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Aula 1 - santos ciência politica

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Capítulo 1

A POÚTICA COMO CIÊNCIA OUEM BUSCA DO CONTINGENTE PERDIDO*

Fabiano Santos

o QUE É CIÉNCIA POLíTICA?

É possível responder à pergunta, "o que é a ciência política?", deforma relativamente simples. Uma alternativa seria adotar uma defi-nição para o termo ciência, outra pata o termo política, e responderà pergunta a partir da união 'dos termos. Ciência política poderia serdefinida, por exemplo, como o estudo do fenômeno da ordem polí-tica. Tal procedimento, que pode ser chamado de nominalista, pos-sui o inconveniente de encobrir a enorme variedade de abordagense metodologias utilizadas pelos cientistas políticos, variedade quetorna qualquer definição em poucas palavras por demais simplifica-dota. Surge, a partir dessa constatação, a alternativa de definir ciên-cia politica como o elenco de temas efetivamente tratados pelos cien-tistas políticos. Exame superficial do conteúdo dos painéis progra-mados para o último congresso mundial da Associação Internacio-nal de Ciência Política corrobora a incrível variedade mencionada.Quem foi ao congresso encontrou debates sobre financiamento decampanhas políticas, segurança regional e paz mundial, defesalegislativa dos direitos das mulheres, o papel dos militares nos regi-mes pós-comunistas, controle político das burocracias, justificaçãomoral da ordem, entre outros. Esse procedimento, que pode serchamado de descritivo, se apresenta a vantagem de expressar a mul-tiplicidade de tendências que caracteriza a disciplina, deixa a desejarno que diz respeito à compreensão dos seus fundamentos e contor-nos mais gerais.

* Agradeço a Renato Lessa, Cesar Guimarães, Maria Regina Soares de Uma eWandcdey Guilherme dos Santos pelas sugestões e comentários. O resultadofinal do texto é de minha inteira responsabilidade.

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A superação do dilema "norninalisrno" uersus "descrição" é pos-sível com o acompanhamento dos principais desafios teóricos e me-todológicos enfrentados pela disciplina em alguns momentos cru-ciais de seu desenvolvimento. Algum grau de arbitrariedade será ine-vitável, assim como enormes perdas de informação. Todavia, para o,bem da parcimônia e apostando na existência de um consenso míni-mo com relação às origens e problemas fundacionais da ciênciapo-lírica, julgo pertinente o caminho adotado nas parágrafos que se

seguem.

DESENVOLVIMENTO DA DISCIPLINA

E DELIMITAÇÃO DO OBJETO

A reflexão política que conhecemos tem início na Grécia, algunsséculos antes de Cristo. É comum encontrarmos argumentos queenfatizam o aspecto eminentemente normativo do pensamento po-lítico grego. Assim, a herança deixada por essa reflexão seria de poucavalia, uma vez que a ciência política procura entender o mundo po-lírico tal como é, e não como deveria ser. Todavia, sem as reflexõesde PIa tão) de Aristóteles e dos sofistas, muito provavelmente nãoteríamos a descoberta do problema fundamental da política, valedizer, as bases e limites de lealdade do indivíduo à coletividade. Emque condições o indivíduo deve ou não obediência à pólis? Quais asbases de legitimação da ordem política? Implícita nas perguntas, en-contra-se a premissa necessária a qualquer pensamento político: apossibilidade de dicorornia indivíduo uersus pólis, A evolução maisrecente do pensamento policico deverá esclarecer esse ponto.

Após alguns séculos em que. descontadas honrosas exceções,predominava a visão de que a ordem social estaria inscrita na natu-reza das coisas, e que essa derivaria das palavras e vontade divinas, opensamento político vivencia outro momento fundacional. No sé-culo XVI, o florentino Maquiavel revela o verdadeiro segredo dacoesão social: a ação política. A partir de Maquiavel aprendemosque a ordem) tal como a observamos e vivenciamos, não dependeúnica e exclusivamente da natureza das coisas, mas também e fun-damentalmente do esforço feito por homens dotados de certas qua-lidades, tais como idealismo, ambição, perspicácia, crueldade) entre

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outras, para inspirar temor, respeito e lealdade nas pessoas comuns.Nesse momento, o objeto da reflexão política adquire contornosmais nítidos com a inclusão de seu elemento mais íntimo: a açãoh'-Hl}ana intencional na história. O conhecimento do mundo sócio-pql!ticp, segundo o florentino, não é feito com a leitura da vontadedeDeus. Será obtido somente com a observação do comportamen-to humano em situações reais de conflito e de luta pelo poder.

