas: a densidade dos lpides menor que a das protenas. Assim, quanto maior proporo de lpides em relao a suas apolipoprotenas apresentar uma lipoprotena, menor ser sua densidade; e, ao contrrio, quanto menor for essa proporo, maior ser a densidade. Por esse processo, as lipoprotenas so divididas basicamente em cinco tipos, da menor para a maior densidade, empregandose as siglas da terminologia da lngua inglesa, uma vez que esta a forma empregada no mundo todo e foi adotada tambm pelo Consenso Brasileiro sobre Dislipidemias (5) : quilomcrons, VLDL (lipoprotenas de muito baixa densidade), IDL (lipoprotenas de densidade intermediria), LDL (lipoprotenas de baixa densidade) e HDL (lipoprotenas de alta densidade). Ainda por meio da ultracentrifugao possvel a diviso dessas classes de lipoprotenas em diversas subclasses, uma vez que as lipoprotenas na circulao formam um espectro contnuo e no grupos com ntida separao entre si. Quando necessrio, sero citadas essas divises em subclasses das diferentes classes de lipoprotenas. O moderno campo da aterosclerose experimental teve seus primrdios no incio deste sculo, com a demonstrao de que alimentando-se coelhos com dietas ricas em colesterol produziam-se leses arteriais. Alm de disponibilizar modelo experimental bem definido para essa doena, esses trabalhos tiveram o mrito de estabelecer provas contrrias idia, ento prevalente, de que a aterosclerose era meramente parte do envelhecimento dos seres humanos. Atualmente, entende-se que, embora a aterosclerose seja doena complexa e multifatorial, existe um evento patogentico chave, denominado reteno de lipoprotenas, que tanto necessrio como suficiente para provocar o incio de leses numa artria anteriormente normal. A compreenso atual da aterognese inicia-se com reteno, na parede arterial, de lipoprotenas aterognicas ricas em apo-B, modificao dessas lipoprotenas, incluindo oxidao e digesto enzimtica, e respostas arteriais, tais como a expresso de molculas de adeso celular e subseqente

recrutamento de clulas inflamatrias. Desse modo, a hiptese da resposta reteno pode ser considerada um paradigma central no entendimento da patognese da aterosclerose(6) .

QUILOMCRONS

E SEUS REMANESCENTES

Os triglicrides, por si, no so componentes das placas aterosclerticas e permanece intenso debate se os efeitos das lipoprotenas ricas em triglicrides na aterosclerose so diretos ou indiretos (7, 8) . improvvel que quilomcrons intactos causem aterosclerose, pois, pelo seu grande dimetro, no so capazes de penetrar a parede arterial (9) . Entretanto, a possibilidade de que os remanescentes de quilomcrons possam representar uma populao de lipoprotenas aterognicas, como sugerido inicialmente por Zilversmit (10) , bastante atraente. Diferentemente dos quilomcrons intactos, seus remanescentes so partculas ricas em colesterol, especialmente colesterol esterificado, e com isso podem oferecer grande quantidade de material lipdico para a formao e desenvolvimento das placas aterosclerticas (11). Pelo tamanho dessas lipoprotenas, a quantidade de molculas de colesterol que cada uma delas transporta e pode oferecer para as clulas vrias vezes maior que a contida em cada partcula de LDL, a principal lipoprotena carreadora de colesterol no sangue dos seres humanos. Quanto aos triglicrides, que tambm fazem parte dessas lipoprotenas, so metabolizados e, como referido, praticamente inexistem nas placas. Outro aspecto que deve ser salientado o de que, de modo diverso das LDL, que necessitam passar por modificao para oferecer material lipdico para as clulas espumosas, constituintes iniciais das leses aterosclerticas, as lipoprotenas ricas em triglicrides, embora tambm possam sofrer modificaes, podem fornecer material lipdico para as leses em sua forma nativa (12) .

VLDL,

SEUS REMANESCENTES E

IDL

Sabe-se que a hipertrigliceridemia causada por elevao das VLDL uma desordem heterognea, que pode ser secundria a vrias doenas, como diabete melito, hipotireoidismo e doenas renais, e em suas formas primrias tambm causada por diferentes etiologias, em particular a hipertrigliceridemia familial, a hiperlipidemia combinada familial e a sndrome X ou plurimetablica. A aterosclerose prematura e acelerada foi documentada em vrias sndromes de hipertrigliceridemia, mas no em todas, incluindo as695

