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AULAS 05 E 06 PRINCÍIPOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO V. PRINCÍPIOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL a) Princípios de índole constitucional b) Alguns princípios de índole constitucional c) Fundamentos, objetivos fundamentais e princípios das relações internacionais d) Princípios estruturantes e) Características dos princípios constitucionais f) Funções dos princípios constitucionais g) Diferenças entre princípio, norma e regra h) Norma-princípio i) Princípios estabelecidos, extensíveis e sensíveis j) Princípios e direitos fundamentais VI. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO a) Considerações gerais b) Métodos e princípios de interpretação c) Interpretação da Constituição conforme a lei d) Analogia e) Lacunas constitucionais f) Preâmbulo g) Teoria dos poderes implícitos h) O STF tem sempre a última palavra em matéria de interpretação constitucional? i) Classificação das normas constitucionais j) Normas programáticas l) Normas constitucionais de ordem, diretivas e de fim m) O caráter polifacético da Constituição e os elementos constitucionais n) Abertura horizontal e abertura vertical das normas constitucionais o) Plasticidade da Constituição p) Eficácia e vigência de leis infraconstitucionais por determinação constitucional q) Mutação constitucional

AULAS 05 E 06 PRINCÍIPOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL E ... · aulas 05 e 06 – princÍipos de direito constitucional e interpretaÇÃo e aplicaÇÃo da constituiÇÃo v. princÍpios

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AULAS 05 E 06 – PRINCÍIPOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL E INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO V. PRINCÍPIOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL a) Princípios de índole constitucional b) Alguns princípios de índole constitucional c) Fundamentos, objetivos fundamentais e princípios das relações internacionais d) Princípios estruturantes e) Características dos princípios constitucionais f) Funções dos princípios constitucionais g) Diferenças entre princípio, norma e regra h) Norma-princípio i) Princípios estabelecidos, extensíveis e sensíveis j) Princípios e direitos fundamentais

VI. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO a) Considerações gerais b) Métodos e princípios de interpretação c) Interpretação da Constituição conforme a lei d) Analogia e) Lacunas constitucionais f) Preâmbulo g) Teoria dos poderes implícitos h) O STF tem sempre a última palavra em matéria de interpretação constitucional? i) Classificação das normas constitucionais j) Normas programáticas l) Normas constitucionais de ordem, diretivas e de fim m) O caráter polifacético da Constituição e os elementos constitucionais n) Abertura horizontal e abertura vertical das normas constitucionais o) Plasticidade da Constituição p) Eficácia e vigência de leis infraconstitucionais por determinação constitucional q) Mutação constitucional

Capítulo V PRINCÍPIOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL

a) Princípios de índole constitucional

Diferentemente de outros ramos do Direito, como o Direito Administrativo e o Direito Penal, o Direito Constitucional não conhece didaticamente princípios específicos, que podem ser delimitados, qualificados e quantificados só para o Direito Constitucional, justamente porque este ramo do Direito (Direito Constitucional) dá validade para todos os outros ramos. É o caso dos princípios da estrita legalidade (art. 150, I), da anterioridade (art. 150, III, “b”), da irretroatividade (art. 150, III, “a”)e da tipologia tributária (art. 154, I), dentre outros, para o Direito Tributário; dos princípios da retroatividade da lei mais benéfica (art. 5º, XL), tipicidade (art. 5º, XXXIX), da personalidade da pena (art. 5º, XLV), da individualização da pena (art. 5º, XLVI), para o Direito Penal; princípios da moralidade, eficiência, publicidade, legalidade e impessoalidade (art. 37, “caput”), para o Direito Administrativo, e assim por diante.

Desta forma, via de regra, não existem princípios insertos na Constituição de 1988 que informam apenas o Direito Constitucional, em função da sua função das suas características e funções (adiante). Entretanto, existem alguns que mais identificam com a ordem constitucional, como é o caso dos princípios estruturantes (princípio republicano, princípio federativo, princípio da indissociabilidade do pacto federativo e princípio do Estado Democrático de Direito) e outros específicos que são inseridos no texto constitucional mas que se irradiam para todos os ramos do Direito, tendo aplicação em qualquer tipo de processo – penal, civil, trabalhista, tributário, administrativo. É o caso, por exemplo, dos princípios da proporcionalidade,da legalidade, do juiz natural, da motivação das decisões, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da igualdade, da inafastabilidade do acesso ao Judiciário, da vedação à prova ilícita, da razoabilidade duração do processo e da segurança jurídica.

Estes princípios comprovam a característica da fecundidade dos princípios constitucionais, e diferentemente daqueles próprios para determinado ramo do Direito, estão mais identificados com o Direito Constitucional, porque abrangem todo o ordenamento jurídico sem destinação específico para algum subsistema. Existem até entendimentos de que os princípios constitucionais que se identificam especificamente para determinado ramo do Direito, não seria propriamente um princípio constitucional, e sim uma regra ou um subprincípio, já que não teria a característica da fecundidade, partindo inclusive do fato de que o ordenamento jurídico de um país é um sistema, que engloba vários subsistemas (subsistema do Direito Civil, do Direito Penal, do Direito Administrativo etc.).

Assim, o princípio da irretroatividade da lei penal, por se aplicar especificamente ao Direito Penal, não seria um princípio constitucional em sentido estrito, mas sim uma regra, ou um subprincípio. O mesmo se diga para os princípios de Direito Tributário e Direito Administrativo. É muito comum, entretanto, tratar todos os princípios que estão na Constituição de 1988, indistintamente, como princípios constitucionais - vale a lembrança especialmente para o item “princípios e direitos fundamentais” (adiante).

b) Alguns princípios de índole constitucional

Necessário tecer considerações específicas sobre os princípios constitucionais abaixo que, sem dúvida, são muito importante e ganharam destaque na Constituição de 1988 e também pela doutrina e jurisprudência nacionais.

Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade (ou princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou princípio da proibição de excesso, ou princípio da razoabilidade) não está explícito na Constituição de 1988. A doutrina e a jurisprudência não o criaram, mas apenas o declararam. Segundo o STF, ele está implícito porque decorre da interpretação do art. 5º, LIV, que garante o devido processo legal. Daí porque pode tal princípio ser processual (devido processo legal revelado pela necessidade de ampla defesa e contraditório nos processos judiciais e administrativos) e também material/substancial, porque a palavra “devido” dá a noção de bom senso, razoável (só se deve o que é justo, legítimo), e por isso plaina para todo o ordenamento e especialmente para garantir que a lei esteja indo ao encontro do desejo do povo. Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade faz surgir a ideia de que as atitudes do Poder Público devem ser sempre baseadas na moderação, naquilo que é razoavelmente aceito por todos. A doutrina encontra na Constituição diversos fundamentos para a existência do princípio da proporcionalidade, em especial aqueles que atestam uma limitação para o Poder Público, podendo ser citados: a)art. 5º, V – direito de resposta proporcional ao agravo; b) art. 5º, XLVI – individualização da pena = proporcionalidade entre o crime e suas circunstâncias com a pena; c) art. 7º, IV – salário mínimo proporcional às necessidades básicas; d) art. 7º, V – proporcionalidade entre o piso básico e o trabalho realizado; e) art. 36, §3º - “se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade” = proporcionalidade entre o agravo cometido e a necessidade de intervenção; f) art. 45, “caput” e §1º – proporcionalidade entre o número de Deputados e a população do Estado; g) art. 37, IX– “para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público proporcionalidade” - proporcionalidade entre a quantidade de contrato temporário com as necessidades; h) art. 37, XXI -“mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” = proporcionalidade das exigências com a necessidade de garantia de cumprimento das obrigações; i) art. 40, §2º – reintegração, com possibilidade de colocação do ocupante da vaga em disponibilidade “com remuneração proporcional ao tempo de serviço”; j) art. 71, VIII – multa do TCU “proporcional ao dano causado ao erário”; l) art. 129, II – medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos = proporcionalidade entre as medidas e o respeito para os serviços de relevância pública aos direitos; m) art. 145, §1º – alíquota proporcional à capacidade econômica do contribuinte. A origem do princípio da proporcionalidade está no Direito Administrativo, em função da necessidade de conter o Poder de Polícia. A inserção no Direito Constitucional ocorreu com as revoluções burguesas do Século XVIII – iluminismo – intangibilidade do homem – antropocentrismo – homem como centro do universo, em face da necessidade de garantir sua dignidade. Esta inserção no Direito Constitucional foi feita especialmente pela Alemanha, notadamente no campo dos direitos fundamentais, após a 2ª Guerra Mundial. Muitos consideram que o marco para a inserção do princípio da proporcionalidade no Direito Fundamental foi a Lei Fundamental de Bonn (Constituição da Alemanha de 1949, e instalação da Corte Constitucional alemã em 1951). Alguns doutrinadores tentam diferenciar o princípio constitucional da proporcionalidade do princípio constitucional da razoabilidade: entendem que o princípio da razoabilidade se refere à ponderação na escolha do fim pelo legislador, pelo administrador ou pelo julgador, enquanto o princípio da proporcionalidade se refere à ponderação na escolha dos meios para se alcançar o fim. Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade seria mais amplo, indo além do princípio da razoabilidade. Também enfatizam que o princípio da razoabilidade, talvez por isso mesmo,

pode ser considerado em relação à lei, hipótese em que está intimamente relacionado com os princípios da isonomia e do devido processo legal substancial; quando considerado em relação aos atos administrativos, deveria ser tido como princípio da proporcionalidade. Tal diferenciação, apesar de existir, boa parte da doutrina a rechaça. Não é incomum dizer que o princípio da proporcionalidade pode ser encontrado no art. 37, XXI, da CF/88, que, ao exigir licitação para as compras, alienações, obras e serviços, somente admite exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis á garantia do cumprimento das obrigações, e que serve, também, de limite à discricionariedade do administrador público. Importante lembrar que o princípio da proporcionalidade se diferencia dos outros princípios porque ele é a pedra de toquepara resolver eventual conflito entre os próprios princípios constitucionais (antinomia jurídica imprópria), mediante juízo de ponderação. Assim, havendo conflito de regras, se resolve pela extirpação de uma delas ou pela redução teleológica de uma delas, mas havendo conflitos de princípios, o princípio da proporcionalidade surge para manter todos os princípios. O princípio da proporcionalidade se aplica ao legislador, ao administrador e ao julgador. Bem por isso, alguns preferem reconhecer em tal princípio um postulado normativo, que seria uma terceira espécie normativa na Constituição, ao lado da regra e do princípio. Existe doutrina que percebe no princípio da proporcionalidade, requisitos intrínsecos, extrínsecos e pressupostos. Os requisitos intrínsecos seriam seus subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); os requisitos extrínsecos seriam: a) a judicialidade (necessidade de ser declarado por juiz competente e com respeito às normas limitadores da atividade estatal), e b) motivação (necessidade de motivar claramente onde e em quê medida a atitude ou o ato estatal fere o princípio da proporcionalidade); os pressupostos seriam a legalidade e a justificativa teleológica. O princípio da proporcionalidade se subdivide em subprincípios:

a) Subprincípio da ADEQUAÇÃO:

Este subprincípio impõe que deve sempre haver adequação entre os fins e os meios utilizados para alcançar estes fins, de modo que as medidas adotadas só podem ser aquelas aptas para alcançá-los. Meio adequado ocorre quando seu auxílio de fato promove o resultado pretendido. Assim, para se saber se este subprincípio foi atendido, diante da medida do Poder Público, deve-se perguntar:O meio utilizado é capaz de provocar o resultado pretendido?

b)Subprincípio da NECESSIDADE/EXIGIBILIDADE:

Este, por sua vez, impõe que o meio utilizado deve ser o menos oneroso possível aos cidadãos; se a lei impuser uma medida mais onerosa, mesmo estando clara a possibilidade de utilizar outro meio menos onerosa, esta lei será inconstitucional porque ferirá o princípio da proporcionalidade. A exigibilidade ocorre quando o legislador não poderia ter escolhido outro meio igualmente eficaz para se chegar ao resultado, é dizer, o meio utilizado de fato é o que causa menor prejuízo. Daí porque este subprincípio é conhecido como “meio mais suave” dentre vários possíveis. A necessidade é conhecida também por “proibição de excesso”, e pode ser reconhecido pela resposta a esta indagação: Existe outro meio, que não o utilizado, que pode chegar ao resultado sem causar tantos prejuízos?

c) Subprincípio da PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO

É o subprincípio que impõe uma análise prévia à edição da lei, do seu custo-benefício, isto é, é preciso fazer um juízo de ponderação entre os danos e os benefícios da lei. Sua publicação estará autorizada pela Constituição se os seus benefícios forem maiores que os prejuízos eventualmente causados. Para identificar se foi violado, pergunta-se:As vantagens superam as desvantagens?

Se fosse possível dar um exemplo para visualizar os subprincípios, imagine-se que o legislador, preocupado com a extrema violência que está acometendo o Brasil (imagine-se que esta violência tenha aumentado significativamente, daqui a 10 anos), resolve criar uma lei proibindo qualquer pessoa de sair de casa após as 20:00h.

Diante desta lei, pergunta-se: Ela fere diretamente qual subprincípio apontado? Ela não feriria o subprincípio da adequação porque, de fato, se ninguém pudesse sair de casa após às 20:00h, a violência certamente diminuiria. Esta lei, então, seria adequada para atingir o fim de diminuir a violência, não resta dúvida. No caso, ela até poderia ferir o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, porque os danos poderiam ser maiores que os benefícios. Porém, quando o legislador resolveu atingir a violência, esta escolha feita por ele não foi, evidentemente, desproporcional. Esta escolha do fim, e não do meio utilizado, é que seria o princípio da razoabilidade. Se o legislador escolhesse, em um exemplo grotesco mais didático, acabar com o homossexualismo, e editasse qualquer lei neste sentido, a escolha do fim teria sido sem razoabilidade, e feriria o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito - independentemente dos meios utilizados para isso, haveria inconstitucionalidade no nascedouro, porque, repita-se, a escolha teria sido despropositada, insensata, independentemente dos meios que posteriormente seriam levados a cabo. Voltando ao caso da suposta lei proibindo todos de saírem das suas residências após às 20:00h, ela estaria ferindo especialmente o subprincípio da necessidade, porque o meio utilizado para acabar com a violência não é o menos oneroso para os cidadãos, porque efetivamente o Poder Público dispõe de outros meios que evitariam tamanho prejuízo para a sociedade (prejuízo de ficar preso nas casas após às 20:00h), como é o caso de investimento na educação, do aparelhamento das Polícias, da colocação de mais homens nas ruas, e até da Decretação de Estado de Defesa e/ou Estado de Sítio. Este meio utilizado teria sido excessivo, daí ser inconstitucional porque feriu o princípio da “proibição do excesso” na utilização dos meios. Apesar de haver alguma resistência para utilização do princípio da proporcionalidade para declaração de inconstitucionalidade de leis, em face da separação dos poderes e da liberdade de conformação do legislador, hoje está sedimentada no Brasil esta possibilidade, inclusive pelo STF.

Princípio fundamental da dignidade da pessoa humana

Este princípio tem fundamental importância porque há uma forte tendência de considerá-lo a viga mestra que deve orientar todo o sistema constitucional, tanto na sua interpretação com na sua aplicação, influenciando decisivamente nas políticas públicas, nas condutas administrativas e na razão de existência do Estado. É, assim, o núcleo axiológico da Constituição, ratificando a noção, agora no âmbito constitucional, de que o Estado é que existe para o homem, e não o homem para o Estado. Este princípio tem duas forças motrizes: ação e abstenção. Exige ação do Estado, e da própria sociedade, para que o ser humano viva dignamente, devendo incrementar políticas públicas para tal fim; exige abstenção do Estado e da sociedade, no sentido de que qualquer política pública, ato ou conduta administrativa, contrato entre particulares ou algo do gênero, não pode surtir o efeito de retirar a dignidade da pessoa humana. O fundamento histórico deste princípio é reconhecido pela doutrina na tradição cristã, pelo destaque primordial de que o homem seria a imagem e a semelhança de Deus, e na filosofia kantiana, pelo fato de que o filósofo alemão Emanuel Kant (22.04.1724-12.02.1804), representante do Iluminismo, que colocou o homem no centro do Universo, retirando a supervalorização às divindades e à fé, que contrapunham a existência do homem e da razão. A doutrina, diante da dificuldade em conceituar dignidade humana, face ao caráter abstrato e aos seus contornos vagos e imprecisos, vem fixando um mínimo existencial para a sua compreensão, que são os bens indispensáveis para que os indivíduos menos favorecidos vivam dignamente. Importante lembrar que a dignidade da pessoa humana não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico; é, sim, um atributo do ser humano. Os direitos fundamentais surgem contra o Estado, daí porque ele nasce com eficácia vertical (relação particular, abaixo, e Estado, acima). Porém, devido à sua importância, a doutrina moderna que ele tem também eficácia horizontal, porque tem aplicação entre particulares.

Princípio da segurança jurídica

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Medida Cautelar 2.900/RS e dos Mandados de Segurança n. 22.357/DF e 24268/MG, todos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, elevou o princípio da segurança jurídica à categoria de princípio constitucional, na posição de subprincípio do Estado de Direito. Daí, necessário analisar com cuidado este princípio, e fazer algumas observações. Princípio da segurança jurídica é um corolário lógico do Estado de Direito. Se a sociedade e o Estado são regidos por leis, e não por homens, é evidente que a intenção é dar segurança aos membros da comunidade, à vista da estabilidade das relações jurídicas. Ele existe, sem dúvida, em função da previsão norteadora do art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Entretanto, não é só o dispositivo mencionado que o celebra. A CF/88 é pródiga de dispositivos que enfatizam a segurança jurídica como verdadeiro princípio, a nortear todo o ordenamento jurídico nacional. É o caso da irretroatividade da lei, da ampla defesa e do contraditório aos acusados em geral, prévia lei para configuração de crimes e cominação de penas, declaração de direitos e garantias sociais e individuais, devido processo legal, independência do Poder Judiciário, sistema de freios e contrapesos, vedação a tribunais de exceção, necessidade de fundamentação das decisões... Assim, todas estas garantias e direitos dão ao cidadão a necessária tranquilidade, ficando seguro de que as relações jurídicas constituídas estão protegidas, sem o perigo de se perderem a cada movimento, ato, conduta ou situação liderados pelos órgãos, entidades, instituições e poderes públicos. O próprio movimento do constitucionalismo visava, em última análise, gerar segurança jurídica para o cidadão, contra o Estado. A presença da Constituição Federal, então, atesta que ao homem é dada a garantia da tranquilidade, da segurança e da paz contra o Estado e contra o próprio homem. Daí porque é uma verdadeira proteção da confiança do homem nas instituições, na Constituição, e nas relações com o Estado. Portanto, o princípio da segurança jurídica é um elemento de conservação inserido na ordem jurídica nacional, destinado à manutenção do status quo e ao afastamento de surpresas na modificação do direito positivo ou em uma conduta do Estado. Acaba sendo, ao que se percebe, um elemento que contradiz os movimentos de pressão do Estado para mudança do status quo, sejam estes movimentos sociais, econômicos ou políticos, sejam eles movimentos de cobrança de novas posturas e novas reformulações estatais. O princípio da segurança jurídica costuma desembocar em uma natureza objetiva, quando se refere aos limites à retroatividade dos atos do Estado para com os particulares, cuja premissa maior é a impossibilidade de lei retroagir para prejudicar direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, e em uma natureza subjetiva, que visa resguardar o cidadão das atitudes do Estado, em qualquer área de atuação, para que o cidadão não seja surpreendido, indo além da proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Este aspecto subjetivo refere-se à tentativa de proteger a confiança depositada pelo cidadão no Estado (princípio da proteção da confiança). Serve de base, por exemplo, para a proteção do funcionário de fato(exercício de fato da função pública, e não de direito, onde há prática de ato por pessoa que está investida em cargo, função ou emprego público, porém com alguma irregularidade na sua investidura, como, por exemplo, a necessidade de nível superior sem tê-lo, ou a nomeação para cargo inexistente, ou ainda o trabalho no serviço público após completar 70 anos; nestes casos, existiu o ato da investidura, porém com alguma situação contrária à lei, o que não acarreta necessariamente a invalidação do ato, em respeito à boa-fé e a proteção da confiança) e também quando ocorre desvio de função (servidor público que atua, na prática, com atribuições diferentes para aquela que prestou concurso, havendo, nestas atribuições, diferenciação de remuneração a maior, deverá receber a diferença, protegendo o direito a sua boa-fé e a confiança no sistema). Nesse sentido, veja:

“A invalidade da investidura do agente não enseja, por si só, a invalidade dos atos praticados,

considerando a teoria do "funcionário de fato". Não se obriga a devolução aos cofres públicos dos valores percebidos pelo agente de fato em razão do trabalho realizado, pois haveria enriquecimento sem causa do Estado, que se locupletaria com trabalho gracioso” (TRF3, AC 867785, Processo 200303990108568/SP, 5ª Turma, DJU 21/08/2007, p. 609, Rel. Juiz Higino Cinacchi).

“Funcionário público. As leis estaduais não podem ´restringir´ as garantias que a Constituição Federal assegura ao funcionário, mas podem ´ampliá-las´. A falta ou insuficiência de verba não torna ilegal a nomeação, nem transmuda o nomeado em funcionário de fato” (STF, RE 19383/PR, DJ 01-11-1951, Rel. Min. Luiz Gallotti)

“Administrativo. Funcionário de fato. Investidura baseada em norma posteriormente declarada inconstitucional. A nulidade não envolve uma das fases de ato complexo, de mera execução de orem legítima, com a sua consequência normal e rotineira. Aparência de legalidade e inexistência de prejuízo. Recurso extraordinário, pela letra "c" do art.119, III, da Constituição, não conhecido” ( STF RE 78533/SP, Rel. Min. Firmino Paz).

“A teor da pacífica e numerosa jurisprudência, reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais dele decorrentes, sob pena de se locupletar indevidamente a Administração” (STJ AARESP 557252/RS, Processo 200301073191 5a Turma, DJ de 11/06/2007, p. 347, Rel. Arnaldo Esteves Lima).

“Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV)” (STF, MS 24268/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 17-09-2004, p. 53).

O STF costuma utilizar o princípio da segurança jurídica para ratificar situações

consolidadas (“fato consumado”). Na ADI 3689/PA, Rel. Min.Eros Grau, por exemplo, manteve parte do Município que havia sido retirada por lei estadual, com base, entre outros argumentos, no princípio da segurança jurídica, uma vez que a parte municipal já estava incorporada há tempos. Também para ratificar atos praticados sob a égide da lei então em vigor, posteriormente revogada (no RMS 23383/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, foi aplicado o princípio da segurança jurídica para dar validade à resolução que reconhecia a legitimidade da instituição de curso antes do advento da nova disciplina legal).

No julgamento da ADI 3685/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, o STF utilizou o princípio da segurança jurídica para criar a figura da garantia individual do cidadão-eleitor, proibindo que EC 52, de 08.03.2006 (que instituiu a liberdade nas coligações partidárias) fosse utilizada na eleição de outubro de 2006. Assim, apesar do art. 16 da CF/88 afirmar não se aplicam as mudanças feitas por lei infraconstitucional (e não por emenda constitucional) às eleições que vierem a ocorrer em até um ano da data da sua vigência, a emenda constitucional 52 não poderia ser aplicada porque ofenderia outra norma constitucional de maior densidade para o caso, que seria a norma garantidora dos direitos individuais do cidadão-eleitor, que precisa de segurança jurídica, daí porque precisa “receber do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral."

Um outro ponto importante da segurança jurídica está na previsão constitucional inserta no art. 62, mais precisamente em seus parágrafos 3º, 11 e 12, ao prever a possibilidade de regulamentação, por decreto legislativo, das relações jurídicas decorrentes de Medida Provisória que perde a eficácia, assim como a manutenção das relações jurídicas constituídas e decorrentes da Medida Provisória rejeitada ou com perda de eficácia por decurso do prazo de 60 dias. O parágrafo 12, dando

importância à segurança jurídica, também prevê a manutenção da vigência da Medida Provisória na forma original, se ela for alterada na tramitação do Congresso Nacional, pelo menos até a sanção ou veto do projeto alterado.

Apesar da divisão em natureza objetiva e subjetiva, a doutrina, em especial a doutrina estrangeira, costuma enfatizar que cada natureza é, na verdade, um princípio diferenciado, de modo que existiriam dois princípios: o princípio da segurança jurídica e o princípio da proteção à confiança. No Brasil, parece não haver este rigor científico, sendo o princípio da segurança jurídica um só, que engloba situações objetivas e subjetivas, até porque, nos julgamentos feitos pelo STF, não há preocupação com esta divisão, sendo importante apenas declarar os valores do princípio da segurança jurídica como dentro do texto constitucional. No Brasil, é possível dizer que o princípio da segurança jurídica está consagrado na legislação infraconstitucional. A Lei 9.784, de 29.01.1999, diversas vezes cita a segurança jurídica, expressa ou implicitamente. No art. 2º, “caput”, por exemplo, diz: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. Já no incisos IV e XIII do parágrafo único deste art. 2º, diz que nos processos administrativos serão observados os critérios da atuação “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” e da “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.

