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Introdução Em um artigo publicado pela Brazilian Political Science Review emjulhode2007,momentoemqueoprojetoeuropeudeconstrução política acabara de ser desafiado pela não-ratificação de seu primei- ro Tratado Constitucional, propus discutir algumas das razões deste aparente fracasso. Entre elas, considerava que as questões institu- cionais, entrelaçadas e potencializadas pela incorporação à União Européia(UE)dedozenovospaísesdoLesteedoSuldaEuropa,po- deriam trazer subsídios relevantes para a discussão. 467 * Artigo recebido e aprovado para publicação em abril de 2008. ** Professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja- neiro (IRI/PUC-Rio). E-mail: [email protected]. CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 30, n o 2, maio/agosto 2008, p. 467-522. A União Européia: Uma Comunidade em Construção* Sonia de Camargo**

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Introdução

Em um artigo publicado pela Brazilian Political Science Review

em julho de 2007,momento emque o projeto europeu de construçãopolítica acabara de ser desafiado pela não-ratificação de seu primei-ro Tratado Constitucional, propus discutir algumas das razões desteaparente fracasso. Entre elas, considerava que as questões institu-cionais, entrelaçadas e potencializadas pela incorporação à UniãoEuropéia (UE) dedoze novos países doLeste e doSul daEuropa, po-deriam trazer subsídios relevantes para a discussão.

467

* Artigo recebido e aprovado para publicação em abril de 2008.

** Professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja-

neiro (IRI/PUC-Rio). E-mail: [email protected].

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 30, no 2, maio/agosto 2008, p. 467-522.

A União Européia:Uma Comunidadeem Construção*Sonia de Camargo**

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Essa percepção, em suas grandes linhas, continua a parecer-me acer-tada. Por essa razão, retomo, neste artigo, algumas das questões exa-minadas naquela época e prolongo a discussão até o presente, quan-do umnovoTratado daUnião – nãomais chamadodeConstitucionale sim deTratadoReformador, aprovado naCúpula Européia deChe-fes de Estado e de Governo em outubro de 2007, durante a presidên-cia de Portugal – abre um novo processo de consulta à população. Otema da ampliação também continuará presente neste trabalho,acrescido de novas indagações e problemas que foram aparecendocommaior nitidez àmedida que o contato entre os antigos e os recen-tes Estados incorporados à União se tornoumais próximo emais en-trelaçado.

Voltando aoque escrevi nomeu artigo anterior, a rejeição doTratadoConstitucional Europeu nos referendos realizados na França e naHolanda, seguida de uma interrupção do processo de consulta naGrã-Bretanha, Polônia, Portugal,RepúblicaTcheca,Dinamarca, Su-écia e Irlanda, deflagrou uma crise político-institucional que,mesmonão tendo sido terminal, ecoou como um grito de alerta no seio daselites européias, até então seguras de que a decisão tomadanão conti-nha a possibilidade de retrocesso.

Diante do resultado inesperado, os governantes europeus que havi-am apostado na constitucionalização do projeto de unificação políti-ca da União se deram conta de que uma reflexão profunda sobre onovo rumo a ser tomado se tornara imprescindível e urgente. A apos-ta que haviam feito e que refletia as palavras do então presidente doParlamento Europeu, o espanhol Josep Borrell, quando afirmara que“aUEhavia nascido comoumprojetomobilizador e comoum sonhode paz e cooperação entre países historicamente antagônicos, sonhoque se tornara realidade namedida em que, em cinqüenta anos, o an-tagonismo entre eles se havia transformado em parceria e coopera-ção” (BORRELL, 2005), não foi lido contudo, dessa maneira, porparte da população européia.

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As palavras de Josep Borrell descrevem, entretanto, uma históriareal. Se nos voltarmos para o início do trajeto, a fortemotivação paraa integração da Europa que orientou a geração de Helmut Khol teve,como objetivo central, o fim da sangrenta história de guerras no con-tinente. A esse impulso inicial, interpretado racionalmente por Kon-radAdenauer, incorporou-se a idéia da necessidade da integração doEstado alemão a umprojeto comumeuropeu, emumesforço para di-luir as suspeitas históricas de uma nação que, mesmo enfraquecidapoliticamente, não tardaria em se fortalecer economicamente(HABERMAS, 2001).

A Europa deste início de século, porém, não é mais a mesma dopós-guerra, uma vez que os dois lados do conflito passaram a consi-derar, decorridosmais de cinqüenta anos, que o objetivo de paz entreeles, ancorado em instituições e sociedades democraticamente cons-tituídas e consolidadas, foi alcançado. O segundo objetivo, o da inte-gração daAlemanha a um projeto comum, também foi realizado, es-pecialmente depois que a reunificação do país, que passou a abrigaruma população de 82 milhões de habitantes, não trouxe de volta osvelhos sonhos imperiais. O fato de que a hipótese de regressão ger-mânica foi afastada do imaginário europeu reforçou a idéia de que apaz, tão trabalhosamente conquistada ao longo de mais de meio sé-culo, estava ligada, intrinsecamente, à construçãodeumaEuropapo-liticamente unificada (HABERMAS, 2001). Porém, como a histórianão se detém, se os objetivos iniciais do projeto de integração euro-péia já foram alcançados, quais os desafios que se colocam agora àsua frente para que essa integração se aprofunde, e quais as dimen-sões políticas e geográficas a que ela se propõe atingir?

As respostas não são unívocas, mas o fato de que a União Européiatenha passado a abrigar, a partir de 1o de maio de 2004, doze novosEstados (os últimos dois em janeiro de 2007) já é um começo de ex-plicação. A extensão da ampliação irámodificar, necessariamente, anatureza e os passos do processo em curso, assim como amultiplici-

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dade dos desafios e problemas a ele ligados. Comefeito, a integração

de doze novos países – sem contar os que já estão na fila de espera –,

ao trazer para dentro das fronteiras da União uma população históri-

ca, política e culturalmente mais diversificada, apresenta-se como

uma tarefa tanto ou mais trabalhosa do que a que ocorreu no pós-

guerra dos anos 1950.No atual contexto pós-Guerra Fria, o volume e

a heterogeneidade das aspirações e demandas dessas novas popula-

ções fazem com que o fortalecimento da coesão entre elas e a formu-

lação de uma agenda de reformas que atinja todas as esferas da vida

cotidiana se tornem essenciais para o avanço da construção dessa

“Grande Europa” há mais de meio século iniciada (HABERMAS,

2001).

Aproveitando esse gancho, proponho-me, neste texto, a refletir sobre

em que consistiria, para os cidadãos e governos da UE, os antigos e

os recém-incorporados, essa Europa a ser construída, esse sonho de

paz, de democracia e de bem-estar que se expressou tanto nos que

disseram “sim” ao Tratado Institucional apresentado à população

porque o julgaram portador de uma nova esperança, como para os

que disseram “não” porque o avaliaram como insuficiente ou pouco

adequado à nova realidade que estavam vivendo. A partir desse pon-

to, pretendo, para uma maior compreensão da conjuntura em que se

deu a não-aprovação do Tratado Constitucional e da que se seguiu a

esse acontecimento, trazer para o presente questões que, ao longo do

processo, não haviam sido resolvidas, dificultando seu trajeto, e ou-

tras que, surgidas no bojo de acontecimentos mais recentes, tiveram

força para interrompê-lo. Elas serão agrupadas em torno de um eixo

central, o da tentativa de constitucionalização do modelo políti-

co-institucional da União, tema que, intrinsecamente ligado ao da

ampliação das suas fronteiras geopolíticas, havia passado a ser visto

pelas elites européias como o melhor e único caminho que a Europa

tinha pela frente.

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Na verdade, a opção por um caminho constitucional só aparece comclareza vários anos depois de haver sido assinado oTratado deMaas-tricht, em fevereiro de 1992. Nessa ocasião, nem seus próprios de-fensores se aventuravam a falar em constitucionalizar o projeto deintegração em curso, já que isso teria significado estampar-lhes nacara o ultrapassado e mesmo ofensivo “F” de federalistas. Dez anosdepois, lideranças políticas como Joschka Fischer, Jacques Chirac,Giscard D’Estaing, Helmut Khol e intelectuais como Jürgen Haber-mas davam respeitabilidade política e legitimidade acadêmica àperspectiva constitucionalista.

A virada a favor do constitucionalismo veio, como já foi assinalado,no bojo do projeto de ampliação, a partir do qual se tornou consensu-al a percepção de que a velha engrenagem institucional Comis-são-Conselho-Parlamento poderia implodir sob o peso de novosmembros, caso não se fizesse uma revisão profunda de sua arquitetu-ra. O resultado alcançado no Conselho de Helsinque, em dezembro1999, que parecia sugerir umaunanimidade em torno da necessidadede se constitucionalizar a estrutura institucional que estava sendo re-vista, não significou, contudo, consenso no que se refere ao conteúdoe à forma que a nova arquitetura deveria apresentar (WEILER,2002). A rejeição do Tratado Constitucional por uma parcela da po-pulação européia confirmou essa hipótese.

Nomomento presente, um novoTratado daUnião, que desta vez eli-minou a palavra “Constitucional”, já está sendo apresentado parauma nova consulta. A recente incorporação de doze novos Estados eas que estão previstas para um futuro próximo (a adesão da Croáciaestá prevista para 2010 e a da Turquia sem data prevista) tornarão aUE, para bem ou para mal, politicamente diferente, independente-mente de qual for a engrenagem institucional adotada.

Não são as expectativas econômicas, por mais promissoras que pos-sam parecer, as capazes de gerar uma motivação suficiente para in-

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duzir a população a dar seu apoio ao projeto de integração do conti-nente. É claro que a legitimidade do que está sendo julgado dependede sua eficiência. Mas a grande decisão que está em jogo é em quetermos a velha maquinaria, com seus antigos processos de decisão ede representação, será revista pelo novo Tratado Reformador e setornará capazde encontrar os fundamentos e osmeios que assegurema formação de uma identidade coletiva e de um compromisso de uni-dade política para a Europa. Esses objetivos só poderão ser alcança-dos pormeio de ummovimento de aproximação entre as antigas e asnovas famílias políticas e culturais que, a partir de sensibilidades etrajetórias próprias, proponham-se a construir um caminho unifica-do que possa ir além da dicotomia clássica entre uma “EuropaUniãode Estados” e uma “Europa Superestado” (NICOLAIDIS, 2003).

Na realidade, essa dicotomia constitui um desafio teórico e práticoposto desde sempre diante da Comunidade/União Européia, desafioque, tendo nascido nos primeiros anos de sua formação, adquiriu, nodebate e na conjuntura atuais, maior sentido de urgência. Antes deentrar na análise dos temas que constituem o cerne dessa discussão,gostaria de fazer algumas considerações teóricas voltadas para o pro-cesso de integração regional da Europa que, em virtude da sua com-plexidade e particularidade, concentrou em seu estudo uma vastagama de teorias gerais e específicas sobre o tema do regionalismo napolítica internacional.

O Debate Teórico

Semmepropor, neste trabalho, a estender-me emumadiscussão teó-rica geral sobre integração regional, quero trazer para o debate aque-las correntes que podem nos auxiliar na compreensão da atual reali-dade européia. Partindo da dualidade entre “uma Europa União deEstados” e uma “Europa Superestado” exposta acima, uma primeiraconstataçãomostra-nos que, se percorrermoso corpo teórico relacio-nado coma construção daUE, veremos que as diferentes abordagens

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que tentam interpretá-la coincidem em que o padrão de relaciona-mento entre Estado nacional e União constitui a questão central so-bre a qual se assenta a legitimidade do processo (SCHILD, 2001).

Esse caminho, queme servirá de fio condutor, leva-me a apontar, ini-cialmente, as correntes clássicas que tratambasicamente dessa temá-tica. Em uma ponta desse espectro, situam-se as estadocêntricas, es-pecialmente em suas duas modalidades, liberal intergovernamenta-lista (MORAVCSIK, 1993) e neo-realista (KRASNER, 1997;GRIECO, 1990;MERSHEIMER, 1990), perspectivas que, caras aoscientistas políticos norte-americanos, tendem a olhar a União Euro-péia sob o prisma dominante das Relações Internacionais.