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BERTOLAMI MC A conexo entre as lipoprotenas e a aterosclerose

secundrias, a hiperlipidemia combinada familial e a sndrome X. As lipoprotenas aterognicas presentes nessas formas de hipertrigliceridemia so as partculas que contm apo-B: VLDL, IDL e LDL. Identificou-se que as VLDL presentes nessas sndromes de hipertrigliceridemia, especialmente as menos densas e de maior dimetro, interagem com os receptores de LDL e entram nas clulas, enquanto as VLDL normais no o fazem(13) . Essas partculas de VLDL so tambm anormalmente ricas em colesterol, principalmente esterificado, e em apo E (7) . Quanto s IDL, tm sido consideradas aterognicas a partir de dados de estudos em humanos portadores da disbetalipoproteinemia ou tipo III(14) e em camundongos deficientes de apo-E (15) . Certos autores (7) consideram importantes diferenas entre as IDL e as lipoprotenas remanescentes de VLDL, uma vez que as IDL so intermedirias entre a castata VLDL LDL e so precursoras da LDL, enquanto os remanescentes so removidos rapidamente do plasma por receptores e, dessa forma, no contribuem para a massa de LDL circulante. Paralelamente disbetalipoproteinemia, caracteristicamente, as doenas renais so situaes especiais em que a IDL est implicada na aterosclerose(16) . Importante observao envolvendo o papel cada vez mais aceito das lipoprotenas ps-prandiais quilomcrons e seus remanescentes na aterosclerose(17, 18) foi a de que o acmulo de VLDL contribui para a hipertrigliceridemia transitria que se desenvolve aps refeio gordurosa. Shneeman e colaboradores (19) e Cohn e colaboradores (20) foram os primeiros a empregar colunas de imunoafinidade para separar partculas contendo apo B-48 daquelas contendo apo B-100. Eles encontraram que embora a maior parte dos triglicrides no estado ps-prandial estava, como esperado, nos quilomcrons, 80% do aumento do nmero de partculas dependiam de lipoprotenas que contm apo B-100, as VLDL. As concentraes plasmticas de ambas as partculas aumentavam juntas nas primeiras duas a trs horas aps a sobrecarga de gordura, em funo da competio pela via comum de liplise. Posteriormente, os quilomcrons e seus remanescentes, que contm apo B-48, pareciam ser retirados da circulao mais rapidamente que as VLDL. Alm disso, as observaes de Karpe e colaboradores (21) demonstraram que as partculas mais afetadas eram as VLDL maiores (VLDL1), enquanto as menores (VLDL2) praticamente no se modificavam. As alteraes do metabolismo lipoprotico que ocorrem no perodo ps-prandial provavelmente so explicadas pela modificao do contedo em apolipoprotenas das696

VLDL, que ocorre durante a lipemia alimentar, caracterizada por aumento da apo C-I e apo E e diminuio da apo C-II(22) . Esta ltima alterao, por levar diminuio da atividade da lipase lipoprotica, ajuda a explicar a reduzida eficincia da liplise das VLDL no perodo ps-prandial.

LDLAs partculas de LDL podem se acumular na ntima das artrias coronrias, principalmente quando as concentraes sanguneas so altas e maiores quantidades de partculas podem ultrapassar as clulas endoteliais e sofrer acmulo na parede do vaso. Muitas alteraes ocorrem, levando ao desenvolvimento de uma leso aterosclertica. Poucos no concordam com esses conceitos. Entretanto, h muitos anos, os dados sugerem que todas as partculas de LDL no so iguais na sua habilidade de promover aterosclerose. Assim, partculas maiores e menos densas so capazes de levar aterognese, como o que ocorre nos portadores de hipercolesterolemia familial (23) . Entretanto, desde a identificao, por Krauss e Burke(24) , de pacientes com preponderncia de LDL pequenas e densas, e a sugesto de que essas partculas eram inerentemente mais aterognicas que as LDL grandes, muitas observaes enfatizaram que as LDL pequenas e densas podem estar associadas com maior incidncia das conseqncias da aterosclerose coronria, como revisto por Packard e Sheperd(25) . Simultaneamente, como salientado por Rudel e colaboradores (26) , vrios estudos em humanos e em primatas no humanos demonstraram que o maior tamanho da LDL contribui para doena aterosclertica mais avanada. Assim, esses estudos levam concluso que, em adio concentrao da LDL medida como colesterol, as caractersticas da partcula de LDL podem contribuir para a aterognese(27) . Contrariamente, de acordo com Rudel e Kesainiemi (27) , os dados no sugerem que qualquer composio de LDL seja mais aterognica. Ao invs disso, dependendo das circunstncias, as grandes LDL, ricas em colesterol esterificado, contribuem para a aterognese, enquanto, em outras situaes, as partculas de LDL menores, mais ricas em triglicrides, so as que contribuem. Esses autores sugerem que a presena de diferentes tipos de partculas de LDL em qualquer indivduo funo de mltiplas vias do metabolismo lipdico, e que a aterogenicidade em qualquer indivduo determinada pela LDL e uma combinao de outros fatores. Destacam numerosos candidatos, tais como: a concentrao de LDL-colesterol, a composio da LDL, a concentrao da IDL, a distri-

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buio de tamanho das HDL, bem como sua concentrao e a concentrao dos triglicrides da VLDL, a presena da resistncia insulina e da hipertenso arterial.