Importante dispositivo da Lei 9.784/99, baseado na segurança jurídica, é o seu art. 54, dá prazo de cinco anos para a Administração Pública para anular seus próprios atos administrativos que decorram efeitos favoráveis aos destinatários, salvo comprovada má-fé, protegendo os fatos consolidados e estabilizados no tempo. Neste sentido, o STF, no MS 26.393 (Rel. Min. Cármen Lúcia), concedeu segurança contra ato do TCU de 2006, que havia determinado à ECT o desfazimento de atos de ascensão funcional praticados entre 1993 a 1995, vez que já havia se passado mais de 05 anos, impondo-se o reconhecimento da decadência do direito da Administração de rever aquele ato, nos termos do art. 54. Parece, portanto, que no conflito entre o princípio da legalidade e o princípio da segurança jurídica, este tem prevalecido, pois muitos atos realizados há mais de 05 são eivados de nulidade, praticados que foram contra a lei. A Lei 9.868, de 10.11.1999, que trata das ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade, ao permitir a modulação temporal da decisão de inconstitucionalidade – inconstitucionalidade retraída ou restringida -, expressamente diz que esta modulação deverá levar em consideração a segurança jurídica: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Aliás, a segurança jurídica também é base para se permitir a modulação temporal dos efeitos da inconstitucionalidade inclusive no controle difuso de constitucionalidade, permitindo que o STF conceda efeitos “pro futuro” (efeitos prospectivos): “Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos extunc,resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade” (STF, RE 197917/SP, DJ 07.05.2004, p. 08, Rel. Maurício Corrêa A Lei 9.882, de 03.12.1999, que trata da arguição de descumprimento de preceito fundamental, também prevê: “Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” Em relação ao princípio da segurança jurídica aplicado pelos tribunais, o que se tem que ter em mente é que tal aplicação decorre do seu aspecto subjetivo. O aspecto objetivo, referente à

proteção contra a retroatividade da lei para prejudicar direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, apesar de suscitar discussões (vide “ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada”), é, com perdão da redundância, conhecido e aplicado mais objetivamente. O aspecto subjetivo, entretanto, suscita uma série de questões que só o caso concreto poderá apontar a aplicação do princípio da segurança jurídica. Assim, o princípio, sob o aspecto subjetivo, é bastante aplicado, como se viu, para a manutenção de situações ilegais, mas que se estabilizaram no tempo, como forma de dar segurança jurídica. Como deixou enfatizado o STF, quando do julgamento do RE 578543/MT, Rel. Min. Celso de Mello, DJE de17.09.2009:

“Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto

expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado. A fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro.”

É o caso do aluno que conseguiu uma liminar para frequentar o curso superior, e vem a

se formar, ou o aluno que conseguiu sua matrícula administrativa com clara afronta ao regulamento, mas que está prestes a se formar, ou ainda o caso da viuva que consegue pensão irregular, mas vive há muito tempo à custa desta pensão. Nestes casos, como se vê, há uma tensão entre o princípio constitucional da legalidade e o princípio constitucional da segurança jurídica, fazendo com que a ponderação indique a aplicação da segurança jurídica. É certo que, nestes casos, cabe ao Estado estar sempre atendo à consolidação das situações, sendo até o caso de fundamento para o “periculum in mora”, em eventual recurso contra liminares deste tipo. Por exemplo, naqueles três casos citados no Supremo Tribunal Federal, o princípio da segurança jurídica foi analisado sob seu aspecto subjetivo, para dar proteção à confiança que se revelou naqueles casos concretos. Vejamos: Na MC 2.900/RS, um acadêmico de Direito da Universidade Federal de Pelotas pediu transferência para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, já que tinha passado no concurso dos Correios para emprego na capital. Negado o pedido administrativo, conseguiu liminar em dezembro de 2000, e mudou-se, iniciando seu Curso na nova Universidade. Entretanto, em grau de recurso, o TRF4 cassou a liminar somente dois anos depois, em outubro de 2002, e o acadêmico interpôs Recurso Extraordinário no STF, com pedido de Medida Cautelar. Por isso, o STF concedeu a cautelar, com base no princípio da segurança jurídica, justamente em face da consolidação de situação de fato. No MS 24.268/MG, o TCU havia cancelado, sem contraditório e sem ampla defesa, a pensão especial concedida há mais de 18 anos, já que o instrumento público da concessão era inadequado, e, além do mais, existia fortes indícios de fraude na origem, inclusive com reconhecimento pela Min. Ellen Gracie. O STF concedeu a segurança, com base na falta de contraditório e ampla defesa no processo administrativo junto ao TCU, já que este teria sido o fundamento da causa de pedir, mas o Min. Gilmar Mendes deixou-se influenciar, claramente, pelo princípio da segurança jurídica.

No MS 22357/DF, empregados da INFRAERO, empresa pública, haviam sido contratados sem concurso público, logo depois da publicação da CF/88, em uma época que havia dúvida sobre a interpretação do original art. 173, §1º, que sujeitava estas empresas públicas a regime jurídico das

empresas privadas, inclusive quanto a obrigações trabalhistas e tributárias. Assim, a boa-fé e a consolidação da situação levaram o STF a deferir a ordem e garantir o emprego dos empregados.

O STF, em várias outras oportunidades anteriores, já havia deferido segurança e cautelares para proteger situações consolidadas, mas o fundamento principal não era o princípio da segurança jurídica, e muito menos a consideração de que tal princípio era constitucional. Agora, trazendo o princípio da segurança jurídica para o nível constitucional, várias consequências poderão ser notadas, causando antinomia jurídica imprópria com outras situações, como estas abaixo indicadas.

Também é caso de aplicação do princípio da segurança jurídica, no caso de atos praticados de boa-fé, com base em legislação posteriormente julgada inconstitucional pelo STF, assim como no caso de atos praticados com base em Medida Provisória vigente e eficaz, mas que perde a eficácia em face da não conversão por perda de prazo. Nestes casos, haveria de ser dada proteção à confiança depositada pelos cidadãos no ordenamento jurídico, estabelecendo uma zona de tensão entre dois princípios constitucionais: supremacia da Constituição e segurança jurídica. É bem verdade que, nestes casos (atos praticados de boa-fé com base na lei julgada inconstitucional e na MP que posteriormente perde eficácia e vigência), há entendimento majoritário no sentido de que o princípio da supremacia da Constituição não tolera exceções, sendo nulos os atos praticados com base na lei que nasce inconstitucional. É preciso dizer, entretanto, que, neste caso, depende da própria declaração de inconstitucionalidade feita pelo STF, com base na segurança jurídica: se entender que é o caso de não afetar tais atos, modulando temporalmente os efeitos da decisão, os atos são válidos; se, entretanto, declarar a inconstitucionalidade com efeitos “extunc”, os atos são inválidos. Neste caso, se o STF não declarar a inconstitucionalidade restringida (efeitos prospectivos, “pro futuro” ou modulação temporal), a análise do caso concreto, para aquele que se julgar prejudicado por ter praticados atos de boa-fé com base na lei inconstitucional, está prejudicada, cabendo reclamação ao STF, já que a decisão deste Tribunal produz “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (§3º do art. 102 da CF/88).

Também no caso da Medida Provisória, entende-se que há liberdade para o Parlamento editar o decreto-legislativo e disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes, podendo, assim como o STF no controle de constitucionalidade, preservar os atos ou anulá-los. É uma forma, então, do próprio Legislativo também fazer a modulação temporal, não da inconstitucionalidade, mas da vigência e da eficácia da Medida Provisória já rejeitada. Imagine, por exemplo, uma MP que concede aumento a servidores públicos, e que vem a ser rejeitada, ou perdida a eficácia pelo decurso de prazo sem aprovação. Neste caso, o Parlamento poderá disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes, indicando que os servidores que receberam a mais continuem com os valores, mas também poderá disciplinar em sentido contrário, determinando a devolução.

Como o princípio da segurança jurídica foi elevado à categoria constitucional, ficará bastante evidente a tensão entre o princípio da supremacia da Constituição e a liberdade de conformação do legislador, com ao princípio da segurança jurídica. Não será surpresa, por exemplo, a atuação do STF para ponderar estes valores constitucionais.

c) Fundamentos, objetivos fundamentais e princípios das relações internacionais

A Constituição de 1988, então, em função de ser uma Constituição aberta e dirigente, é o ponto de partida para a fixação dos princípios de todos os ramos do Direito, sem esquecer que existem princípios para tais ramos que não estão previstos na Constituição.

Por isso, a Constituição trata a questão dos princípios de forma ampla, colocando logo no Título I os “Princípios Fundamentais”, e nele é possível encontrar os principais valores constitucionais divididos em:

“FUNDAMENTOS”. Constam do art. 1º:

× Soberania; × Cidadania; × Dignidade da pessoa humana; × Valor social do trabalho da livre iniciativa; × Pluralismo político.

“OBJETIVOS FUNDAMENTAIS”. Constamdoart. 3º:

× Construir uma sociedade livre, justa e solidária; × Garantir o desenvolvimento nacional; × Erradicar a pobreza, a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e

regionais; × Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo,

idade e quaisquer outras formas de discriminação; e

“PRINCÍPIOS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS”. Constam do art. 4º:

× Independência nacional; × Prevalência dos direitos humanos; × Autodeterminação dos povos; × Não-intervenção; × Igualdade entre os Estados; × Defesa da paz; × Solução pacífica dos conflitos; × Repúdio ao terrorismo e ao racismo; × Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; × Concessão de asilo político.

Como se percebe, todo os fundamentos, os objetivos fundamentais e os princípios das relações internacionais, são princípios fundamentais.

d) Princípios estruturantes

A doutrina, a par da existência dos princípios fundamentais e sua divisão em fundamentos, objetivos fundamentais e princípios das relações internacionais, costuma enfatizar que, para o Direito Constitucional, existem princípios estruturantes, que são aqueles que dão as diretrizes fundamentais da ordem constitucional, delimitando a estrutura e a organização do Estado brasileiro – verdadeiras decisões políticas fundamentais.

São estes os princípios que estruturam o Estado brasileiro:

PRINCÍPIO REPUBLICANO:É o contraponto da monarquia, com três características fundamentais:

× Alternância do poder;

× Caráter representativo do Chefe de Estado;e

× Possibilidade de responsabilização.

PRINCÍPIO FEDERATIVO:Destaca que há mais de uma esfera de poder no mesmo território, com autonomia definida pela Constituição, impondo a Federação como forma de Estado para o Brasil;

PRINCÍPIO DA INDISSOCIABILIDADE DO PACTO FEDERATIVO:a Federação como forma de Estado é cláusula pétrea (art. 60, §4º, I), justamente para manter a unidade nacional em contraponto à autonomia de cada ente. A Constituição de 1988, portanto, não permite para os entes da Federação o “Direito de Secessão”1 (daí o fracasso da

1 Por isso é que houve fracasso do Estado do Rio Grande do Sul em se separar do Brasil e formar um outro país.

Para que isto fosse possível, seria preciso instalar um Poder Constituinte Originário Histórico, já que o Poder Constituinte Derivado Reformador está impedido de dissolver a Federação brasileira em face da cláusula pétrea do art. 60, §4º, I, da CF/88.

tentativa do Rio Grande de Sul, em antanho, de se separar do Brasil), prevê a intervenção federal com o objetivo de manter a integridade nacional – art. 34, I - e diz claramente que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Distrito Federal e Municípios – art. 1º;

PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:Veja bem que não se trata apenas do princípio democrático, porque na acepção estão contidos dois valores fundamentais: Estado Democrático e Estado de Direito.

O Estado Democrático de Direito

Muitos acreditam que o princípio democrático é mais vigoroso no Direito Constitucional brasileiro porque a CF/88 qualificou o Estado de Direito com a Democracia, enquanto outros países, como Portugal, qualificaram o Estado Democrático com o Direito – “Estado de Direito Democrático”. Isso é relevante quando se lê o preâmbulo da Constituição, que cita o Estado Democrático, sem referência ao Estado de Direito. Isto foi próprio de uma Constituição dogmática, passional, que foi elaborada em um momento em que todos os olhos estavam voltados contra a Ditadura, e que a Democracia era um bem supremo por todos desejado. A Democracia, no Brasil, serve, então, para qualificar a estrutura constitucional, enfatizando a Democracia como ponto de partida para qualquer organização estatal. O Estado de Direito surge quando se consegue brecar a atividade estatal por meio da lei. Assim, a partir do momento em que o Estado se submete às leis que ele mesmo cria, começa a existir o Estado de Direito (Estado submetido ao Direito). Deste modo, não há mais espaço para afirmações como “O Estado sou eu”, feitas por Luís XIV, que caracterizou o auge do absolutismo estatal. Por isso, Estado de Direito é aquele que vive sob o primado do Direito, que exige os seguintes requisitos fundamentais: a) Divisão dos poderes; b) Independência dos juízes e amplo acesso à Justiça; c) Império da lei (princípio da legalidade inclusive para a Administração Pública); d) Previsão de direitos e garantias fundamentais; e) Proteção à propriedade privada, inclusive contra atos do Estado. É preciso, entretanto, fazer uma observação sobre o primado do Direito, para caracterizar o Estado de Direito. Este Direito é o Direito racional, o “Direito bom”, porque a lei que limitou o Estado surgiu justamente pela expressão da maioria do povo, que não mais quis o Estado absolutista. Se o Direito surgiu para racionalizar a atuação do Estado, inclusive para limitá-lo, é óbvio que a lei deve ser racional, e sempre pressupondo a ponderação dos valores da sociedade, daí porque o Estado de Direito não pode ser assim considerado quando o Direito não lhe impõe limites:em um Direito onde a atuação estatal não é toda limitada pela lei, de Estado de Direito não se trata. Isto quer dizer, em suma, que se um Estado é baseado em leis, mas leis que, ao invés de limitar e regular a atividade estatal, acabam incentivando arbitrariedades e afastando limites para a ação estatal, não estaremos diante do Estado de Direito. A concepção correta de Estado de Direito, então, passa necessariamente por um Direito razoável, que limite a atuação estatal. Esta observação é importante porque o Estado de Direito, inicialmente, tinha uma concepção formal, para considerar tal Estado apenas aquele que tem suas funções determinadas e limitadas pela lei, sem considerar o conteúdo de tal lei. Neste sentido, nada mais fácil que utilizar o Estado de Direito para legitimar regimes totalitários, como ocorreu com o Nazismo e com o Fascismo. Em um momento posterior da história, a concepção substancial é que passou a estar em voga, porque Estado de Direito foi qualificado com a democracia, passando a ser Estado de Direito Democrático, justamente pela preocupação com o conteúdo das leis, que não poderiam alijar a participação da sociedade e deveria ser exatamente a expressão da soberania popular, inclusive para salvaguardar os direitos e garantias individuais e limitar o poder pela divisão das suas funções.

Não por outro motivo é que hoje se almeja a tão citada “Terceira Via”, que seria um socialismo democrático. “Terceira via” porque o socialismo surgiu não-democrático, e é, de fato, uma difícil tarefa esta de compatibilizar o espírito do socialismo e os benefícios da democracia, justamente porque aquele se caracteriza pela apropriação dos meios de produção pela comunidade e extinção da propriedade privada, o que é algo difícil na democracia. De todo modo, parece ser a intenção da Constituição de 1988, que é eclética por tentar conciliar os valores do liberalismo (liberdade individual e econômica, igualdade, livre concorrência, desenvolvimento) com os valores do socialismo (função social da propriedade, redução das desigualdades, valor social do trabalho, promoção do bem de todos, pleno emprego). Estado Democrático, por sua vez, pressupõe “governo do povo, para o povo e pelo povo” (Abraham Lincoln). Democracia, no conceito de José Afonso da Silva, não é um valor-fim, mas meio, um verdadeiro instrumento de realização dos valores essenciais de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. É um processo porque demonstra a historicidade da democracia e também porque demonstra um modo de vida em que se pressupõe o respeito e a tolerância com as ideias divergentes. É um verdadeiro regime de garantia geral para garantia dos direitos fundamentais do homem. Daí ser possível chegar à conclusão de que não há pressupostos para a democracia, como saúde, educação, nível de cultura, desenvolvimento etc., porque se trata de objetivos, já que ela pressupõe uma luta incessante para alcançá-los. Deste modo, é preciso rechaçar o “elitismo democrático”, que inclusive sustentou teoricamente o constitucionalismo do regime militar (doutrina da segurança nacional), segundo a qual as elites têm a tarefa de promover o bem comum mediante um processo de interação com o povo, para identificar seus anseios. Estado Democrático também não pode servir de instrumento para a ditadura da maioria. Fosse isto possível, as minorias estariam massacradas, daí porque a garantia dos direitos e garantias individuais, e o pluralismo, possibilita afastar a arbitrariedade da maioria.

Quais os princípios básicos da democracia?

Muitos entendem que são os princípios da maioria, da igualdade e da liberdade. José Afonso da Silva prefere dizer que são os princípios da soberania popular (todo o poder emana do povo) e o da participação direta ou indireta do povo no poder. Para JAS, igualdade e liberdade seriam valores democráticos.

Que tipo de Democracia a Constituição de 1988 adota?

A Constituição de 1988 adota a democracia semidireta, que é a democracia indireta temperada com institutos da democracia direta. A CF/88 optou pelo regime de representação democrática, porém com institutos de decisão pelo próprio povo2.

Esta opção está bastante clara no parágrafo único do art. 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A soberania popular, portanto, é exercita tanto pelos representantes eleitos pelo povo (democracia indireta, ou representativa), quanto pelo próprio povo, de forma direta (democracia direta).

A democracia indireta, ou representativa, é uma realidade imposta por necessidade, porque o povo, não podendo dirigir diretamente os negócios do Estado diretamente, em face da extensão territorial, da densidade demográfica e da complexidade dos problemas sociais, outorga as funções de governo aos seus representantes, que elege periodicamente (na CF/88, arts. 14/17).

A democracia direta é adotada quando o povo participa diretamente nos negócios do Estado e nas funções de governo, porque não há eleição de representes para que decidam em seu nome. No caso, o próprio povo é que decide diretamente, sem intermediações.

2 Pode-se dizer que a Constituição de 1988 “misturou” a democracia indireta com a democracia direta, e esta

mistura faz surgir a democracia semidireta. Porém, há uma clara precedência da democracia indireta, não no sentido de que é mais importante, mas no sentido de que é a mais utilizada.

Importante, portanto, conhecer quais os casos em que a Constituição de 1988 adotou a democracia direta. Os três casos clássicos estão previstos no art. 14: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular”.

Sempre que há um plebiscito, um referendo e uma iniciativa popular de leis, o povo não elege ninguém para decidir. Nestes casos, o próprio povo decide (a soberania popular é exercida pelo próprio povo).

Entretanto, existem outros casos em que a Constituição de 1988 adota institutos próprios da democracia direta. Eis alguns exemplos:

Ação popular (art. 5º, LXXII)

Participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação(art. 10, “caput”)

Eleição de representante dos empregados nas empresas com mais de 200 empregados, com a finalidade exclusiva de promover o entendimento direto com os empregadores (art. 11, “caput”)

Obrigatoriedade de colocar as contas dos Municípios, durante 60 dias do ano, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, para, se for o caso, questionar a legitimidade, nos termos da lei (art. 31, § 3º)

Legitimidade de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato para, na forma da lei, denunciar junto ao TCU, irregularidades ou ilegalidades na gestão orçamentária, financeira e patrimonial dos órgãos e entidades da Administração Federal (incluídos todos os órgãos do Executivo, Judiciário e Legislativo) (art. 74, § 2º)

Caráter democrático e descentralizado da administração da seguridade social, mediante gestão quadripartite- participação dos trabalhadores, empregados, aposentados e do Governo (art. 194, parágrafo único, VII). Outro instituto de democracia direta seria a legitimidade do cidadão para iniciar

processo de impeachment contra o Chefe do Executivo. Alguns acreditam que, em face destes institutos, haveria uma outra forma de

democracia, que seria a “democracia participativa”, vez que, nestes casos, o povo não decide diretamente, mas apenas participa mais ativamente dos negócios do Estado. Na verdade, estes institutos qualificam ainda mais a democracia indireta, consagrando a democracia semidireta.

Existe ou pode vir a existir o “Recall” no Direito Constitucional brasileiro?

Outro instituto básico da democracia direta é o “Recall”. Recall quer dizer “chamar de volta”, ou “chamamento”, e significa a solicitação que o

fabricante faz para que um lote ou uma linha de produtos seja devolvido, em face da descoberta de problemas relativos à segurança do produto – muito comum na indústria automobilística. Está regulado pelo art. 10 e seus parágrafos, da Lei 8.078/90.

No Direito Constitucional, é um direito político do eleitor que lhe confere o poder de revogar os mandatos concedidos aos ocupantes de cargos públicos, geralmente seus representantes parlamentares, isto é, a capacidade política dos cidadãos de retirar o mandato concedido aos parlamentares, caso percam a confiança nos mesmos – geralmente por comportamentos antiéticos ou por notória incompetência. É, sem dúvida, um instituto da democracia direta.

O Recall foi muito popular em países do bloco soviético, após a 1ª Guerra Mundial, como ocorre na então União Soviética, ainda hoje presente nas constituições de Cuba (1976) e da Venezuela (1999), e utilizado pelos estados norte-americanos, como Colorado, Nova Iorque, Virgínia, Oregon, Califórnia etc. No Brasil, logo após o nascimento dos estados brasileiros (criação da Federação

pela Constituição de 1891), chegou a ser previsto nas constituições de Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A Constituição de 1988 não previu o instituto do Recall. O legislador constituinte claramente fez a opção por não prever tal instituto entre os institutos básicos da democracia direta (art. 14: plebiscito, referendum e iniciativa popular). Então, é correto dizer que esta opção causou um silêncio eloquente, proibindo que o legislador infraconstitucional o crie. Nada impede, entretanto, que o poder constituinte reformador venha a prevê-lo, após aprovação de emenda constitucional neste sentido.

O Recall pode ter natureza constitucional, quando é previsto pela Constituição; pode ter natureza infraconstitucional, quando a Constituição não o prevê e não o proíbe expressa ou implicitamente, permitindo que o legislador infraconstitucional venha a criá-lo (o que não é o caso do Brasil).

e) Características dos princípios constitucionais

Mais importante que saber quais são os princípios constitucionais, é saber as suas características. Se determinado princípio tiver tais características, provavelmente será ele de índole constitucional. O princípio constitucional tem as seguintes características:

Proeminência, já que está acima das regras e demais normas infraconstitucionais (hierarquia superior).

Fecundidade, porque seu espírito e sua mensagem se impregnam e se irradiam para todo o sistema normativo.

Generalidade. Apesar do inevitável caráter vinculativo, o princípio constitucional não desce ao problema concreto e individual para resolvê-lo; sua intenção é ter aplicação genérica para toda a sociedade e para o Estado (quando desce ao problema para resolvê-lo, é chamado de norma-princípio).

Vinculação, tendo-se em vista que os princípios de ordem constitucional vinculam todo o ordenamento jurídico nacional.

f) Funções dos princípios constitucionais

A doutrina costuma enfatizar as funções dos princípios constitucionais.

Função construtiva, ou normogenética: todo o sistema positivo deve ser criado com base nos critérios apontados nos princípios constitucionais (os princípios são fundamentos para as regras)3.

Função interpretativa: o princípio constitucional é quem dá a diretriz valorativa para o intérprete fazer uso da hermenêutica. É costume dizer que, se a norma não for expressa e clara, a dúvida deve ser resolvida pela solução mais próxima do princípio constitucional correspondente. Esta função possibilita a interpretação conforme a Constituição.

Função integrativa: o princípio constitucional completa o direito positivo onde há lacuna. Apesar de o princípio constitucional ter a característica da generalidade, algumas vezes ele pode vir a ser utilizado para resolver algum conflito que o direito positivo não resolve. Estaremos diante de uma norma-princípio. É preciso lembrar que o princípio constitucional serve para locupletar brechas no direito positivo infraconstitucional, já que não há possibilidade de utilização de analogia para preencher brechas da própria Constituição.

Função sistêmica:a reunião de todos os princípios constitucionais acaba revelando uma lógica constitucional, um sentido, um valor. É dizer: o mais atendo observador logo perceberá que os

3 Veja, a respeito, “eficácia construtiva das normas constitucionais”, no capítulo sobre Interpretação e Aplicação da

Constituição.

princípios constitucionais dão lógica e sentido ao emaranhado de leis e valores existentes no ordenamento jurídico.

Função limitativa: se princípio constitucional possui a função de dar diretriz ao legislador, forjando a criação de um ordenamento jurídico dentro do seu valor, evidentemente que acaba por impor uma limitação ao legislador, e até aos particulares, ao proibir as condutas contrárias a este mesmo valor.

Princípio constitucional pode ser implícito por decorrência de interpretação de normas infraconstitucionais?

O princípio constitucional pode ser implícito, como ocorre com o princípio da proporcionalidade, mas isso não quer dizer que ele possa surgir da interpretação de normas infraconstitucionais. Princípio constitucional só surge do texto constitucional.

Há princípios que surgem de normas infraconstitucionais, como é o caso do princípio do tantum devolutum quantum appellatum (art. 599 do CPP e art. 515 do CPC), e também que surgem de normas internacionais, como é o caso do princípio do duplo grau de jurisdição, inserido no Pacto de São José da Costa Rica, art. 8º, II, "h".

O princípio do duplo grau de jurisdição, muito embora esteja previsto no referido Pacto para a área penal, é bom alertar que o STF o considera como de natureza infraconstitucional, já que não está garantido na Constituição de 1988, tanto é verdade que esta mesma Constituição permite julgamento de Parlamentares federais diretamente pelo STF sem que possam recorrer a outra instância.

g) Diferenças entre princípio, norma e regra

O Direito se expressa por normas (“Direito é o conjunto de normas que regulam a vida em sociedade”), e as normas se expressam por regras e princípios. A intenção maior da regra e do princípio é impor uma norma. Pode-se dizer, então, que a norma é o gênero, e os princípios e as regras são as espécies. A regra se diferencia do princípio porque ela vale para determinadas situações mais concretas, e os princípios, para situações genéricas.

Por isso, diz-se que entre regras há conflito, conhecidocomo antinomia jurídica própria4. Esta antinomia jurídica própria, quando ocorre, é resolvida geralmente pela exclusão de uma das regras em face da revogação expressa ou tácita de uma delas. Para operar esta exclusão, são utilizados os critérios tradicionais: a) critério da especialidade: lei especial derroga a lei geral; b) critério cronológico: lei posterior afasta a anterior; c) critério hierárquico: lei superior derroga a inferior.

No caso dos princípios, há colisão, conhecida como antinomia jurídica imprópria. Neste caso, não há exclusão de um princípio pelo outro, porque a aplicação de um não quer dizer o afastamento definitivo do outro. A resolução desta antinomia imprópria se dá pela utilização da ponderação5, que é a verificação de qual princípio tem mais força no caso concreto. As soluções são diferentes para a antinomia própria e a imprópria porque a dimensão da regra está na sua validade (dimensão de validade para a regra), enquanto a dimensão do princípio está na sua importância, peso ou valor para o caso concreto (dimensão de valor para o princípio). Isto quer dizer que, quando há choque entre as regras, a solução passa pela análise da validade de uma regra e invalidade de outra; quando há choque de princípios, a solução não passa pela análise de validade de

4 Antinomia própria ocorre quando há conflito entre as regras e antinomia imprópria ocorre quando há colisão de

princípios. O termo antinomia deriva do grego anti (oposição) e nomos (norma), daí porque sempre foi aplicada dentro do contexto dos conflitos entre as leis que têm conteúdos contraditórios (o conteúdo de uma lei nega o conteúdo da outra), clamando, assim, a aplicação dos critérios tradicionais de resolução, para que uma das regras deixe de ter validade. Então, quando se resolve o choque de duas forças contrapostas pela manutenção da validade de ambas, como ocorre na colisão de princípios constitucionais, é porque, na verdade, não existe antinomia. Por isso, a doutrina chama de antinomia imprópria a colisão entre princípios constitucionais. 5 Ponderação, também chamado de princípio da concordância prática, decorre do princípio constitucional da

proporcionalidade, que por sua vez é a face material (ou substancial) do princípio do devido processo legal (art. 5º,LV, CF/88) (sua face formal ou processual é o princípio da ampla defesa e do contraditório).

um princípio e invalidade de outro, mas sim pela maior importância que um terá para resolver determinado caso concreto.