Apesar de apresentarem diferenças entre si, essas correntes se unemem torno do paradigma “agente principal”, segundo o qual os Esta-dos nacionais que compõemaUnião constituemo ator-chave em seuprocesso de integração, isto é, aquele de onde partem as decisões e aserviço de cujos interesses se colocam as instituições comunitárias.Essa abordagem, que se assenta sobre o princípio de que a soberania,sendo alguma coisa que não pode ser dividida entre diferentes níveisde autoridade em ummesmo espaço territorial, sugere que nenhumatransferência significativa de poder dosEstados-membros para insti-tuições européias ou para outros atores possa ocorrer (MALAMUD;SCHMITTER, 2006). No que se refere à legitimidade dos Estadosnacionais para exercerem o papel que lhes é reconhecido, o de agen-tes principais do processo, esse aspecto não é questionado, na medi-da em que o que precisa ser legitimada não é a identificação destesEstados em termos de Europa, já que eles são os portadores de umalegitimidadeprópria, e simapolítica européia deEstados, cuja legiti-midade depende de seu reconhecimento pelos atores nacionais.

Algumas distinções entre as duas vertentes acima examinadas po-dem ser, contudo, apontadas. Mais acentuadamente do que os neo-realistas, os liberais intergovernamentalistas desenvolvem a idéia da

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possibilidade de negociação entre governos, argumentando que aevoluçãodaComunidadeEconômicaEuropéia, hojeUnião, é produ-to de uma seqüência de barganhas, cada uma das quais fixando aagenda para o período que se segue. De acordo com essa interpreta-ção, a UE pode ser vista como um regime internacional destinado aadministrar a interdependência econômica por meio de uma nego-ciação política, cujos termos decorrem de uma interação entre a for-mação da preferência nacional e a estratégia intergovernamental.Como fundamento dessa posição, as perspectivas de poder, foco cen-tral dos neo-realistas, sãomenos essenciais do que as de desenvolvi-mento econômico, sugerindo que aUE, enquanto regime internacio-nal, incorpora a função de garantir o incentivo para que os atores na-cionais cooperem e ganhem estabilidade (MORAVCSIK, 1993).

Na outra ponta, situam-se as correntes neofuncionalista e federalista,desenvolvidas especialmente pelos europeus em seus estudos sob aperspectiva de política comparada que, convergindo em visualizar aUE como um “Estado federal inacabado”, segundo as palavras doprimeiro presidente da Comissão Européia Walter Hallstein,1 suge-rem que umEstado federal pleno deverá substituir o Estado nacionalem suas funções centrais de governo (HALLESTEIN, 1964, p. 63).Nesse aspecto, as duas correntes aparecem entrelaçadas, o que per-mite que possam ser reunidas sob ummesmo rótulo, o de “funciona-lismo federal” ou de “federalismo funcional”, combinação que de-corre, segundo Morten Kelstrup (1998), do pouco sucesso políticodos federalistas europeus dos anos 1950, obrigados a combinar obje-tivos federais com uma visão funcional em setores específicos doprocesso de integração. Isso não impede, contudo, que possam serdiferenciadas em vários outros aspectos.

Começando pelos neofuncionalistas, seus trabalhos – ao contráriodas teorias anteriores que presumiam que o processo reproduzia, ne-cessariamente, as características dosEstados participantes e do siste-

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ma de Estados do qual eram membros – partiram da idéia de que opróprio processode integração temopoder de transformar a naturezados Estados nacionais soberanos e do próprio jogo em que estão in-cluídos. No que se refere à Europa Ocidental, forammotivados pelapercepção de que, dadas as características que cercavam seu proces-so de integração, esta região constituía, mais do que qualquer outra,um objeto de estudo com especificidade própria (SCHMITTER,2003). A influência desta corrente foi visível desde os primeiros pas-sos do projeto de integração, tendo traçado o rumoda estratégia utili-zada na formação da Comunidade Européia do Carvão e Aço(CECA), mais tarde da Comunidade de Energia Atômica (Euratom)e da Comunidade Econômica Européia (CEE). Ao longo do proces-so, o neofuncionalismo, seguindo a evolução das instituições e daspolíticas implantadas na região, incorporou à sua teoria um maiornúmero de varáveis, tornando-a mais complexa em sua percepçãodas mudanças que estavam ocorrendo na Europa, o que lhe permitiupredizer um espectro mais amplo de possíveis efeitos. Como decor-rência, o conceito de spill-over foi sendo substituído pelo despill-around, o que significava que a reflexão até então vigente, con-centrada em um único ator, ampliava seu foco, incorporando ao pro-cesso, como objeto de análise, as organizações, cujo crescimento decompetências e poderes, derivado das conseqüências inesperadassurgidas no bojo das funções e tarefas exercidas nacionalmente, exi-gia que se revestissem de um enquadramento supranacional(DOUGHERTY; PFALTZGRAFF JR., 2001).

Esse fator de supranacionalidade que aproxima os neofuncionalistasdos federalistas não impede, contudo, que se diferenciem em váriosoutros aspectos conceituais e substantivos. Por um lado os federalis-tas compartilham com os neofuncionalistas a visão transformadorado processo e a percepção da existência demomentos episódicos emque uma pluralidade de atores, e não apenas os governos, concordamsobre um novo formato institucional. Mas diferem no que pode ser

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chamado de “regulacionismo”, dividindo coma corrente intergover-namentalista a presunção de que a direção e o percurso da integraçãosão determinados pela interação dos Estados nacionais que calculamseus interesses nacionais e o poder relativo que cada umquer oupodedispor sem que, em nenhuma circunstância, a natureza desses Esta-dos possa ser modificada no curso do processo (MORAVCSIK,1997).

Para os europeus que estudaram a Europa do segundo pós-guerradesde uma perspectiva de política comparada, a experiência federa-lista norte-americana, assim como a existência, nesse país, de agên-cias reguladoras governamentais independentes – que, no caso euro-peu, foram projetadas para a esfera supranacional – constituíramuma referência obrigatória (MALAMUD; SCHMITTER, 2006). Apartir desse ponto, aUE apresenta-se, essencialmente, comoumpro-jeto político que deve ser pensado e programado enquanto tal e nãocomo decorrência da crescente complexidade das tarefas que, tendoultrapassado as possibilidades de execução na esfera nacional, seri-am funcionalmente mais bem exercidas na esfera da União. Tais es-tudos postulam que a criação de uma “Europa União de Estados” re-quer uma mobilização política apoiada em objetivos ligados nãosimplesmente a interesses, mas, sobretudo, a valores e crenças(HABERMAS, 2001).

Esta posição, defendida explicitamente pelo ministro alemão de Re-lações Exteriores, Joschka Fisher, em 2000, tem suas raízes nos anos1950, quando Robert Schuman, ministro das Relações Exteriores daFrança, apresentou a idéia de umaFederação européia comoelemen-to indispensável à preservação da paz.Comessa iniciativa, Schumanmarcava o começo de uma nova era no continente, proposta que, ten-do sofrido recuos e avanços ao longo do tempo, renasceu, nos primei-ros anos deste século, sob a forma de umTratadoConstitucional que,não tendo sido aprovado nos referendos realizados na França e naHolanda em 2005, prepara-se agora, sob a roupagem de um novo

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Tratado da União, para ser novamente apresentado à população eu-ropéia.

Como complemento desses dois enfoques, situam-se os que descre-vem a UE como um sistema emergente de governança em vários ní-veis, isto é, como uma forma policêntrica e não hierárquica de orga-nização e de decisão política em que os Estados nacionais, apesar denão serem mais os únicos atores significativos do processo, perma-necem como o locus onde a soberania, ainda que mitigada, se assen-ta. Abaixo e acima desse centro, superpõem-se e entrelaçam-se dife-rentes aspectos de governança, formando redes complexas emque secombinam atores nacionais, regionais e europeus públicos e priva-dos (WALLACE, 1999).

Para autores como Schmitter (2002), esta abordagem constitui umacolcha de retalhos namedida emque, tomando elementos das teoriasintergovernamentalistas, neofuncionalistas e institucionalistas, nãoos combina emumaúnica teoria nememumavisão sintética e abran-gente do processo europeu de integração regional. Para outros auto-res, essa ambivalência se deve ao fato de que aUE se apresenta comoumprocesso que ainda está sendo construído, isto é, umprocesso emque se combinam políticas nacionais, intergovernamentais e euro-péias cujas fronteiras são pouco definidas. Essa falta de clareza, quetraz para o jogo europeu uma das questões mais sensíveis para seusEstados-membros e suas sociedades, isto é, a partilha de soberaniaentre as três esferas de poder – a nacional, a regional e a da União –,faz com que cada uma delas, na medida em que nenhuma domina asoutras duas de maneira permanente, apresente sua própria forma delegitimação.Comodecorrência, o surgimentodeumamultiplicidadede identidades dentro de um mesmo território obriga a repensar asformas de legitimá-las em torno da construção de um eixo comumque as aglutine e represente (DESCHOUWER, 2000; SCHILD,2001).

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Na verdade, esta última questão, a da multiplicidade de identidadesque se expressampor uma superposição de legitimidades diferencia-das, tem sido pouco estudada pelas correntes teóricas tradicionaisvoltadas para a integração regional. Contudo, coma recente incorpo-ração à UE de novos povos portadores de trajetórias políticas pró-prias, de culturas, crenças e práticas enraizadas em suas origens e emsuahistória ou emexperiências do seu cotidiano eque terãoque com-partilhar princípios e objetivos que formama base do projeto de inte-gração européia, novas indagações e novas respostas se têmmultipli-cado, vindas não unicamente do campo das Relações Internacionais.Nesse sentido, a Ciência Política, a Sociologia, a Antropologia, aHistória e demais disciplinas das Ciências Sociais têm contribuídopara trazer novos elementos a esse debate, incorporando temas comodemocracia, legitimidade, cultura, identidade, coesão social, formasdeparticipação cidadã, direitos humanos, todos interligados eque fa-zem parte intrínseca da construção de um compromisso social co-mumdentro de umespaço político unificado. Pormeio dele, diferen-tes autores procuram compreender de que maneira as novas frontei-ras daUE–que não se sabe até onde se estenderão – serão capazes deabrigar essa “Grande Europa” pacífica, plural, democrática e social-mente coesa que os cidadãos europeus almejam construir. Apoian-do-me nas interpretações trazidas por esses autores, quero apontaralguns dos caminhos abertos por eles na tentativa de refletir sobre te-mas que, na atual conjuntura daUE, passaram a ter uma centralidadenão existente anteriormente ou em outras experiências de integraçãoregional.

Entre os caminhos possíveis, o construtivismo tem trazido pistas im-portantes para se estudar aUE em seu processo de construção. E issoporque um conjunto significativo de evidências sugere que, enquan-to processo, a integração européia exerce um impacto transformadorno sistema de Estados europeu e em suas unidades constitutivas, aomesmo tempo em que o próprio processo vem se transformando ao

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longo dos anos, assim como a identidade de seus agentes, seus inte-resses e seu comportamento.

Isso não quer dizer que o construtivismo venha a substituir as teoriasclássicas sobre integração regional já aqui mostradas e se constituircomouma“grande teoria” substantiva sobre oprocesso europeu.To-davia, ao procurar utilizar ferramentas que analisemo impacto da in-tersubjetividade e do contexto social emque isso se dá, a teoria cons-trutivista aumenta a capacidade de compreender o porquê e de quemaneira a integração européia chegou aonde está. Nesse sentido, aodesenvolver uma perspectiva que inclui os processos de formação deidentidade e de interesses, ela acrescenta elementos teóricos e empí-ricos novos, até então pouco estudados pelas correntes clássicas vol-tadas para as experiências de integração regional.

Se nos situarmos dentro desse campo de reflexão, uma das questõesmais antigas e recorrentes que acompanham toda a história da Euro-pa, incluindo o atual processo europeu de integração, é a indagaçãosobre a possibilidade de formação de uma identidade genuinamenteeuropéia, e se esta poderia servir de âncora para o desenvolvimentode uma unidade política no continente (SMITH, 1992). Com efeito,basta percorrer os livros de História, talvez desde antes de CarlosMagno e do Império Romano, para ver como união política e identi-dade são questões que, implícita ou explicitamente, aparecem comfreqüência, desafiando a compreensão dos historiadores. Qual seriaentão a razão que explicaria nestemomento da história européia o re-novado interesse pelo temada relação entre umaEuropa unida politi-camente e a existência de uma identidade européia que lhe serviria debase (SMITH, 1992)?

