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AURORA Roteiro de Henrique Arnholdt Rua 236, 164 - Setor Coimbra Goiânia - GO 74535-030 062-291-8072

Aurora

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Roteiro cinematográfico. Médico judeu espiona os holandeses no Recife antes da revolta dos pernambucanos contra a dominação batava.

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AURORA

Roteiro de

Henrique Arnholdt

Rua 236, 164 - Setor Coimbra Goiânia - GO 74535-030

062-291-8072

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FADE IN: INT. PALÁCIO DO GOVERNADOR, SALVADOR – DIA - 1645 PADRE VIEIRA, aos 37 anos, saudado com respeito e vênia por todos à sua passagem, percorre apressado os corredores e salões do Palácio do Governador. É um homem magro, de baixa estatura, grande cabeça, barbas precocemente grisalhas. Veste uma sotaina negra e surrada. Somente um crucifixo de prata adorna sua figura imperiosa, contrastando com os exageros de rendas, sedas, jóias e perucas que enfeitam os CORTESÃOS e MILITARES aglomerados nos espaços barrocos do Palácio. ANTE-SALA DO GOVERNADOR Pe. Vieira irrompe na ante-sala onde pontifica o SECRETÁRIO. Há alguns poucos eleitos no aposento, MILITARES e CIVIS, bebericando Porto ou fumando, esperando uma oportunidade de falar com o Governador.

SECRETÁRIO Senhor Dom Padre, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo...

PE.VIEIRA Para sempre seja louvado, meu filho.

SECRETÁRIO Dom Antônio já está esperando, vamos passar, Reverendo...

Sob o olhar indignado dos preteridos, o Secretário conduz o padre à porta do gabinete, que abre.

SECRETÁRIO Cá está o Padre Vieira, Excelência.

SALA DO GOVERNADOR Uma grande mesa de mogno domina a sala, coberta por mapas, livros, compassos e réguas. Várias poltronas estão espalhadas pelo aposento enfumaçado. A luz entra por grandes portas que se abrem para uma varanda, de onde se avista a baía. DOM ANTÔNIO Teles, Governador-Geral do Brasil, e André VIDAL de Negreiros, Coronel do Exército Colonial, erguem-se para saudar o jesuíta. Dom Antônio está em mangas de camisa e sem peruca. Com a cabeça

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raspada e os grandes bigodes, parece mais um soldado em dia de folga do que o Governador-Geral do Brasil. Vidal tem a mesma idade de Vieira, 37, mas parece mais moço. Um bigode retorcido e um cavanhaque, bons linhos e rendas, gibão de damasco, denotam a origem fidalga da figura.

DOM ANTÔNIO Padre Vieira, finalmente. Bem-vindo de volta à Bahia.

VIDAL Sua benção, Padre.

PE.VIEIRA Deus te abençoe. Como está teu pai? Dom Antônio, que saudades . Vim tão logo pude me desembaraçar da bagagem.

Com um gesto Dom Antônio convida o Padre a se pôr à vontade. Padre Vieira acomoda-se numa poltrona, encarando Vidal e Dom Antônio, que retornam a seus lugares. Vidal tira baforadas de um charuto.

DOM ANTÔNIO

E então, que notícias traz do reino, Padre? Perdoe-me a falta de cortesia em não indagar de si primeiro, mas não consigo esperar. O que diz El-Rey Dom João?

PE.VIEIRA Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. Não fosse a ajuda de Dom Francisco Coutinho, não teria dobrado a vontade de El-Rei.

DOM ANTÔNIO Mas dobrou?

PE.VIEIRA. Dobrei.

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Dom Antônio mostra alívio e alegria. Vieira continua.

PE.VIEIRA. Sua Majestade teme que uma guerra aberta contra a Holanda acabe por derrubá-lo do trono. Por isso endurece sua vontade. Não faltam inimigos a Dom João, e bem junto dele.

DOM ANTÔNIO Aquilo é um ninho de cobras.

PE.VIEIRA

Há quem diga que é melhor entregar o Brasil inteiro aos holandeses do que arriscar uma guerra neste momento. Os castelhanos adorariam nos ver brigando com os holandeses numa frente americana. Seria a oportunidade de Felipe derrubar Dom João, retomar Portugal.