Nesse sentido, os critérios tradicionais para resolução das antinomias próprias (hierárquico,cronológico e da especialidade) existem para que uma das normas em conflito tenha ou não validade. Estes métodos são de menor importância para a resolução da antinomia jurídica imprópria, porque não se resolve esta antinomia pela retirada da validade de um dos princípios, mas sim pela intensificação do maior valor de um deles para o caso concreto, via ponderação. Ainda há autores que colocam o caráter “prima facie” do princípio, no sentido de que os possíveis conflitos entre eles só serão verificados em uma primeira e superficial impressão, porque na verdade eles não podem se conflitar. Assim, só mesmo “prima facie” existiriam os conflitos entre os princípios, porque, na verdade, entre princípios não há conflito, e sim colisão, em que um não anula o outro. A verdade é que um princípio tem mais intensidade no caso concreto, por isso é aplicado em face da ponderação dos valores envolvidos. No caso de regras, seu caráter é de “tudo ou nada”: havendo conflito, uma regra deverá anular a outra, seja em face da substituição pela de maior hierarquia, pela de maior atualidade ou de maior especialidade. Então, ou é “tudo”, quando uma regra é aplicada totalmente, ou é “nada”, quando então a sua validade não mais existirá. Outras diferenças entre regras e princípios: O princípio pode ser expresso ou não; a regra é sempre expressa. O princípio pode ser fundamento para o surgimento de uma regra, e da regra pode surgir um princípio. A regra diminui a intensidade e a possibilidade de maior interpretação por parte do seu aplicado. O princípio aumenta a intensidade hermenêutica, porque é geral. Como o princípio geralmente é construído com base em conceitos jurídicos indeterminados (moralidade, impessoalidade, proporcionalidade etc.), acaba permitindo que os juízes deles se utilizem para atuar mais positivamente (“ativismo judicial”). A regra, por ser mais objetiva, acaba limitando a atuação dos juízes perante os variados casos concretos, limitando sua atuação. Em resumo, as regras restringem a atuação dos juízes, fazendo com que eles apliquem cada vez mais o silogismo (ou subsunção), e os princípios permitem que os juízes não sejam apenas a “boca da lei”, porque oferecem inúmeras possibilidades de regular diferentemente os diferentes casos concretos, além de permitirem que os juízes ponderem as relações de poder (pós-positivismo)6. A regra regulamenta e incide em casos concretos, sendo mais específica. O princípio não regulamenta e nem incide em casos concretos, já que tem a característica da abstração e da generalidade7. Esta diferença existe porque a regra pretende regular casos homogêneos, e os princípios pretendem regular casos heterogêneos. Exemplo: as regras do Código Penal são próprias para casos homogêneos que permitem a intervenção do direito de punir do Estado, por isso os princípios constitucionais, via de regra, não servem para estes casos, já que servem para uma generalidade de casos (casos heterogêneos). Assim, a regra é mais objetiva e o princípio, mais subjetivo.

6 Sobre silogismo, casuísmo e pós-positivismo, veja em Neoconstitucionalismo, no capítulo sobre Direito

Constitucional e Constitucionalismo, e também no capítulo Interpretação e Aplicação da Constituição (“Superação do silogismo e do casuísmo”). 7 Entretanto, é importante não esquecer que determinados princípios constitucionais podem ser utilizados para

resolver diretamente os casos concretos. Estes princípios, então, descem ao caso concreto, regulamentando-o e resolvendo-o. São chamados de “normas princípios”, porque é um princípio de índole política porque tem um conceito jurídico indeterminado e permite, portanto, a extensão do seu significado para resolver várias questões concretas e acalentar as vontades populares. O princípio da dignidade humana, por exemplo, abarca uma grande variedade de casos concretos que, submetidos ao Judiciário ou à própria Administração Pública, devem ser resolvidos mesmo sem buscar uma lei aplicável à situação. O STF, no HC 98675 (Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 157, publicado em 21.08.2009), por exemplo, aplicou o princípio da dignidade humana para determinar a prisão preventiva domiciliar de determinado réu acometido de doença grave, mesmo sem previsão legal (o art. 117 da Lei n. 7.210/84 admite a prisão domiciliar, neste caso, apenas para o condenado), afastando inclusive a Súmula 691-STF (“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘Habeas Corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘Habeas Corpus’ requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar”).

O princípio irradia para todo o ordenamento jurídico, e a regra não (a regra não tem a característica da fecundidade). A regra geralmente é construída para se circunscrever em determinado subsistema, como é o caso do Direito Penal, do Direito Civil, muito embora existam situações em que acaba servindo para mais de um ramo do Direito. Alexy, com tradução do Prof. Almiro do Couto e Silva, afirma o seguinte:

“Ponto decisivo para a distinção entre regras e princípio é que os princípios são normas que

ordenam, tanto quanto possível, observadas as possibilidades jurídicas e fáticas, sejam realizadas na maior medida. Princípios são, pois, comandos de otimização, os quais se caracterizam por poderem ser atendidos em distintos graus e que a medida do seu preenchimento depende não apenas das possibilidades fáticas como também das possibilidades jurídicas. O âmbito das

possibilidades jurídicas é definido pela combinação de princípios e regras”.

Daí porque é comum dizer que os princípios são comandos de otimização, e as regras são comandos de definição, ou de submissão. É que os princípios não nascem para regular e definir situações concretas e homogêneas. Seria muito pouco para eles, que forcejam uma visão ampla dos seus tentáculos axiológicos, na medida em que deseja abarcar várias situações e otimizar seu valor para todo o sistema, nas suas mais variantes situações concretas. A regra, por sua vez, tenta definir uma conduta específica para determinada situação da vida, daí porque não tem a missão de se espraiar para todo o sistema, e este comando acaba buscando uma submissão da situação, do comportamento, e da própria atuação judicial, ao que está previsto, valorizando o silogismo (daí ser também denominado comando de submissão). Os princípios, repita-se, não nascem para regulamentar casos homogêneos, como nascem as regras. Eles nascem para serem otimizados na maior medida possível, mesmo que através de regras e até de outros princípios, sem esquecer que muitas vezes dependem de condições fáticas e jurídicas. É o caso do princípio da dignidade humana, que nasce para ser otimizado na maior medida possível, e que por vezes depende até de outros princípios (como é o caso do princípio da segurança jurídica, para proteger a viuva que recebe pensão concedida ilegalmente há mais de 15 anos, e que só dispõe desta quantia para sobreviver e pagar o tratamento de câncer, por exemplo), e até de condições materiais e econômicas (como é o caso das condições do Estado para recolher mendigos e dar aos mesmos comida e local para moradia). O mesmo se diga ao princípio constitucional do salário mínimo, que prevê o suprimento das necessidades básicas de moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, mas que precisa de possibilidades fáticas para se tornar realidade, mas que nem por isso nasce para ser restringido, porque sua intenção, como princípio, é se irradiar ao máximo. Isto explica boa parte das variações da doutrina, quando tentam retirar da categoria de princípios constitucionais, alguns princípios indicados no texto constitucional que se aplicam apenas para um ramo do Direito, como é o caso do princípio da irretroatividade da lei penal mais prejudicial, para o Direito Penal, ou o princípio da publicidade, para o Direito Administrativo, ou ainda o princípio da não-discriminação tributária, para o Direito Tributário, que não teriam a característica da fecundidade.

Quadro de diferenças entre princípios e regras

Princípio Regra

Para situações abstratas e genéricas Para situações concretas e específicas

Para casos heterogêneos Para casos homogêneos

Conflito caracteriza antinomia própria Colisão caracteriza antinomia imprópria

Conflito se resolve por critérios tradicionais

Colisão se resolve pela ponderação

Tem dimensão de valor Tem dimensão de validade

Característica “prima facie” Característica de “tudo ou nada”

Expresso ou implícito Somente expressa

Amplia possibilidades interpretativas Restringe possibilidades interpretativas

Amplia a atuação judicial (pós-positivismo) Restringe a atuação judicial (silogismo)

Irradia para todo o sistema (fecundidade) Feita para determinado subsistema

É um comando de otimização É um comando de definição

Diante de tantas diferenças entre regra e princípio, quais são as características comuns de tais normas?

Tanto a regra como o princípio podem ser formulados mediante expressões deontológicas básicas, seja pela ordem, pela permissão ou pela proibição. Tanto o princípio como a norma tratam do mundo do dever-ser. Ambos são normas, isto é, ambos são preceitos impositivos de conduta.

Quando um princípio entrar em conflito com uma regra, qual prevalecerá?

Na verdade, o conflito será meramente aparente, porque a regra deve expressar o sentido do princípio. Pode ocorrer da regra, que pretende regulamentar os casos concretos que estão sob a égide do princípio, fazer uma regulamentação imprópria, acabando por contrariar o espírito do princípio. Imagine-se que, a pretexto de regulamentar o princípio da dignidade, um capítulo inteiro do Código Civil é feito para tratar dos casos em que um cidadão não pode atentar contra a dignidade do outro. Nada impede que, dentre estas regras, exista alguma que acabe contrariando o princípio da dignidade, e até seja julgado inconstitucional. Aliás, quando em determinado caso concreto uma determinada regra deixa de ser aplicada, pelo fato de se entender que a sua aplicação colidirá com um princípio maior, ocorre uma interpretação ab-rogante imprópria – “imprópria” porque ab-rogação quer dizer revogar totalmente, isto é, retirar uma das normas do mundo jurídico, e o intérprete não tem este poder (pelo menos no julgamento do caso concreto, em controle difuso de constitucionalidade), daí porque se fala em ab-rogação imprópria, porque as normas continuam existindo.

O que é natureza normogenética dos princípios?

Os princípios são os fundamentos para as regras, isto é, são as normas que orientam e estão na base para que surjam as regras. Isto é lógico, a partir do momento em que os princípios são ideias gerais, abstratas, verdadeiros mandados de otimização para determinado setor ou para todo o conjunto de setores. Por isso, as regras servem para efetivar, na prática, nos casos concretos, o espírito geral do princípio.

O que é antinomia jurídica imprópria? Como se resolve?

É a colisão entre princípios. A mais comum colisão é aquela entre o princípio da liberdade religiosa – art. 5º, VI e VII – e o princípio da inviolabilidade do direito à vida – art. 5º, “caput”, quando o adepto à religião “Testemunha de Jeová” se nega a receber transfusão, mas os médicos atestam que sem a transfusão a pessoa morrerá. Esta colisão não se resolve pela retirada ou anulação de um dos princípios, e sim pela ponderação de interesses, que é um balanceamento do peso de cada princípio para saber qual terá aplicação ao caso concreto, havendo aí um juízo político de prudência diante da impossibilidade de manter a concordância prática ou harmonização dos dois princípios para o caso concreto. Esta concordância é sempre o ideal buscado, mas nem sempre é possível (a maioria da jurisprudência entende que, neste caso, tem incidência o princípio de maior peso, que é o princípio da inviolabilidade do direito à vida, mas há quem entenda que se a pessoa é maior e capaz, e está no seu juízo normal, não poderia ir contra a sua vontade, de modo que só poderia ser aplicada a transfusão se o paciente fosse menor de idade). Também é o caso, muito comum, da colisão entre o princípio da liberdade de expressão ou de informação (art. 5º, IX), com o princípio da intimidade e da privacidade (art. 5º, X), quando há intenção jornalística - ou consumação -, de revelar algo, de interesse público, que possa ferir a inviolabilidade íntima de alguém.

Vale frisar que, originalmente, a palavra “antinomia” era utilizada apenas para caracterizar o conflito entre regras, daí porque foram criados os critérios temporal (lei posterior revoga lei anterior), hierárquico (lei superior revoga lei inferior) e especial (lei especial revoga lei geral) justamente para acabar com as antinomias legais, e afastar uma regra de aplicação ao caso concreto. Entretanto, boa parte da doutrina utiliza antinomia imprópria (ou antinomia aparente), justamente para diferenciar da antinomia original (própria), e tentar demonstrar a especialidade e a importância quando o embate de normas se dá entre princípios, e não entre regras.

A Súmula Vinculante é regra ou princípio?

É regra. Ela é, na verdade, a condenação se várias interpretações que já foram feitas com base nos próprios princípios e valores constitucionais. O STF, então, faz esta condenação com base nas reiteradas decisões sobre matéria constitucional, justamente para ter por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas que já provocaram controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública.

Em relação à força cogente, qual a fase histórica em que vivemos a respeito da força cogente dos princípios?

É a fase do pós-positivismo, que prega a força normativa dos princípios constitucionais. É preciso dizer que a Constituição é nitidamente política, feita pelo povo e não por

juristas. Muitos utilizam desta politização para defender a tese de que os princípios constitucionais possuem caráter meramente político, com muitas disposições sem juridicidade e sem força cogente, já que elas exprimem valores éticos e morais.Esta ideia, entretanto, não é correta e nem atual, porque o legislador constituinte não iria elaborar disposições ociosas, até porque estava investido na maior força política e jurídica, e, assim, aproveitou o ensejo tão importante para colocar na Constituição dispositivos que devem necessariamente influenciar a sociedade e todos os poderes constituídos. Hoje, portanto, estamos na terceira8 fase histórica, a fase do pós-positivismo, que enfatiza o caráter jurídico e normativo dos princípios gerais de direito, afastando o silogismo/subsunção, mas também não chegando a adotar o casuísmo (tenta encontrar um meio termo, com aplicação da ponderação).

h) Norma-princípio.

Como se viu, a norma-princípio é identificada pela doutrina quando um princípio, que nasceu para irradiar por todo o sistema, já que sua característica é de fecundidade, acaba sendo utilizado para resolver algum caso concreto, diante da inexistência de regra específica para aquele caso. Por isso é que se diz que a norma-princípio na verdade é um princípio político fundamental, uma vez que não nasce apenas e tão somente de forma abstrata, como o princípio clássico que não têm nenhuma atividade concretista. Na verdade, a norma se revela por princípios e regras, e quando um princípio nasce, acaba sendo fundamental porque se aproxima das regras no sentido de delimitar padrões de condutas para todo o ordenamento jurídico. Sempre que o Judiciário utiliza-se de um princípio constitucional para julgar um caso concreto, sem dúvida que há utilização de uma “norma princípio”. Entretanto, há casos em que apenas o princípio constitucional é utilizado para resolver um casos concreto, diante da inexistência de regras legais ou até diante da superação delas, o que intensifica este princípio como “norma princípio”. Isto ocorreu, por exemplo, no HC 98675 (Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJe 157, publicado em 21.08.2009), citado na nota de rodapé n. 22 desta apostila: o STF concedeu a prisão preventiva domiciliar para o acusado que sofria com doença em estado avançado, mesmo sem previsão legal (a previsão de prisão domiciliar só existe para cumprimento de sentença – LEP, art. 117).

8 A primeira fase, denominada jusnaturalista, entendia que os princípios eram abstratos, com valor ético-

valorativo, sem normatividade. A segunda fase histórica, denominada positivista, reconhecia que os princípios apenas informavam o direito positivo e que por isto deveriam estar nos códigos, o que não deixou de ser um avanço. Porém, sozinhos não tinham normatividade.

i) Princípios estabelecidos, extensíveis e sensíveis

Estabelecidos, ou enumerados, são aqueles princípios destinados basicamente ao Poder Público e ao constituinte estadual, que reside fundamentalmente na autonomia dos entes federativos e estabelecem uma vedação ou limitação ao Poder Público, regendo suas atividades. Por exemplo: os arts. 37 a 41 da CF/88 estabelecem princípio e regras a serem seguidos por todo ente federativo (organização dos Estados, Municípios, DF e União); o art. 19 estabelece limitações vedatórias para todos os entes federativos, no que tange aos cultos religiosos, fé aos documentos públicos e distinção entre brasileiros, do mesmo modo no art. 150 (limitações tributárias); o art. 30 estabelece limitações mandatórias aos Municípios; o sistema federativo (art. 60, §4º, I) impõe a autonomia aos Estados Federados; os princípios gerais da atividade econômica (arts. 170 e ss.) estabelecem uma série de finalidades e limitações. Os princípios extensíveis são aqueles existentes primordialmente para os órgãos federais que servem de paradigma/espelho para os órgãos estaduais e municipais (art. 1o, I a IV – fundamentos; art. 3o, objetivos; 93 – Lei Complementar da magistratura, tanto em nível federal quanto em nível estadual; 95 – prerrogativas para juízes federais e também para os estaduais). Os sensíveis são aqueles que, desrespeitados, excepciona a autonomia dos entes federados, base do sistema federativo, possibilitando a intervenção federal nos estados, e a estadual nos municípios (arts. 34 e 36). São tão sensíveis porque, se feridos, prejudicam o Pacto Federativo. Quanto mais existem os princípios extensíveis e estabelecidos, maior será a limitação à autonomia dos entes da Federação. É dizer: quanto mais existirem princípios que servirem de paradigma para os Municípios, o DF e os Estados, mais estes entes deverão seguir o padrão simétrico apresentado, o que inevitavelmente significa uma diminuição das suas liberdades. O mesmo se diga com as vedações estabelecidas pela CF/88: evidente que quanto maior as vedações, menor será a liberdade do poder constituinte decorrente.

j) Princípios e direitos fundamentais

Cabe alertar que nem todo princípio é direito fundamental, e nem todo direito fundamental é princípio, e, mais, que nem todo direito fundamental é princípio. O fato de tanto o princípio como o direito fundamental serem considerado, como de fato são, valores importantes e até estruturantes, pode levar o menos avisado a considerar a relação entre princípio e direito fundamental como uma relação recíproca e inseparável, o que não é verdade. A Constituição de 1988, especialmente no Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), cria uma separação entre eles. Por isso, os direitos fundamentais podem ser tanto efetivados por princípios, como é o caso do princípio da liberdade e da igualdade, que atingem todo o sistema e têm a característica fundamental da fecundidade, como também por regras, como é o caso da regra da irretroatividade da lei penal e da anterioridade tributária, aplicados especificamente para o Direito Penal e para o Direito Tributário. Da mesma forma, há princípios que não são direitos fundamentais, como é o caso do princípio da livre-iniciativa. Daí porque Luís Roberto Barroso afirma: “Note-se que há direitos fundamentais que assumem a forma de princípios (liberdade, igualdade) e outros a de regra (irretroatividade da lei penal, anterioridade tributária). Ademais, há princípios que não são direitos fundamentais (livre iniciativa)”

Capítulo VI INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

a) Considerações gerais

Canotilho afirma que “interpretar uma norma constitucional é atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos, normativo-

constitucionalmente fundados”. Celso Bastos, com maestria, enfatizou:

“A interpretação é antes de mais nada uma atividade criadora. Em toda a interpretação existe portanto uma criação de direito. Trata-se de um processo no qual entra a vontade humana, onde o intérprete procura determinar o conteúdo exato de palavras e imputar um significado à norma. Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se sempre necessária por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais. A atividade interpretativa busca sobretudo reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto em face de determinado caso. Pode-se afirmar, ainda, que a interpretação é uma atividade destinada a expor o significado de uma expressão, mas pode ser também o resultado de tal atividade. O intérprete ao realizar a sua função deve sempre iniciá-la pelos princípios constitucionais, é dizer, deve-se partir do princípio maior que rege a matéria em questão, voltando-se em seguida para o mais genérico, depois o mais específico, até encontrar-se a regra concreta que vai orientar a

espécie”. A interpretação das normas constitucionais, entretanto, exige métodos especiais,

porque diferentemente da lei que é cheia de regras, a Constituição é cheia de princípios, conceitos jurídicos indeterminados, caracterizada por normas abertas, além de ser a responsável por dar diretriz à sociedade e ao Estado. Além do mais, a Constituição não é feita por juristas, daí porque não cabe apenas ao Judiciário interpretá-la, sendo até uma base para o Direito Constitucional Contemporâneo: todos os órgãos estatais podem exercer, dentro de sua competência, o papel de intérpretes constitucionais.

Há quem destaca que o objeto da interpretação são apenas os objetos culturais, já que todo bem cultural tem uma significação que comporta valores, daí ser necessária uma integração do homem com o bem interpretado, ao contrário dos fenômenos da natureza, regidos pela lei da causalidade, sem conteúdo valorativo. Não se interpreta, assim, os objetos da natureza, e sim os objetos culturais. Vale ressaltar que hermenêutica é uma ciência, com contém regras ordenadas que fixam os critérios e os princípios norteadores da interpretação, que não se esgota na interpretação jurídica. Mas a interpretação jurídica, fulcrada em critérios básicos para regras, evidentemente que deve ser revista quando o objeto cultural é a Constituição, que é a condenação dos valores mais caros de toda uma nação, com hierarquia em relação a todas as outras normas.

Afinal, por que a interpretação da Constituição deve superar os métodos tradicionais de interpretação da lei?

Porque a norma constitucional tem a característica marcante da singularidade, e esta singularidade existe em função de quatro motivos básicos:

A Constituição é superior hierarquicamente às normas que, para serem interpretadas, as são pelos métodos tradicionais;

É o estatuto jurídico fundamental e político da sociedade (a Constituição dá início ao ordenamento jurídico, validando e unificando axiologicamente todo o sistema e criando um novo Estado);

Tem normas abertas (as normas constitucionais têm caráter amplo e genérico, para abarcar várias situações, daí sua plasticidade e a abertura horizontal de suas normas, com conceitos

jurídicos indeterminados, sem necessidade, portanto, de reforma formal do seu texto, bastando amutação constitucional, por exemplo);

É farta em princípios (geralmente, a Constituição é principiológica, e não preceitual, prevalecendo a presença de princípios, e não de regras). Samantha Meyer-Pflug9 dentre tantos, revela que a interpretação constitucional é específica porque as normas constitucionais têm:

a) singularidade(afinal, estão acima das outras normas); b)caráter aberto (plasticidade); c) inicialidade fundante(inaugura a nova ordem jurídica); d) linguagem constitucional (esta linguagem é diferente porque tem um caráter

sintético, isto é, faz a síntese dos maiores valores da sociedade, daí a presença de termos polissêmicos e conceitos indeterminados) Não poderia ser diferente, então, a necessidade de fórmulas novas de interpretação, razão porque hoje está em voga o pós-positivismo interpretativo, que é na verdade uma “designação provisória e genérica de um ideário difuso”, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética (meio-termo entre o jusnaturalismo e o positivismo – vide anteriormente, em “Neoconstitucionalismo”). O intérprete da Constituição deve, portanto, buscar uma solução justa para o caso concreto, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico e sempre na ponderação entre os princípios. A mesma Samanta Meyer-Pflug (opus citado), relembra o escólio de Celso Bastos sobre os pressupostos hermenêutico-constitucionais, que serviram para orientar o intérprete da norma constitucional e limitar sua subjetividade, dando maior segurança jurídica e objetividade no processo de interpretação, porque este processo teria que passar, antes, pelos referidos pressupostos. Para o mestre, quais seriam os pressupostos hermenêutico-constitucionais? Seriam três: a) postulados constitucionais; b) instrumentos hermenêuticos; e c) princípios constitucionais. Os postulados são os princípios interpretativos, que comandam prévia e necessariamente a atividade hermenêutica, verdadeiras condições para se iniciar esta atividade. Os instrumentos são fórmulas, procedimentos elaborados pelo Direito para disciplinar a interpretação, verdadeiros recursos para a exegese, que não estão expressas. Os princípios constitucionais são metas, diretrizes, que orientam o processo de interpretação para a direção a ser seguida, porque não é possível interpretar uma regra para contrariar um princípio. Os postulados constitucionais, na visão de Celso Bastos, seriam os princípios de interpretação, à frente analisados (unidade da Constituição, efeito integrador, máxima efetividade, conformidade funcional, harmonização e força normativa da Constituição).

Qual a diferença entre interpretação, aplicação, integração e construção constitucional?

A interpretação é o ato de busca do significado abstrato da norma. É a tentativa de esclarecer o verdadeiro alcance de uma norma.

A aplicação é a aplicação da norma ao caso concreto, evidentemente depois de interpretá-la e ter ciência de qual sua extensão.

A integração, no âmbito constitucional, é o ato normativo que busca preencher a lacuna constitucional, quando a Constituição não chegou a tratar suficientemente de determinado tema. Geralmente, afirma-se que não há o princípio da reserva constitucional, porque tudo que não for tratado pela Constituição, pode ser tratado pela legislador infraconstitucional, que, ao regulamentá-la, vai preenchendo os espaços normativos vazios. Entretanto, existem algumas situações em que não há como o legislador infraconstitucional atuar na integração constitucional, em especial no caso de silêncio eloquente10. Para aqueles que entendem que a integração constitucional é o trabalho de preenchimento

9 Das especificidades da interpretação constitucional, in Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista

Celso Bastos, Saraiva, 2005, André Ramos Tavares et alii, pp. 49 e ss. 10

Sobre silêncio eloquente, vide tópico específico no capítulo Nova Constituição e Direito Anterior.

dos espaços normativos constitucionais por outras normas constitucionais, e não por normas infraconstitucionais, seria impossível em pensar em tal integração porque, quando surge uma nova Constituição, não há mais normas constitucionais senão aquelas surgidas pelo novo Poder Constituinte Originária, sendo impossível falar em analogia porque não teria como haver lacuna constitucional oculta11 para ser integrada pela aplicação de normas constitucionais anteriores, até porque não se aceita a tese da desconstitucionalização12.