De forma resumida, pode-se dizer que a ciência política adquire,com o pensamento politico grego, sua premissa - a possibilidadede dicotornia entre indivíduo e pólis - e, com Maquiável, seu obje-to - a ação humana intencional na história. É importante mencio-nar, contudo, que, até aqui, a reflexão política possui natureza indu-tiva, O conhecimento do fenômeno pol1tico tal como existe, e nãocomo deveria ser, só é possível com 'a observação e interpretação deacontecimentos históricos. Ainda não existe) portanto, a pretensãode tornar a política objeto de uma ciência de cunho dedutivo. Issoserá feito em meados do século XVII, por Thomas Hobbes.

A pergunta de Hobbes é radical: para que governo? O procedi-mento adotado para respondê-Ia é também surpreendente: imagi-nar uma situação em que os homens convivem sem qualquer formade poder político estabelecido. A partir da psicologia introspectiva,Hobbes propõe os componentes básicos do comportamento indi-vidual, postulando, enfim, uma natureza humana que antecede, ló-gica e não cronologicamente, qualquer vivência social. Para dar con-ta dessa tarefa, estabelece que a condição natural da humanidade é aescassez. Os homens não encontram na natureza, disponíveis emabundância, os bens necessários à sua preservação e ao seu bem-estar. Ademais, no estado de natureza, não existe injunção de ordemmoral ou legal que forneça noções sobre o certo e o errado e, porvia de conseqüência, previsibilidade ao comportamento humano. Aconsciência decada indivíduo é a única fonte de juízo a respeito d.àpertinência ou não de seu comportamento, Ora, se os bens deseja-dos pelos homens são escassos e se não há meio coletivamente re-conhecido de regulação da conduta humana, então o cenário queemerge ~esse estado não pode ser senão o conflito e a,desconfiançamútua.

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A ordem politica emerge, de acordo com a visão hobbesiana,exatamente para definir limites ao comportamento individual, demodo a que o esforço pela aquisição de bem-estar seja feito embases cooperativas e não conflitivas. A razão ensina a cada indiví-duo que a melhor maneira de viabilizara ordem faz-se pór meio datransferência deseus direitos de aurogoverno, prevalecentes na con-dição naturalda humanidade, parauma nova instância, o poder po-lítico, responsável doravante pela regulação dos conflitos e perpe-tuação da paz social.

É importante notar que O procedimento hobbesiano de análise éessencialmente dedutivo. Hobbes define um contexto de interaçãohumana - o estado de natureza - que antecede analiticamente oestado político, estabelece uma premissa de comportamento indivi-dual- a luta pela satisfação dos desejos de auto-preservação e au-mento do bem-estar -, e, a partir de então, deriva as condiçõesnecessárias e suficientes para a emergência do governo.

Dedutivistas serão também os seres sociais hobbesianos. Emum primeiro momento, os atos de ataque e de defesa são promovi-dos após a conclusão lógica de que o mesmo será feito pelos outrosindivíduos, já que não há nada que os detenha e os bens comum entedesejados são escassos. Em um segundo momento, os seres hobbe-sianos concluem, também Jogicamente, que, no estado de natureza,toda forma de bem-estar é instável e exposta a freqüentes ataques eque, por isso, o melhor a fazer é contr~taro governo. A concepçãohobbesiana de objeto da ciência política servirá de inspiração a grandeparte do que faz a disciplina atualmente.

A críticaa essa concepção de objeto viria um século mais tarde,notadamente na figura de David I-lume. Segundo esse pensador, asbases de sociabilidade e de legitimação da ordem política não sur-gem a partir do cálculo racional de indivíduos em busca do bem-estar. Para qualquer indivíduo, em qualquer momento ou lugar, aordem social é um fato cuja justificação é obra de experiências cole-tivas particulares de elaboração institucional. Opiniões, hábitos ecostumes fornecem O cimento para a coesão político-social. Esseselementos expressam versões adotadas pelos agentes sociais a res-peito da organização do mundo natural e social, versões capazes de

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conferir. sentido à experiência humana em sociedade. Não há nadad~I~~cionalou dedutivo nos vínculos causais postulados pelas opi-~~ões ~ costumes, Outrossim, sua vigência deve-se essencialmente.ao fato,ç1e,perrnitirem a continuidade de experiências bem sucedi-das de configuração político-social. O lugar de cada indivíduo, nadiyts~Qsocial de status e riqueza, e as identidades sociais sâo consti-.;udas por versões sobre a vida social, elaboradas ao longo do tem-'po; ~\lj:\validade não pode nem poderá ser demonstrada. ~

Com Maquiavel, assistimos à inauguração do objeto. da ciênciapoliq~.a: a ação humana intencional na história. Posteriormente, ob-servamos que esse mesmo objeto pode ser entendido de duas for-;a~' ~ternativas.Em Hobbes, consiste na ação racional que trans-

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forma conflito em cooperação; e em Hume, a ação a ser investigadaI I \ •

cria sentido e define identidades e lealdades sócio-políticas. Essasduas concepções, de forma mais ou menos explícita, têm definidoos parârnetros a partir dos quais os problemas de método e os ins-rrurnentos de análise da disciplina são debatidos, bem como as prin-~'p'ais relações da ciência política com outras disciplinas.