Dom Antônio se levanta, dirige-se a um aparador onde há garrafas e licoreiras. Enche três taças, estende duas para os convidados, volta a sentar-se.

PE.VIEIRA. Mas Sua Majestade concorda conosco. Chegou a hora de acabar com o Brasil Holandês. Vamos dar a eles o mesmo tratamento que lhes demos em 25 e aos castelhanos em 40.

Com o copo de vinho em punho, Pe. Vieira se levanta da cadeira e gesticula.

PE.VIEIRA. E, se suceder, e Deus quiser que a pátria se abrase, como Tróia, que se confunda, como Babilônia, que se subverta, como Nínive, que não fique nela pedra sobre pedra, como Jerusalém, e que se sepulte uma, duas e três vezes debaixo de suas ruínas, como Roma, ainda no tal caso, afirma El-Rei, não desmaiará nem cairá o seu coração, porque ficará em pé a vontade divina:

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Sicut autem fuerit voluntas in caelo, sic fiat.

DOM ANTÔNIO Amém. Mas o que fez Dom João mudar de idéia?

PE.VIEIRA O que nós o fizemos perceber é que a Companhia das Índias Ocidentais não é uma nação. É uma empresa e, como tal, tem que apresentar lucros. Não pode meter-se numa guerra prolongada, que trará conseqüências negativas imediatas sobre sua produção de açúcar. As Províncias Unidas contam com suas colônias para manter a guerra contra a Espanha. Abrir uma frente na América não interessa à Holanda. O Conselho dos XIX tem assento em Haia e não no Recife. São eles que recebem as pressões dos acionistas da companhia, que não querem saber se os Diretores, cá no Brasil Holandês, estão tendo problemas com os nativos ou não. Eles querem lucros.

VIDAL É para não terem problemas com os nativos que mantêm no Brasil um exército de cinco mil homens, equipados com o que há de melhor nos arsenais da Europa.

PE.VIEIRA

Exatamente. Eles não querem problemas. Eles querem dividendos. As ações da Companhia já caíram setenta por cento. Só agora o Conselho dos XIX está percebendo as loucuras cometidas por Nassau, as dívidas imensas que deixou para trás.

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VIDAL Mas que cidade maravilhosa que é Mauriciópolis, Padre Vieira. Nem parece que se está no Brasil. Os canais que eles construíram, os jardins, aquelas casas... O Recife não é mais o mesmo.

DOM ANTÔNIO Nassau é um visionário. É aristocrata, dinheiro para ele é coisa de somenos.

PE.VIEIRA O que nunca o impediu de receber subornos. É, mas o que nos interessa agora é que a Companhia está muito pouco disposta a continuar investindo sem retorno. As dívidas que os pernambucanos têm com eles são impagáveis.

VIDAL Mas eles estão querendo receber. Voltei de lá há um mês e as coisas já estão fervendo. O Conselho Supremo assumiu todas as dívidas dos fornecedores. Consolidou com as suas e agora está cobrando tudo de uma vez. Oferecem renegociações, é claro que a juros escorchantes.

Vidal se levanta, enche sua taça e as dos demais.

VIDAL O clima mudou totalmente. Antigamente havia até uma certa camaradagem entre os holandeses e os pernambucanos. Nassau ajudou muito para isso, com suas festas e todo aquele talento importado, pintores, botânicos, astrônomos... Parecia um lugar civilizado, uma cidade européia. Agora... Sobraram os comerciantes e os soldados. E os potiguares.

DOM ANTÔNIO Vidal traz notícias alarmantes do Brasil Holandês, Padre. Os soldados já

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andam saqueando pelo sertão e os potiguares estão fora de controle na Paraíba. As chacinas já começaram. E os idiotas do Conselho estão exigindo que os portugueses entreguem suas armas.

VIDAL É claro que ninguém está obedecendo. João Fernandes já tem muito armamento enterrado na Várzea.

PE.VIEIRA Quando chegaste, André?

VIDAL

Faz um mês, Padre.

Vieira volta-se para o Governador.