Várias respostas são possíveis. Amais óbvia delas aponta para o fatode que a perspectiva de unificação européia, independente da exten-são que possa ter, nunca esteve tão próxima. Como acréscimo, há ofato de que esta unificação abrange uma pluralidade de Estados, na-

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ções, povos e indivíduosque, vindosdediferentes regiões, histórias etradições culturais, já foram, em sua grande maioria, geopolitica-mente incorporados àUnião.Ressurge, então, a antiga pergunta: serápossível constituir um sentido próprio de pertencimento, uma identi-dade européia emergente que coexista ou substitua asmúltiplas iden-tidades nacionais (RISSE, 2003)?

A esse respeito, diferentes interpretações têm sido dadas. Boa partedelas se apóia na idéia de que os indivíduos são portadores de múlti-plas identidades sociais, o que faz com que se sintam parte, ao mes-mo tempo, de umadeterminada região, nação, gênero, semque o for-talecimento de uma dessas identidades implique, necessariamente,em decréscimo das demais (RISSE, 2003). Todavia, no caso especí-fico da UE, especialmente quando referido ao amplo processo deampliação que está vivendo, ainda não há evidências de como as no-vas populações irão se situar diante desse novoespaçopolítico/cultu-ral no qual estão entrando. Contudo, a esse respeito, hipóteses suge-rem que o conflito maior venha a ocorrer entre uma identidade pura-mente nacional e outra superposta e ainda não cristalizada, a euro-péia. Isso não elimina o fato de que, se levarmos em conta que a Eu-ropa e a nação são ambas “comunidades imaginadas”, nada impedeque as pessoas possam se sentir parte de ambas sem precisar optarpor sua identidade original (ANDERSON, 1991).

Essa questão nos remete a umoutro aspecto levantado por alguns au-tores e que acrescenta uma nova perspectiva ao problema: o fato deque a identidade européia não apresenta um significado substantivoclaro, podendo representar para pessoas diferentes coisas diferentesno que se refere à ideologia, território, política, cultura, religião(MARCUSSEN et al., 1999). Partindo desse pressuposto, duas di-mensões distintas podem ser traçadas: de um lado, uma Europa defi-nida em termos culturais e, de outro, uma União Européia definidaem termos cívicos. No primeiro caso, o continente é visto como umespaço cultural historicamente demarcado, o que implica herança,

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etnicismo, civilização e outras formas de identidade social mais doque uma entidade político-territorial. Já no segundo, aUEévista, ba-sicamente, como uma entidade cívica construída socialmente, o quesignifica a existência de cidadãos identificados com uma estruturapolítica particular e com um território de fronteiras definidas.

Para autores como Habermas (1992; 1994; 1996), contudo, essa se-paração deve ser relativizada. Ele argumenta que tanto uma dimen-são como a outra podem, no curso do próprio processo de integração,gerar coletivamente uma identidade cívico-cultural pós-nacional emque democracia, direitos humanos, economia de mercado, estado debem-estar social e diversidade cultural passem a representar os fun-damentos de uma nova legitimidade, isto é, valores a partir dos quaissão definidos os critérios para a adesão dos novos membros à UE(HABERMAS, 1992; 1994; 1996; LENOBLE, 1992). Esta idéia éreforçada por autores como Hobsbawm (1991) que afirmam queuma integração transnacional, nos moldes do que está ocorrendo naEuropa, constitui um meio de terminar para sempre com a antiga“questão das nacionalidades”, tema recorrente na política européiadesde, pelo menos, a consolidação dos Estados nacionais no séculoXIX.

A revisão teórica que fizemos até aqui nos indica a complexidade emultiplicidade de aspectos que cercam a integração européia. Comodecorrência, aUE temsido interpretada de váriasmaneiras de acordocom as diferentes perspectivas adotadas, mas, em qualquer uma de-las, a figura do Estado nacional, tal como é classicamente entendido,e sua relação com a União aparecem como o centro da discussão.Com efeito, para uns, a integração européia é vista como um proces-so de transformação ou de declínio do Estado moderno; para outros,como um processo novo e único de construção política não necessa-riamente tendo o Estado como eixo. Paralelamente, alguns autoresnos indicam que o processo europeu, juntamente com a globaliza-ção, a liberalização dosmercados e o crescimento da sociedade civil,

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enfraqueceu a competência funcional dos Estados nacionais, espe-cialmente no que se refere à regulação dosmercados e à sua seguran-ça interna e externa.Damesmamaneira, a questão democrática não émais percebida como prerrogativa exclusiva dos Estados, vistos tra-dicionalmente como portadores exclusivos de uma identidade co-mum e de um território homogêneo. Mesmo que o debate sobre de-mocracia em nível europeu esteja longe de haver sido concluído, adiscussão sobre essa questão se situa, cada vez mais, em uma ordempluralista que transcendeo espaçonacional (HOBSBAWM,1991).

Como ponto central desta parte do trabalho, é possível afirmar que aintegração européia, mesmo sendo vista de diferentes lugares e sobdiferentes aspectos, dilui a relação tradicional entre soberania, terri-tório, nacionalidade e função, elementos que constituem a essênciado Estado nacionalmoderno (KEATING, 2004). A partir desse pon-to, a principal questão institucional que se apresenta para aUE é o lu-gar que irá ocupar e as funções que deverá exercer o Estado nacionaldentro da União. Dessa resposta depende o projeto europeu de inte-gração que está sendo construído.

Ampliação e

Institucionalidade2

Como já foi recorrentemente apontado neste texto, as questões polí-tico-institucionais adquiriram, coma incorporação ao espaço territo-rial da UE de 130 milhões de novos habitantes de diferentes proce-dências e culturas, um peso crescente no debate sobre o TratadoConstitucional apresentado à população em 2005 e, atualmente, nodebate sobre o Tratado Reformador que o substituiu. Com efeito,esse peso, que se tornara explícito a partir dos anos 1990 –momentoem que se iniciaram os processos que conduziriam à adesão da Polô-nia,Hungria,RepúblicaTcheca,Eslovênia,Estônia,Eslováquia,Le-tônia, Lituânia, Chipre,Malta, Bulgária eRomênia –, passou a repre-sentar uma força determinante a partir de maio de 2004 e de janeiro

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de 2007, quando esses Estados foram institucionalmente incorpora-dos à União.

A perspectiva de novas incorporações, em uma comunidade que jáconta comcerca de500milhões dehabitantes, reforça os temores dosgovernos e da população européia. Mesmo assim, passos já foramdados nessa direção, prevendo-se a adesão da Bósnia- Herzegovina,Croácia, República Federal da Iugoslávia, Macedônia, Albânia e,talvez, da Bielorrússia, Geórgia, Armênia e Turquia, sendo este últi-mo país o quemais resistências tem suscitado ao longo de suas tenta-tivas de aproximação com a UE. Entre os argumentos que estão nabase dessa resistência, há o receio de umcrescente aumento da popu-lação de origem islâmica nos países da EuropaOcidental, onde já vi-vem cerca de 12,5 milhões de muçulmanos. A adesão da Turquia,país de vasta população, significaria um acréscimo de 70milhões denovos habitantes, 90%dos quaismuçulmanos, passando assim a ser,além da mais populosa, a única nação muçulmana a fazer parte dobloco. Contudo, as resistências não impediramque, depois de longashoras de discussão no âmbito do Conselho Europeu reunido emEstrasburgo, emoutubro de 2005, fosse dada a largada para a adesão,sem prazo definido, da Turquia como membro de pleno direito.

Alongando-me nesse tema, já que a adesão da Turquia se apresentacomoumcaso não consensual naUE, cabe perguntar quais as razões,de um lado edeoutro, que tornarampossível apostar emuma integra-ção tão pouco ortodoxa. Do ponto de vista da UE, a integração dessepaís, se por um lado assinala o abandono definitivo dos planos parauma Europa culturalmente homogênea e com uma identidade religi-osa marcada, por outro faz com que a União se torne, paralelamente,um ator relevante no Mediterrâneo e no Oriente Médio, levando-seem conta que 97%damassa continental da Turquia e 90%de sua po-pulação se situam na Ásia.

Doponto devista daTurquia, a perspectiva de sua incorporação àUEtem significado, para uma parte da opinião pública do país, um estí-

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mulo ao processo de reformas políticas, econômicas e sociais emcurso, uma vez que boa parte de sua legislação terá que ser adaptadaàs leis européias. Isso fortalece os argumentos de setores reformistase progressistas que, apostando em princípios como democracia e di-reitos humanos, convergem com o que é exigido pela UE. Em senti-do contrário, setores radicais islâmicos ou ultranacionalistasopõem-se aos planos do governo de Ankara, acusando-o de fazerconcessões à UE com o objetivo de se integrar ao “clube cristão oci-dental”, passando a defender a opção inversa, a de que o país estabe-leça relações comomundo islâmico e comele constitua ummercadocomum na região (ÇAHA, 2005). De qualquer maneira, deve-se as-sinalar que a Turquia é um país secular, apesar de sua população serpredominantemente muçulmana. Sua Constituição, herança de umarevolução liderada porMustafáKemalAtatürk em1923 sobre as ruí-nas do ImpérioOtomano, prevê uma separação rigorosa entre assun-tos de Estado e de religião (ÇAHA, 2005). Essa disposição permitiuque fosse aprovado, em2005, o início das negociações comaUE, cu-jas condições para a adesão plena não incluíam nenhuma cláusula oureferência à religião. Essa postura, criticada por alguns países euro-peus, é coerente comaque aEuropa, berço do laicismo, temdemons-trado em seus Tratados, incluindo-se o recente Tratado Constitucio-nal não aprovado e o atual Tratado Reformador, em que se omitequalquer referência à cristandade. O contrário teria significado nãorespeitar a natureza laica do projeto europeu, autodefinido comouni-versal e não comoummonopólio judeu-cristão.ATurquia, portanto,inscreve-se dentro do que lhe é formalmente exigido, o que a capaci-tou para obter carta branca para iniciar as negociações de adesão que,certamente, serãoprolongadas pormais dedez anos (SEMO,2005).

É preciso lembrar, contudo, que, se juntarmos a possível adesão daTurquia e dos demais países candidatos aos doze países já incorpora-dos em 2004 e 2007, o equilíbrio interno da UE e a capacidade desuas instituições para absorver esse novo contingente de pessoas so-

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frerão um impacto desintegrador, obrigando a União a repensar suaarquitetura institucional, sua práticas funcionais e seu sistema de de-cisão. A razão está em que, dadas as características que apresentam,os problemas gerados pela recente incorporação desses novos Esta-dos e dos que estão na fila de espera são indiscutivelmente diferentese maiores dos que cercaram os processos anteriores de ampliação dobloco, isto é, os que se deram em 1954, 1973, 1981, 1986 e 1995.Com efeito, no caso presente, a adesão de países vindos do leste e docentro-sul do continente, ou melhor, vindos da “outra Europa”, sus-cita desconfianças profundas na medida em que tais países trazemem sua bagagem cinco décadas de regimes comunistas, situação quepoderia dificultar sua adaptação ao que lhes foi e lhes está sendo exi-gido, isto é, o compromisso com o acervo comunitário europeu, cujovolume e complexidade aumentou substancialmente.

Há ainda o fato de que o nível de desenvolvimento econômico dessespaíses, sendo significativamente mais baixo do que o dos países jámembros da União, exigirá políticas de nivelamento e de distribui-ção de recursos que podem gerar resistências por parte dos antigosmembros da UE que ainda dependem de benefícios e subsídios co-munitários. O que se espera, contudo, e é nisso que a União se apóia,é que todas as partes sejam capazes de construir objetivos, lealdadese identidades comuns que, superpondo-se às diferenças e particulari-dades que as definem, possam formar, em uma região de conflitosexacerbados, uma comunidade política unificada, pacífica e demo-crática.

Na realidade, a questão da ampliação também pode ser vista sob ou-tro ângulo. O que efetivamente pode trazer preocupação, segundoRobert Badinter, advogado e senador socialista francês e defensorintransigente do fracassado Tratado Constitucional, não é a adesãodeste ou daquele país à União, já que cada caso foi sendo negociadoseparadamente durante anos, e sim a ampliação ilimitada de suasfronteiras, isto é, uma ampliação que possa se estender, por exemplo,

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até as fronteiras do Irã e do Iraque. Para Badinter, a verdadeira ques-tão, a mais difícil e, aomesmo tempo, a quemenos reflexão tem sus-citado, é a que trata dos limites geopolíticos da UE. É inegável que odesconhecimento sobre até onde aEuropa poderá chegar, talvez até aabranger os 46 países doConselho da Europa, incluindo-se a Rússia,produz um efeito profundamente desestabilizador para a opinião pu-blica européia.3

A esse respeito, entretanto, é bom lembrar aos que se opuseram em2005 ao Tratado Constitucional, por temerem que este facilitasse aadesão de Estados considerados por eles como indesejáveis, que odocumento apresentado não facilitava nem dificultava juridicamen-te a ampliação, uma vez que as adesões realizadas emmaio de 2004 eas que se realizariam em janeiro de 2007, assim como as candidatu-ras negociadas nessa ocasião, obedeceram a critérios já fixados ante-riormente na reunião do Conselho de Copenhague, em 1993.