INTERREGNO:

A CIflNClA POLíTICA COMO ENGENHARIA INSTITUCIONAL

O modelo hobbesiano de ordem política, cuja essência consistena noção de transferência de direitos, desencadeou uma importanteseqüência de estudos, inteiramente incorporada ao elenco de ques-tões com as quais grande parte da ciência política contemporâneacostuma lidar.

A principal finalidade do governo hobbesiano é o controle docomportamento humano, tendencialmente conflitivo, dada sua con-dição natural. No fim do século XVII, com John Locke, mas funda-mentalmente ao longo dos séculos XVIII e XIX. uma série de auto-res questiona a solução hobbesiana por conta de uma preocupaçãobás'ica.Se é verdade que o comportamento humano deve ser con-trolado, e que a transferência de direitos de governar parece a solu-ção adequada, contudo a figura para quem são transferidos os direi-tos de natureza també~ é humana, isto é, possuidora dos mesmosdefeitos que deram origem à idéia de governo. Em uma palavra, o

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problema seria: se o governo emerge para controlar os indivíduos,quem deverá controlar o governo?

A partir dessa simples indagação, desenvolve-se o conceito degcvcrnorepresenrativo A ordem política, após as contribuições de",Locke, Montesquieu, EdmundBurke, Thornas Madison, James eJohn Stuart Mill, e rantos outros, deixa de ser uma instrumento in-controlável de coerção. e. passa a ser um mecanismo institucional,cuja função precípua é a garantia da segurança e da liberdade indivi-duais. Inicialmente, a saída imaginada foi a submissão do governo aavaliações periódicas dos cidadãos e ao controle de outras instân-cias de poder. Eleições para 'a' escolha dos govemanres, descentrali-zação administrativa e separação dos poderes deslocam-se dos tex-tos e ensaios de filosofia política para efetivamente fazerem partedo arcabouço institucional do Estado moderno. Ademais, pouco apouco, problemas como o da incorporação de novas parcelas dapopulação ao mundo político, proteção dos direitos da minoria vis-à-vis o governo da maioria, monopólio da representação política pelospartidos, sistemas de governo parlamentarista ou presidencialista,regimes eleitorais, majoritário, proporcional, ou misto, são paulati-namente incorporados à agenda da disciplina, ao mesmo tempo emque informam o modo pelo qual atores políticos reais procuramr?guI~~ a competição política institucionalizada.

Em suma, pode-se dizer que a descoberta hobbesiana de que aautoridade governa~entaJ deriva da transferência de direitos dosindivíduos a serem governados para a pessoa do governante inau-gura uma linha de investigação que repercute diretamente na açãopolítica. E quando .promove intervenção dessa natureza no mundopolítico, a.ciência política é usualmente chamada de engenharia ins-titucional.

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A poluíca como ciência ou em busca do contingente perdido

PROBLEMAS DE MÉTODO, INSTRUMENTOS DE ANÁLISE

E A QUESTÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE

As duas concepções distintas do que seja a ação política relevan-te, de um ponto de vista heurístico - a ação racional em Hobbes ea criação de sentido em Hume -, marcam grande parte dos proble-mas teórico-metodológicos da ciência poljrica. Ademais, definem,em boa medida, suas perspectivas de diálogo com outras disciplinas.Pela via hobbesiana, temos, hoje em dia, uma formulação teórica emétodos de averiguação muito semelhantes aos da economia. Se-guindo a rota humeana, a ciência política apresenta afinidades com ahistória, a sociologia e a antropologia.

o MODELO HOBBESIANO

A emergência da ordem, em Hobbes, dá-se a partir de decisões'individuais, de cunho racional, que visam a minirnizar os custos in-corridos pelos mesmos em uma situação predeterminada - o esta-do de natureza -, e a rnaxirnizar os benefícios a serem auferidosem um novo contexto, agora marcado pela cooperação. As institui-ções poUticas são criadas para que os indivíduos possam explorar aomáximo as oportunidades de aumento de bem estar material enseja-das pelo comportamento cooperativo. Não é difícil perceber que aconcepção de objero ai implícira situa a ciência política lado a ladocom a ciência econômica, que trata dos processos sociais medianteos quais indivíduos racionais, possuidores de bens e de recursos, ecapazes de definir uma pauta de preferências, promovem trocas tendoem vista satisfazê-Ias ao menor custo possível. Isto é, a otimizaçãodo bem-estar.