A construção constitucional, por outro lado, ocorre quando se cria um novo instituto ou um novo contorno normativo em face da atuação jurisprudencial dos Tribunais. É dizer: a aplicação das normas pelo Judiciário acaba sendo de tal forma especial que acaba criando um instituto ou dando mais contornos normativos sobre determinado tema, em uma atividade mais ativa. Enquanto na interpretação o intérprete se atém ao conteúdo intrínseco da norma, na construção o aplicador explora a capacidade extrínseca dela, para construir algo que ela mesma desejou, mas esperou que naturalmente o Judiciário o revelasse. Isto ocorreu, por exemplo, no caso Marbury x Madison, de 1803, onde a Suprema Corte dos Estados Unidos acabou criando o controle difuso de constitucionalidade, mesmo que tal controle não tivesse sido previsto pela Constituição de 1787. No Brasil, a aplicação do art. 72, §22, da CF/1891, acabou criando a doutrina brasileira do “habeas corpus”: este remédio constitucional foi utilizado não só para proteger a liberdade de locomoção, mas também para proteger o cidadão contra qualquer abuso de autoridade estatal. Esta situação acabou forçando a criação do novo instituto do mandado de segurança na Constituição de 1934, vez que, para barrar a utilização do “habeas corpus” com tamanha ampliação, a Constituição de 1891 foi reformada em 1926 para que o remédio servisse apenas para os casos de ferimento ao direito de ir e vir. Atualmente, o STF acabou por criar a regra da fidelidade partidária, inclusive para declarar a perda do mandato de parlamentares infiéis ao seu Partido. Então, considerando que o mandato é do Partido e não do parlamentar, o STF acabou criando nova fórmula normativa não prevista expressamente na Constituição de 1988. As atuais Súmulas Vinculantes, em especial algumas como a SV13, que proíbe o nepotismo, também expressam esta forma de construir constitucionalmente outros institutos e contornos normativos13.

11

Diz-se que há uma lacuna descoberta quando o constituinte, ao criar o texto constitucional, estava consciente da necessidade de regulamentar determinado assunto, mas preferiu intencionalmente não fazê-lo, deixando que o legislador ordinário integrasse o espaço vazio do texto. A lacuna oculta, por outro lado, ocorreria quando o constituinte, ao criar o texto constitucional, não estava consciente da necessidade de regular determinado assunto porque não poderia prever a sua necessidade (só em momento posterior o assunto ganhou força para a sociedade ou para o Estado). Na lacuna oculta, portanto, a cavidade normativa do texto constitucional é provocada involuntariamente, e na lacuna descoberta, é provocada voluntariamente porque é totalmente desconexo pensar uma Constituição prevendo todas as regras para todos os temas. 12

Sobre a tese da desconstitucionalização, vide tópico próprio no capítulo Nova Constituição e Direito Anterior. 13

Não é incomum falar em construção constitucional por obra da mutação constitucional (sobre mutação, vide tópico próprio no capítulo Interpretação e Aplicação da Constituição). Entretanto, é preciso ter cuidado, porque muitas vezes a mutação constitucional é mera atividade interpretativa inovadora, que não chega a ser uma atividade construtiva. Por exemplo: mudar o sentido da palavra “casa” do art. 5º, inciso XI, para englobar também os escritórios e salas comerciais, quando em outra época assim não era considerada, é simplesmente mudar a interpretação, isto é, mudar o esclarecimento que foi feito anteriormente a respeito da extensão da norma constitucional. A construção é um passo além da interpretação, porque ela não ocorre apenas quando o significado do termo constitucional é revelado, mas sim quando a revelação do significado e a aplicação acabam inovando no arcabouço normativo ou nos limites dos comportamentos estatais e humanos a ponto de ser revelado um desígnio constitucional específico, uma inovação (daí “construção” pelos Tribunais). Quando o STF passou a criar uma série de limites para as CPI´s, por exemplo, pode-se dizer que ficou mais próximo de construir um novo arcabouço normativo que não estava na Constituição, inclusive com vários adendos normativos que complementaram o instituto da CPI (criou-se verdadeiro arcabouço limitativo às CPI´s que não estava e não está na Constituição, porque esta não se preocupou em criar uma seção ou subseção para tratar destes limites). Assim, muito embora tenha revelado o real significado do §3º do art. 58 da CF/88, foi além para complementá-lo com os limites que ali não estavam e ainda não estão previstos. Muitos inclusive acreditam que a construção constitucional é algo ainda mais ativo e inovador que isto.

Efeito negativo e positivo da interpretação

Hoje também se concretiza o efeito negativo, no sentido de que não é contrário à Constituição apenas as normas infraconstitucionais, porque a contrariedade pode ser também de atos, situações e circunstâncias, vedando-se o retrocesso, como também o efeito positivo, que é uma técnica que procura encontrar quem deveria ser o beneficiário da norma.

Predominância do método finalístico

Cabe dizer que na interpretação da Constituição predomina o método finalístico, que visa extrair do texto a aplicação que mais se coadune com a eficácia social da lei constitucional.

Interpretação constitucional também para normas infraconstitucionais

Da mesma forma, mostra-se correto afirmar que a interpretação constitucional refere-se tanto à interpretação do Texto Constitucional, à vista dos seus princípios e de suas regras, como também à interpretação dos atos normativos infraconstitucionais em relação ao referido Texto, que pode passar pelo controle de constitucionalidade.

Superação dos métodos tradicionais de interpretação

Relembre-se que o neoconstitucionalismo ultrapassa os métodos tradicionais, criados por Savigny para a interpretação da lei (gramatical, histórico, sistemática e teleológica), assim como os critérios hierárquico (lei superior prevalece sobre lei inferior), temporal (lei posterior prevalece sobre lei anterior) e especial (lei especial prevalece sobre lei geral). Evidentemente que estes métodos tradicionais ainda são válidos e aplicáveis para a interpretação das normas constitucionais. Porém, eles, sozinhos, não são mais capazes de resolver a infinidade de problemas resultantes da aplicação das normas constitucionais, daí porque se exige outra sensibilidade interpretativa. A consequência óbvia é a criação de outros métodos interpretativos, aplicados pelo intérprete da norma constitucional (vide métodos e princípios, a seguir).

Um motivo básico, por exemplo, que força uma nova fórmula hermenêutica, é a existência da antinomia jurídica imprópria (colisão entre princípios e direitos fundamentais), que exige a técnica interpretativa da ponderação (o intérprete deve proceder a concessões recíprocas entre as normas, para mantê-las vivas e operantes, fazendo prevalecer uma delas, que tenha “maior valor para o caso concreto”, realizando mais adequadamente a vontade constitucional), assim como a técnica interpretativa da argumentação (quando o conflito for difícil de se resolver, deve dar vazão a uma razão prática, isto é, deve sempre prever as consequências da decisão e a possibilidade de utilizar um fundamento jurídico que possa ser utilizado genérica e universalmente para os casos similares).

Interpretação originalista e não originalista

É comum falar em interpretação originalista e interpretação não-originalista, que, de uma forma simples, pode ser comparada com a interpretação histórica (“mens legislatoris”) e com a interpretação teleológica (“mens legis”).

Os originalistas entendem que a interpretação precisa passar, inevitavelmente, pela intenção dos legisladores constituintes, e pelo momento histórico que permeou a edição da lei constitucional. A intenção é, a bem da verdade, evitar que os intérpretes manipulem a Constituição de acordo com as nuanças econômicas e políticas, e também diminuir o subjetivismo e opoder dos juízes (deseja evitar “ditadura dos juízes”). Já os não-originalistas entendem que não é possível alcançar um sentido absoluto na emissão da Constituição, uma vez que o mundo muda, e a manutenção da intenção original criaria engessamento, injustiça e, aí sim, criaria uma ditadura dos legisladores, que, conscientes de que não podem regular o futuro, congela-o em impressões ultrapassadas e condena as gerações futuras. Assim, a intenção da lei não pode ser confundida com a intenção do legislador: a lei tem vida própria e deve estar aberta ao contato interpretativo que as mudanças da vida oferecem. A tese, ou o método não-originalista, é o que está em voga. Pode-se afirmar que a interpretação originalista se confunde ou se aproxima com a interpretação histórica, com a subsunção e com a tese do legislador racional. Neste caso (legislador

racional), o intérprete deveria levar em consideração que o legislador foi racional e sensato ao construir o ordenamento jurídico, estando neste ordenamento todo o aparato necessário para resolver os problemas. O intérprete acaba supervalorizando a figura do legislador, como se ele fosse incapaz de cometer deslizes ao construir as normas (o legislador seria singular, imperecível, único, consciente, finalista, onisciente, justo, onipotente, coerente, onicompreensivo, econômico, preciso e operativo, praticamente um ser imaginário que o juiz teria acesso às suas vontades).

Teoria concretista

Hoje em dia é muito discutida e citada a teoria concretista de Friedrich Müller, ou teoria estruturante do Direito. Várias doutrinas, em especial na Alemanha, apareceram para romper com as formas, métodos e princípios tradicionais de interpretação, visando satisfazer as prementes necessidades da sociedade e do novo tempo, além de organizar o processo de interpretação e adequá-lo à realidade, especialmente após a Segunda Guerra Mundial e o que denominou chamar de neoconstitucionalismo. Dentre outros tantos autores – Theodor Viehweg, Robert Alexy, Konrad Hesse e WinfriedHassemer -, dois deles merecem destaques: Friedrich Müller e Peter Häberle. Muller e Häberle visavam superar os métodos tradicionais, assim como superar o estreitamento da interpretação na luta entre a subsunção e o casuísmo, especialmente pela superação da subsunção. Cada um com seus aspectos, mas, sem dúvida, os dois buscando talvez um fim comum. Não existe, de fato, um só autor responsável pela teoria concretista da Constituição, porque ela é construída a partir de várias ideias, até como sincretismo (reunião de várias ideias mais ou menos com o mesmo fim – ecletismo). Porém, Friedrich Muller foi o grande nome que se destacou, ao escrever especificamente sobre o assunto (“Concretização da Constituição”), onde insistia em destacar o “âmbito da norma”, composta pelas diferentes funções concretizadoras, como a sociedade, o governo, a Administração Pública, a jurisprudência etc., e o “programa normativo”, que era resultado da interpretação integral e racional de todos os elementos da norma, para conseguir concretizar a Constituição, sempre se preocupando com o distanciamento da Constituição com a realidade constitucional que ela deveria englobar. Também pode ser citado outro grande nome: Konrad Hesse. Häberle, apesar de não tratar especificamente sobre a concretização da Constituição, trata de forma indireta, ao difundir a ideia de Constituição aberta à interpretação de toda a sociedade, sempre dentro dos padrões éticos da realidade (veja a seguir). A teoria concretista de Muller enfoca que o legislador produz apenas o texto, sendo ele incompleto, já que a norma é produzida, concretizada, por meio da interpretação e aplicação aos casos concretos. Assim, o resultado da interpretação e da aplicação é o verdadeiro conteúdo da Constituição, para regular a relação entre o texto e a realidade. A norma tem uma estrutura (o que está escrito é o texto; o que é aplicado e concretizado na realidade, é o seu verdadeiro conteúdo, o seu domínio), e sua utilização concretiza o Direito, sempre atento à realidade social. Segundo Muller, "o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo”. Somente devidamente interpretado que é transforma-se em programa normativo, em domínio normativo. O legislador produz o texto; o intérprete, com seu trabalho, a aplica de determinada forma e acaba produzindo a norma. Por outro lado, Häberle enfatiza que, se a Constituição foi criada pelo povo e destinada para o povo, este mesmo povo deve participar do processo de interpretação da Constituição. Desta, então, o caráter eminentemente social das constituições, ressaltando os direitos e garantias fundamentais. Para ele, é fundamental que, na interpretação da Constituição, seja alargado o círculo de intérpretes da Constituição, para ser um processo aberto e público, sempre atenta ao contexto social em que está inserida. A Constituição, segundo Häberle, está aberta para a interpretação da sociedade pluralista, enfim, para todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo legítimo estabelecer apenas alguns poucos privilegiados para interpretar a Constituição. A sociedade dos intérpretes, portanto, é aberta, e não fechada. A Constituição está aberta à interpretação de todos (daí a referência à “Constituição Aberta”), e cabe às Cortes Constitucionais controlar a participação dos diferentes grupos na interpretação da Constituição.

Assim, se é possível definir, pode-se dizer que a teoria concretista é uma forma de superar os modelos tradicionais de interpretação, afastando as correntes formalistas e o normativismo de Kelsen, para ser uma forma moderna e material de interpretar a Constituição, baseado na tópica, fazendo com que suas normas verdadeiramente concretizassem o direito na sociedade com base em parâmetros democráticos de participação na interpretação, e sempre atento ao contexto social circundante, já que o legislador produz apenas o texto, sendo a norma o que realmente é . A teoria concretista parece ser bem aceita no Brasil, em especial as ideia de Häberle, até porque está previsto legalmente o “amicuscuriae” e as audiências públicas no processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade (parágrafo 1º do artigo 9º da Lei 9868/99). O Supremo Tribunal Federal demonstrou, recentemente, uma grande recepção para as várias correntes de ideias da sociedade a respeito da Constituição,quando do julgamento da ADI 3510, proposta contra o art. 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança (Lei nº 11105/05), onde foi questionada a permissão legal para utilização de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias, uma vez que o Min. Carlos Ayres Brito possibilitou a realização da primeira audiência pública naquele Tribunal, no dia 25.04.2007, com 22 exposições de diferentes correntes, organizações e instituições, levando o referido Ministro a enfatizar: “a audiência pública, além de subsidiar os ministros deste STF, também possibilitará uma maior participação da sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário da Corte”. Após a realização da audiência pública, o Ministro enfatizou que a participação de todos era um exercício da democracia direta.

Substituição do silogismo e do casuísmo

Importante destacar que a limitação da interpretação constitucional entre a subsunção (ou silogismo) e o casuísmo não mais satisfaz e deve ser superada.

A subsunção entende que a norma geral constitui-se de uma premissa maior, e o caso concreto nela se integra e por ela era resolvida automaticamente, porque é a premissa menor. Um exemplo clássico de silogismo é o seguinte: “Todo homem é mortal (premissa maior). Sócrates é homem (premissa menor). Logo, Sócrates é mortal (conclusão)”. O silogismo, então, dá mais segurança jurídica para todos, porque todos sabem quais as consequências dos seus atos, na medida em que é perfeitamente possível medir qual será a decisão, limitando sensivelmente a atuação judicial. O risco é que o julgamento do caso concreto poderia resultar em injustiça, lembrando que todos os regimes ditatoriais, inclusive o Nazismo e o Fascismo, tiveram vigência com supedâneo na lei. Daí o risco do engessamento ideológico pela lei, que pode, então, criar injustiças pela técnica da subsunção, visto que, neste caso, não se considera as peculiaridades do caso concreto. Nesse sentido, é importante transcrever a ementa do seguinte julgamento realizado pelo STF, que afasta a aplicação da subsunção:

”AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.619/00, DO ESTADO DA BAHIA, QUE CRIOU O

MUNICÍPIO DE LUÍS EDUARDO MAGALHÃES. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI ESTADUAL POSTERIOR À EC 15/96. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR FEDERAL PREVISTA NO TEXTO CONSTITUCIONAL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 18, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. OMISSÃO DO PODER LEGISLATIVO. EXISTÊNCIA DE FATO. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA DA JURÍDICA. SITUAÇÃO DE EXCEÇÃO, ESTADO DE EXCEÇÃO. A EXCEÇÃO NÃO SE SUBTRAI À NORMA, MAS ESTA, SUSPENDENDO-SE, DÁ LUGAR À EXCEÇÃO --- APENAS ASSIM ELA SE CONSTITUI COMO REGRA, MANTENDO-SE EM RELAÇÃO COM A

EXCEÇÃO. 1. O Município foi efetivamente criado e assumiu existência de fato, há mais de seis

anos, como ente federativo. 2. Existência de fato do Município, decorrente da decisão política que importou na sua instalação como ente federativo dotado de autonomia. Situação excepcional consolidada, de caráter institucional, político. Hipótese que consubstancia reconhecimento e acolhimento da força normativa dos fatos. 3. Esta Corte não pode limitar-se à prática de mero exercício de subsunção. A situação de exceção, situação consolidada --- embora ainda não jurídica --- não pode ser desconsiderada. 4. A exceção resulta de omissão do Poder Legislativo, visto que o impedimento de criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, desde a promulgação da Emenda Constitucional n. 15, em 12 de setembro de 1.996, deve-se à ausência de lei complementar federal. 5. Omissão do Congresso Nacional que

inviabiliza o que a Constituição autoriza: a criação de Município. A não edição da lei complementar dentro de um prazo razoável consubstancia autêntica violação da ordem constitucional. 6. A criação do Município de Luís Eduardo Magalhães importa, tal como se deu, uma situação excepcional não prevista pelo direito positivo. 7. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade. Não é a exceção que se subtrai à norma, mas a norma que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. 8. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Não se afasta do ordenamento, ao fazê-lo, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. 9. Cumpre verificar o que menos compromete a força normativa futura da Constituição e sua função de estabilização. No aparente conflito de inconstitucionalidades impor-se-ia o reconhecimento da existência válida do Município, a fim de que se afaste a agressão à federação. 10. O princípio da segurança jurídica prospera em benefício da preservação do Município. 11. Princípio da continuidade do Estado. 12. Julgamento no qual foi considerada a decisão desta Corte no MI n. 725, quando determinado que o Congresso Nacional, no prazo de dezoito meses, ao editar a lei complementar federal referida no § 4º do artigo 18 da Constituição do Brasil, considere, reconhecendo-a, a existência consolidada do Município de Luís Eduardo Magalhães. Declaração de inconstitucionalidade da lei estadual sem pronúncia de sua nulidade 13. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade, mas não pronunciar a nulidade pelo prazo de 24 meses, da Lei n. 7.619, de 30 de março de 2000, do Estado da Bahia”(STF, ADI 2240/BA, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJ 03-08-2007 PP-00029. No mesmo sentido: ADI 3489/SC)

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O casuísmo, pelo contrário, parte do princípio de que a norma geral não produz a decisão, e muitas vezes nem sequer fixa os parâmetros de atuação do intérprete, pois serve apenas de justificativa posterior para a escolha feita anteriormente à sua análise. No casuísmo, deve-se buscar uma solução justa, para depois encontrar uma explicação normativa. O casuísmo, então, oferece mais possibilidade de se praticar a justiça e se adequar a norma aos fatos e à realidade social, mas, em contraponto, também oferece mais risco de se criar insegurança e subjetividade, na medida em que o Legislativo perde parte da sua força normativa de regular as condutas, e o Judiciário absorve esta parte que, dentro de um sistema de tripartição do Poder, deveria ficar com o Poder representante do povo. O casuísmo, por assim dizer, rompe com o sistema clássico de se criar um Poder para fazer as leis e regular normativamente as condutas dos homens, e outro para apenas “dizer o direito”, sem poder adequá-lo sob a batuta do seu ponto de vista.

Normas onomásticas

No tema da interpretação constitucional, necessário enfatizar que existem autores que indicam a existência denormas onomásticas, que seriam normas que servem de interpretação para as outras normas. Um princípio constitucional, por exemplo, que tem a função interpretativa, seria, via de regra, uma norma onomástica, em virtude de ser um instrumento de orientação para a interpretação de todo o ordenamento jurídico, até porque, como disse Celso Bastos, o intérprete deve iniciar seu trabalho pelos princípios constitucionais.

Atividade interpretativa torna o Direito Constitucional operativo

Ainda em sede de considerações gerais, cabe enfatizar que a atividade interpretativa torna o Direito Constitucional operativo, isto porque opera e influencia todo o sistema normativo nacional. Como vimos, uma das funções dos princípios constitucionais é a função construtiva, na medida em que o ordenamento jurídico é baseado no espírito da Constituição, e se este espírito é posto a

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A lei complementar federal de que trata do art. 18, parágrafo 4º, da CF/88, ainda não foi publicada, mas, para “salvar” os Municípios que foram criados depois da EC 15/96 (portanto, sem que houvesse lei complementar federal autorizando a criação em determinado período), a EC 57, de 18.12.2008 inseriu o art. 96 ao ADCT, com a seguinte redação: “Ficam convalidados os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de Municípios, cuja lei tenha sido publicada até 31 de dezembro de 2006, atendidos os requisitos estabelecidos na legislação do respectivo Estado à época da sua criação”.

descoberto após a interpretação do alcance dos seus princípios, nada mais lógico imaginar que a interpretação acabará sendo algo operante, no sentido de que influenciará e produzirá efeito em todoo ordenamento jurídico.

b) Métodos e princípios

Não é unânime, na doutrina, a diferenciação entre “métodos e princípios” de interpretação. De todo modo, esta divisão não significa que existe hierarquia entre eles, pois todos os princípios e todos os métodos devem ser levados em conta para se interpretar uma Constituição. O resultado da interpretação constitucional depende, portanto, de uma prévia análise dos métodos e dos princípios. Evidentemente, então, que a conclusão da interpretação constitucional é fato posterior à utilização dos métodos e princípios, e não anterior.Utiliza-se os métodos e os princípios para se chegar à conclusão, sendo vedado chegar à ela inicialmente e só depois buscar os métodos e princípios para ratificá-la. A inversão deste diagrama interpretativo – obrigatoriedade da aplicação dos métodos e princípios antes de chegar à conclusão -, é algo ilegítimo, próprio daquele se utiliza da interpretação constitucional para revelar sua arbitrariedade e provocar insegurança. No tema interpretação e aplicação da Constituição, há divisão entre métodos de interpretação, princípios de aplicação e princípios de interpretação, sendo eles:

Métodos de interpretação: jurídico, tópico-problemático, hermenêutico-concretizado, científico-espiritual e normativo-estruturante. Estes métodos estão ainda sendo desenvolvidos, não havendo unanimidade quanto à sua aplicação e ainda quanto às suas identificações e diferenciações.

Princípios de aplicação: princípio da supremacia, da presunção da constitucionalidade das leis, da interpretação conforme a Constituição e da simetria constitucional

Princípios de interpretação: princípio da unidade da Constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da concordância prática, da relatividade e da conformidade funcional. Considerados “postulados” pelo Professor Celso Bastos

Muitos não fazem a diferenciação entre princípios de aplicação e princípios de interpretação, englobando-os, todos, nestes últimos, até porque, quando o intérprete é chamado a interpretar a Constituição, deve levar em conta todos os princípios, sejam eles de aplicação ou de interpretação. Até em provas de concursos, ao se exigir quais os princípios, geralmente se faz referência a todos os princípios, inclusive aqueles denominados de coloquialidadee interpretação intrínseca, a seguir analisados.

Métodos de interpretação

Estes métodos foram desenvolvidos por Canotilho: a interpretação da Constituição, mesmo considerando a sua complementaridade, tem que ser feita por um conjunto de métodos diferentes, sempre com base em premissas e critérios também diferentes.

Método jurídico Este métodoentende que a Constituição é antes de tudo uma lei, daí porque devem ser

utilizadas as regras tradicionais de interpretação, quais sejam: sistemática, histórica, gramatical, teleológica;

Método tópico problemático Pretende que a interpretação parta da compreensão do problema que venha a ser

enfrentado, para analisar todos os prós e contra da interpretação, para enfim decidir qual caminho a ser perseguido (“pensar o problema” - Theodor Wiehweg, Josef Esser). O ponto de partida é compreender o

problema (problema porque necessita de uma interpretação), imaginando os problemas dele decorrente, e o ponto de apoio é o juízo de conveniência para se decidir para este ou aquele caminho. Todos os meios interpretativos são válidos, desde que esclareçam e solucionem o problema, daí porque a norma e o sistema perdem o primado.

Método hermenêutico concretizador

Este método diz que não se pode buscar a interpretação de uma norma porque se imagina que ela vai causar problemas; é preciso esperar quais os problemas concretos que vão surgir para então concretizar a solução (Konrad Hesse). Seus elementos básicos são a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar – pressupõe a pré-compreensão do conteúdo da norma a concretizar e a compreensão do problema concreto a resolver, não existindo, porém, primazia do problema sobre a norma. Valem as observações acima, a respeito da teoria concretista;

Método científico espiritual Não há interpretação constitucional correta sem levar em consideração todo o conjunto

da Constituição. É conhecido também como sociológico ou valorativo porque faz pressupor que o intérprete leve em consideração todos os valores insertos na Constituição, e também o momento histórico que a sociedade está vivendo (só assim será possível conhecer o espírito da Constituição);

Método normativo estruturante A norma é indissociável da realidade, daí porque a interpretação nada mais é que uma

etapa da concretização da Constituição. Para interpretá-la, o intérprete deve levar em consideração, portanto, tanto o programa normativo traçado pela Constituição (a norma em si) quanto o domínio normativo (realidade social que o legislador constituinte quis englobar pela norma constitucional) (o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo que, após interpretado, transforma-se no programa normativo -Friedrich Muller). Ainda se fala em um outro método, que seria o método da comparação constitucional, utilizando-se do Direito Constitucional Comparado. Seria a utilização da comparação dos diversos regimes constitucionais, para a boa compreensão do moderno Estado constitucional e dos institutos constitucionais. É bem verdade que não seria um método novo, ou um critério autônomo e bem definido de interpretação, até porque este “método comparativo” foi proposto por Peter Häberle como quinto método, para acrescentar aos quatro métodos tradicionais (gramatical, lógico, histórico e sistemático). De todo modo, fica a lembrança.

MÉTODO TÓPICO DE INTERPRETAÇÃO

Importante frisar que por vezes é citado o método tópico de interpretação constitucional, que pode ser considerado o próprio método tópico-problemático acima referido. Na verdade, este método é a base para a construção de todos os modernos métodos, estando incluso no movimento de pós-positivismo, que visou superar os métodos tradicionais. O método tópico é muito antigo, revelado ainda por Aristóteles (texto “Tópica”), que seria uma técnica de pensar por problemas e pela dialética. Os “topoi” seriam “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião e que podem conduzir a verdade”. Antes da Segunda Grande Guerra, não havia preocupação acentuada com a interpretação, que se baseava em critérios e métodos tradicionais, mas que depois dela, diante da crise do positivismo, em especial pela queda e pelas consequências do nazismo e do fascismo (lembrando que as ditaduras foram baseadas na lei, assim como tais regimes radicais), a tópica ressurgiu para dar vazão aos novos desejos do povo e dos Estados soberanos, para que a interpretação passasse a ser mais abrangedora da realidade, com elementos mais lógicos. O método tópico, então, é a busca racionalizada de premissas aceitas universalmente, com base em problemas concretos apresentados por cada caso.