Sem querer alongar-me nessa discussão, já que não é, propriamente,o tema deste trabalho, quero salientar a riqueza teórica e substantivade que sua análise se reveste, uma vez que a realização de uma inte-graçãopolítica regional entre povos comhistórias, culturas, línguas eexperiências diferentes e, em muitos casos, de difícil conciliação,exige a formação de uma identidade coletiva que, mesmo tendocomobase a pluralidade e a diferença, possa construir umprojeto po-lítico legal e legitimamente aceito pelo conjunto de sua população,isto é, uma comunidade de direito, democraticamente constituída.

O Debate Institucional:

Trajetória e Perspectiva

Voltando-me agora para a dimensão institucional da UE, quero sa-lientar que a compreensão adequada de uma reforma domodelo nor-mativo europeu deve incorporar em sua reflexão, além da maneiracomo suas instituições são organizadas, quais os poderes com que

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contam e como estes operam, o contexto político em que se situam,os interesses que representam e as crenças normativas e cognitivasque cercam as mudanças propostas. Nesse sentido, as demandas poruma reforma institucional no atual contexto da UE têm como basetrês questões prioritárias que deverão estar incorporadas no novoTratado Reformador: primeiro, uma agenda econômica e social ex-tensa que, acoplada a mudanças políticas, deverá abranger grandeparte das esferas da vida cotidiana, o que vai exigir alterações na pró-pria arquitetura institucional da União; segundo, a reformulação econsolidação das formas de representação popular que asseguremuma participação ampla nas diferentes esferas decisórias, requisitodecorrente da recente ampliação e da perspectiva de novas adesõesque, aumentando significativamente o tamanho e a heterogeneidadedo bloco, irão produzir um impacto crescente na distribuição de re-cursos políticos e econômico-financeiros; por último, reformas queunifiquem o tratamento dado à política externa e à política interna-cional da região como resposta àsmudanças na economia global e nageopolítica mundial e ao desejo da UE de fortalecer seu papel inter-nacional e global (OLSEN, 2002).

Quero lembrar, contudo, neste momento em que a UE está diante deum novo Tratado da União que viria neutralizar o impasse geradopela rejeição doTratadoConstitucional, que não é a primeira vez queo caminho para uma Europa politicamente unificada parece inter-rompido. Já nos anos 1950, depois de haver sido constituída aComu-nidadeEuropéia doCarvão e doAço (CECA), a França rejeitou a cri-ação de umaComunidadeEuropéia deDefesa que previa a formaçãode um exército comum europeu sujeito à autoridade de um ministrode Defesa e de contingentes que seriam fornecidos pelos Esta-dos-membros. Esse projeto de uma Europa militar, que apareciacomo uma forma de poder resolver a espinhosa questão do rearma-mento daAlemanha –umavez que o exército europeu ficaria subme-tido a umaAssembléia Parlamentar Européia eleita por sufrágio uni-

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versal –, trazia embutida a idéia da criação de uma futura comunida-de política federal ou confederal fundamentada em uma separaçãodos Poderes e em um sistema representativo formado por um Parla-mento dividido em duas Câmaras (CAMARGO, 1999).

O projeto europeu de defesa, discutido ao longo dos anos 1953/54 eratificado por cinco dos Estados da “Europa dos Seis”, não foi apro-vado graças à rejeição da Assembléia Nacional Francesa, que o per-cebia como de inspiração claramente federalista. Esse fracasso afas-tou por alguns anos a idéia da formação de uma comunidade política,abrindo espaço para que se avançasse na realização de um objetivoeconômico imediato – o único em redor do qual havia consenso –,que apontava para a implantação de ummercado comum que, racio-nalizando aprodução e trazendobem-estar à população, consolidariao projeto de estabelecimento de uma comunidade econômica e mo-netária (CAMARGO, 1999).

Alguns anos depois, na primeira metade dos anos 1970, no bojo dadiscussão sobre a incorporação de novos Estados – concretizada em1972 com as adesões da Grã-Bretanha, Irlanda e Dinamarca –, ficouclara a necessidade de, alémde se avançar na construção domercadocomume de uma futuraUniãoEconômica eMonetária, aprofundar erenovar as instituições comunitárias. A partir dessa perspectiva, écriada no Parlamento Europeu, em 1981, uma Comissão Institucio-nal que, presidida porAltieroSpinelli, apresentou umprojeto deTra-tado da União que ressuscitava a perspectiva federalista, gradual-mente perdida em benefício do fortalecimento da perspectiva inter-governamental (SPINELLI, 1988). O documento, aprovado por 237votos contra 31 e 43 abstenções, era endereçado aos Parlamentos na-cionais, convidados a convencer seus próprios governos a ratificá-lo.Nele, previa-se a incorporação dos tratados em vigor e a substituiçãodos diversos instrumentos jurídicos existentes por um sistema único.O resultado foi negativo, já que apenas o Parlamento italiano conse-guiu aprovar o projeto (CAMARGO, 2004),

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Em contraposição ao Projeto Spinelli, foi assinado, em dezembro de1985 e posto em prática a partir de julho de 1987, o Ato Único Euro-peu, aprovado logo em seguida pelos então doze Estados-membros.Esse novo instrumento não retomou o debate sobre as articulaçõesentre a esfera nacional e a supranacional, limitando-se a algumas re-formas dos tratados já existentes sem alterar sua natureza.A raciona-lidade do Ato Único era fundamentalmente econômica, em que nor-mas e instituições estavam voltadas, essencialmente, para facilitar arealização domercado único que previa umespaço sem fronteiras noqual a livre circulação de pessoas, capitais, serviços emercadorias fi-caria assegurada, assim comoa coesão econômica e social, indispen-sável para permitir uma ampla adesão ao projeto que deveria incluiros países menos desenvolvidos do sul da Europa.

OMercado Único, que fora previsto para 1968, mas não se comple-tou, implicava, necessariamente, a criação de umaUniãoEconômicaeMonetária (UEM) e de umamoeda única para toda a região, objeti-vos que só foram formalizados com o Tratado de Maastricht em1992. Mesmo assim, o Ato Único Europeu teve ganhos institucio-nais efetivos, entre eles a introdução na esfera jurídica de novos seto-res, como a política externa comum e a cooperação regional que nãohaviam aparecido de forma explícita no Tratado de Roma (NOEL,1987; POURVOYEUR, 1990). Nesse cenário de perdas e ganhos, aexigência de cooperação política foi, certamente, a menos atendidapelo Ato Único, não tendo apresentado modalidades novas efetivasno que se refere às relações interinstitucionais que tornassem maistransparente o sistema comunitário de tomada de decisões, dandomunição aos que lutavam pela diminuição do que se considerava um“déficit democrático” na esfera européia.

Esses são alguns dos impasses que acompanharam amarcha da inte-gração européia até a assinatura do Tratado da União Européia emMaastricht, em7 de fevereiro de 1992, documento que pode ser vistodesde uma dupla perspectiva: por um lado, incorporou a idéia antigae um pouco vaga de união política, mais próxima depois da queda do

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Muro de Berlim e da decorrente e rápida reunificação da Alemanha;por outro, absorveu a proposta de União Econômica e Monetária,que, formulada por JacquesDelorme, em1988, definia os prazos e ospassos para o estabelecimento de umamoeda e de umBancoCentralúnicos. Contudo, deixou de fora uma iniciativa franco-alemã, lança-da em 1990 pelo chanceler alemão Helmut Khol e pelo presidentefrancês FrançoisMitterand, que enfatizava a necessidade de reunir aUnião Econômica e Monetária à união política, fazendo com quemarchassem em um mesmo ritmo. Isso não ocorreu, na medida emque a primeira avançou em termos do radicalismo de suas normas eregras, traduzidas pelo estabelecimento de uma moeda única euro-péia, adotada em 1999 por doze países,4 enquanto a segunda preser-vou omesmo formato intergovernamental do passado e amesma re-gra de unanimidade nas votações (CAMARGO, 2004).

Entre os pontos positivos, contudo, o Tratado deMaastricht reuniu ecompletouos instrumentos anteriores substituindo aCooperaçãoPo-lítica Européia (CPE) pela definição de uma estratégia própria noâmbito da Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Mesmoconservando, em grande medida, o caráter intergovernamental daCPE, o tratado representou um salto qualitativo ao criar estruturaspolíticas emilitares permanentes, abrindo assim o caminho para queos então doze membros das três Comunidades Européias (Comuni-dade Econômica, Comunidade Européia do Carvão e do Aço, e Co-munidade deEnergiaAtômica) instituíssem entre si uma “UniãoEu-ropéia” como forma de afirmação de sua identidade na cena interna-cional. Por outro lado, avançou no sentido de instaurar uma cidada-nia européia para as pessoas que tivessem a nacionalidade de umEstado-membro, assegurando-lhes ainda, pela inclusão dosAcordosSchengen,5 a liberdadede circulação edepermanência em todoo ter-ritório da União.

Dessamaneira, mesmo não tendo incorporado a proposta dos chefesde governo daAlemanha e daFrança de reunir a união política àEco-

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nômica eMonetária, dando assim àUE uma única cara, o Tratado daUnião deixou em aberto o projeto de uma Europa federal, vista, pormuitos, como necessária depois de a queda doMuro de Berlim, coma conseqüente unificação da Alemanha, ter dado a largada para sepensar em uma abertura em direção aos países do Leste(QUERMONNET, 1992). A tentativa de conciliar posições diferen-tes emuitas vezes opostas relativas à natureza e às finalidades da uni-ficação européia contribuiu, contudo, para que a receptividade dosEstados-membros, no momento de sua aprovação, não fosse a espe-rada. Sua falta de precisão, ao permitirmúltiplas leituras, trouxe paraos eleitores europeusmais dúvidas do que certezas sobre a natureza eo significado real do que se lhes estava sendo oferecido. Não se podeesquecer que, às dificuldades internas da União, somavam-se as ex-ternas, decorrentes das alterações do equilíbrio geopolítico do conti-nente causado pelo fim da Guerra Fria e da grave crise na economiamundial, cujos efeitos sobre a populaçãodos países europeus dificul-tavam suas opções.

Com efeito, no momento em que o novo Tratado da União era apre-sentado à população da Europa Ocidental, a tão falada “fortaleza eu-ropéia” se defrontava com a desintegração do antigo bloco do Leste,com a fragmentação da Europa Central e com a queda do Muro deBerlim. No bojo desses acontecimentos, temia-se a transposiçãopara asmargens daComunidade Européia de focos de conflito de di-ferentes modalidades e turbulências monetárias que punham emquestão a decisão, tomada em Maastricht, de avançar na direção deumaunião política, de umamoedaúnica e de umBancoCentral inde-pendente antes do fim do século (JOXE, 1993).

AoTratado deMaastricht, seguiu-se o deAmsterdã, assinado emou-tubro de 1997 e posto em vigor emmaio de 1999.Mesmo sem avan-çar no reforço das instituições comunitárias, condição para a maiorunidade política daUnião, nemna solução de umproblema já antigo,o do “déficit democrático” no bloco, o tratado incluiu um protocolo

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que afirmava o compromisso de respeitar os direitos sociais defini-dos na Carta Comunitária de Direitos Sociais, aprovada desde 1989(MORAVCSIK; NICOLAIDIS, 1999). Paralelamente, dentro dessecontexto demudanças e novos desafios, a virada efetiva na evoluçãoda UE foi marcada pelo Conselho Europeu, reunido em Helsinqueem dezembro de 1999, ocasião em que os chefes de Estado e de go-verno tomaram a decisão de elevar para doze o número de países ad-mitidos a negociar sua adesão àUnião e conferir à Turquia o título depossível candidato às negociações, uma vez preenchidos os critériospolíticos e econômicos requeridos. Nessa ocasião, estabeleceu-se,também, o calendário para a reforma das instituições européias.