É Importanre notar que o paralelo se justifica até um certo pon-to. A ciência política hobbesiana, assim como a economia, trata deacordos entre indivíduos racionais que desejam melhorar sua situa-ção mediante pactos de troca. No entanto, enquanto a análise eco-nômica trata de trocas' individuais de bens privados, a ciência politi-ca é obrigada a tratar do problema dos acordos individuais que ori-ginam a produção de bens públicos. A diferença entre um e outrotipo de bem é hoje bastante conhecida: enquanto a apropriação de

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um bem privado exclui de seu consumo qualquer outro indivíduoque não tenha pago o preço necessário a sua obtenção, o mesmonão ocorre em relação aos bens públicos. Com relação a esse últimotipo de bem, sua utilização por um indivíduo não impede que ou-tros indivíduos façam o mesmo, SeNJ que, para isso, tenha", incorrido noscustos de suaprovisão -.Isso, por si só, cria fortes incentivos paraque osindivíduos deixem de cooperar para a produção e, portanto, para oconsumo de- bens públicos. Para tornat o quadro ainda um poucomais complexo; não custa lembrar que os' indivíduos presumida-mente diferem no que coricerne a qualidade e a quantidade de bensque gostariam de ver providos coletivamente. Melhor dizendo, osindivíduos tendem a desenvolver distintas visões a respeito das ati-vidades que devem ser transferidas do domínio privado para o do-mínio público.

Não basta, por força do problema acima descrito, utilizaros ins-trumentos de análise já fartamente utilizados pelos econom..istasparao entendimento de processos de troca. Além do cálculo marginal,importanteparaorganizar conce.itualmenteo contexto de trocas combens privados, é necessária a utilização de instrumentos analíticosadequados para o entendimento de contextos de barganha. A difi-culdade básica na análise dos processos políticos de produção debens públicos consiste em revelar as condições e o momento emque os indivíduos deixam de se comportar estrategicamente, evitan-do revelar suas reais preferências em termo~ da quantidade e daqualidade de bens públicos que gostariam de,consurnír, e passam acooperar com o restante da comunidade na dinâmica da ação coleti-va. O comportamento do indivíduo, nesses casos, estará invariavel-mente relacionado ao comportamento esperado dos outros indiví-duos"Freqüenremence, os cientistas políticos e os economistas quetratamdessas questões recorrem à teoria dos jogos, por ser essa ametodologia adequada para dar con~a das interações estratégicas.

O modelo hobbesiano de análise política pode ser descrito, es-quernaticamente, corn está apresentado, a seguir, no Quadro L

Os r,"",.ptadosobservados são o .objeto da explicação, O contex-to de interação e os agentes do processo formam o conjunto devariáveisque explicam os fenômenos observados. Em geral, a ciên-

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A polttica como ciência ou em busca do contingente perdido

QUADRO I

O Modelo Hobbesiano de Análise Política

contexto de interação I(normas,regras.mstituiçôes,mcerrtivos}

I

I agentes do processo I(indivlduose suas ftnalidades)

resultados(produçãodo bem publico em umacertaquantidade

e de uma certa maneira)

da política tratade contextos e de agentes em situação de tipo estra-tégica, e isso exige a utilização de instrumentos e de métodos deanálise distintos dos usualmente aplicados para a determinação dospontos de equilíbrio estático do consumidor, É importante tam-bém observar que os resultados do processo referem-se a umgrande número de fenômenos, e não apenas à provisão de bensconsiderados públicos pelos manuais de economia do setor públi-co. Podemos considerar bem público, por exemplo, fenômenoscomo ordem social, maior ou menor governabilidade, disciplina ecoesão partidárias - para os membros do partido, é claro _, entremuitos outros. Em suma, todo resultado relevante, de um ponto devista coletivo e cuja efetiva realização dependa da cooperação deindivíduos com interesses de curto prazo nem sempre coincidentes.

o CAMINHO HUMEANO

A abordagem de Hume a respeito da emergência da ordem polí-tica representa uma inflexão".A pergunta sobre as origens do gover-no deixa de ser tratadacomo transferência de direitos ao incorporaro problema das basescognitivas de obediência à autoridade. O estu-do do mundo político não é mais o estudo de escolhas, mas sim oexame dos processos de adesão à ordem. Para Hume, a política não

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resulta de uma transferência de direitos, mas sim de um gesto deidentificação com grupos e símbolos cuja eficácia depende da vi-gência de versões sobre o funcionamento do mundo.