HDLA baixa concentrao plasmtica de HDL tem sido apontada como um dos mais fortes fatores de risco independentes para doena aterosclertica coronria(28) . O estudo de Framingham demonstrou que para cada nvel de LDL, a concentrao de HDL-colesterol inversamente correlacionada com o risco de doena aterosclertica coronria (29) . Vrios tm sido os mecanismos propostos para explicar essa proteo contra a aterosclerose propiciada pela HDL, entre eles a reduo da viscosidade sangunea, a regulagem da sntese de prostaglandina e tromboxano, e a ativao da fibrinlise(30) . Entretanto, sempre se acreditou que o processo mais importante pelo qual a HDL desempenha seu papel de proteo contra o desenvolvimento da aterosclerose estivesse ligado ao chamado transporte reverso do colesterol, em que a HDL capaz de ligar-se s clulas, delas receber colesterol e lev-lo para o fgado, de onde ele pode ser eliminado pela bile e finalmente pelas fezes. Entretanto, quando a HDL recebe colesterol das clulas, ela pode tambm troc-lo por triglicrides oriundos das lipoprotenas ricas em triglicrides (quilomcrons e seus remanescentes, VLDL e IDL). Nessa permuta participa, intermediando a reao, a enzima CETP (cholesterol ester transfer protein). Observe-se que, por meio dessa troca, a HDL estaria fornecendo colesterol para lipoprotenas potencialmente aterognicas, comprometendo, desse modo, seu papel na defesa contra a aterosclerose. Dados de estudos mais recentes tm demonstrado que talvez a forma mais concreta de proteo que pode ser imputada HDL seja a de proteger a LDL (e eventualmente outras lipoprotenas) contra a oxidao, uma vez que as HDL so muito ricas em substncias antioxidantes (27) . Quando a LDL incubada com HDL sob condies propcias para oxidao, a LDL sofre menos peroxidao lipdica do que ocorre na ausncia da HDL. Isso no se deve maior peroxidao lipdica

da HDL, a qual quantitativamente similar na presena ou ausncia da LDL. Parece provvel que o efeito protetor da HDL contra a oxidao da LDL se deva ao metabolismo de perxidos lipdicos pela HDL e que esse processo seja enzimtico. Vrias enzimas esto localizadas na HDL; entre elas, a paraoxonase provou ser a que tem maior capacidade de hidrolisar perxidos lipdicos (31) . Com relao ao transporte reverso do colesterol, importante a atuao do receptor denominado ABCA1 (ATP binding cassette transporter A1), na entrega de colesterol das clulas para apolipoprotenas pobres em lpides (HDL nascente) (32) . Mutaes nesse receptor causam a doena de Tangier, uma sndrome de importante deficincia de HDL em que ocorre rpida degradao da apolipoprotena A-I, acmulo de colesterol em macrfagos dos tecidos e aterosclerose precoce(33) . Recentemente foi identificado tambm o receptor celular responsvel pela captao da HDL da circulao, denominado scavenger receptor class B tipo I (SR-BI)(34) . Outros mecanismos pelos quais a HDL pode desempenhar sua proteo contra a aterosclerose so ainda sugeridos, tais como: a) inibio da ao da LDL oxidada em transferir lisolecitina para as clulas endoteliais, o que se acredita diminui a capacidade vasodilatadora dessas clulas(35) ; b) interferncia da HDL sobre a induo de molculas de adeso pelas clulas endoteliais, como, por exemplo, sobre a expresso de VCAM (36) .

CONCLUSOEm concluso, ainda so intensamente discutidos os mecanismos exatos pelos quais cada classe ou subclasse de lipoprotenas pode participar da gnese e do desenvolvimento das placas aterosclerticas. Como algumas delas podem ter diferentes potenciais de ao deletria, enquanto a HDL comprovadamente protetora, na prtica fundamental, para a determinao do risco de cada indivduo, a caracterizao de em qual classe ou classes de lipoprotenas esto contidos colesterol e triglicrides, alm de seus valores absolutos no plasma.

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BERTOLAMI MC A conexo entre as lipoprotenas e a aterosclerose

T HE

CONNECTION BETWEEN LIPOPROTEINS AND ATHEROSCLEROSIS

MARCELO CHIARA BERTOLAMISince the description, many decades ago, of the importance of cholesterol and triglycerides circulating levels in atherogenesis, it was identified that the role of their transports in the circulation, the lipoproteins, is fundamental for the development of atherosclerotic plaques. However, still now there is many debate related to the complex mechanisms involving the aggressive role of apo-B containing lipoproteins and the protection produced by HDL. This article discusses recent aspects concerning the role of every class of circulating lipoprotein as protagonists of the major cause of mortality and morbidity of the modern world: atherosclerotic disease. Key words: atherosclerosis, lipoproteins, cholesterol, triglycerides.(Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo 2000;6:694-9) RSCESP (72594)-1035

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Rev Soc Cardiol Estado de So Paulo Vol 10 N o 6 Nov/Dez 2000

BERTOLAMI MC A conexo entre as lipoprotenas e a aterosclerose

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