Para o Direito Constitucional, Canotilho é enfático, ao aproximar este método da teoria concretista de Müller e da teoria da sociedade aberta de Häberle: o método tópico de interpretação constitucional parte das seguintes premissas: a) caráter prático da interpretação constitucional, para que sejam resolvidos os problemas concretos; b) caráter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; c) preferência pela discussão do problema em virtude da abertura das normas constitucionais, que não permitem apenas o processo de subsunção. De todo modo, este método tem seu ponto de partidas as chamadas aporias constitucionais, isto é, os problemas concretos da vida real de ordem constitucional. Paulo Bonavides (O método tópico de interpretação constitucional, em Lições de Direito Constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos, Ed. Saraiva, 2005, pp. 01 e ss), destaca ensinamentos importantes sobre tal método, ao enfatizar que “pensar o problema” constitui seu âmago, até para afastar a ideia de que o argumento dedutivo seria o único que geraria a certeza racional. O método tópico não se utiliza, então, da dedução, porque a solução deveria ser buscada em cada caso, que seria pensado com um problema em toda a sua complexidade factual. Se utiliza, então, da volição (instrumento volitivo, ao invés do instrumento dedutivo). As normas e os outros sistemas e métodos de interpretação seriam os “topoi” ou “loci”, que representavam apenas “pontos de vista pragmáticos de justiça material”, simples pontos de partidas retóricos e instrumentos auxiliares para que o intérprete os utilizasse para solucionar os problemas concretos (os “topoi” não poderiam, eles mesmos, solucionar os problemas, mas apenas dar um ponto de vista para que o aplicador deles se utilizasse para encontrar a melhor solução, de modo que não é a norma que resolve os problemas, mas apenas dá dicas, sugestões para que seu aplicador resolva, diante de cada caso). Deste modo, o método tópico, apesar de ser uma reação ao positivismo, não é uma concepção antipositivista, justamente porque é uma abertura para todas as concepções do pensamento jurídico-filosófico, desde que aplicado para cada caso. A importância deste método é grande porque as Constituições absorvem para si as contradições e os conflitos das sociedades heterogêneas e pluralistas, e suas estabilidades ficam comprometidas se houver a obrigatoriedade de utilização dos métodos clássicos, que não permitem a aplicação de regras interpretativas mais maleáveis à vista das realidades constitucionais. As críticas ao método tópico são, em geral, estas: a) ele não tem método, e gera insegurança; b) dá super poderes aos juízes, em detrimento dos legisladores, legítimos representantes do povo, ao contrário daqueles; c)inverte ou afeta o espírito da tripartição dos poderes, porque dá ao Judiciário o poder de estabelecer normas de conduta para cada caso concreto; d) o raciocínio tópico menospreza a congruência e a unidade da ordem jurídica, porque enfatiza apenas o caso concreto, como se fosse um sistema isolado do ordenamento. Não há dúvida de que o método tópico é o método que abriu um leque para a interpretação, que antes era restringida, limitada demais para ser, sequer, considerada como importante. Foi através do método tópico que novas teses, novas teorias, e até este novos métodos de interpretação constitucional, surgiram, fazendo da interpretação um tema importantíssimo, que envolve questões ideológicas, técnicas, políticas e sociais, merecendo, portanto, especial destaque na conjuntura doutrinária constitucional. O método tópico, então, abriu as portas para o que hoje conhecemos como “ativismo jurídico”, que é a maior liberdade do juiz para interpretar a lei de acordo com a realidade social, dando ao Judiciário um importante papel que antes era-lhe negado. Afastou, definitivamente, a visão tradicional, feita por Montesquieu na obra “O Espírito das Leis”, de que o juiz era apenas a “boca-da-lei”: só podia fazer o silogismo de encontrar o fato, encontrar a lei aplicável a este fato e, então, aplicar a lei, sem qualquer outra liberdade, o que fazia do Judiciário um poder quase nulo.

Princípios de aplicação

Princípios de aplicação são postulados normativos de aplicação, e acabam sendo vistos como princípios em função de serem normas gerais (“metanormas”) que orientam na difícil tarefa de interpretar uma Constituição.

São assim divididos:

Princípio da supremacia A Constituição é superior juridicamente a todas as outras normas, de modo que nenhuma delas será válida de for incompatível com a Constituição. Deste modo, é preciso que haja sempre uma interpretação prospectiva/progressiva (as normas infraconstitucionais devem se adequar às normas constitucionais), relegando a interpretação regressiva (a Constituição teria que se adaptar às normas infraconstitucionais).

Princípio da presunção da constitucionalidade das Leis

As leis são constitucionais até que se prove em contrário – até que o Judiciário disponha em contrário. Dois fatores servem para ratificar esta presunção: 01)Controle preventivo de constitucionalidade (antes de serem promulgadas, as leis passam pelo crivo do controle preventivo de constitucionalidade, tanto do Legislativo - Comissão de Constituição e Justiça - quanto do Executivo - o veto pressupõe a análise da constitucionalidade, além da análise do interesse público – art. 66, §1º, CF/88); 02)Reserva de plenário(“fullbench” dos norte-americanos) (o art. 97 da CF diz que somente pela maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Assim, a CF reservou um quorum no Plenário de cada Tribunal, para declarar inconstitucional uma lei, e, assim, estabeleceu que a inconstitucionalidade é exceção). Esta presunção acaba influenciando na interpretação, porque o intérprete tem que considerar uma lei constitucional se houver dúvida a respeito da sua inconstitucionalidade, e por isso força outro princípio de aplicação, que é a interpretação conforme a Constituição.

Princípio da interpretação conforme a Constituição.

Este princípio tem por missão manter no ordenamento jurídico uma lei que “beira” a inconstitucionalidade. Muitas vezes, as leis têm vários significados, a depender da sua leitura e do contexto em que é inserida (caráter polissêmico ou plurissignificativo das leis), de modo que se for lida de determinado modo, será inconstitucional, e se lida de outro modo, será constitucional. Este último modo de leitura é possível porque a lei é presumidamente constitucional (vide à frente, no tópico de controle de constitucionalidade). É um princípio hermenêutico, situado no âmbito do controle de constitucionalidade.

Princípio da simetria constitucional.

Simetria quer dizer correspondência e harmonia de uma parte com o centro. Este princípio é isto mesmo: é a necessária correspondência e harmonia das Constituições estaduais e Leis Orgânicas Municipais com a Constituição Federal (o Poder Constituinte Decorrente deve corresponder ao paradigma traçado pelo Poder Constituinte Originário). É um princípio implícito, decorrente da interpretação do art. 25 e do art. 29 da CF/88. O paradigma é tão evidente que algumas normas inseridas pela CF deverão ser automaticamente repetidas pelas CE´s e LOM´s, como é o caso das normas relativas ao processo legislativo federal (arts. 59-69) e as hipóteses de intervenção estadual nos Municípios (art. 35) (normas de repetição obrigatória). Esta simetria é necessária porque a Constituição Federal é a expressão do Poder Constituinte Originário, que enlaça e dá o espírito para todo o ordenamento jurídico, de modo que é natural que a Constituição do Estado, e as Leis Orgânicas dos Municípios, se espelhem nas normas constitucionais federais. Importante frisar que a doutrina entende que as normas constitucionais federais que devem necessariamente estar presentes nas constituições estaduais, são chamadas de normas de repetição obrigatória, como vimos, mas aqueles que não precisam ser repetidas, porque são apenas modelos que servem apenas como inspiração, ou sugestão, são chamadas de normas de imitação, e por

isso são normas de reprodução facultativa. No caso de normas de imitação da Constituição Federal, elas não incidiriam na ordem jurídica local do Estado-membro, porque são apenas sugestões para o constituinte estadual decorrente reproduzir. Já no caso das normas de repetição obrigatórias, incidem diretamente na ordem jurídica local, mesmo que não estejam previstas nas constituições estaduais (vide Raul Machado Horta, A Autonomia do Estado-Membro no Direito Constitucional Brasileiro, Bhte., 1964, pág. 193, citado pelo então Ministro Moreira Alves na Reclamação 383). Correto, assim, afirmar que o controle de constitucionalidade de normas constitucionais locais se dá por referência às normas constitucionais federais de repetição obrigatória, e não por referência às normas constitucionais federais de imitação. Se o legislador constituinte estadual não precisa repetir a fórmula apresentada pelas normas de imitação, não há como declarar a inconstitucionalidade de normas constitucionais estaduais por não respeitarem a sugestão do constituinte federal; se inconstitucionalidade houver, haverá por ferimento às normas de repetição obrigatória que, frise-se, não obrigam a repetição apenas do texto, mas do espírito nelas encampado.

Princípios de interpretação (postulados)

Princípio da unidade da Constituição. Considerando o entendimento de que entre as normas constitucionais não há hierarquia (nem mesmo as cláusulas pétreas são superiores às demais normas constitucionais), esta realidade força o intérprete a harmonizar todas as tensões e contradições que porventura venham a surgir. Dá aos princípios constitucionais a dimensão de valor, e não de validade, com nas regras. Os valores da Constituição, então, formam uma unidade, de modo que não é possível levar em consideração um dispositivo isolado dela. O intérprete, então, tem sempre que tentar afastar eventuais contradições, antinomias e antagonismos entre as normas da mesma Constituição.

Princípio do efeito integrador. Também expõe a necessária unidade da Constituição, porém destacando que ela é um elemento de integração com a comunidade. Deste modo, na resolução dos problemas pela interpretação, deve-se dar prevalência aos sentidos que integrem política e socialmente a Constituição com a sua finalidade principal, que é reger o bem estar da sociedade.

Para bem entender este efeito, basta lembrar que, sempre que uma Constituição garante o pluralismo político, e, portanto, incentiva uma sociedade plural, há risco de surgirem intolerância, já que todas as posições e pontos de vista são aflorados, porque todos passam a defender suas ideias, seus valores, e isto serve para criar associações protetoras e institutos, forçando a organização da sociedade civil. Assim, é comum que em uma sociedade plural ocorra pontos de vista contrários que, se não houver algo que os une, é provável que ocorra intolerância e chegue mesmo ao extremo da violência física, moral e até a guerra civil, seja por questões políticas, religiosas, filosóficas ou quejando. Por isso, é preciso algo que integre todos os pontos de vista, que faça com que todos se aceitem com tolerância; enfim, que, dentro da sociedade pluralista, existe um ponto de apoio comum, que incentive a integração.

O cineasta e dramaturgo americano David Mamet, mesmo sem querer, resumiu o efeito

integrador: "Alguns estudiosos dizem que nunca, desde a Guerra Civil (1861-1865), o país esteve tão dividido quanto está sob o presente governo. O senhor concorda? De certa forma, sim. Nestes últimos anos os Estados Unidos se tornaram extraordinariamente polarizados. Mas temos muito em comum que nos une. A começar pela Constituição, que deixa grande latitude para as diferenças e a instabilidade. Ela assume que essas são constantes na vida dos indivíduos e de uma nação. Por isso é um documento tão perene: por ser tão humano - ou por conhecer tão bem o que é humano" (David Mamet, Revista Veja,edição 2066, ano 41, n. 25, 25.06.2008, p. 193, reportagem "Esquerda, Adeus")

O ponto de apoio, o ponto em comum de todas as visões divergentes, é a Constituição, que deve servir de efeito integrador da sociedade, forçando o intérprete a buscar soluções que, ao contrário de causar ainda mais distanciamento e intolerância entre os pontos de vista, os une cada vez mais para algo aceitável universalmente. A responsabilidade na aplicação da Constituição, está

justamente nisto: encontrar uma aplicação que, diante de um conflito ou divergência que pode se acentuar perigosamente, utilizar a plasticidade do texto constitucional para integrar os pontos divergentes.

Princípio da máxima efetividade Princípio da máxima efetividade - ou da eficiência ou da interpretação efetiva ou da força normativa – impõe uma interpretação da Constituição que resulte a maior efetividade de suas normas. Em cada caso, a Constituição será interpretada para ser expandida ao máximo sua intenção original, dando a ela força normativa, daí porque requer duas garantias para que o texto normativo constitucional seja realmente aplicado: ADI por Omissão e mandado de injunção. O princípio faz um apelo ao aplicador da Constituição, para que procure dar imperatividade aos seus preceitos (força normativa). Alguns, entretanto, separam o princípio da máxima efetividade e o princípio da força normativa. Para eles, a máxima efetividade procura expandir os efeitos da norma constitucional, e a força normativa visa ratificar sua imperatividade.

Princípio da concordância prática Este princípio, também chamado princípio da harmonização, determina que, havendo discordância entre as normas constitucionais para proteção de dois bens constitucionais, o caso deverá ser resolvido sem a exclusão de nenhum bem constitucional. O primordial é interpretar e fazer com que os bens constitucionais estejam em concordância, reduzindo o alcance de um e ampliando o do outro. Isto ocorre porque, diferentemente dos conflitos da lei, onde há presença de regras e que se resolve pelos critérios tradicionais – critério hierárquico (lei superior revoga lei inferior); critério da especialidade (lei especial revoga lei geral); critério cronológico (lei posterior revoga lei anterior), a Constituição é cheia de princípios e de direitos fundamentais, onde há uma natural colisão de valores (intimidade e privacidade com a necessidade de informação e liberdade de imprensa; liberdade religiosa e direito à vida; direito de utilização da propriedade e direito ao sossego e a intimidade do vizinho; direito de acesso ao Judiciário e direito ao contraditório e à ampla defesa). Deste modo, os critérios que resolvem os conflitos de regras, apesar de continuarem tendo aplicação na interpretação da Constituição, são ineficientes para resolver as colisões dos valores constitucionais. Assim, para que ocorra a concordância prática, é preciso utilizar os critérios da ponderação e da argumentação. A ponderação é o juízo sobre os valores constitucionais em conflito, para se saber qual deles terá aplicação no caso concreto, e qual terá sua aplicação momentaneamente afastada. A argumentação ocorreria para situações de difícil solução, para que uma razão prática tenha validade no caso concreto, com previsão das consequências e mediante fundamento jurídico que possa ser utilizado genérica e universalmente para os casos similares.

Princípio da relatividade O princípio da relatividade, ou da convivência das liberdades públicas, é baseado em algo natural na vida do homem e da humanidade, que é a relativização. Se aprópria vida é relativa, e se o Direito deve ser construído com base na realidade social, a conclusão é a de que todo direito, até o constitucional, é relativo. O intérprete, então, deve lembrar sempre que nenhum direito inserto na Constituição é absoluto, porque eles são sempre limitados por outros direitos também constitucionais. Não por outro motivo, o STF consagrou: “Inexistem garantias e direitos absolutos. As razões de relevante interesse público ou as exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades permitem, ainda que excepcionalmente, a restrição de prerrogativas individuais ou coletivas. Não há, portanto, violação do princípio da supremacia do interesse público” (RE-AgR 455283/RR, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJ 05.05.2006, p. 39). Nesse mesmo sentido: “O sigilo bancário, espécie de direito à privacidade protegido pela Constituição de 1988, não é absoluto, pois deve ceder diante dos interesses público, social e da Justiça.

Assim, deve ceder também na forma e com observância de procedimento legal e com respeito ao princípio

da razoabilidade” (AI-AgR 655298/SP, Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, DJ 28-09-2007). Assim, apesar de boa parte da doutrina entender que o inciso XI do art. 5º da CF/88 (“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins

de investigação criminal ou instrução processual penal”), cria um sigilo absoluto para as correspondências, para as comunicações telegráficas e para os dados, já que a expressão “no último caso” só se refere às comunicações telefônicas – daí porque seria impossível quebrar os sigilos das correspondências, das comunicações telegráficas e dos dados, nem por ordem judicial nem por lei -, esta interpretação fere o princípio da relatividade, que impõe que toda interpretação não pode ocasionar situações ou direitos absolutos. Não por outro motivo que o STF, consentâneo com tal princípio, possibilitou a quebra do sigilo bancário, que é uma espécie do gênero sigilo de dados, que engloba inclusive o segredo profissional. No MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, o STF volta a relativizar tais sigilos, inclusive para retirá-los da reserva de jurisdição (reserva que impõe que só o Judiciário poderá quebrar certas garantias, como a busca domiciliar, art. 5º, XI, a interceptação telefônica, art. 5º, XII, e a decretação de prisão, salvo flagrante delito (art. 5º, LXI), de modo que, nestes casos, nem mesmo a CPI poderá quebrar).

Princípio da conformidade funcional. Este princípio, também conhecido como princípio da justeza, enfatiza que na concretização da Constituição, não podem os órgãos encarregados pela interpretação dela chegarem a um resultado diferente da organização funcional imposta no texto constitucional. É dizer: se a Constituição estabelece competências para cada órgão, a interpretação dela não pode gerar a invasão de competências e nem a omissão por aparente falta de função para tanto. Daí porque parte da doutrina entende que se trata mais de uma definição de competência do que propriamente de um princípio. A conformidade funcional destaca, então, que nenhum poder político – Executivo, Judiciário ou Legislativo – pode praticar atos em desacordo com as normas e princípios constitucionais – as normas se ajustam para os três Poderes, daí o nome “justeza”.

Outros princípios (da coloquialidade e da interpretação intrínseca)

Existem doutrinadores que ainda citam dois outros princípios que se aplicam no trabalho de interpretar a Constituição: princípio da coloquialidadee princípio da interpretação intrínseca. O princípio da coloquialidade enfoca que, na interpretação da Constituição, o intérprete deve ter em mente que os termos utilizados pelo legislador constituinte não são termos técnicos e nem termos jurídicos; são termos coloquiais, utilizados pelo povo, até porque o titular do Poder Constituinte é ninguém mais que o próprio povo. O princípio da interpretação intrínseca defende que, na interpretação da Constituição, o intérprete não deve buscar outros sentidos e valores que estejam fora da Constituição. Se ela é uma unidade, suas normas devem se complementar, e o sentido de uma norma constitucional deve ser buscado na análise de todos os outros princípios e regras que estão na mesma Constituição. Poderia ser dito, em um esforço de imaginação, que este princípio forçaria a existência de “constituições autopoiéticas”, porque a Constituição seria um sistema autônomo, autossuficiente e independente, que se fecharia em si mesma sem necessidade de buscar complemento em outros sistemas15.

Este princípio da interpretação intrínseca acaba por reforçar que na interpretação da Constituição, é a lei que deve se adequar à Constituição, e nunca a Constituição à lei, excluindo do mundo jurídico a chamada “interpretação da Constituição conforme a lei”. A verdade é que, de fato, não existe interpretação da Constituição conforme a lei; existe sim interpretação da lei conforme a Constituição, justamente porque não se interpreta a Constituição com os olhos voltados para a lei, e sim a lei com os olhos voltados para a Constituição (é a Constituição que deve forjar uma interpretação da

15

Vide nota no tópico “Sentido Jurídico de Constituição”, no capítulo Conceito e Sentidos de Constituição.

lei com base no seu espírito). Apesar disto, em um ou outro momento, a Constituição acaba sendo interpretada com base no que diz a lei, como se vê a seguir.

c) Interpretação da Constituição conforme a lei

No tema “Do controle de constitucionalidade”, há análise mais detalhada da “interpretação da lei conforme a Constituição”, para onde remetemos o leitor. Entretanto, faz-se necessária analisar a chamada “interpretação da Constituição conforme a lei”. O correto é existir uma interpretação da lei conforme a Constituição, é dizer, os sentidos da lei devem ser buscados no espírito da Constituição, porque, via de regra, não é possível buscar o sentido da Constituição com o auxílio da lei. A Constituição, por ser uma unidade, e ser a norma jurídica fundamental da sociedade e do Estado, estando acima de toda e qualquer norma do país, deve ter um sentido próprio, e suas expressões contêm valores e extensões que a própria Constituição, analisada sistematicamente, deve revelar. Seria até ilógico o esforço em buscar o sentido de uma norma mais importante pela análise da norma menos importante, até porque a legislação infraconstitucional tem como fundamento a legislação constitucional, daí porque esta surge no universo jurídico justamente para servir de parâmetro para todas as demais normas. Não por outro motivo, então, que a lei deve ser interpretada conforme a Constituição: se a lei tiver mais de um significado, o significado que deve prevalecer é aquele que está de acordo com o espírito constitucional, e não com o espírito das outras leis infraconstitucionais. O princípio da interpretação intrínseca (não se deve buscar o sentido da Constituição em outro ambiente que não a própria Constituição), além do princípio da unidade da ordem jurídica (norma infraconstitucional deve se adaptar à Constituição) e da técnica da filtragem constitucional (toda legislação, especialmente a anterior ao texto constitucional, deve ser lida e compreendida sob a lente da Constituição), então, impedem que o significado dos termos constitucionais sejam buscados pela análise da legislação infraconstitucional. A “interpretação da Constituição conforme a lei”, portanto, é a inversão do sistema, e por isso muitos não acatam este tipo de interpretação, porque entendem que ela parte do pressuposto de que a lei está acima da Constituição, servindo de base para se encontrar o sentido das normas constitucionais. Porém, é preciso analisar a questão da “interpretação da Constituição conforme a lei” com cuidado e atenção, porque muitas vezes não há como encontrar o verdadeiro sentido da Constituição senão recorrendo à complementaridade legislativa, seja porque na Constituição não há como buscar esta complementaridade, seja porque a própria Constituição faz com que a lei infraconstitucional complete seu sentido. Esta interpretação é, assim, episódica e restrita, excepcionalmente utilizada quando não é possível encontrar a complementaridade do sentido de uma norma constitucional na própria Constituição. Anna Cândida Cunha Ferraz (Processos informais de mudança na Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais, São Paulo, Max Limonad, 1986, p. 65), lembra muito bem que:

“a Constituição não esgota, por sua própria natureza e índole, o conteúdo que cristaliza em suas

normas. Não podendo regular, em minúcias e pormenores, toda a matéria constitucional, mas limitando-se a determinar, em maior ou menor grau, as características dos atos que a aplicam, exige e impõe, de modo expresso ou implícito, atividade do legislador infraconstitucional para

sua concreta aplicação”.

O legislador infraconstitucional, então, muitas vezes é chamado para interagir com o legislador constitucional, para completar o sentido da norma constitucional, ou até para dar o sentido que não consta na Constituição.

Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, Saraiva, 2ª edição, 1998, p. 181), também enfatizou:

“Toda atividade legislativa ordinária nada mais é, em última análise, doque um instrumento de

atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e realização de seus fins. Portanto,

e como já assentado, o legislador também interpreta rotineiramente a Constituição. Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades interpretativas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do

texto constitucional” (2ª edição, 1998, Ed. Saraiva, pág. 181).

Portanto, o próprio doutrinador entende o cabimento da interpretação da Constituição conforme a lei, quando se torna impossível deduzir o significado exato de um conceito ou de uma norma constitucional, utilizando a própria Constituição, tendo o legislador infraconstitucional se prestado a tanto. Um exemplo de interpretação da Constituição conforme a lei seria a utilização da lei para entender o exato sentido do art. 5º, XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). O que seria direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada? O sentido de tais expressões só pode ser bem compreendido se utilizado o conceito dado pela Lei de Introdução ao Código Civil, que nos §§1º, 2º e 3º do art. 6º, conceituou:

“Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se

efetuou.”

“Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer,

como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida

inalterável, a arbítrio de outrem.”

“Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”

Neste caso, muitos não concordam com esta interpretação da Constituição conforma a lei porque estaria repassando para o legislador infraconstitucional o papel de interpretar a Constituição, papel este que é de exclusividade do Supremo Tribunal Federal, como este mesmo Tribunal enfatizou ao julgar inconstitucional a Lei 10.628/02, que acrescentou os §§1º e 2º ao art. 84 do CPP (intenção de estender foro privilegiado para ex-ocupantes de cargo público), com a alegação, entre outras, de que a pretensão da lei era inadmissível porque seria uma verdadeira “interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal para interpretar a Constituição” (ADI 2797/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2006, p. 37). A lei, então, não interpretaria a Constituição. Assim, para quem não admite a interpretação da Constituição conforme a lei, o alcance das expressões “direito adquirido”, “ato jurídico perfeito” e “coisa julgada”, ditos no art. 5º, XXXVI, pode estar além ou aquém do sentido dado pela LICC, a depender da visão do STF. Apesar da polêmica, é fato que a interpretação da Constituição conforme a lei mostra-se inevitável em alguns casos, porque é impossível que todas as expressões, e até mesmo o sentido de dispositivos constitucionais sejam interpretados corretamente sem que, em um ou outro momento, seja necessário recorrer ao conceito ou à complementaridade dada pela legislação infraconstitucional. Um outro bom exemplo é a correta compreensão de alguns direitos fundamentais que são declarados por meio de norma constitucional de eficácia contida, e que, por isso, exige que o intérprete volte os olhos para o que diz a norma infraconstitucional para entender todo o conteúdo do direito fundamental. Nesse tido, a Constituição de 1988 adota, via de regra, no que tange aos direitos fundamentais, a teoria externa, que enfatiza que o direito fundamental dito na Constituição não impõe uma posição definitiva, e que seus limites podem estar traçados em um local externo ao próprio direito declarado constitucionalmente, local este que é a lei (vide o tema no tópico dos Direitos Fundamentais). O direito fundamental de liberdade de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII), só pode ser bem compreendido se analisadas as qualificações profissionais exigidas pela lei (o direito de exercer a profissão de advogado, por exemplo, só pode ser bem compreendido se analisada a legislação, no sentido de que tal direito existe se a pessoa é formada em Direito e ainda passar no exame de ordem.). Nestes casos de previsão de direitos fundamentais, muitas vezes há uma reserva legal simples, e em outras há uma reserva legal qualificada, e em outras há, também, falta de reserva legal. Evidente que, na reserva legal simples, há maior liberdade de conformação do legislador, que acaba intensificando seu

papel de intérprete e concretizador da norma constitucional, enquanto na ausência de reserva constitucional, o legislador assume importância quase insignificante, porque a Corte Constitucional é que é chamada para interpretar inteiramente, sem vinculação intensa ao que diz a lei. Ainda é possível citar o art. 5º, XI (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para

prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”), porque a lei ordinária acabou interpretando a expressão “casa”, pelo menos para fins criminais, ao dizer, nos§§ 4º e 5º do art. 150 do CP, o seguinte:

“§ 4º - A expressão "casa" compreende: I - qualquer compartimento habitado; II - aposento ocupado de habitação coletiva; III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. § 5º - Não se compreendem na expressão "casa": I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;

II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.”