O Tratado de Nice, assinado em fevereiro de 2001 e posto em vigordois anos depois, em fevereiro de 2003, veio, assim, cumprir esse ob-jetivo, o de negociar as transformações institucionais necessáriaspara a concretização do projeto de ampliação da UE. Nesse sentido,alterações na composição da suaComissão foram introduzidas, defi-nindo-se que, enquanto o número de Estados não fosse excessivo,cada um teria direito a um único comissário, independentemente deseu tamanho ou população. Contudo, quando o número de Estadospassasse de 27, comprometendo com isso a eficácia de seu funciona-mento, o número de membros da Comissão seria inferior ao númerode Estados. Paralelamente às negociações especificamente institu-cionais desenvolvidas no âmbito das instituições, diante da perspec-tiva de incorporação de milhões de novos cidadãos com quem deve-ria compartilhar recursos políticos e econômicos, a população euro-péia perguntava-se o que conferiria identidade a esses recém-chega-dos e os uniria enquanto europeus.

Essas e outras indagações abriram o caminho para infindáveis dis-cussões entre juristas, cientistas políticos, políticos e opinião públicaem toda a Europa. No bojo delas, oministro das Relações Exterioresda Alemanha, Joschka Fischer, em uma conferência na HumboltUniversity, realizada em Berlim, em maio de 2000, expôs sua con-

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vicçãodequeo sistema institucional europeu, vigente até aquelemo-mento, não teria capacidadepara enfrentar odesafio da introduçãodamoeda única, da futura incorporação de novos membros, da Guerranos Balcãs e de políticas externa e de segurança e defesa comuns.Sua argumentação tinha como base a necessidade de transição domodelo de uma Confederação de Estados, como a que então existiaentre os países-membros, para uma parlamentarização total dentrodosmarcos de umaFederação européia, de acordo comoquepregaraRobert Shummancinqüenta anos antes (FISCHER,2000).Este novomodelo trazia consigo, necessariamente, a existência de um Parla-mento Europeu bicameral e de um governo, também europeu, queexerceriam os Poderes Legislativo e Executivo dentro da Federação.Esta deveria ser ancorada em um tratado constitucional que regula-ria, entre outros aspectos, a divisão de soberania entre as instituiçõeseuropéias e os Estados nacionais, distanciando-se, assim como gran-de parte da opinião pública européia, do conceito de um superEstadoeuropeu transcendendo e substituindo as democracias nacionais(FISCHER, 2000).

Mesmo se em relação a esse último ponto houvesse consenso, o mi-nistro alemão estava consciente das críticas à sua proposta que vi-riamdevários lugares e que teriamcomodenominador comumo fatode que a Europa, sendo um continente repleto de povos, de culturas,de línguas e de histórias diferentes, exigia que a soberania dos Esta-dos nacionais, vista como fator de legitimidade do processo de inte-gração, especialmente em uma conjuntura em que a globalização e aeuropeização criavam superestruturas distanciadas dos cidadãos edos atores anônimos, fosse plenamente preservada (OLSEN, 2000).Antecipando-se a essas objeções, o ministro afirmava que o modelode Federação proposto conservava os Estados nacionais e não elimi-nava suas instituições, procurando associá-las ao processo. Segundosua visão, consolidar a integração européia só seria imaginável seesta se apoiasse emumapartilha de soberania entre aUnião eosEsta-dos nacionais. Com esta tese, o ministro procurava responder a uma

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questão teórica básica, a de que o tipo de legitimidade requerida parao avançodoprocessode integraçãodependia dapercepçãodopadrãode relacionamento entre os Estados-membros e a União (OLSEN,2000).

Os pontos defendidos pelo ministro Fischer geraram uma clara divi-são de posições em relação ao modelo institucional proposto para aUE. Muitos apontavam a ambigüidade de sua visão no que diz res-peito a vários temas, entre os quais a divisão de soberania no âmbitoda Federação, tese que consideraram confusa e contraditória. Outrosindagavam ainda como, em um contexto de trinta países e não maisde quinze, seria possível, aomesmo tempo, conservar os Estados na-cionais e tornar as instituições comunitárias mais simples, maistransparentes, mais democráticas, mais eficazes, permitindo que seprogredisse no caminho da integração (OLSEN, 2000).

De uma maneira ou de outra, a maior contribuição do ministro ale-mão foi haver explicitado e colocado na mesa as principais questõesque preocupavam os governos e os cidadãos europeus que se prepa-ravampara constituir umanova personalidade jurídica e umnovo es-paço político capaz de abrigar mais de 130 milhões de novos cida-dãos. Se quiséssemos resumir as indagações que os cidadãos euro-peus se faziam diante dessa realidade que estava no horizonte, diría-mosqueonervo exposto se concentravanapalavra “federação”, que,mesmomitigada, comonamaior parte das propostas que surgiamemâmbito acadêmico e governamental, evocava um “Leviatã” europeuque poderia ameaçar as democracias nacionais. Para os que compar-tilhavam essa visão, uma Federação européia nunca poderia ser sufi-cientemente democrática.

O Conselho Europeu, reunido em Lacken, na Bélgica, nos dias 14 e15 de dezembro de 2001, ao convocar a Convenção Européia sob apresidência deValeryGiscard d’Estaing, visava dar respostas a essasperguntas.Oponto central do novo tratado previsto era a idéia de queaUE deveria deixar de ser uma pura organização internacional espe-

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cializada em questões econômicas, passando a exercer, explicita-mente, uma ação política unificada, muito além das posições e dasações conjuntas vigentes até aquele momento. Justamente por essarazão, tornava-se fundamental para os governos europeus ampliar oâmbito da discussão junto à sociedade civil.

Nesse contexto, as questões básicas que a Convenção se propunhaexaminar incluíam: democratização efetiva do processo de integra-çãopormeiodaparticipaçãodos cidadãos noprocessode aprofunda-mento da União Européia; aumento da transparência por meio da di-visão clara de competências entre a União e os Estados-membros;unificação e reorganização dos tratados já existentes na perspectivade se formular umnovoTratado daUnião que abrigasse umaConsti-tuição para a Europa. O projeto em questão, aprovado por consenso,foi apresentado aoConselhoEuropeu reunido emSalônica, em20 dejulho de 2003.

A partir dessa perspectiva, na sessão plenária da Convenção para oFuturo da Europa, convocada em junho de 2003, foi lançada a pro-posta final do Tratado Constitucional, que, após longas negociaçõese algumas alterações, foi aprovado pelo Conselho Europeu, reunidoemBruxelas em junhode2004.Diante do temamais controvertido, oque tratava do modelo político que seria adotado, a resposta foi o deuma Federação de Estados Democráticos como garantia de uma de-mocracia supranacional. A proposta mais radical que defendia umEstado federal, presente em todos os debates, foi eliminada por opo-sição especialmente doReinoUnido. Ficou então estipulada uma di-visão clara entre competências compartilhadas e competências ex-clusivas da União (CINTRA; CINTRA, 2000).

A partir desse ponto, quais seriam os aspectos do Tratado Constitu-cional responsáveis pela sua rejeição por parte de amplos setores dapopulação européia? Esta pergunta é pertinente, uma vez que o queestava sendo julgado em 2005, segundo grande parte das avaliações,

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era a Constituição e não o pertencimento do país àUnião.Mas talvezcoubesse pensar de outramaneira: a razão da rejeição estaria não nosaspectos novos que o Tratado Institucional estaria apresentando esimnoque teria deixado de fora, isto é, no fato de que asmedidas ins-titucionais, as orientações da economia e as políticas sociais, em umcontexto do enfraquecimento da socialdemocracia européia e dachegada de países da “outra Europa”, não tivessem dado respostasclaras e satisfatórias aos desafios que estavam sendo postos namesa.Essa falta de correspondência entre o que os cidadãos esperavam e oque lhes foi oferecido teria aprofundado o fosso permanente que se-para Bruxelas e as elites nacionais dos cidadãos europeus que teriamse sentido excluídos dos benefícios que uma Europa politicamenteunida poderia produzir.

O Tratado Constitucional e

seus Desdobramentos

O tempo decorrido desde 29 demaio de 2004, data em que a popula-ção francesa, em um referendo consultivo, disse “não” ao TratadoConstitucional Europeu por umamaioria de 54,87%dos votos – ges-to repetido, em 1o de junho, por 62%da população holandesa –, é su-ficiente para se formular algumas hipóteses relativas ànão-aprovação, pela União Européia, do referido tratado. Os princi-pais argumentos apresentados no processo de votação desses paísesvieram de diferentes correntes ideológicas, de demandas contraditó-rias e de percepções difusas relativas aos caminhos institucionais esociais a partir dos quais a Europa deveria ser reconduzida e quaispoderiam ser seus parceiros nessa jornada (CAMARGO, 2007).

Umdos pontosmais evidentes para as elites políticas européias e na-cionais era que o “sim” seria amplamente vitorioso em todo o espaçoeuropeu, o que reforça a idéia da distância que separavaBruxelas e osgovernos dosEstados-membros de seus cidadãos. Essa convicção davitória do “sim” fez comque dez governos daUE–Espanha, França,

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Holanda, Luxemburgo, Polônia, Dinamarca, Portugal, Irlanda, Rei-noUnido eRepúblicaTcheca –nãohesitassememconvocar referen-dos, mesmo que somente a Irlanda e a Dinamarca necessitassemconstitucionalmente ratificar por essa via o Tratado Constitucional.Já a Alemanha, mesmo acreditando fortemente na vitória da aprova-ção, propôs-se a realizar a votação pela via parlamentar, única fór-mula permitida pela Constituição de seu país.

O desconhecimento por parte dos governantes do que efetivamentese passava na cabeça de seus governados se tornou claríssimo nocaso francês, primeiro país a rejeitar o tratado, uma vez que votaçõesprévias no âmbito damaior central sindical francesa, a CGT, e nas fi-leiras de seu partido socialista, assim como em pesquisas nas quais arejeição à Constituição crescia acima damarca dos 50%,mostravamuma realidade absolutamente diferente do que se esperava. Essa dis-tância entre governo e sociedade abre uma primeira pista para se ini-ciar a reflexão,mostrando-nos o peso das questões domésticas na de-terminação dos resultados negativos da votação popular do TratadoConstitucional Europeu, ainda que as duas esferas, a nacional e a eu-ropéia, estivessem entrelaçadas fazendo parte de um mesmo pacotede erros, carências e contradições.

Contudo, esse entrelaçamento emesmo a ambigüidade na percepçãodas responsabilidades imputadas a cada instância de decisão são pra-ticamente inevitáveis, especialmente quando as instituições européi-as aparecem como distantes dos cidadãos e pouco transparentes, oque gera desconfiança por parte da população que não tem clarezasobre as implicações reais que a UE tem para a sua vida cotidiana.Esse problema se aguçou com a perspectiva de uma Constituiçãopara a Europa, porque as elites políticas nacionais e européias quedefendiam o “sim”, em lugar de fazer uma campanha esclarecedorasobre o conteúdo e o alcance do Tratado Constitucional que estavasendo julgado, preferiramameaçar comapossibilidade de caos, casonão fosse aprovado (CAMARGO, 2007).

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Mesmo assim, o debate sobre a construção européia, às vésperas doreferendo, foi intenso no seio de grande parte de seus cidadãos. Ocaso da França é paradigmático, namedida emque pesquisas indica-vam que, aproximadamente, 83% da população francesa discutiraesse tema diariamente, o que ficou comprovado pelo alto índice decomparecimento nas urnas, o maior dos últimos vinte anos, mesmoquando comparado aos escrutínios nacionais. O resultado negativodeveu-se, em grande parte, ao fato de que, ao lado da desconfiançaem relação à própriaConstituição, que os franceses avaliavam repre-sentar uma vitória liberal de corte anglo-saxônico, a falta de popula-ridade dopresidente JacquesChirac e de seu então primeiro-ministroJean-Pierre Raffarin inclinou visivelmente a balança para o lado dasua rejeição.Na realidade, não se tratava, unicamente, de tomar posi-ção em relação ao Tratado Constitucional Europeu em seus aspectosjurídico-formais, nem de retomar a discussão de quinze anos atrássobre a perda de soberania nacional. Tratava-se de questionar políti-cas concretas, como a ampliação das fronteiras da União, o que viriaameaçar o nível de emprego dos que já haviam cruzado essa frontei-ra, a introdução do euro comomoeda única com a decorrente subidade preços, a degradação das políticas públicas e outros problemasque, atingindo cotidianamente a população francesa, eram imputa-dos, com ou sem razão, à Bruxelas (MIGUEIS, 2005).