O deserivólvimento da Ciência política, nos moldes humeano,torna essa disciplina complementar à antropologia, à sociologia e àhistória. O estudo dos fenômenos políticos subordina-se à investi-gação dos entendimentos compartilhados em determinado gruposocial, à pesquisa do que seja a autoridade, suas origens e as bases desua legitimação. A abordagem: humeana é, por isso, essencialmenteparticularista. A cada grupo investigado corresponde uma concep-ção particular de como os seres humanos devem relacionar-se entresi, e de .como utilizar os bens, os recursos, as instituições por elesproduzidos para mediar suas relações. A tarefa da disciplina então éa de compreender, interpretar e traduzir os elementos, as visões demundo, encontrados na subjetividade dos agentes.

O pressuposto do caminho humeano, assim como o da antro-pologia, é o de que a subjetividade dos agentes políticos está perma-nentemente recriando estruturas de cognição do mundo social. Fun-damental, portanto, revelar as similitudes e as diferenças encontra-das no mundo que servirão de modelo para o estabelecimento deidentidades e clivagens sociais. Contudo, o objeto ptimordial da ciên-cia política, como vimos corri Maquiavel.é a ação humana intencio-nal na história. Não basta, portanto, utilizar os instrumentos da et-nografia para entender a concepção simbólica do mundo político, Amera reiteração de distinções e de semelhanças simbólicas subverteo próprio caráter da disciplina, pois o que lhe interessa basicamenteé compreender a clinâmica dos processos de transformação das es-truturas. Em que condições os sujeitos sociais humeanos deixam dereiterar versões pretéritas do mundo e inventam novas formas desociabilidade? Quais as condições a serem preenchidas para que asnovas versões tornem-se entendimentos compartilhados sobre osfundamentos da autoridade política? Essas questões não encontramresposta na etnografia de "comunidades primitivas".

O comportamento do agente hurneanoé informado por estru-turas de cognição, mas ele é, ao mesmo tempo, criador dessa estru-tura. Aqui, o objeto da ciência politica encontra-se com a investiga-

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ção histórica. O estudo dos processos de transformação e de inven-ção de estruturas é o estudo de eventos históricos. Mais ainda, é oestudo de eventos históricos naquilo que esses têm de único. Só aanálise de conjunturas específicas é capaz de revelar a dinâmica pró-pria da prática social inovadora, e, por contraposição, de distingui-Iada reiterativa, Somente a boa análise histórica pode delimitar, emcontextos particulares de conflito e de cooperação social, o campode atuação das. estruturas preexistentes e as possibilidades de inter-venção da ação política autônoma. Interpretação de fontes, pesqui-sa em arquivos, análise institucional e boa dose de ficção tornam-seos ingredientes obrigatórios da ciência política humeana.

CONCLUSÃO

Seria fugir ao espítito do texto concluir que a opção pOt uma ououtra concepção de ciência política é uma questão de gosto e que oimportante é utilizar adequadamente os métodos de análise perti-nentes. O fato de termos vários bons exemplos de análise políticaseguindo uma ou outra das concepções deveria chamar mais a aten-ção do que comumente podemos observar. Alguns processos polí-ticos merecem análise com base na escolha racional e outros só ad-mitem compreensão a partir da análise simbólica.

Creio ter isso a ver com a natureza do próprio objeto da discipli-na. Tanto a ação que define e busca interesses, como a que criasentido e inventa mundos possíveis são gestos irredutivelmente in-dividuais, condenados permanentemente a serem refratários a qual-quer esquema rígido de determinação.

A ação de que trata a ciência política é vítima, portanto, do pro-blema da contingência. A capacidade individual de reação e mudan-ça de práticas previamente estabeleci das é sempre desconhecida exante. Por isso, os momentos de transformação do confliro em coope-ração e de revolução de estruturas de cognição deixam, na maioriadas vezes, as teorias hobbesianas e humeanas a reboque do já acon-tecido. Toda teoria, tendo em vista estabelecer as condições de suaplena vigência, precisa conhecer com razoável grau de certeza o seuceterisparibus, a sua cláusula "rnantidas outras coisas iguais". Mas onosso ceterisparibus é justamente aquilo que falta explicar, pois é ele o

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