Isto é tão certo que o STF, no HC82.788/RJ, julgou ilícita a conduta do fiscalizador tributário de adentrar em estabelecimento ou escritório, para fazer busca e apreensão, porque isto afetaria a inviolabilidade do domicílio, justamente porque interpretou o conceito de casa à vista dos citados parágrafos do art. 150 do Código Penal. Portanto, neste caso, pode-se até aceitar a noção de que o legislador constituinte não tinha a intenção de declarar a inviolabilidade, por exemplo, de um escritório de advocacia ou de uma clínica médica, mas o legislador, ao dizer que é crime de violação de domicílio qualquer violação a compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce a profissão ou atividade, acabou ampliando e até delimitando o sentido do texto constitucional. . Ainda a título de exemplo, veja o que diz o art. 5º, LXXVII: “são gratuitas as ações de

habeas corpus e habeas data e, na forma da lei, os atos necessários para o exercício da cidadania”. O que significa “atos necessários ao exercício da cidadania”? Não há lei definindo, mas se uma lei regulamentar este dispositivo constitucional, é claro que ela poderá ampliar o sentido das expressões, ou as restringir, forçando uma interpretação da Constituição conforme a lei. O mandado de segurança, por exemplo, não é considerado, atualmente, um ato necessário ao exercício da cidadania, porque é preciso pagar custas para impetrá-lo, mas o legislador infraconstitucional pode vir a entender desta forma, e declarar a gratuidade do mandado de segurança, à vista do permissivo constitucional citado. Neste caso, se o STF não declarasse a suposta lei como inconstitucional, haveria, sem dúvida, uma ampliação, pela legislação infraconstitucional, do sentido de “atos necessários ao exercício da cidadania”. Da mesma forma, se a lei atual (Lei 1.533/51) não garante a gratuidade do mandado de segurança, a legislação infraconstitucional acaba restringindo o alcance das expressões “atos necessários ao exercício da cidadania”. Por fim, o §1º do art. 29-A, da CF/88, diz que “A Câmara Municipal não gastará mais de setenta por cento de sua receita com folha de pagamento, incluído o gasto com o subsídio de seus

Vereadores”. O que quer dizer “folha de pagamento”? Está incluso nesta folha, para fins da limitação constitucional, os encargos sociais das remunerações e subsídios? Para se chegar a uma conclusão, parece inevitável buscar na legislação infraconstitucional o que vem a ser “folha de pagamento”, porque a busca na própria Constituição é de toda inútil. Necessário, então, analisar o art. 225, §9º, do Decreto 3.048/99, que aprovou o Regulamento da Previdência Social, para bem entender o §1º do art. 29-A, da CF/88 (na norma infraconstitucional não se encontram os encargos sociais como integrantes da folha de pagamento, fazendo crer que o sentido da expressão constitucional não os englobe). Mesmo que seja possível interpretar o art. 29, §1º, da CF/88, em sentido diverso do que dispõe o Decreto, não se pode negar que esta norma ajuda a compreender a expressão constitucional, pelo fato de que expõe o conceito de folha de pagamento que tradicionalmente vem sendo adotado.

José Joaquim Gomes Canotilho (Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2ª edição, Coimbra Editora,

2001, p. 401 e ss.), ensina que existe uma “osmose” entre o conteúdo das normas constitucionais e as leis, porque estas conferem maior grau de concretude para o texto constitucional, interferindo na compreensão da norma constitucional que serve de fundamento para a norma infraconstitucional. Canotilho chama de “reenvio constitucional” esta relação entre a norma infra e a norma constitucional: a Constituição reenvia para a legislação infraconstitucional a missão de complementar ou densificar seus comandos.

De fato, não se pode negar que a densificação do comando normativo da Constituição pode ser feito pela lei, na medida em que a legislação infraconstitucional aproxima o dispositivo constitucional com a complexa realidade heterogênea que quis regulamentar abstratamente. A Constituição, ao estabelecer princípios, verdadeiros mandados de otimização abstratos, vê-se obrigada a utilizar conceitos jurídicos indeterminados ou plurissignificativos, permitindo uma plasticidade para que a liberdade de conformação do legislador ordinário possa ser utilizado para adaptar as normas constitucionais às realidades cambiantes (se se aceita a plasticidade da Constituição, não há como negar a interpretação da Constituição conforme a lei). Afinal, as regras da lei concretizam os princípios da Constituição, e não há como concretizar um princípio sem interpretá-lo. Por fim, cabe lembrar que, mesmo para aqueles que inadmitem a interpretação da Constituição pela lei, é preciso dizer que a interpretação da Constituição conforme a lei não é uma forma de impor a arbitrariedade do legislador ordinário. Não significa que a lei estará interpretando a Constituição, e provocando a substituição do trabalho da Corte Constitucional pelo trabalho do legislador ordinário, mas sim que a lei estará auxiliando o intérprete no difícil trabalho de interpretar a Constituição. É que muitas vezes, não se nega, a interpretação fica inteiramente vinculada aos conceitos e ao âmbito da lei infraconstitucional, especialmente quando há uma extensão do conceito constitucional, para dar mais efetividade à norma da Constituição. Daí o nome “interpretação da Constituição conforme a lei”, e não “interpretação da Constituição pela lei”.

d) Analogia

É possível utilizar a analogia, no processo de interpretação da Constituição? Existem defensores de que a Constituição não é um sistema completo e perfeito, e que é possível encontrar lacunas em seu texto. Por isso, seria possível aplicar o método da integração, como a analogia, para “tapar um buraco” na Constituição. Estaria presente, no texto constitucional, a anomia, que é a semelhança de normas constitucionais anteriores para o caso que a Constituição atual não tenha regulamentado (assim, grosso modo, se a CF/88 não tivesse falado nada sobre as proibições de votar e ser votado, teria aplicação a previsão da Constituição anterior). Entretanto, em face da revogação por normação geral, não é possível falar em utilização da analogia.

Como se sabe, quando uma Constituição Federal é promulgada, não existem mais normas constitucionais senão nesta nova Constituição, salvo se ela mesma prever o contrário, porque há uma revogação total e automática do texto constitucional anterior e também do espírito jurídico que permeava o ordenamento (revogação por normação geral), daí porque o próprio STF não aceita a teoria da desconstitucionalização. Afinal, como aplicar outras normas constitucionais para determinado assunto, se as únicas normas constitucionais em vigor são aquelas previstas na Constituição em vigor? Quem defende a analogia está defendendo, implícita ou explicitamente, a teoria da desconstitucionalização, para partir do pressuposto de que a Constituição em vigor tem buracos que precisam ser preenchidos pelas normas da Constituição anterior, e tais normas anteriores seriam desconstitucionalizadas para entrar no ordenamento jurídico como normas infraconstitucionais. Esta teoria não é acatada na doutrina e jurisprudência majoritária, e o STF já a rejeitou.

e) Lacunas constitucionais

Como se vê no tema “lacunas ocultas e lacunas descobertas”, não é aceita a ideia de que no texto constitucional existem lacunas. Repita-se, aqui, que de fato a doutrina é lógica ao não aceitá-las, porque o processo de integração da Constituição não pode ser por outras normas constitucionais, e sim por normas infraconstitucionais. Seria, então, ilógico falar em integração da Constituição por outras normas constitucionais, se as únicas normas constitucionais existentes são aquelas em vigor em face da revogação por normação geral. Não há, como enfatizou Celso Bastos, o “princípio da reserva constitucional”. De mais a mais, se a Constituição é o marco onde se inicia o ordenamento jurídico nacional, porque dá validade e unidade a todo o sistema normativo, impossível dizer que o ordenamento jurídico, em face de uma falha, de uma negligência do legislador constituinte, ficará condenado à imprevisão enquanto não houver outra Constituição ou uma emenda constitucional que “cubra o buraco”. Se algum assunto não foi tratado pela Constituição, então, é porque pode, e deve, ser tratado pelo legislador infraconstitucional. Por outro lado, entendo que o silêncio eloquente, como se viu, apresenta-se como uma hipótese em que haveria impossibilidade de integração da Constituição por normas infraconstitucionais. Seria uma exceção, um único caso em que haveria lacuna constitucional, justamente porque o silêncio eloquente ocorre porque o legislador constituinte, ao tratar de determinada matéria constitucional, implicitamente estaria impedindo que o legislador infraconstitucional dispusesse sobre ela, já que a referida matéria seria tipicamente de normas materialmente constitucionais que deveria estar somente na Constituição.

f) Preâmbulo A doutrina, com base no posicionamento do STF adotado na ADIN n. 2.076-5, Rel. Min. Carlos Velloso, e no MS n. 24.645/DF, Rel. Min. Celso de Mello, entendem que o preâmbulo: a) não tem força normativa; b) não é norma de observância obrigatória pelos estados-membros (o preâmbulo não forma uma simetria, de modo que os preâmbulos dos Estados não precisam repetir, por exemplo, a devoção a Deus); c) não limita o poder constituinte derivado. O Min. Celso de Mello enfatizou que “o preâmbulo não constitui norma central”, isto é, ele não entra no círculo fechado da Constituição Total formada, que éconjunto de normas centrais selecionadas pelo constituinte para projeção inclusive para o Estado-membro. Assim, o preâmbulo não pode ter força cogente e nem servir de passe para orientar os Estados-membros, o DF e os Municípios. O que resta ao preâmbulo é servir fator de interpretação, para, se for o caso, conscientizar o intérprete do momento histórico que o Brasil viveu no final da década de 80, e acabar influenciando o julgador em determinado caso. Assim, o preâmbulo presta-se para servir de interpretação histórica, daí porque José Afonso da Silva o coloca como elemento formal de aplicabilidade. Interessante notar que no preâmbulo, apesar de haver referência expressa ao Estado Democrático de Direito, ao desenvolvimento, aos direitos sociais e individuais, não há lembrança ao pacto federativo, que é uma cláusula pétrea importantíssima para a manutenção da unidade brasileira. A Federação, então, deveria ter sido lembrada no preâmbulo, porque é da índole do povo brasileiro manter a unidade nacional, para que seja perpétua a ideia de ser brasileiro aquele que nasce em qualquer Estado da Federação.

g) Teoria dos poderes implícitos (“ImpliedPowers”)

A interpretação dos dispositivos constitucionais da Constituição de 1988 faz com que seja acatada esta teoria, que significa a existência de poderes, mesmo não previstos na Constituição, para que o órgão que foi indicado pela própria Constituição para cumprir determinada tarefa, possa de fato cumpri-la.

É dizer: a teoria defende que, se a Constituição atribuiu uma competência para um órgão, ou estabeleceu a ele um dever, é evidente que também atribuiu a ele meios para cumprir a missão constitucional. Esta teoria é um dos fundamentos dos defensores da tese de que o Ministério Público pode presidir investigações de cunho criminal, porque se a CF/88 diz que é dever do “Parquet” promover a ação penal e fazer o controle externo da atividade policial, é evidente que deu a ele também os meios para cumprir estas missões, e entre estes meios está a possibilidade de presidir investigações criminais.

h) O STF tem sempre a última palavra em matéria de interpretação constitucional?

A Constituição Federal de 1988, ao enfatizar que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (art. 102, “caput”), pode levar a impressão de que a última palavra em matéria de interpretação é sempre do STF. De fato, não há como negar que, precipuamente, cabe ao STF a interpretação da Constituição, daí porque muitos dizem que “a Constituição é o que o STF diz o que é”. UadiLammegoBulos (Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2007, p. 326), por exemplo, afirma que, apesar da interpretação constitucional não ser tarefa exclusiva do STF, porque ninguém detém este monopólio (daí a interpretação constitucional ser aberta a todos, Advogados, membros do Ministério Público, integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo, juristas, doutrinadores, pareceristas, cidadãos, como enfatiza a tese da Constituição Aberta de Pater Häberle), “É o Supremo

Tribunal Federal quem profere a última palavra em matéria de interpretação da constituição”. No entanto, não é correto dizer que a última palavra sobre o sentido da Constituição é sempre do STF, porque a própria Constituição repassa para outros órgãos e autoridades a responsabilidade de interpretar os termos constitucionais, sem que o STF possa interferir. A CF/88 é pródiga em apresentar casos em que a interpretação de muitos termos constitucionais são de responsabilidade de outro órgão ou autoridade que não o STF. Vejamos:

Quem faz a interpretação do que significa "manter a integridade nacional", ou "invasão estrangeira" ou ainda "invasão de uma unidade da Federação em outra", previstas no art. 34, I e II, para fins de decretação da intervenção federal? A tarefa é de exclusividade do Presidente da República, como está pacificado na doutrina e na jurisprudência do próprio STF. Neste caso, se o Presidente interpretar de forma incorreta, pode o Judiciário anular a decretação de intervenção? Não, não pode, porque é um juízo político impenetrável à ação do Judiciário.

A interpretação do que vem a ser "notável saber jurídico", previsto no art. 101 da CF/88, para fins de escolha de Ministro do STF, é feita pelo Presidente da República e pelo Senado Federal, não podendo o STF se imiscuir na interpretação realizada

Cabe ao Senado dizer se a conduta do Presidente da República se enquadra na hipótese de "crime de responsabilidade" do art. 85 da CF/88, sem interferência de nenhum outro Poder.

O STF não pode substituir o juízo que o Presidente da República fizer sobre o projeto de lei, a respeito da sua inconstitucionalidade ou seu ferimento ao interesse público, para fins de veto ou sanção, nos termos do art. 66, §1º.

Também outro caso seria a interpretação do Presidente sobre a "urgência" e a "relevância", para fins de emissão de medida provisória (art. 62). Há muito o próprio STF já definiu que não cabe a ele substituir o juízo feito pelo Presidente sobre estes dois requisitos constitucionais da medida provisória, muito embora existe uma tendência atual de ser possível o controle quando tais requisitos não estiverem presentes de forma cabal, taxativa. É importante frisar, então, que o STF tem a última palavra em matéria de interpretação constitucional, mas não é sempre que a última palavra é sua. A regra, portanto, contém exceção.

i) Classificação das normas constitucionais

Apesar da classificação que se faz das normas constitucionais, levando em consideração os graus de eficácia e aplicabilidade, é incorreto afirmar que estes graus retiram a eficácia jurídica de alguma norma constitucional. Toda norma constitucional tem eficácia jurídica, porque o maior ou menor grau diz respeito à eficácia e à aplicabilidade, e não ao cunho jurídico da norma. Se uma norma estiver na Constituição, ela tem eficácia jurídica, mínima que seja, mas tem, pois pode servir com parâmetro, pelo menos, para forjar ou influenciar determinada interpretação. A classificação ideal das normas constitucionais se dá quanto ao grau de eficácia e aplicabilidade, e a mais objetiva classificação foi aquela proposta pelo baiano Ruy Barbosa (05.11.1849-1º.03.1923), inspirado na doutrina norte-americana. As normas constitucionais se dividiriam em:

Normas constitucionais autoexecutáveis, quando produzem plenos efeitos com a entrada em vigor (self-executing; self-enforcing; self-acting); e

Normas constitucionais não autoexecutáveis, quando não produzem plenos efeitos

com a entrada em vigor, porque precisam da complementação de leis posteriores (nonself-executing; non self-enforcing; non self-acting).

Esta divisão não está incorreta, porque de fato existem normas constitucionais, atualmente, que são autoexecutáveis e outras que não são autoexecutáveis. Porém, o mundo mudou, e o constitucionalismo também, e hoje existe uma série de diferentes Constituições no mundo, com diferentes tipos de previsões constitucionais, inclusive com várias Constituições do tipo dirigente (texto extenso e analítico). Esta situação impõe uma análise mais acurada dos novos textos constitucionais, para fazer também uma classificação mais cuidadosa. No Brasil, existem duas obras básicas que orientam a maioria da doutrina de Direito Constitucional, sobre este tema: Aplicabilidade das normas constitucionais, de José Afonso da Silva, e Normas constitucionais e seus efeitos, de Maria Helena Diniz. A classificação mais em voga é aquela feita por José Afonso da Silva, da seguinte maneira:

Norma constitucional de eficácia plena;

Norma constitucional de eficácia contida;

Norma constitucional de eficácia limitada:

3.1 - Definidoras de princípio institutivo ou organizativo (impositiva e facultativa); e 3.2 - Definidoras de princípio programático (normas programáticas).

A classificação de Maria Helena Diniz também será levada em conta.

Norma constitucional de eficácia plena

Norma constitucional de eficácia plena, ou norma constitucional imediatamente preceptiva, é aquela que tem plenos poderes para gerar eficácia desde quando a Constituição entrou em vigor. Norma de eficácia plena, portanto, faz surgir um direito subjetivo, que pode ser invocado inclusive no Judiciário. São, assim, normas de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, direta e integral. Interessante notar que eficácia é a força para produzir o efeito desejado, de modo que só se pode falar que a norma constitucional teve eficácia se for verificada a realidade para a qual ela é destinada, para perceber se realmente houve a eficácia. Exemplo: o art. 5º, XLIX, da CF/88 diz que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Trata-se de uma norma de eficácia plena, mas para saber se ela realmente

teve eficácia, é preciso verificar em todos os presídios brasileiros se está sendo assegurada, realmente, a integridade física e moral dos presos. Se tiver realmente sendo assegurado este direito aos presos, é correto dizer que a norma de eficácia plena teve eficácia; se não, a norma tem possibilidade de ter eficácia, porque basta invocá-la para ser possível sua eficácia (não há necessidade de buscar complemento na Lei de Execução Penal, ou em outra lei, para exigir o direito). O art. 2º da CF/88, diz que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Esta norma é plena, porque desde que entrou em vigor, já passou a ter aplicabilidade imediata, integral e direta, de modo que não havia, como não há, qualquer necessidade de outras leis para criar os Poderes e garantir a harmonia e a independência. Também o art. 5º, XI, ao garantir a casa como asilo inviolável, ninguém podendo nela penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, é uma norma de eficácia plena. O mesmo se diga do art. 19 da CF/88, que veda ao Poder Público estabelecer, subvencionar, embaraçar o funcionamento ou manter relações de dependência ou aliança com os cultos religiosos, recusar fé aos documentos públicos ou criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Se a prática o Estado “A” ou “B” está, de alguma forma, subvencionando determinada Igreja, ou se está recusando fé a algum documento público, só a visitação da realidade é capaz de dizer se a norma constitucional de eficácia plena teve mesmo eficácia. O art. 29, V, da CF/88 (subsídios de Prefeitos e Vice-Prefeitos), é de eficácia plena (STF, RE 122521/MA e RE 204889/SP), de modo que, em função disto, não pode receber verba de representação como integrante da sua remuneração (vedação ao acréscimo do subsídio pela verba de representação criada anteriormente, porque a norma é de eficácia plena). O art. 16 da Constituição, ao instituir o princípio da anualidade e proibir que lei que altera o processo eleitoral tenha aplicação na eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência, é uma norma de eficácia plena. Deste modo, se surgir uma lei no ano em que ocorrerá a eleição, a lei não terá aplicação neste ano porque o art. 16 da Constituição tem aplicação imediata, com eficácia plena para, desde sua vigência, suspender a eficácia da lei publicada em ano eleitoral. Um outro bom exemplo é a previsão do direito ao voto a partir dos 16 (dezesseis) anos (art. 14, II, “c”). Atingida esta idade, o direito pode ser plenamente exercido, uma vez que a norma é de eficácia plena, bastando, no caso de negativa do direito, impetrar mandado de segurança. O STF, na ADI 3768/DF (Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 26.10.2007, p. 28), enfatizou que o art. 39 da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), que assegurou a gratuidade dos transportes públicos urbanos e semiurbanos aos que têm mais de 65 (sessenta e cinco) anos de idade, apenas repete o que dispõe o §2º do art. 230 da Constituição Federal, sendo esta uma “norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, pelo que não há eiva de invalidade jurídica na norma legal que repete os seus termos e determina que se concretize o quanto constitucionalmente disposto”. O mesmo STF também já enfatizou que todas as normas constitucionais que dizem respeito ao processo legislativo (arts. 59 a 69), são normas de eficácia plena e de aplicação imediata. Pelo que se viu, seria melhor conceituar a norma de eficácia plena aquela que produz ou tem força para produzir o resultado dela esperado, porque a norma pode ser aplicada imediatamente, mas por diversos fatores, ela não é, como é o caso da norma do art. 5º, XLIX. Importante lembrar que, em função da força normativa da Constituição, as normas constitucionais aplicam-se diretamente sem necessidade de regulamentação, salvo quando não exequíveis por si mesmas ou por expressa disposição constitucional. A norma constitucional nasce para ser exequível e com aplicação imediata, porém, a grande maioria precisa de regulamentação justamente porque as normas constitucionais são formadoras de princípios gerais, mandados de otimização, que precisam de algo mais para ter exequibilidade. As normas constitucionais de eficácia plena podem ser chamadas de normas constitucionais completas, porque não há necessidade de complementação, daí porque não podem servir de base para Mandado de Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Por outro lado, as normas constitucionais de eficácia limitada são incompletas, porque precisam de uma

complementação legislativa para se tornarem completas, daí porque podem servir de base para Mandado de Injunção e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.

Um outro exemplo de norma de eficácia plena é o art. 19 da Constituição. Ele é uma norma vedatória para o Poder Público, daí porque a doutrina costuma enfatizar que é geralmente mais fácil identificar as normas de eficácia plena quando a norma constitucional confere imunidades, isenções, prerrogativas, vedações e competências, como é o caso de diversos outros dispositivos da Constituição de 1988 (arts. 87, 90, 91, §1º, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 102 e ss., 128, I e II, 129, 149, §2º, I, 150 etc.).

Norma constitucional de eficácia contida (redutível ou restringível)

Seria mais didático chamar esta norma de norma constitucional de eficácia que pode ser contida posteriormente. É que elas, quando insertas no texto constitucional, fazem gerar um direito, e por isso são dotadas de aplicabilidade imediata e direta, mas poderá ter sua eficácia diminuída, restringida, porque a lei poderá dar contornos mais específicos e fazer algumas exigências. Elas contêm, então, uma cláusula de redutibilidade. Na verdade, a restrição posterior, ou redução do campo de aplicação da norma de eficácia limitada, se dá pela lei, pela própria Constituição ou por conceitos ético-jurídicos acatados pela Constituição (vide adiante). O interessante é saber, então, que a norma constitucional de eficácia contida entra em vigor com eficácia plena e aplicabilidade imediata e direta, e ficará com tal eficácia e aplicabilidade até que ocorra a limitação. Se a limitação posterior se der pela lei, é correto dizer que a norma de eficácia contida entra em vigor com eficácia plena, até que esta eficácia não seja mais plena em função de uma limitação imposta pela lei. Entretanto, quando a norma de eficácia contida entra em vigor com a limitação pela própria Constituição, ou pelos conceitos ético-jurídicos, ela não entra em vigor comeficácia plena, porque desde o nascedouro já existem algumas restrições que nasceram junto com elas. O art. 5º, VIII, por exemplo: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Assim, toda pessoa que tem a convicção política de que o alistamento no Exército é contra seu princípio político de paz universal, tem o direito de não ser alistado. Se o Estado, por isso, quiser alistá-lo, ou ameaçá-lo, ou impuser uma multa, ele pode invocar este direito inclusive no Judiciário. Este direito, entretanto, pode ser contido, porque o ordenamento poderá impor condições para que este direito seja exercido. O art. 5º, XIII, diz que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Então, qualquer pessoa poderá trabalhar livremente, mas se a lei disser que para exercer intermediação na compra e venda de imóveis, a pessoa deve ser formada em um curso de corretor de imóveis, contendo, portanto, o direito, a lei será constitucional porque a norma tem eficácia contida. Da mesma forma, qualquer pessoa poderia livremente exercer a profissão de advogado, se a lei não dispusesse que é preciso formar em uma Faculdade de Direito reconhecida no MEC e passar no Exame de Ordem da OAB. É por isso, então, que todos podem exercer livremente o trabalho de artesão, porque não há lei no Brasil que preveja requisitos para tal atividade, e a Constituição Federal diz que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, e só pode haver contenção deste direito pela lei. Como se vê, a norma de eficácia contida não precisa de uma lei posterior para completar sua eficácia. Ela vale por si mesma e tem aplicabilidade imediata, porque a lei posterior ou a própria Constituição só podem conter o exercício do direito constitucional, nunca criá-lo ou extingui-lo. É importante lembrar que em uma norma constitucional de eficácia contida, a possibilidade de contenção não esteja expressa na norma, mas sim implícita, em função do contexto constitucional. É o caso do art. 5º, XXII, que diz,ipsis literis: “É garantido o direito de propriedade”. Quer dizer que a lei não pode conter o direito de propriedade, porque nesta norma não há tal previsão? Não. A lei poderá restringir o direito de propriedade, como razoavelmente já o faz, porque tal autorização de contenção está implícita por ocasião do próprio sistema constitucional. Logo no inciso posterior, a

Constituição diz que a propriedade deverá atender sua função social. Existe aí uma possibilidade de contenção, muito embora o direito de propriedade já possa ser exercido. Questão atual é a eficácia do art. 37, VII, da CF/88, que trata do direito de greve dos servidores públicos: “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica” (redação dada pela EC 19/98, porque antes falava em “lei complementar”). O STF vinha entendendo esta norma constitucional como de eficácia limitada, isto é, dela não surgia o direito de greve para os servidores públicos, porque ela mesma é quem diz que tal direito só poderia ser exercido futuramente nos termos e nos limites que seriam definidos em lei específica. Com o julgamento do Mandado de Injunção n. 689/PB, Rel. Min. Eros Grau, Pleno, DJ de 18.08.2006, p. 19, o STF acentuou a “aplicação da Lei federal 7.783/89, que rege o direito de greve na iniciativa privada, até que sobrevenha lei regulamentadora”. Mais recentemente, em 25.10.2007, na discussão dos MIs n. 670 e 712, o STF decidiu pela aplicação da Lei 7.783/89 para as greves no serviço público. Assim, pergunta-se: O STF passou a considerar a norma do art. 37, VII, como de eficácia contida, e não mais limitada? É possível observar que a decisão do STF foi proferida por ocasião de Mandados de Injunção, que visam justamente criar uma lei para regular o direito constitucional previsto, ante a omissão do Congresso Nacional. Por isso, o STF acabou ratificando a sua posição, segundo a qual o referido dispositivo constitucional é de eficácia limitada, na medida em que reforçou a ideia de que este direito de greve só poderia existir se houvesse uma lei regulando-o. Nos Mandados de Injunção, o STF não criou uma lei, mas aplicou uma lei já existente para casos com a mesma ratio(aplicou a tese da sentença aditiva, porque aditou ao ordenamento jurídico uma lei que era prevista para outros casos análogos) deixando claro que o direito de greve só passa a existir em função da existência da Lei 7.783/89 – se não existisse tal lei, o direito de greve não poderia existir justamente em face da norma constitucional de eficácia limitada. O que o STF mudou, na verdade, foi acatar, nestes Mandados de Injunção, a teoria concretista, uma vez que anteriormente o Egrégio Tribunal entendia que o Mandado de Injunção não poderia ser utilizado para criar uma lei (teoria não concretista). Esta mudança de posicionamento, é bem verdade, pode ser considerada como uma aplicação da mutação constitucional, uma vez, neste período, não houve alteração do art. 37, VII, da CF/88; houve, sim, alteração da visão do STF sobre a mesma norma constitucional, passando a entender que não precisa uma lei específica para a greve dos servidores públicos. Quando se diz que a contenção do direito constitucional (norma de eficácia contida) pode ser feito pela lei, pela própria Constituição, ou por conceitos ético-jurídicos, é porque é uma consequência da leitura das normas de eficácia contida, existentes no texto da CF/88. Vejamos: Art. 5º, VIII, XIII e art. 37, VII – nestes casos, como foi visto, a lei posterior conteve os direitos constitucionais. Contenção pela lei. Art. 136 a 141 – preveem o Estado de Defesa e o Estado de Sítio. Nestes casos, a própria Constituição está contendo uma série de direitos e garantias fundamentais (restrição ao direito de reunião, sigilo de correspondência, sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, além de outros tantos).