Na Holanda, a opção pelo “não” foi também surpreendente para aselites que apostavam no “sim”, na medida em que este país foi umdos seis membros fundadores da Comunidade Européia, tendo per-manecido, ao longo do tempo, como um dos seus mais ardentes de-fensores. Suamudança radical pode tambémser explicada, emparte,pela crise na esfera da sua política doméstica, decorrente da existên-cia de um fosso entre os partidos e seus eleitores e entre osmovimen-tos sociais e seus membros e simpatizantes. Pesquisas na imprensaholandesamostravamque as lideranças dos grandesmovimentos so-ciais, das centrais sindicais, dos partidos, das associações de classe,

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das igrejas, das organizações ambientalistas, do patronato defendi-amardentemente o “sim”, enquanto amaioria de seus seguidores op-tava pelo “não”. Estes, sentindo-se traídos por seus representantestradicionais, transformaram a natureza do referendo apresentandoum comparecimento de 62%, ainda que o voto não fosse obrigatório.Temiam também que Bruxelas colocasse em questão a política ho-landesa que liberava as drogas fracas e permitia a eutanásia e o casa-mento entre pessoas do mesmo sexo; além disso, receavam sobretu-do ser submergidos emumaUnião ampliada para 25oumaisEstadosem que a Holanda se tornaria uma vaga província, sem nenhum po-der real (VAN DEN BRINK, 2005).

No início do processo de votação, previa-se que, caso este prosse-guisse normalmente, referendos seriam realizados no Reino Unido,Irlanda, Polônia, Portugal, Dinamarca e República Tcheca, aindaque se temesse a possibilidade de que o resultado negativo francêscontaminasse as próximas votações. Isso, de alguma maneira, ocor-reu, como ficou evidente no caso do Reino Unido, onde primeiro sepensou em adiamento do referendo e depois em sua própria suspen-são, e emPortugal, onde se decidiu adiá-lo por tempo indeterminado.Em sentido inverso se situou Luxemburgo, país com 450 mil habi-tantes, que, apresentando omaior nível de vida e de instrução da Eu-ropa, teve o referendo sobre a Constituição aprovado por um placarde 56,52%, sendo o 13oEstado daUEa convocá-lo.NaPolônia, o re-ferendo, que foramarcado para 25 de setembro de 2005, não se reali-zou nessa data e sim em outubro de 2006, com um grau de abstençãoque, tendo ultrapassado os 50%exigidos para que o pleito tivesse va-lidade, passou a decisão ao Parlamento, que terminou por não se pro-nunciar no prazo previsto.

Na realidade, na Polônia, assim como na França e na Holanda e emoutros Estados-membros daUnião, a questão européia foi subjugadapela batalha política interna, como já foi destacado. O Partido SocialDemocrata polonês que governava o país e que se identificava como

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processo de integração européia sofreu forte oposição das forças dadireita que fizeram da oposição ao Tratado Constitucional um deseus cavalos de batalha, apontando como argumento importante aausência nele de qualquer referência às raízes cristãs da Europa.

Abrindo umparêntese para examinar este último ponto, a questão re-ligiosa e seu lugar na identidade européia fez com que se desencade-asse uma batalha intensa em redor do projeto constitucional apresen-tado. Como decisão final, optou-se por não figurar nele nem a pala-vra “Deus” – posição contrária à defendida pela Polônia, em cujaprópria Constituição a referência a Deus está presente – nem a pala-vra “laicismo”, cuja inclusão era defendida sobretudo pela França,em cuja Constituição o laicismo representa um dos fundamentos daRepública. Em sua versão definitiva, o texto optou por uma fórmulade compromisso, fazendo uma referência vaga às heranças culturais,religiosas e humanistas da Europa.6

Fechando o parêntese e voltando ao tema da votação do TratadoConstitucional, sua aprovação, na República Tcheca, não parecia fá-cil. Mesmo que o Partido Social Democrata, basicamente pró-euro-peu, governasse o país e tivesse prometido que a votação donovo tra-tado seria feita pormeio de um referendo, a Constituição tcheca, quenão previa essamodalidade, exigia, para que isso fosse possível, queuma lei especial fosse votada por uma maioria de dois terços. Essaproporção foi difícil de ser alcançada, uma vez que a coalizão parla-mentar que sustentava o governo era fracamente majoritária. Naoposição, o Partido Comunista, que sempre fora contra a adesão dopaís àUE, ergueu a bandeira da perda de soberania, enquanto a direi-ta, representada pelo Partido Democrático Cívico (Obèanská De-mokratická Strana (ODS)), tradicionalmente pró-europeu e que so-nhava comumgrandemercado comoprincípio de unificação de todaaEuropa, opunha-se aonovo tratadopor considerá-lo excessivamen-te de esquerda. Um outro obstáculo a ser vencido estava no fato de

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que, segundo a última pesquisa doEurobarômetro, somente 19%dostchecos tinham a intenção de votar.

Nos países nórdicos, o “não” viria basicamente da esquerda, paraquemoTratadoConstitucionalEuropeu era umaameaça clara ao seumodelo de Estado Providência, cuja função, entre outras, era a de fi-nanciar umnível alto de serviços sociais para todos os trabalhadores,estivessem ou não empregados. Na realidade, na Suécia e na Dina-marca, os argumentos e os campos eramosmesmos que se opuseramà criação damoeda única por ocasião do referendo de 2003: a falta dedemocracia e a transferência de soberania que, à sombra do novo tra-tado, emigraria para Bruxelas, consolidando a vitória de políticaseconômicas neoliberais. Todavia, diferentemente da Dinamarca,onde estava prevista uma consulta popular, ainda que sua data per-manecesse indefinida, o governo sueco, alertado pelo resultado ne-gativo no caso do euro, decidiu pela votação parlamentar, em que aaprovação estaria praticamente assegurada (TRUC, 2005).

A análise feita até aqui nos mostra claramente a importância dasquestões domésticas no comportamento eleitoral da população euro-péia. Isso, contudo, não esgota a questão. É preciso também levar emconta que o Tratado Constitucional apresentado gerava temores edesconfianças decorrentes, entre outras razões, do desconhecimentodo que realmente estava sendo proposto e dos caminhos que deveri-am ser seguidos. Essa avaliação se apoiava em algumas das caracte-rísticas do processo: emprimeiro lugar, é preciso lembrar que o trata-do não era, propriamente, uma Constituição, na medida em que aConvenção para o Futuro da Europa não teve, oficialmente, o caráterde uma convenção constitucional clássica, ainda que o documentotenha sidodiscutidonaConferência Intergovernamental e apresenta-do à opinião pública européia na forma de um documento constitu-cional. Na realidade, o novo documento, mesmo trazendomudançaspolítico-institucionais significativas, não passava, essencialmente,

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de uma recopilação exaustiva de tratados já assinados durante as últi-mas décadas (ROY, 2005).

Não foi, contudo, a situação jurídico-formal do novo documento oquegeroupreocupaçãonapopulação.Aextensãodo texto e sua com-plexidade, e não sua inconsistência formal, podem explicar o desco-nhecimento e a desconfiança por parte da sociedade européia dasnormas e regras que passariam, efetivamente, a reger o funciona-mento das instituições da União e a vida cotidiana de sua população,especialmente emuma conjuntura emque a ampliação das fronteirasaumentava substancialmente o número de seus cidadãos (WEILER,2002).

Partindo desse ponto, passo a apresentar algumas das principaisquestões que poderiam esclarecer a rejeição ao Tratado Constitucio-nal por parte de umsegmento importante da população européia e, aomesmo tempo, relacionar tais questões com o tratamento dado a elasno referido texto. Deixando de lado as razões domésticas dos dife-rentes Estados-membros, tema que já foi anteriormente examinado,a população européia, oumelhor, a que já pertencia à União antes desua última ampliação, concentrava descontentamentos e reivindica-ções, alguns antigos, outros mais recentes, em torno de um determi-nado número de temas. Entre eles, a própria ampliação, vista comotendo sido feita de maneira excessivamente rápida, causava grandepreocupação. Nesse campo, a alegação era de que deveria ter havidomaior clareza em relação à escolha das candidaturas e às condiçõesexigidas para a adesão, partindo-se do fato de que as regras que eramrelativamente corretas e eficazes para administrar uma Europa dequinze membros, como no caso do direito de deslocamento, poderi-am trazer problemas em um contexto de 27 ou mais. Esse problemase referia, sobretudo, à adesão dos países doLeste, namedida emquea percepção corrente em relação à sua população era que esta aceita-ria qualquer nível de salário por qualquer tipo de trabalho, atingindoassimonível de empregonospaíses ocidentais (FOUCHER,2007).

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Cabe, contudo, assinalar que essa liberdade de deslocamento nãoconstituía uma novidade. A livre circulação de empresas, pessoas,capitais e serviços, tornada possível pela abolição das tarifas internasque foram substituídas por uma tarifa externa comum, constituiu aprópria razão de ser da integração européia. Para neutralizar as possí-veis conseqüências negativas dessa prática que poderia atingir as re-giões mais pobres e acentuar as assimetrias, políticas comuns esta-vam sendo asseguradas no Tratado Constitucional na forma de fun-dos comunitários destinados a esses países. Foi esse tipode ajudaquepermitiu, em momento anterior, que Irlanda, Portugal, Espanha,Grécia e Itália recuperassem, em parte, seu atraso econômico.

Concretamente, o novo tratado não impedia nem favorecia direta-mente os deslocamentos, apenas criava situações em que estes pode-riam ou não ocorrer. De um lado, deslocamentos poderiam ser efeti-vamente refreados, caso houvesse ummaior apoio dos fundos euro-peus destinados ao desenvolvimento dos novos Estados-membros.Isto faria com que as empresas destes Estados e sua população tives-semmaior interesse em permanecer em seu próprio espaço territori-al, estimando-se, paralelamente, que o próprio mercado ampliadopudesse favorecer a criação de novos empregos locais. De outrolado, porém, no caso que nãohouvesse umapoio efetivo, os trabalha-dores da EuropaCentral e Oriental poderiam emigrar para oOciden-te, onde, como decorrência da aceitação de salários mais baixos doque os dos trabalhadores ocidentais ainda que tivessem omesmo ní-vel de qualificação, poderia produzir-se um aumento no já alto nívelde desemprego na região.Aquestão dos fundos pode ser vista, ainda,sob um outro aspecto: o fato de que os recursos previstos para essefim, ao teremque ser divididos entre ummaior númerodeparceiros –mesmo que estivesse definido que os recém-chegados teriam queaguardar um número determinado de anos para poder usufruir dasmesmas vantagens dosmembros antigos –, poderiam fortalecer nes-tes a discriminação e a desconfiança, gerando assim um problema

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adicional. A população européia já incorporada temia que o cobertornão tivesse o tamanho necessário para todos os que nele deveriamabrigar-se, fazendo com que o direito de antiguidade deixasse de serreconhecido.

Outro ponto intensamente debatido pela opinião pública européia, eque serviu de argumento aos defensores do “não”, foi a questão de-mocrática, discussão que apontava claramente para o desafio de pre-servar e consolidar as democracias nacionais emumcontexto de am-pliação e maior integração entre seus Estados-membros. A percep-ção dos cidadãos europeus da existência de um déficit democráticona região não era, contudo, nova.Mas, no contexto da adesão dos pa-íses do Leste, ela se tornara uma preocupação aguda. Temia-se que aincorporação de nações comuma trajetória de práticas não democrá-ticas fizesse surgir novas questões e problemas que poderiam produ-zir uma excessiva concentração de competências nasmãos daUnião.Paralelamente apontavam o fato de que a integração não fora aindatraduzida em mecanismos de representação cidadã, o que exigiria atransformação do Parlamento Europeu em um órgão com função le-gislativa plena, assim como a participação da população em uma elei-ção direta para chefe do Executivo europeu (MENÉNDEZ, 2000).

Nesse ponto, alguns autores sugerem, entre os quais Eric Stein(2001), que há uma correlação estreita entre o nível de integração deuma instituição internacional e a percepção pública sobre a falta dedemocracia e de legitimidade na estrutura e no funcionamento deseus órgãos. Isso explicaria que o debate sobre esse tipo de déficit te-nha se originado na Comunidade Européia altamente integrada e al-cançado outras instituições, como a Organização Mundial do Co-mércio (OMC) e as agências financeiras internacionais, tornando-seassim um componente importante do discurso atual contra a globali-zação (STEIN, 2001). Este aspecto nos remete diretamente à obser-vaçãodeSchmitter quando afirmaqueo futuro dademocracianaEu-ropadependedademocratizaçãodaEuropa (SCHMITTER,2004).