Art. 5º, XXII – garante o direito de propriedade, mas o art. 5º, XXIV e XXV, dizem que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”, e que “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Portanto, o direito de propriedade poderá ser contido porque a Constituição estabeleceu a possibilidade de contê-lo nos casos de “necessidade ou utilidade pública”, “interesse social”, “iminente perigo público”, que na verdade são conceitos ético-jurídicos, cheios de graus de indeterminação. Também ocorre o conceito ético-jurídico em expressões como “interesse econômico”, “motivos de ordem pública”, “bons costumes”, “paz social”, “perigo público iminente” etc.

Assim, é correto afirmar que é possível a norma constitucional de eficácia contida ser contida por ato administrativo. O direito de propriedade, por exemplo, pode ser limitado pela autoridade administrativa competente, quando houver iminente perigo público.

Norma de eficácia limitada

Esta norma, diferentemente da norma de eficácia contida, não cria direito só com a sua entrada em vigor. A aplicabilidade dela fica diferida. No caso dela, o legislador constituinte, deliberadamente, deixa para que o legislador ordinário, ou algum órgão do Estado, complete a norma, para que só assim, o efeito, ou direito pronunciado na norma constitucional, passe a existir. A Constituição prevê o direito, mas tal direito só poderá ser exercido se houver uma regulamentação posterior infraconstitucional. O parágrafo único do art. 22, por exemplo, diz que “Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”. Os Estados só poderão exercer esta hipótese constitucional quando houver uma lei complementar; sem esta lei, os Estados não poderão legislar sobre as referidas questões específicas. Não bastou, portanto, a vigência do referido parágrafo único para que produzisse todos os seus efeitos. O STF, ao julgar a questão da possibilidade ou não de vedar a candidatura de políticos que respondiam a processos judiciais (“candidatos fichas-sujas”), entendeu que o §9º do art. 14 da CF/88 é uma norma de eficácia limitada, porque não autoaplicável (ADPF 144/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 06.08.2008). O entendimento sufragado pela autora da ADPF, a Associação dos Magistrados Brasileiros, era de que o referido §9º, ao prever a proteção da probidade administrativa, a moralidade no exercício do mandato e a necessidade de considerar a vida pregressa do candidato, estaria exigindo, desde então, a “ficha-limpa” dos políticos para poderem ser admitidos como candidatos. Nesse sentido, a norma constitucional não teria recepcionado os dispositivos da Lei Complementar 64/90 (art. 1º, I, “d”, “e”, “g” e “h”, e art. 15), que exigiam o trânsito em julgado dos processos judiciais contra os candidatos, para efeito de serem considerados inelegíveis. Porém, o Supremo Tribunal Federal entendeu que, além da questão fundamental de proteção constitucional à presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), inclusive para processos não-penais, que não permite imposição de medidas restritivas de direitos sem previamente efetivar o devido processo legal, entendeu que a norma constitucional tem eficácia limitada, não tendo ela autoaplicabilidade porque depende de lei complementar para definir especificamente os casos de inelegibilidade, entendimento que já estava fixado na Súmula 13 do Tribunal Superior Eleitoral. Portanto, o §9º do art. 14 da CF/88 é norma constitucional de eficácia limitada, porque não produz todos os seus efeitos a partir da sua entrada em vigor; a produção de tais efeitos depende de complementação por lei complementar para prever os casos em que a vida pregressa do candidato implicará em inelegibilidade. Portanto, a norma de eficácia limitada precisa ser completada para atingir seu fim, daí ter aplicabilidade mediata, indireta ou reduzida.

Esta norma ainda é dividida em duas:

3.1)Norma de eficácia limitada definidora princípio institutivo ou organizativo;

3.2)Norma de eficácia limitada definidora de princípio programático.

Nas normas limitadas que definem princípios institutivos ou organizativos, o legislador prevê a criação e a estruturação de órgãos, entidades e institutos que só poderão ser de fato criados e estruturados quando a lei assim dispuser. Antes de a lei criar e estruturar, estes órgãos não possam a existir somente pela norma constitucional. Art. 33 (“a lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios” – antes desta lei, não há organização de Territórios), 91, §2º (“a lei disporá sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios” – antes desta lei, os Ministérios não podem ser criados e nem estruturados), 113 (“a lei disporá sobre a constituição, investidura, jurisdição, competência, garantias e condições de exercício de órgãos da Justiça do Trabalho” – idem), 98, I, §1º (“A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: juizados especiais...” – antes da criação,

os juizados não existiam só pela disposição da norma de eficácia limitada definidora de princípio institutivo). Muitas vezes, mesmo sem criar o instituto ou a organização, há uma imposição para que eles sejam criados no futuro. Assim, estas normas limitativas que definem princípios institutivos ou organizativos, são impositivas, porque impõe uma ação no futuro para que os institutos previstos sejam de fato criados. A legislação integrativa posterior é obrigatória: art. 20, §2º; art. 32, §º 4º; art. 33; art. 88; art. 91, §2º. Em outros casos, não há uma imposição, e sim uma faculdade em criar o instituto ou a organização: art. 22, parágrafo único; art. 125, §3º; art. 195, §4º; art. 25, §3º; art. 154, I. Assim, as normas limitadas definidoras de princípio institutivo ou organizativo podem ser impositivas ou facultativas. Nas normas limitadas que definem princípios programáticos, a norma apenas limita-se a traçar princípios e diretrizes para serem cumpridos pelos órgãos integrantes dos poderes constituídos, visando a realização dos fins sociais do Estado. São as conhecidas normas programáticas. Existem várias destas normas na CF/88: art. 23; art. 216, §3º; art. 173, §4º; art. 7º, XXVII; art. 205; art. 7º, XX; art. 211; art. 215. As normas programáticas merecem um estudo à parte (a seguir).

Classificação de Maria Helena Diniz

Maria Helena Diniz classificou as normas constitucionais da seguinte forma:

1) Normas constitucionais de eficácia absoluta, ou intangível, que não podem ser contrariadas nem por emenda constitucional (são as cláusulas pétreas do art. 60, §4º). Diferem das normas de eficácia plena porque estas podem ser emendadas. Maria Helena Diniz diz que estas normas de eficácia absoluta têm eficácia positiva, porque têm aplicação imediata, e eficácia negativa, porque decorrem de sua “força paralisante total” de qualquer norma, criada por emenda ou lei infraconstitucional, que as contrarie;

2) Normas constitucionais de eficácia relativa restringível, que correspondem às normas constitucionais de eficácia contida;

3) Normas constitucionais de eficácia relativa dependente de complementação legislativa, que correspondem às normas constitucionais de eficácia limitada;

4)Norma constitucional de eficácia exaurida, ou esvaída, que seriam as normas da Constituição que já efetivaram seus comandos, mesmo que não cumpridas, Se exaurem porque o pressuposto fático nela previsto já ocorreu, com ou sem cumprimento da determinação. Estas são próprias do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Exemplos: arts. 1º ao 6º; 8º, §§ 1º ao 5º; 9º, “caput”, e parágrafo único; 11 ao 16; 24 ao 27; 29, §§1º, 2º e, 5º; 34 etc.

O que seria a eficácia construtiva das normas constitucionais?

Há doutrina reconhecendo uma eficácia construtiva das normas constitucionais, quando as novas normas constitucionais incidem sobre as normas da ordenação anterior que são compatíveis com elas, para recriar as antigas dentro do espírito da nova Constituição. A eficácia construtiva, na verdade, evita que se cria um vácuo no ordenamento jurídico, privilegiando o princípio da continuidade da ordem jurídica, na medida em que permite que as leis anteriores à atual Constituição continuem em vigor, porém dentro do novo espírito constitucional. Assim, se constrói uma nova ordem jurídica, já existente, porém sem o espírito constitucional atual. Seria, na verdade, a própria recepção da lei anterior, que deve ser construída sob o espírito da nova Constituição, daí porque o correto seria dizer novação, e não só recepção, porque as leis anteriores precisariam passar pelo crivo do novo espírito constitucional que está vigorando no país. A eficácia construtiva, necessariamente, passa pelo princípio da filtragem constitucional, que enfatiza que todo o ordenamento jurídico deve passar a ser obrigatoriamente válido somente se houver compatibilidade com a Constituição, forçando o intérprete a construir um novo ordenamento

com base no novo espírito constitucional. A Constituição, então, seria o filtro de todo o ordenamento jurídico anterior, que não deixa de existir, mas que necessariamente só terá validade se conseguir passar pela “auditoria constitucional”.

Classificação das prescrições constitucionais O Professor UadiLammegoBulos (Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2007, p. 366) classifica as normas constitucionais quanto às prescrições contidas nelas, da seguinte forma:

a) Normas mandatórias (preceptivas e proibitivas) – normas de cumprimento obrigatório e inescusável, seja com obrigação de fazer ou não fazer. Quando se trata de obrigação de fazer, são preceptivas (5º, “caput”; 44; 164). Quando se trata de obrigação de não fazer, são proibitivas ou vedatórias (5º, III, XLV, XXXVII, XI, XII; 14, §2º; 17; 142, §3º, IV). Quando ao mesmo tempo estatuir obrigação de fazer e de não fazer, são normas com bipolaridade eficacial (art. 5º, XVII);

b) Normas facultativas (ou permissivas) – normas que consagram permissões, porém sem obrigar ninguém a fazer ou não fazer. São exceções às normas mandatórias (art. 18, §3º; 22, p. Único; 25, §3º; 60; 154, I; 182, §4º). Há normas constitucionais facultativas e, concomitantemente, mandatórias proibitivas (art. 53 – permite à União decretar impostos, mas proíbe que Estados e Municípios os instituem);

c) Normas diretivas (diretórias, prospectivas ou programáticas) – são normas que orientam a atividade do legislador, para que faça leis para concretizar os programas, as metas e as diretrizes traçadas pela Constituição. Têm caráter prospectivo (pro futuro), para incutir na mente do legislador a necessidade de regulamentar os assuntos traçados (art. 170; 215; 218);

d) Normas dispositivas (ou remissivas) – normas constitucionais que funcionam como complemento de outros preceitos constitucionais. Estipulam condições para o exercício de direitos e deveres de natureza pública. “Remissivas” porque elas mesmas remetem, explícita ou implicitamente, para outro dispositivo constitucional, para que a junção dos dois possa dar o sentido desejado (art. 155, §2º, VI que remete ao inciso XII, “g”).

j) Normas programáticas

Depois do parto, a mãe vê pela primeira vez seu filho e decreta: “Meu filho, você deverá ser feliz durante toda a sua existência, manter-se ético, humano, solidário, respeitador, rico, inteligente e astuto, além de manter, sempre, perfeita harmonia com Deus.” O que a mãe fez, sem querer, foi estabelecer uma série de diretrizes para seu filho, porque ela, no fundo, sabe que não basta decretar isto no ouvido de seu rebento. Para seu intento se concretizar, sabe que será preciso um conjunto de fatores que estão alheios ao seu alcance, mas não despreza, também, que a decretação sussurrada poderá facilitar as coisas. Quando surge uma Constituição, ocorre a revogação por normação geral, porque há uma automática revogação total da ordem constitucional anterior, e com isso uma nova vida social e jurídica é inaugurada: o Poder Constituinte Originário faz uma nova saudação ao futuro. Por isso, é natural que o legislador constituinte coloque no texto constitucional as diretrizes para o futuro, formatando a sociedade dentro dos valores sedimentados pelo povo. Esta saudação para o futuro é feita, geralmente, por meio de normas programáticas, ou normas de princípio programático, que são aquelas em que o legislador constituinte traça fins e objetivos do Estado, consubstanciando esquemas genéricos, diretrizes e programas de ação, exigindo, portanto, prestações positivas, porém sem regular direta e imediatamente um interesse. As normas programáticas são próprias para constituições dirigentes, porque se o legislador vai além do método utilizado nas constituições garantistas e exige, além de prestações negativas do Estado, também prestações positivas para que o cidadão alcance a felicidade, é natural que estas prestações positivas venham insertas em programas, projetos e diretrizes. Normas programáticas, então, são normas jurídico-constitucionais de aplicação diferida que prescrevem obrigações de resultados, e não obrigações de meio, com vinculação ao princípio da

legalidade ou referidas aos poderes públicos ou ainda dirigidas à ordem econômico-social, porque estabelecem diretrizes e programas obrigatórios, daí sua eficácia. Não cria, imediatamente, um direito subjetivo e nem são autoaplicáveis, porque dependem de fatores alheios à vontade puramente constitucional, mas cria, imediatamente, uma obrigação para o Poder Público e, em geral, para toda a comunidade, que não pode contrariar o seu mandamento e também devem realizar prestações e políticas públicas visando efetivar seu espírito. As normas programáticas dão um norte para a atuação do legislador e do dirigente público, fazendo com ele fique limitado às metas, às diretrizes e aos programas constitucionalmente traçados. Há, sem dúvida, uma limitação, porque são impositivas. Porém, não há retirada de toda liberdade de atuação do legislador e do administrador, liberdade esta que é preservada em grande quantidade, para fazer valer sua liberdade de conformação na medida em que há plasticidade constitucional para adaptar o espírito constitucional às realidades sociais subjacentes. É dizer: as normas programáticas estabelecem programas obrigatórios, mas os governantes não ficam completamente amarrados a tais programas, porque não perdem a liberdade para que se estabeleçam seus próprios programas de governo.

Efeitos das normas programáticas Importante lembrar que, como toda norma jurídica (seja norma de eficácia plena, contida ou limitada), a norma programática tem efeitos jurídicos. O constitucionalismo moderno entende, aliás, que tais normas têm eficácia negativa, que é a capacidade de gerar: eficácia paralisante (revoga as disposições contrárias ou incompatíveis, impedindo que a Constituição Federal recepcione as normas infraconstitucionais incompatíveis com seu espírito); eeficácia impeditiva(a norma programática serve para fundamentar declaração de inconstitucionalidade de lei superveniente à CF/88, que impede a criação de programas estabelecidos nos programas e diretrizes da norma programática). Lembre-se que Maria Helena Diniz enfatizou o efeito negativo das normas constitucionais de eficácia absoluta, porque têm força paralisante total de qualquer norma contra as cláusulas pétreas. Pode haver confusão, então, em relação ao efeito negativo, seja por nomenclatura, seja pela utilização em um contexto específico. Assim, diferencia-se a eficácia negativa das normas programáticas (eficácia paralisante e impeditiva), e o efeito negativo das normas constitucionais de eficácia absoluta. Necessário contextualizar o efeito negativo e a eficácia negativa, portanto.

Espécies de normas programáticas Costuma-se dividir tais normas em três espécies:

Norma programática vinculada à legalidade.Preveem uma legislação futura para que o programa, a diretriz ou o esquema constitucionais seja implementado, dependendo, portanto, da atividade do legislador, que é discricionária. Exemplos: art. 7º, XI, XX e XXVII; art. 173, §4º; art. 216, §3º; art. 218, §4º;

Norma programática destinada ao Poder Público.Destina-se a regular a atividade do Poder Público, sem mencionar a necessidade de lei. Exemplos: art. 21, IX; art. 48, IV; art. 184; art. 211, §1º; art.215, “caput” e §1º; art. 216, §1º; art. 217; art. 218; art. 226;

Norma programática destinada à ordem econômico-social.São normas destinadas não só para o Estado, mas também para todos os particulares que formarem a ordem sócio-econômica, como empresários, empresas e trabalhadores. É possível dizer que tais normas, apesar de programáticas, têm mais efetividade que as outras, porque qualquer conduta, situação ou circunstância criada ou praticada em desacordo com as diretrizes apontadas, serão inconstitucionais. Exemplos de tais normas: Art. 170; art. 193; art. 196; art. 205. Esta divisão revela bem o fato de que as normas programáticas exigem uma atuação positiva, seja do legislador, seja do Poder Público, seja uma atuação material de todos.

Normas programáticas, direitos humanos fundamentais e o direito prestacional

As normas programáticas, via de regra, não têm a missão de regular interesses, daí porque sua força normativa não é e nem pode ser igual às demais normas constitucionais. Tem força jurídica, sim, porque toda norma constitucional é importante, vincula a todos e influencia todas as atitudes do Estado, porém não tem força normativa imediata, porque a regra é a não criação de direitos subjetivos por normas programáticas. Os direitos subjetivos devem surgir de modo indireto, após a efetivação de políticas públicas. Por exemplo: determinada pessoa não pode vir ao Judiciário exigir que seu salário mínimo seja capaz de atender todas as suas necessidades, porque assim a Constituição diz (art. 7º, IV). Também não pode exigir, pelo Judiciário, que o Estado lhe ofereça cursos de capacitação na área tecnológica, baseando-se no fato de que o art. 218 impõe ao Estadoa promoção da capacitação tecnológica. Entretanto, o Judiciário vem dando maior enfoque a tais normas constitucionais programáticas, na medida em que são normas constitucionais que a todos vinculam. Só pelo fato de serem constitucionais, estas normas merecem respeito e não há como reconhecer sua força jurídica. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu da seguinte forma:

“INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA

CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado” (RE-AgR 393175/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJ de 02-02-2007, p. 140).

Quando a norma programática envolve direitos fundamentais, a doutrina e a jurisprudência entendem que ela tem um plusem relação a outras (algo a mais que as outras não têm), e por isso tem um mínimo de eficácia, porque a relação com os direitos fundamentais traz para ela uma importância maior até mesmo em face do §1º do art. 5º da CF/88: “as normas definidoras dos direitos e garantidas fundamentais têm aplicação imediata”. A norma programática faz surgir algum direito? Sim, faz surgir o que se chama de direito prestacional. O Estado deve efetivar prestações e, a depender do nível de omissão estatal (é dizer, se a omissão é repetitiva, se não foram tomadas nenhuma atitude, configurando uma clara, ilegítima e constante omissão estatal, até mesmo o Judiciário poderá ser invocado). É necessário, entretanto, fazer uma observação sobre os direitos prestacionais, especialmente para concurso público. O examinador, nas provas objetivas, certamente levará em consideração que a norma programática faz parte das normas de eficácia limitada, o que é inegável. Como foi visto, a característica da norma de eficácia limitada é que ela não faz surgir direito algum, isto é, ela, por si sós, não gera o fim nela previsto. Assim, a consequência imediata é que, se a norma programática faz parte das normas de eficácia limitada, evidentemente que ela não gera nenhum direito. Esta será, provavelmente, a visão do examinador, salvo em uma prova discursiva. É que quando se fala em direito prestacional, não se trata de um direito subjetivo, exigível desde logo inclusive no Judiciário. O direito prestacional é um direito ideológico, que pode ser exigido por pressão social, de modo político. Costuma-se dizer que “o povo pode exigir que o Estado lhe dê condições de vida”. Neste caso, o povo exige nada mais que o direito prestacional que resulta das normas programáticas. Entretanto, o povo não pode exigir, perante o Judiciário, o cumprimento do direito prestacional. Esta é, portanto, a regra, porque como veremos à frente, existem algumas situações em que o direito prestacional acaba tangenciando o direito subjetivo, quando, no caso concreto, for aplicável a reserva do possível.

Princípios da proibição do retrocesso e teoria da reserva do possível

E qual, efetivamente, é a força jurídica e normativa da norma programática? Existem perspectivas subjetivas para tais normas? Há algum tipo de eficácia?

Em relação à eficácia, vimos que a norma programática tem o poder de criar a eficácia negativa, mas há outros tipos de eficácia. O princípio da proibição do retrocesso enfatiza que, se a norma programática já foi colocada em prática mediante prestações positivas do legislador, estas prestações positivas não podem mais deixar de existir. É dizer: se já foi editada uma lei dando efetividade ao esquema, ao projeto, à diretriz ou ao programa constitucional, ocorre o direito adquirido, e o legislador não pode mais voltar atrás. Na verdade, este princípio da proibição do retrocesso não impede que o legislador volte a atuar sobre o tema já tratado em lei anterior. O que proíbe é que o legislador simplesmente acabe com o direito produzido anteriormente pela legislação anterior. Ele pode, então, atuar para criar outras condições, alternativas ou compensações. É por isso que o princípio da proibição do retrocesso significa que o legislador não pode retroagir para prejudicar o núcleo essencial criado anteriormente. Um exemplo citado por Canotilho, no Direito Constitucional Português, é o subsídio do desemprego, que aqui no Brasil seria o seguro-desemprego. A intenção é assegurar o grau mínimo de segurança social já alcançado, de modo que, se criado tal seguro, o legislador não pode mais extingui-lo. Pode até diminuir sua amplitude, mas jamais extingui-lo, porque a norma programática proíbe este retrocesso. Outro bom exemplo da força jurídica, e da própria força normativa das normas programáticas, está na criação da teoria da reserva do possível em relação à eficácia dos direitos fundamentais, direitos estes muitas vezes com previsão de efetivação por normas programáticas. A reserva do possível trata das possibilidades financeiras do Estado, de modo que o Judiciário não pode impor ao Executivo uma prestação que está além das suas capacidades financeiras, mas pode impor uma prestação se ficar comprovado que a prestação exigida em juízo é razoável, que há disponibilidade financeira e que, sem tal disponibilidade para o caso concreto, haverá prejuízo ao mínimo existencial do ser humano. O STF, na ADPF 45-MC/DF, Rel. Min. Celso de Melo, adotou teoria, ou cláusula, ao enfatizar que a aplicação da reserva do possível, na implementação dos direitos de segunda geração (direitos sociais), traduz-se em um binômio que compreende, de um lado, a) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro b) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. É por isso que a reserva do possível torna viável a intervenção do Judiciário para efetivação dos direitos sociais, desde que a prestação exigida seja razoável e exista disponibilidade financeira estatal para que o mínimo existencial da pessoal não seja prejudicado. Esta teoria acabar por interferir no âmbito normativo dos direitos fundamentais, na medida em que acaba dando força normativa, obrigando o Poder Público diante da criação de um direito subjetivo no caso concreto, em função da aplicação direta de uma norma que, via de regra, teria eficácia limitada. No entanto, é preciso analisar cada caso, sob pena de transformar a teoria da reserva do possível em instrumento de autoaplicabilidade de todo e qualquer direito social. O TRF 4ª Região, na Suspensão de Segurança 2005.04.01.000213-1/PR, por exemplo, suspendeu uma decisão que obrigava a União a liberar U$ 275.000 para que a pessoa se submetesse a uma cirurgia nos EUA, alegando que a liberação da soma prejudicaria as demais políticas públicas voltadas à saúde, como a de combate ao câncer, à Aids, ao diabetes mellitus, à hipertensão arterial, dentre outras tantas, máxime diante da escassez orçamentária. Também no STJ, na Suspensão de Tutela Antecipada n. 59, DJU 02.02.2004, o Min. Nilson Naves, suspendeu uma decisão “a quo”, que impunha a obrigação do Estado fornecer a qualquer pessoa, independentemente de listagem oficial da RENAME, porque a decisão invadiu a seara exclusiva da Administração. Entretanto, em muitos casos, o Judiciário mantém decisões que concedem direitos relacionados aos direitos sociais, inclusive com liberação de dinheiro ou remédios caros, quando ficar claro que a prestação exigida não é desproporcional, serve para assegurar o mínimo existencial da pessoa humana e há disponibilidade financeira. O julgamento da ADPF 45-MC/DF, Rel. Min. Celso de Melo, pelo STF, é um destes casos, podendo ser citada também o julgamento do RE-AgR 410715/SP (Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJ 03.02.2006, p. 76), onde o STF determinou ao Município de Santo

André/SP, a concretização do direito constitucional dos pais de verem seus filhos em creches públicas, até a idade de 6 (seis) anos (hoje, 5 (cinco) anos), com fundamento inclusive na teoria da reserva do possível. Assim, determinou a autoaplicação do art. 208, IV, da CF/88, que previa o dever do Estado com a educação mediante a garantia de: “atendimento em creche e pré escola às crianças de zero a seis anos de idade” (hoje, com a EC 53/06, prevê o dever mediante a garantia de “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade”), já que a “a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental”. Assim, destacando que a questão era pertinente à reserva do possível, acabou enfocando que “Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional”. Finalmente, é preciso lembrar que, apesar destas indagações e dos dois princípios estudados (proibição do retrocesso e reserva do possível), o Judiciário deve ser cuidadoso ao tentar controlar estas normas programáticas no sentido delas surtirem direitos subjetivos, porque não cabe a ele formular as políticas públicas, e deve respeitar a separação dos Poderes. Assim, a conclusão é que o Judiciário só pode utilizar normas programáticas, para conceder direito ou interferir na atividade legislativa ou administrativa, e somente podendo dar vazão aos direitos previstos em normas de eficácia limitada no caso de proibição de retrocesso e na reserva do possível, em casos excepcionais, sob pena de burlar a tripartição do Poder e acabar invertendo o sistema de confiança elaborado pela Constituição, que confiou no Poder Executivo para realizar as políticas públicas.