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Gostaria ainda de assinalar que a desconfiança dos cidadãos euro-peus em relação à legitimidade de suas instituições é uma posturahistoricamente recorrente, tanto emnível daUniãoEuropéia e de ou-tras organizações regionais e globais quanto em nível nacional. Essapostura decorre do fato de que, ao mesmo tempo em que a idéia dedemocracia tenha, de um modo geral, ampliado seu raio de aceita-ção, a frustraçãodapopulaçãopela incapacidadede colocar seus pro-blemas na agenda política tornou-se maior. Cresce a percepção porparte da população de que as democracias, velhas ou novas, só dis-põem de instrumentos já conhecidos, como a ampliação do sufrágiooupolíticas redistributivas, instrumentos que, diante dos novos desa-fios, talvez tenham esgotado seus meios e sua capacidade de ação.Isso em parte vem do fato de que as condições atuais que cercam osregimes democráticos diferem estes dos anteriores no sentido de quese propõema combinar democracia emercado – combinação sempreinfeliz, segundo Robert Dahl (1998) – com a indiscutível vitória domercado. Se a isso se adiciona o fato de que, independentemente desuas histórias, culturas e preferências, a democracia é constituída, naatualidade, por dois eixos básicos, o popular e o constitucional, sualegitimidade torna-se, em âmbito europeu, mais difícil de ser reco-nhecida. Alega-se que não existe um demos europeu, um povo, e,como decorrência, nenhuma de suas instituições, incluindo-se o Par-lamento, poderia representá-lo (STEIN, 2001).

Esse argumento é, contudo, rebatido por autores como Habermas(2001), quando afirma que uma nação de cidadãos não pode ser con-fundida com uma comunidade de destino pré-política derivada deorigem, linguageme história comuns, porque isso solaparia o carátercontratual voluntário de uma nação cuja identidade coletiva não épré-datada e nempode ser vista isolada doprocesso democrático. Se-gundo esse ponto de vista, o processo de formação de uma nação decidadãos, ou melhor, o contraste entre concepções pré-políticas econtratuais de nacionalidade já aparece na formidável realizaçãohis-

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tórica representada peloEstado nacionalmoderno, cuja primeira for-ma de integração social, para além das relações pessoais, foi criadapor uma nova e abstrata solidariedade transmitida por lei. Ainda quelinguagens e formas de vida comuns tenham facilitado o processo deconstrução de um sentimento próprio de nação, deu-se um processocircular emque consciência nacional e cidadania política se estabele-ceram reciprocamente. Na realidade, a consciência nacional foi for-mada tanto pela comunicação de massa transmitida pelos leitores dejornais, quanto pela mobilização de massa dos militantes e votantes(HABERMAS, 2001).

Acrescentando novos argumentos a essa tese, Schmitter (2002) lem-bra-nos que, historicamente, a criação dos Estados europeus e suaconstitucionalização se deram antes da emergência do demos nessesEstados. Na Grã-Bretanha, França, Espanha e Portugal, o Estado foimuitas vezes estabelecido longo tempo antes do “sentimento de sepertencer a uma única e mesma comunidade”. Com efeito, a históriada evoluçãodosEstados nacionais europeusmostra-nos que, durantetodo o séculoXIX, novas formas de identidade nacional foram sendoforjadas no seio da população por meio de um processo de abstraçãoem que lealdades dinásticas e locais foram gradualmente dissolvi-das, dando lugar à consciência de que, como cidadãos, eram mem-bros de uma mesma nação.

Fica claro, então, que, a partir desse contexto teórico, a democracianão se esgota em seu elemento popular. Comonos dizemos constitu-cionalistas liberais, ela deve ser ancorada em princípios constitucio-nais que lhe dão segurança e permanência. Isso posto, nãohá umade-finição natural que defina o que deve ficar nasmãos do demos, ou domercado ou da população civil, e o que deve ser regido por institui-ções. Mas é possível argumentar, a partir dos padrões já aceitos, queo sistema ideal seria aquele capaz de se realizar pormeio de umequi-líbrio satisfatório entre esses diferentes pilares (SCHMITTER,2002).

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Nesse sentido, no que se refere àUE, a percepção da expansão contí-nua do pilar institucional em detrimento do popular esteve na raiz dadesconfiança em relação ao Tratado Constitucional de grande partede seus cidadãos, que se sentiram cada vez mais distanciados da bu-rocracia deBruxelas.Mas é possível contra-argumentar dizendo queas credenciais democráticas européias não se mostram tão diferen-tes, na prática, das nacionais, umavez que a revolução constituciona-lista avançou significativamente nessas duas esferas, tendo-se torna-do uma maquinaria altamente sofisticada, enquanto o elemento po-pular permaneceu com pouca força de representação e de ação(SCHMITTER, 2002).

Se isso é assim, quais seriam as razões da opinião negativa em rela-ção às credenciais democráticas da União Européia? Pode-se apon-tar o fato de que geralmente se compara o sistema democrático queestá se formando e operando em nível supranacional com democra-cias altamente sofisticadas que levaram anos e mesmo séculos parachegar ao seu desenvolvimento atual. Por outro lado, a democraciaem nível nacional é avaliada tomando como referência a forma comque se apresenta no presente, sem se levar em conta, como nos alertaRobert Dahl (1998), que a palavra democracia fica vazia de sentidose suas variações no tempo e no espaço não são consideradas. Deve-mos acrescentar o fato de que, sendo aUE a única democracia supra-nacional, não há padrões estabelecidos que permitam compará-la eem relação aos quais poderia ser julgada.

Partindo desse ponto, isto é, do fato de que, em termos de democra-cia, as credenciais que as duas esferas – a nacional e a supranacional– apresentam não são muito diferentes, gostaríamos de trazer para adiscussão sobre o déficit democrático naUE, oumelhor, sobre a per-cepção desse déficit, um outro fator que certamente ajudaria a enten-der melhor o problema: o fator legitimidade. Mesmo que se tenhaavançado no estabelecimento de instituições e práticas democráticasnaUE, presume-se que uma ampla parte da opinião pública continue

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a negar à União o direito de interferir em certas questões e domíniosque, segundo alega, deveriam ser decididos emníveis local ou nacio-nal. Isso, contudo, não é específico daUE. Praticamente todas as bu-rocracias governamentais sofrem amesma resistência. A disputa emrelação às atribuições do poder constitui uma parte intrínseca do pro-cesso político e indica que, em lugar de se empregar artimanhas parase manter o status quo ou para reprimir qualquer deslocamento decompetências, a UE deveria aceitar as disparidades e as diferençaspor meio do tempo e do espaço, e não considerar a situação comofixa. Longe de ser um modelo político já concluído, definido racio-nalmente, bem organizado e uniforme, a União tem como única pos-sibilidade de sobrevivência ser capaz de aceitar e organizar a diversi-dade em termos de crenças, regras e instituições, convertendo-a emuma identidade de objetivos e em um compromisso democrático(MÉNY, 2002).

O que fazer, então, para que a formação concreta de uma identidadepolítica para além das fronteiras nacionais seja alcançada? Quais aspré-condições empíricas, os requerimentos funcionais necessários?Habermas (2001) salienta três pontos básicos: a existência de umasociedade civil européia, fundamentada na cidadania; a construçãode uma ampla esfera pública de comunicação política; e a criação deuma cultura política que possa ser compartilhada por todos os cida-dãos da União. Esses requisitos poderiam constituir, por sua vez,pontos de referência para desenvolvimentos mais complexos e con-vergentes, isto é, para a invençãodenovos paradigmas, regras e insti-tuições e, sobretudo, de um novo conceito de democracia pós-nacio-nal e não, simplesmente, para tentar uma transposição dos esquemasnacionais.

Todavia, para que isso se tornasse possível, seria necessário reerguero equilíbrio entre o pilar popular, atualmente enfraquecido, e o insti-tucional por meio de mudanças e de pequenos ajustes, entre os quaiso de tornar a Comissão, o Conselho e o Parlamento responsáveis di-

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retamente perante o cidadão, fortalecer as correias de transmissãopor meio de partidos e organizações transnacionais, reforçar o papeldos Parlamentos nacionais em relação às políticas européias e intro-duzir algumas formas diretas de democracia, como os referendos eoutras que foremaparecendonomeiodo caminho.Esse tipode análi-se traz, como perspectiva, a idéia de que uma Constituição poderiaintensificar e direcionar o processo até um ponto de convergência eimpulsionar a criação de novas constelações de poder e não apenastornar manifesta sua realocação, como tem ocorrido até agora(HABERMAS, 2001).

O Tratado Constitucional proposto gerou, contudo, não uma agluti-nação de vontades e posições dispersas em torno de pontos de possí-vel convergência, mas um acirramento das contradições e críticasque contribuírampara paralisar o que as elites julgavamser umavan-ço no processo da integração européia. A queda de braço que se deunomomento da votaçãomostrou que, além das razões político-insti-tucionais, a questão econômica, especialmente em sua vertente so-cial, isto é, aquela que atinge diretamente a moradia, o emprego, adistribuição de renda e as políticas de desenvolvimento dos Estados,teve um peso definitivo nas opções dos eleitores.

Essa perspectiva, ao lado da resistência da população européia, fezcrescer a percepção de algumas elites políticas e intelectuais, especial-mente francesas, de que o Tratado Constitucional era excessivamenteliberal e que, portanto, a novaEuropa que se tentava construir, estandodominada por uma lógica essencialmente financeira, constituía umaameaça às conquistas socialdemocratas obtidas ao longo do tempo.Tais elites temiam que os Estados que haviam sido incorporados em2004 e 2007 e os que tinham suas candidaturas já aceitas, pelo fato dehaverempassado anos sob regimes autoritários e/ou totalitários e compolíticas econômicas concentradasnasmãosdoEstado, ao se sentiremlivres e incorporados ao grande mercado europeu, passariam a defen-der medidas cada vez mais liberais e menos reguladas.

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É preciso, contudo, levar em conta que o Tratado Constitucional nãotraziamudanças a esse respeito e que, na realidade, ele apenas consa-grava a vitória do pensamento econômico liberal dominante nomun-do e, especificamente na Europa, há pelo menos duas décadas emque, além do liberalismo tradicional dos anglo-saxões, os própriospartidos socialdemocratas e socialistas dos diferentes Estados-mem-bros haviam sido contaminados. Com efeito, se, nos últimos vinteanos, práticas econômicas anteriormente adotadas a partir do segun-do pós-guerra como controle pelas autoridades governamentais daeconomia pormeio da regulação, nacionalização e redistribuição ha-viam sido desmontadas e substituídas por processos de desregula-ção, privatização e pressão contra medidas redistributivas, é precisolembrar que essa lógica fora também incorporada ao novo tratado(MÉNY, 2002). Ao mesmo tempo, em uma tentativa de amenizar oprincípio de uma economia de mercado altamente competitiva, fo-ram incluídos no novo projeto objetivos políticos, sociais e ambien-tais, entre os quais a referência a uma economia social de mercado.Estamudança, essencialmente formal e retórica, foi insuficiente paramodificar a percepção dos que defendiam a idéia de que os valoressocialdemocratas que haviam caracterizado a Europa desde fins doséculoXIX foramperdendo terreno nas duas últimas décadas e que aConstituição que estava sendo votada nada fazia para recuperá-los(QUATREMER, 2005).

Muitos outros temas devem ser incluídos nessa discussão, especial-mente os ligados à arquitetura institucional do Tratado Constitucio-nal, uma vez que o poder e a extensão das competências daUnião emrelação às dos seus Estados-membros, assim como sua transparênciae proximidade com os cidadãos, tiveram uma influência decisiva nasua rejeição por uma parte da população européia. Isso não significa,contudo, que a procura de ummodelo institucional que garanta a uni-dade política da União e a participação e bem-estar de seus cidadãosnão possa prosseguir. O longo trajeto percorrido pelaUEna busca de

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sua integração, no qual recuos e paradas não impediram avanços eganhos extremamente importantes para todos seus Estados-mem-bros, não tem volta. É difícil pensar que, em uma comunidade deEstados e sociedades que vem procurando consolidar-se politica-mente ao longo demais de cinqüenta anos, não se encontremespaçospara a construção de um compromisso comum em que políticas de-mocráticas e sociais se constituam como um objetivo concreto noqual vale a pena apostar todas as fichas.A isso se acrescenta o fato deque as próprias populações que viveram o processo e as que preten-demagora iniciá-lo não queremque suas fronteiras nacionais voltema se fechar internamente e que ameaças de conflitos e guerras possamnovamente surgir em um continente fragmentado.