Condicionamento e vinculação por norma programática

É correto dizer, por tudo que se viu, que as normas constitucionais programáticas condicionam a atividade discricionária da Administração, e condiciona, também, o conteúdo da legislação futura. Esta é uma eficácia jurídica clara. Canotilho afirma a positividade das normas programáticas, acarretando: a) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização, por expressa imposição constitucional; b) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomar as normas programáticas em consideração como diretivas materiais permanentes, em qualquer momento da atividade concretizadora (legislação, execução e jurisdição); c) vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob forma de inconstitucionalidades, em relação aos atos que as contrariam. Daí porque o mesmo J.J. Gomes Canotilho afirma: “Além de constituírem princípios e regras definidoras para o legislador e a administração, 'as normas programáticas' vinculam também os tribunais, pois os juízes 'têm acesso a Constituição', com o consequente dever de aplicar as normas em referência (por mais geral e indeterminado que seja o seu conteúdo) e de suscitar o incidente de inconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento dos atos normativos contrários às mesmas normas.”, daí porque, segundo o jurista português, as normas programáticas “têm ainda efeito ´derrogatório´ ou ´invalidante´ dos atos normativos incompatíveis com as mesmas”.

Teorias materiais e processuais da Constituição, desjuridificação e desconstitucionalização

Especialmente depois da 2ª Guerra Mundial, as Constituições começaram a ser editadas com uma grande quantidade de dispositivos, sempre privilegiando as garantias individuais e sociais, indo além, então, da organização estatal. As Constituições passaram, então, a prever princípios de legitimação do poder, com várias dimensões (políticas, sociais, liberais, democráticas etc.), e não só

princípios de organização do Estado, dando a elas uma politização até então desconhecida, ou até então não tão intensa. Antes mesmo da 2ª Grande Guerra, a Constituição de Weimar (1919), começou a ser o ponto de partida para que as constituições passassem a ter caráter normativo, regulando não só o aspecto político, como também o conjunto de anseios sociais e econômicos. Esta forma de constitucionalismo suscitou um inevitável debate sobre as funções da Constituição, envolvendo sua relação com a Política e o Estado. Surgem, então, as teorias processuais e materiais da Constituição. As teorias processuais consideram a Constituição como um simples instrumento de governo, que define competências e regula procedimentos, deixando as decisões de políticas públicas e as diretrizes sociais fora do texto constitucional, ficando de fora, também, os problemas de legitimação do poder. A Constituição, então, não poderia ter conteúdo social ou econômico, e serviria para garantir o status quo, sem adentrar no conteúdo das decisões políticas, de modo que a Política e o Estado ficam com a maior responsabilidade para mudança deste status. Afinal, quanto mais a Constituição for impregnada de questões políticas, sociais e econômicas, ela cada vez mais perderá a sua necessária juridicidade. As teorias processuais, então, enxergam que a Constituição sobrecarregada de dispositivos de toda ordem (sociais, políticos, jurídicos, econômicos etc.) acabamtrazendo para o texto constitucional a filosofia, a sociologia, fazendo dela um texto contraditório e extremamente fluido, capaz de gerar insegurança. As teorias materiais, pelo contrário, coloca a Constituição como algo total, que deve englobar tudo, inclusive com a aspiração de ser um agente transformador da sociedade, de mudança da realidade pelo próprio Direito a partir de definição de tarefas, programas e fins para o Estado e para a sociedade. Nestas teorias materiais, destaca-se a Teoria Material da Constituição, que é, na verdade, uma Teoria Social, ou Teoria da Constituição Dirigente, com objetivo de impregnar a Constituição de normas programáticas para dar força de direção para a sociedade, estabelecendo um programa de alteração da sociedade. Assim, as normas programáticas forjam imposições constitucionais, determinando a realização de tarefas e persecução de fins, de responsabilidade e vinculação não só legislativa, mas também política. A Constituição é responsável pela legitimação do poder, e, além do mais, cria um controle de constitucionalidade dos atos estatais. A crítica que se faz à Teoria da Constituição Dirigente (hoje em voga no mundo, até em face do neoconstitucionalismo que, é bom relembrar: a) reconhece a força normativa da Constituição; b) expande a jurisdição constitucional; e c) força novas interpretações constitucionais, dando aplicação direta da Constituição a várias situações e ascende a importância institucional do Poder Judiciário), é a sua vã imaginação de que a mudança da realidade pode ser feita apenas pela Constituição, desconsiderando o papel decisivo do Estado e da Política. Assim, estas teorias acabam criando uma Constituição sem Estado. Outra crítica é que o dirigismo acaba por fazer dos Tribunais verdadeiros órgãos políticos, a partir do sobrecarregamento da Constituição pela limitação do comportamento estatal, da Política e a grande quantidade de normas programáticas, até porque a Constituição nada mais é que resultante da Política, e não o contrário. Por outro lado, a crítica às teorias processuais revela-se no fato de que a retirada do conteúdo legitimador, e a limitação da Constituição como mero instrumento de governo só pode servir para países muito desenvolvidos, onde não há preocupação com o papel do Estado e da Política na concretização do bem comum da sociedade. A partir do momento em que a sociedade, o povo ou a nação precisam de algo mais do que o status quo, impossível pensar em limitar o papel da Constituição. Isto seria um suicídio institucional e uma tendência ao autoritarismo e às injustiças. A cidadania, então, correria risco de efetivação, caso houvesse o esvaziamento da Constituição. Ainda é necessário citar que o debate entre as teorias processuais e as teorias materiais suscita outra discussão. As teorias processuais são vistas como uma verdadeira estratégia para a desjuridificação, isto é, para que a jurisdição constitucional seja diminuída, fazendo com que Constituição não imponha as decisões jurisdicionais como fator de substituição das políticas públicas, valorizando, assim, os Poderes Legislativo e Executivo, e, de forma geral, o próprio Estado e a Política, como os responsáveis pela alteração do status quo, e não simplesmente o Poder Judiciário. Também são vistas, até por consequência natural da desjuridificação, como forma de desconstitucionalização, isto é,

retirar do texto constitucional a grande parte das matérias de interesse da sociedade, dando plasticidade e maior conformação substancial ao legislador, para que ele possa ter mais liberdade para adequar a legislação às novas realidades sociais e econômicas, não ficando preso a normas constitucionais de difícil alteração.

l) Normas constitucionais de ordem, diretivas e de fim

De ordem são aquelas normas constitucionais que tentam impor uma ordem e certa tranquilidade em determinado momento crítico e conturbado, como acontece com o Estado de Defesa e o Estado de Sítio.

Norma constitucional diretiva é aquela que condiciona a atividade legislativa, afetando (condicionando, direcionando) a forma e o conteúdo das leis futuras em face da reserva legal existente, como é exemplo as limitações formais do processo legislativo e as cláusulas pétreas. Impõe uma direção a ser seguida pelo legislador.

Norma de fim, ou de princípio impositivo, é aquela que estabelece um programa a ser seguido por todos os Poderes, precipuamente o Legislativo e o Executivo, como, p. ex., a erradicação da pobreza, o respeito à dignidade humana, a educação e a saúde para todos (é o outro nome da norma programática).

m) O caráter polifacético da Constituição e os elementos constitucionais

É muito utilizada a categorização feita por José Afonso da Silva, a respeito dos elementos constitucionais.

O doutrinador entende que na Constituição existem elementos que compõem a sua estrutura normativa, e que por isso lhe dá um caráter polifacético (poli = várias; facético = cabeça). É dizer: na Constituição existe a unidade das normas constitucionais, de modo que o conjunto de todos os valores devem ser somados e interligados para revelar o espírito total do texto constitucional, sem hierarquia entre suas normas, mas, independentemente disto, não se pode negar que existem vários capítulos, seções, títulos com regras e elementos próprios. Assim, existem regras, e até princípios, que se aplicam só para determinado assunto tratado em uma seção ou em um capítulo, ou, pelo menos, preponderantemente para este assunto (pense-se, por exemplo, nos princípios relativos ao meio ambiente, à família e à criança etc.).

Assim, na Constituição de 1988 existem os seguintes elementos constitucionais:

Elementos orgânicos. Estes elementos contém as normas que regulam a estrutura do Estado e do poder, e, na atual Constituição, concentram-se, predominantemente, nos Títulos III (Da Organização dos Estado), IV (Da Organização dos Poderes e do Sistema de Governo), Capítulos I e II do Título V (Das Forças Armadas e da Segurança Pública) e VI (Da Tributação e do Orçamento), e constituem aspectos da organização e funcionamento do Estado.

Elementos limitativos. São elementos que se manifestam nas normas que consubstanciam o elenco dos direitos e garantias fundamentais: direitos individuais e suas garantias, direitos de nacionalidade e direitos políticos e democráticos. São denominados limitativos porque limitam a ação dos poderes estatais e dão a tônica do Estado de Direito. Acham-se eles inscritos no Título II da nossa Constituição, sob a rubrica Dos Direitos e Garantias Fundamentais, excetuando-se os Direitos Sociais (Capítulo II), que entram na categoria seguinte.

Elementos sócio-ideológicos. Os elementos sócio-ideológicos se revelam nas normas que tentam enfatizar o compromisso de harmonia entre o Estado individualista e o Estado Social, intervencionista, como as do

Capítulo II do Título II (Dos Direitos Sociais), e as dos Títulos VII (Da Ordem Econômica e Financeira) e VIII (Da Ordem Social).

Elementos de estabilização constitucional. Estão consagrados nas normas destinadas a assegurar a solução de conflitos constitucionais, a defesa da constituição, do Estado e das instituições democráticas, premunindo os meios e técnicas contra sua alteração e sua violação, e são encontrados no art. 102, I, a (ação de inconstitucionalidade), nos arts. 34 a 36 (Da Intervenção nos Estados e Municípios), 59, I, e 60 (Processo de emendas à Constituição), 102 e 103 (Jurisdição constitucional) e Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, especialmente o Capítulo I, porque os Capítulos II e III, como vimos, integram os elementos orgânicos).

Elementos formais de aplicabilidade. Os elementos formais estão nas regras de aplicação das constituições. Se revelam, então, no preâmbulo, no dispositivo que contém as cláusulas de promulgação e as disposições constitucionais transitórias, além do §1º do art. 5º, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”

n) Abertura horizontal e abertura vertical das normas constitucionais

Abertura horizontal refere-se à abertura da Constituição, e não da norma constitucional, aumentando o espaço de discricionariedade ou liberdade de conformação, com normas constitucionais abertas, onde o legislador tem mais chances de concretizar a Constituição.

Abertura vertical refere-se à abertura das normas constitucionais, e não da Constituição, diminuindo o espaço de discricionariedade ou de liberdade de conformação, com normas constitucionais densas, onde o legislador tem menos chances de concretizar as normas constitucionais.

A abertura horizontal e a vertical, então, refere-se à densidade das normas constitucionais (Canotilho). A abertura de uma norma constitucional significa, sob o ponto de vista do método, que ela comporta uma delegação relativa aos órgãos concretizadores; a densidade, por sua vez, aponta para uma maior proximidade da norma constitucional relativamente aos seus efeitos e condições de aplicação. A existência de maior ou menor densidade das normas constitucionais, abrindo-as para a concretização do legislador, ou fechando-as em si mesmas, afasta um tanto a noção de que existem normas exequíveis por si mesmas e não exequíveis, já que todas demandariam uma posterior atitude concretizadora, mais ou menos intensa.

o) Plasticidade da Constituição16

A plasticidade é o conjunto de normas abertas da Constituição, em face de sua abertura horizontal, contrária às normas fechadas, densas e impenetráveis à ação dos seus intérpretes e aplicadores, pois se caracterizam pela possibilidade de mais intensidade permeável e com sensibilidade para implementar os princípios e valores constitucionais. É característica das Constituições mais modernas.

É comum considerar a plasticidade como apreponderância dos princípios fundamentais sobre outras normas também constitucionais, no caso de conflito – antinomia jurídica imprópria -, só possível nas Constituições mais modernas que contêm normas abertas. Não se trata de hierarquia, e sim de preponderância, dando uma plasticidade ao intérprete, que pode resolver a colisão e modelar a atuação de um princípio que tenha mais intensidade para o caso, ponderando os valores. Sem plasticidade, e suscetibilidade para aplicação ponderada dos valores constitucionais, seria impossível resolver a colisão de princípios constitucionais.

16

Para completar o raciocínio sobre plasticidade da Constituição, remeto o leitor para a “Constituição Plástica”, dentro da classificação das constituições.

A doutrina, sob diferentes visões, acaba conceituando de forma diversa o mesmo instituto, dando interpretações variadas e até criando institutos. Daí porque é preciso esclarecer que existe o conceito difundido de Constituição plástica, que seria aquela que poderia ser modificada da mesma forma que as leis infraconstitucionais (Constituição flexível). Este conceito, na verdade, complementa o conceito de plasticidade, na medida em que, se uma Constituição pode ser modificada como se modificam as leis infraconstitucionais, é porque a Constituição está mais aberta à capacidade de conformação do legislador, para adequar mais facilmente o texto constitucional às novas realidades sociais e econômicas. Afinal, a plasticidade se caracteriza por isto mesmo: dá maior possibilidade do legislador modelar a legislação à realidade social e econômica. Plasticidade é qualidade do que é plástico, isto é, que é suscetível de ser modelado: a Constituição plástica, então, seria aquela que possibilita uma modelação mais fácil e dinâmica da ordem jurídica com a realidade social e econômica, ao contrário da Constituição densa, que impediria aos seus intérpretes e aplicadores a sua modelação. Também é característica da plasticidade, a inserção no texto constitucional de cláusulas gerias (conceitos jurídicos indeterminados), com termos e expressões abertos, que podem ser interpretados com maior liberdade para aplicação aos casos concretos. É o caso de “ordem pública”, “interesse social”, “boa-fé”, “função social”, “paz social”, “instabilidade institucional”. Também outras cláusulas, como “razoabilidade”, “dignidade humana”, “solidariedade”, “eficiência”, “moralidade”, “valor social do trabalho”, permite a utilização delas pelo legislador infraconstitucional, que acaba tendo maior poder de conformação e liberdade para modelar a regra constitucional de acordo com a realidade.

Bem por isso, destacou Raul Machado Horta, que, “considerando a natureza obrigatória da norma constitucional, o preenchimento de regras constitucionais pela legislação ordinária demonstra, entretanto, que a Constituição dispõe de plasticidade. A plasticidade permitirá a permanente projeção da Constituição na realidade social e econômica, afastando o risco de imobilidade que a rigidez constitucional sempre acarreta”.

p) Eficácia e vigência de leis infraconstitucionais por determinação da Constituição

Antes de iniciar uma incursão nos casos em que nossa Constituição possibilita a existência de lei vigente sem eficácia, importante buscar no Direito Civil alguns ensinamentos básicos sobre o tema.

Não se pode confundir publicação, vigência, eficácia e validade da lei.

Publicação é a divulgação do texto da lei no Diário Oficial. Tem por objetivo o conhecimento de todos, para que não se alegue desconhecimento (lembre-se que a publicação e a promulgação são fases complementares do processo legislativo; a lei começa a existir com a sanção, que está dentro da fase constitutiva).

Vigência é o período que vai da publicação da lei até a sua revogação (é o seu tempo de existência, por assim dizer). Via de regra, a vigência começa depois de 45 (quarenta e cinco) dias da publicação.

Eficácia é a aptidão da lei para produzir seus efeitos.

Validade é a conformidade da lei perante o ordenamento jurídico, em especial perante a Constituição (daí porque muitos tratam "validade" como "constitucionalidade"). Há validade formal (constitucionalidade formal ou nomodinâmica) se a lei é feita dentro do procedimento estabelecido pela Constituição; há validade material (constitucionalidade material, substancial ou nomoestática) quando o conteúdo da lei não é incompatível com o conteúdo da Constituição.

Sendo assim, é possível a existência de:

lei que tenha sido publicada, mas que ainda não tenha vigência. O caso clássico é a "vacatio legis", cujo prazo geral é de 45 dias, conforme art. 1º da LICC.

lei que tenha sido publicada, tenha vigência, mas que não tenha eficácia. Os casos clássicos, de índole constitucional, são aquelas hipóteses previstas no art. 24, §4º, art. 52, X, art. 16, art. 62, §3º (trataremos estas hipóteses a seguir, com mais vagar).

lei que tenha sido publicada, tenha vigência e eficácia, mas que não tenha validade. É o caso da lei inconstitucional, que, apesar disto, produz resultados, ou então que tenha sido declarada inconstitucional pelo STF com modulação temporal (art. 27 da Lei 9.868/99) (remeto o leitor para a tema "controle de constitucionalidade").

lei revogada que tenha eficácia. Isto ocorre porque existe a eficácia jurídica e a eficácia social. Lei juridicamente eficaz é aquela que já pode produzir resultados; é a lei que produz direitos subjetivos, com capacidade para produzir os resultados nela previstos. Em um palavreado popular, é a "lei que pode ser utilizada para alguém entrar na Justiça". Lei socialmente eficaz é a lei que de fato produz resultados e altera a realidade social; é a lei que produz os efeitos que dela se espera. Também em um palavreado popular, é a "lei que pega". Por isso que é possível verificar lei revogada com eficácia. Imagine-se uma lei que já foi revogada, mas as pessoas continuam seguindo seus mandamentos: ela tem eficácia, porque muda o comportamento das pessoas, mesmo que já tenha sido revogada17. Passaremos, agora, a falar pormenorizadamente sobre os casos em que a nossa

Constituição indica a lei ineficaz, porém com plena vigência.No texto constitucional, existem situações expressas, onde esta diferença se torna visível, em especial pela previsão de vigência sem eficácia. Vejamos:

Artigo 24, §4º18. Se uma lei estadual se antecipar à lei federal sobre regras gerais, e entrar em vigor, mas

posteriormente surgir a lei federal contrariando a lei estadual, esta lei estadual continuará em vigor, mas não terá eficácia (tema relacionado à repartição vertical de competência concorrente não cumulativa). Isto ocorre porque lei federal não revoga lei estadual e esta não revoga lei municipal, porque, via de regra19, não há hierarquia entre as leis federais, estaduais e municipais, tendo-se em vista que cada ente tem autonomia e campo de atuação especificado pela Constituição. Então, diante da falta de lei federal dispondo sobre regras gerais, os Estados podem dispor sobre tais regras gerais, podendo as estaduais perderem eficácia (e não vigência), se a União fizer a esperada lei sobre regras gerais.

Artigo 52, inciso X20.

17

O § 11 do art. 62, com redação dada pela EC 32/01, permite um caso de ultra-atividade da Medida Provisória, que se equipara com norma sem vigência mas com eficácia. Neste ponto, caso a MP seja editada e publicada, e venha a perder a eficácia por decurso de prazo, ou venha expressamente a ser rejeitada, espera-se que o Congresso Nacional regule as relações jurídicas dela decorrentes por meio de decreto legislativo. Mas se o Congresso não publicar este Decreto? Como ficarão estas relações jurídicas efetivadas com base em uma MP que não tem mais vigência e nem eficácia? Neste caso, a MP que foi rejeitada, ou que tenha perdido a eficácia, continuará produzindo efeitos para regular aqueles atos praticados enquanto ela estava vigente. É um caso de ultra-atividade da norma provisória, que produz resultados mesmos que não mais exista no mundo jurídico. Veja mais especificamente sobre o tema no tópico “Medidas Provisórias” do Capítulo Do Processo Legislativo. 18

“A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”. 19

O único caso em que há doutrina afirmando existir uma hierarquia entre leis federais e estaduais, se refere à repartição vertical de competências no art. 24 da Constituição. Neste caso, a hierarquia se dá porque a lei federal diz sobre regras gerais e as estaduais apenas a suplementam. Entretanto, veja que a repartição de competências diz que a lei federal deve regular regras gerais, e as leis estaduais devem regular regras suplementares. O problema, então, parece mais próximo ao problema da identificação do que é regra geral e do que é regra suplementar, e não ao problema da hierarquia. Vide “Repartição de competências”. 20

“Compete privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

Se o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional uma lei pelo controle difuso/incidental, e o Senado suspender os efeitos de tal lei, ela estará em vigor (já que só pode ser revogada por outra lei posterior, conforme Lei de Introdução ao Código Civil), mas não terá eficácia. No tema do controle de constitucionalidade, esta hipótese é analisada com mais profundidade, mas já é possível lembrar que no controle difuso de constitucionalidade, a sentença tem efeitos somente para as partes (“interparts”), daí porque o Senado poderá dar efeito “erga omnes”, ao suspender a eficácia da lei que já era considerada inconstitucional para as partes de determinado processo.

Artigo 1621. A lei que alterar o processo eleitoral estará em vigor desde a data da sua publicação,

mas não terá eficácia na eleição que ocorra até um ano da data da sua vigência, quando então faltará aplicabilidade.

Artigo 62, §3º22. Medida provisória publicada terá vigência assim que publicada, mas se em 60 dias da

publicação não for convertida em lei e o prazo não for prorrogado, não terá eficácia naquele período de vigência, já que o decreto-legislativo é que regulará as situações ocorridas neste período.

Também haverá vigência sem eficácia quando uma Medida Provisória contrariar uma lei anterior: esta lei anterior terá vigência, mas ficará sem eficácia até que a nova Medida Provisória seja acatada ou rejeitada pelo Congresso Nacional. Isto ocorre porque lei só se revoga por lei, e a Medida Provisória não tem, assim, a mesma natureza da lei, daí porque a MP afasta a eficácia da lei até que seja transformada em lei.

q) Mutação constitucional

É a modificação do significado original do texto constitucional sem alteração formal do seu texto. Não ocorre reforma constitucional. A mutação é a responsável por mudar o sentido da norma constitucional, já que as palavras permanecem inalteradas, mudança que ocorre em função de uma nova interpretação ou em função de imposições de usos e costumes alterados durante o tempo. A mutação constitucional tem íntima ligação com o fator temporal, com se vê. Com a mudança da composição do STF, por exemplo, as chances de ocorrer a mutação constitucional são maiores. Um exemplo de mutação constitucional diz respeito ao sentido do inciso VII do art. 37 da CF/88, que inicialmente o STF declarou não aplicável o direito de greve enquanto não surgisse a lei regulamentando (norma de eficácia limitada). Agora, com a nova composição, foi entendido que esta norma dá direito aos servidores públicos exercerem o direito de greve, independentemente de legislação específica sobre a greve no serviço público, porque se aplica analogicamente a Lei 7783/99 (passou a adotar a teoria concretista nos mandados de injunção propostos para regular a norma constitucional) (vide mais detalhadamente no tópico das normas constitucionais de eficácia contida). O STF acata a possibilidade de mutação, e a entende que se tratará de mutação a mudança de interpretação da Corte sobre as normas constitucionais. Serve como parâmetro o HC-QO 86009/DF, Rel. Min. Carlos Britto, 1a Turma, DJ 27.04.2007, p. 67:

“EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM. HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE TURMA RECURSAL DE JUIZADO

ESPECIAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALTERAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. REMESSA

DOS AUTOS. JULGAMENTO JÁ INICIADO. INSUBSISTÊNCIA DOS VOTOS PROFERIDOS. Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, modificando sua jurisprudência, assentou a competência dos Tribunais de Justiça estaduais para julgar habeas corpus contra ato de

21

“A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. 22

“As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes”

Turmas Recursais dos Juizados Especiais, impõe-se a imediata remessa dos autos à respectiva Corte local para reinício do julgamento da causa, ficando sem efeito os votos já proferidos. Mesmo tratando-se de alteração de competência por efeito de mutação constitucional (nova interpretação à Constituição Federal), e não propriamente de alteração no texto da Lei Fundamental, o fato é que se tem, na espécie, hipótese de competência absoluta (em razão do grau de jurisdição), que não se prorroga. Questão de ordem que se resolve pela remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, para reinício do julgamento do feito.” Assim, sempre que o STF mudar uma posição anteriormente tomada, mesmo sem

alteração do texto constitucional, estará praticando mutação constitucional. A doutrina costuma dizer que a mutação constitucional pode ocorrer por três fórmulas:

a) nova interpretação; b) mudança dos usos e costumes (mudança da realidade fática-social, que acaba forçando uma nova visão do texto constitucional em comparação com a nova realidade, utilizando, assim, a plasticidade da Constituição); c) construção constitucional (ocorre quando a jurisprudência acaba forjando a criação de novos institutos, como ocorreu com o controle difuso de constitucionalidade, que apareceu após julgamento do caso Marbury x Madison em 1803, pela Suprema Corte dos Estados Unidos e, em certa medida, como ocorreu no Brasil com o surgimento do “Habeas Corpus”, depois das decisões judiciais de alargamento do poder do mandado de segurança, incitado por Rui Barbosa).

Mutação inconstitucional e limites às mutações constitucionais

Fala-se em mutação inconstitucional sempre que as mutações constitucionais acabarem

contrariando a própria Constituição, e também em limites às mutações constitucionais, que, na verdade, é uma tentativa de limitar o poder dos juízes de mudar de posição e ver o texto constitucional por outros olhos.

Parece ser impossível, primus ictuoculi, falar em limites à mutação constitucional, porque esta mutação surge justamente pela liberdade e independência do juiz de julgar. Os limites, além de serem subjetivos, estariam vinculados à técnica interpretativa, ou então à impossibilidade do juiz utilizar-se da sua liberdade de julgamento para proferir decisões teratológicas, razão porque o verdadeiro limite está no próprio sistema de duplo grau de jurisdição.

É certo que métodos tradicionais de interpretação (gramatical, teleológico, lógico, sistemático, histórico) e os novos métodos de interpretação constitucional (tópico-problemático, hermenêutico-concretizador, científico-espiritual, normativo-estruturante) surgem justamente para dar mais segurança jurídica, ao impor ao intérprete as etapas necessárias para se chegar ao verdadeiro sentido da norma. É extreme de dúvida que surgiram vinculados à ideia de limitação da liberdade interpretativa.

Assim, se for possível falar em limites à mutação constitucional, falaríamos que estes limites estão circunscritos ao princípio do duplo grau de jurisdição e aos métodos de interpretação.