A Conjuntura pós-Tratado

Constitucional

A não ratificação do Tratado Constitucional abriu um novo períodode reflexão durante o qual a chanceler da Alemanha Federal, AngelaMerkel, aproveitando que seu país permaneceria na presidência daUE durante o primeiro semestre de 2007, comprometeu-se a apre-sentar propostas concretas que pudessem trazer novo fôlego ao pro-cesso interrompido. Segundo seus argumentos, dirigidos sobretudoàqueles que defendiam intransigentemente novas ampliações, oavanço só seria possível se houvesse reformas substanciais na atualbase jurídica daUnião. Essa afirmação sensibilizava a população eu-ropéia porque, além da Bulgária e Romênia, que acabavam de se in-tegrar ao bloco, estavam previstas negociações com os Estados dosBálcãs Ocidentais, países que, pobres e com problemas de corrup-ção, deveriam ter sua adesão juridicamente assegurada.

Uma das propostas discutidas foi a damodificação do próprio Trata-do Constitucional. Mas para que isso fosse possível, os 27 Estadosteriam que estar unanimemente de acordo e as emendas teriam queser ratificadas por todos eles, seja por referendo ou por via parlamen-

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tar. Diante dessas dificuldades, alguns convencionais sugeriram in-troduzir modalidades de revisão menos rígidas e mais pontuais,como a de adotar o sistema demaioria superqualificada em determi-nadas decisões, de acordo com o que o próprio Tratado Constitucio-nal já propunha, isto é, o abandono do voto por unanimidade e a ado-ção do voto de dupla maioria. A possibilidade, porém, de uma revi-são parcial, iniciativa que já havia sido objeto de ásperas discussõesdurante as negociações do referido documento, constituía um pontoextremamente sensível namedida emque se avaliavaque essa altera-ção poderia modificar o peso dos Estados-membros no bloco, favo-recendo os mais poderosos. Esse tipo de revisão, na visão dos cida-dãos europeus, só ganharia sentido se viesse acoplada ao corpo geralda própria Constituição.

Mesmo assim, a tese da votação por dupla maioria em se que prevêque as decisões só serão adotadas pelo Conselho de Ministros se es-tes obtiverem o apoio de 55% dos países-membros com representa-ção de, pelo menos, 65% da população total da União acabou sendoincorporada ao novoTratado.As decisões por unanimidade continu-aram, contudo, a valer para a política externa européia, a política so-cial, recursos próprios daUnião e revisão dos tratados. Este novo sis-tema entrará em vigor apenas em 2014, em vez de 2009, e até 2017para aqueles Estados-membros que pedirem a aplicação do sistemade votação por maioria qualificada – cuja ponderação é feita a partirda expressão demográfica de cada Estado-membro – instituído peloTratado de Nice em 2001.

Outras iniciativas, como a tese defendida pela população francesaque considerava a possibilidade de uma renegociação do TratadoConstitucional apresentado, foram consideradas inimagináveis peloprimeiro-ministro de Luxemburgo e ex-presidente do Conselho Eu-ropeu. Emsua opinião, umaproposta alternativa seriamais apropria-da, como a de salvar alguns artigos do tratado que eram objeto de umrelativo consenso, no caso a designação de umministro de Relações

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Exteriores daUnião, que passaria a ser designado por diplomatas dospaíses-membros e pela Comissão, assim como o de presidente doConselho Europeu, que seria eleito por seus membros para umman-dato de dois anos emeio,medida incorporada ao novo tratado.Comodecisão final, optou-se, após uma reunião de trabalho entre a chance-ler Angela Merkel e os delegados dos 27 Estados-membros, porabandonar o formato do Tratado Constitucional e, em seu lugar, darimpulso a um tratado clássico que introduziria emendas nos dois do-cumentos em vigor, o Tratado daUnião Européia (Tratado deMaas-tricht de 1992) e o Tratado da Comunidade Européia (Tratado deRoma de 1954), este último passando a chamar-se “Tratado para ofuncionamento da União”, abandonando-se, assim, o termo “Comu-nidade” (JUNCKER, 2006).

Com a presidência nasmãos de Portugal durante o segundo semestrede 2007, prosseguiu-se na procura de uma nova fórmula que, obten-do maior consenso dos dirigentes europeus, assegurasse a governa-bilidade daUnião. Para tanto, foi convocada umaConferência Inter-governamental na qual se redigiu o texto do novo tratado, o TratadoReformador, também chamado de Tratado de Lisboa, que, entre ou-tras medidas, abandonou a idéia de se estabelecer uma Constituiçãopara aUEe previu, a partir de 2009, a figura de um“alto representan-te para a Política Externa e de Segurança Comum”, que passaria aexercer também o cargo de vice-presidente da Comissão Européia ede presidente do Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros.Sua aprovação pelo Conselho reunido em Lisboa em outubro de2007 e sua assinatura em13de dezembro de 2007pelos 27 dirigentesda UE deram início ao processo de ratificação, que recebeu sua pri-meira luz verde ao ser aprovado pela Assembléia Nacional da Hun-gria em 17 de dezembro de 2007.

Contudo, a experiência negativa anterior, no que se refere à não-ra-tificação doTratadoConstitucional, que poderia haver incentivado amodificação dos procedimentos que deveriam presidir a assinatura

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do novo Tratado, desta vez redigido pelos juristas do Conselho, nãoparece ter exercido uma influência nessa direção. Novamente as ne-gociações se fizeram de forma sigilosa entre os governos dos 27Estados-membros, e novamente os termos não chegaram aos cida-dãos da União, não só porque o novo tratado, ao se apresentar comoum catálogo de alterações dos tratados anteriores, obrigava a cons-tantes e trabalhosas consultas, como também porque o tempo entre aapresentação do projeto e sua aprovação fora apenas de dois meses.Reproduziu-se, assim, o método com que a Europa foi sendo cons-truída, uma negociação secreta entre Estados, falta de transparênciasobre o conteúdo das propostas, recusa do debate público etc. O quehouve como influência talvez venha a ocorrer, mas em sentido con-trário: o duplo “não” da França e daHolanda assustou de talmodo osdirigentes europeus que, certamente, poucos governos se arriscarãoa ratificar o novoTratado pormeio de um referendo, a não ser a Irlan-da, que, por imperativo constitucional, é obrigada a convocá-lo.Alguns países como a Dinamarca já declararam sua decisão de nãoaplicar esse sistema, presumindo-se que a grande maioria dos Esta-dos-membros irá segui-la.

Contudo, diferentemente do que ocorreu com a ratificação do Trata-doConstitucional, umeventual “não” emqualquer ratificaçãodos 27países da UE não irá significar automaticamente a morte do tratado,de acordo com o que apresenta o no 1 do artigo I-60 do título 9(“L’appartenance à l’Union”) da parte I do tratado: “Qualquer Esta-do-membro pode decidir, em conformidade com as respectivas nor-mas constitucionais, retirar-se da União” (TRAITÉ..., 2005, p. 20,tradução minha). Este acordo de saída, que não existia anteriormen-te, prevê tambémumaoutramudança, a possibilidade de expulsão deumEstado-membro daUE. Com esta nova fórmula, os governos eu-ropeus pretendem se resguardar de um novo impasse institucional.

De qualquermaneira, tanto o episódio da rejeição doTratadoConsti-tucional – sobretudo se levarmos em conta as razões do “não” da po-

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pulação francesa e holandesa – como a provável aprovação doTrata-do Reformador por meio de uma ratificação apenas parlamentarmostram claramente que a “Nova Europa” nascida após as amplia-ções de 2004 e 2007 está longe de haver encontrado um rumo queefetivamente satisfaça os desejos e necessidades de sua população.Ou, nomelhor dos casos, de haver conseguido que suas instituições epolíticas sejam mais bem conhecidas e sobretudo acompanhadas deperto pelos cidadãos europeus, que, já quase alcançando 500 mi-lhões, exigemumadefinição clara doquadro econômico, social e po-lítico que passará a reger sua “vida em conjunto”.

Notas

1. Walter Hallstein ocupou o cargo de presidente da Comissão Européia de1958 a 1967.

2. Em1981, o então presidente FrançoisMitterand designouRobert Badinter,atual senador pelo Partido Socialista francês, ministro da Justiça, cargo queexerceu até 1986. De 1986 a 1995, Badinter foi presidente do Conselho Consti-tucional daFrança.Atualmente, opõe-se à adesãoplenadaTurquia àUE, defen-dendo uma outra forma de cooperação.

3. OConselho da Europa, criado em 1949 e constituído por 46 Estados-mem-bros, tornou-se o maior fórum intergovernamental e interparlamentar do conti-nente.

4. O Tratado da UEM, assinado emMaastricht em fevereiro de 1992, entrouem vigor em novembro do ano seguinte. Em janeiro de 1994, foi criado o Insti-tutoMonetário Europeu, que introduziu novos mecanismos de fiscalização daseconomias dos países da UE. Em 1997, adotou-se o pacto de “Estabilidade eCrescimento”, destinado a assegurar a estabilidade das taxas de câmbio entre oeuro e as moedas dos países da UE que permanecem fora da zona do euro. Em1998, onzeEstados-membros qualificaram-se para integrar a zona do euro e, noano seguinte, onze moedas são substituídas pelo euro, que passa a ser a moedacomum da Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Lu-xemburgo, PaísesBaixos, Portugal, Espanha e, dois anos depois, Grécia. A par-tir daí, oBancoCentral passa a ser responsável pela políticamonetária, que éde-

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finida e executada em euros. Em janeiro de 2002, entram emcirculação as notase asmoedas denominadas emeuros, fazendo que só o euro tenha curso legal nospaíses da zona do euro.

5. O Acordo Schengen, assinado em 1985 entre França, Alemanha, Bélgica,Luxemburgo e PaísesBaixos, estabelece a abolição das fronteiras entre tais paí-ses, constituindo-se, assim, na União Européia, um livre espaço de circulação.Em1997, por ocasiãoda assinatura doTratadodeAmsterdã, o espaçoSchengenfoi alargado, passando a incluir gradualmente a Itália, a Espanha, Portugal,Gré-cia, Áustria, Dinamarca, Finlândia e Suécia. Em 2007, nove países do antigobloco soviético foram incorporados: República Tcheca, Estônia, Hungria, Le-tônia, Lituânia,Malta, Polônia, Eslováquia eEslovênia.Dos atuaismembros daUniãoEuropéia, ReinoUnido e Irlanda não participamdo espaço Schengen pordecisão própria. Bulgária e Romênia, osmais novosmembros da EU, ainda nãoforam convidados a aderir.

6. Preâmbulo do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa(TRAITÉ..., 2005).

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Resumo

A União Européia: UmaComunidade em Construção

O novo Tratado da União, o Tratado Reformador ou Tratado de Lisboa,aprovado na Cúpula Européia de Chefes de Estado e de Governo em outu-bro de 2007 durante a presidência de Portugal, abre um período de profundareflexão sobre as razões que levaram a França e a Holanda a dizer “não” aoTratado Constitucional apresentado à população em 2005 e sobre o novorumo a ser tomado.Neste artigo, proponho-me a reconstituir o debate políti-co-institucional que cercou esses dois momentos, debate profundamenteinfluenciado pela incorporação ao espaço territorial da União Européia de130 milhões de novos habitantes de diferentes procedências e identidades,o que certamente vai produzir um impacto crescente na distribuição de re-cursos políticos e econômicos e na percepção das diferentes identidades en-tre seus cidadãos. Tanto o debate normativo quanto o da diversidade cultu-

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ral serão examinados à luz das principais teorias que cercam os estudos so-bre a União Européia.

Palavras-chave: União Européia – Institucionalização – Ampliação –Identidade – Diversidade – Democracia

Abstract

The European Union: ACommunity under Construction

TheEuropean Lisbon Treaty, approved by the EuropeanCouncil inOctober2007 during the Portuguese presidency, opened a period of profounddiscussions about the reasons that led France and the Netherlands to rejectin referenda the Constitutional Treaty presented to the population in 2005as well about the new course that should be adopted in designing Union’snew institutions. The present text summarizes the political-institutionaldebate that surrounded these two moments. This debate is affected by theincorporation of 130 million new European citizens from different originsand identities to the European Union territorial space, having a growingimpact on political and economic resource distribution and on theperception of differences among the European population. Similarly to thenormative debate, the cultural diversity will be examined in light of themain theories in the field of European studies.

Keywords: European Union – Institutionalization – Enlargement –Identity – Diversity – Democracy

Sonia de Camargo

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