PE.VIEIRA De lá para cá tivemos alguma informação de Frei Manuel, Dom Antônio?

DOM ANTÔNIO Nada. Nenhuma palavra do Brasil Holandês, a não ser mais cartas de João Fernandes pedindo ajuda. Na última, disse que se não conseguisse nada com o Rei de Portugal, iria pedir ajuda aos turcos.

Padre Vieira faz cara de nojo e cospe as palavras.

PE.VIEIRA Brasil Holandês! Não mais por muito tempo, Deus queira. Não mais por muito tempo. Pedir ajuda aos turcos, é? Estiveste com João Fernandes, André?

VIDAL Estive. Custei a encontrá-lo, está vivendo mais no mato do que nas muitas casas que tem. Estava com uma idéia maluca de convidar os membros do Conselho... e os principais oficiais holandeses para o casamento de seu...

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cunhado, se não me engano, e matá-los todos.

PE.VIEIRA

Uma noite de São Bartolomeu à moda pernambucana!

VIDAL Tirei isso da cabeça dele, disse que ele tem que esperar nossos reforços. Nisso muito me ajudou Antônio Dias Cardoso, que Dom Antônio enviou para lá.

PE.VIEIRA Que história é essa?

Dom Antônio faz uma cara contrita e explica para o padre.

DOM ANTÔNIO Não podia mais esperar, Padre. João Fernandes me enviou repetidas cartas relatando as barbaridades dos holandeses e pedindo ajuda. Mesmo sem autorização do Rei, enviei Cardoso com quarenta homens e algum armamento, para começar a treinar os homens de Fernandes. Henrique Dias e Felipe Camarão já devem ter chegado com suas tropas ao São Francisco. Com a chuva que tem caído, não sei se terão passagem para Alagoas.

VIDAL Nem água nem fogo seguram aqueles dois.

PE.VIEIRA André, estiveste no Recife já faz um mês. Sabe-se lá como estão as coisas agora. Em sua última mensagem, Frei Manuel pedia para ser liberado de suas obrigações de... de espião. Mas precisamos de um espião lá dentro, alguém que nos mande informações frescas para podermos agir. E eu tenho o homem perfeito para essa missão. Quando partem os reforços por mar?

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DOM ANTÔNIO

No final de julho. Vidal desembarca com dois mil homens na baía de Tamandaré.

PE.VIEIRA É muito tarde! Se Camarão e Dias estão por lá, os holandeses já devem ter notícia. Tem que ser antes!

Dom Antônio e Vidal se entreolham, subjugados pela autoridade do jesuíta. INT. GABINETE DE HAMEL - RECIFE - DIA O Presidente do Conselho da Companhia das Índias Ocidentais Hendrik HAMEL, ainda de roupão, pantufas e gorro de dormir, entra em seu gabinete com uma xícara de chá na mão. O ambiente é totalmente holandês, exceto pela violência da luz que invade as altas janelas. Senta-se à escrivaninha, cujos escaninhos estão cheios de papéis. Há grandes arquivos em todas as paredes disponíveis. Papeleiras ocupam o restante dos espaços. Nos raros nichos disponíveis, luzem telas a óleo de paisagens batavas. Hamel abre a correspondência com vagar, bebericando o chá. Entre uma carta e outra, prepara um cachimbo de louça e o acende. De repente, uma das cartas prende-lhe a atenção e, à medida em que lê, vai se erguendo da cadeira, uma expressão de perplexidade dominando-lhe as feições. Pega de uma sineta de sobre a escrivaninha e a agita com furor. A porta se abre e por ela entra esbaforido o SECRETÁRIO.

SECRETÁRIO Pronto, Excelência, o que houve, Excelência?

HAMEL

Quem trouxe esta carta? Foi você que pôs esta carta aqui?

SECRETÁRIO

Que carta, Excelência, deixe-me ver... Não, esta carta não passou por minhas mãos.

HAMEL Como não? Então quem a colocou aqui?

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O Secretário esfrega as mãos e olha em torno de si, aflito, como se estivesse procurando a resposta.

SECRETÁRIO Não sei, Excelência...

HAMEL Convoque imediatamente uma reunião do Conselho Supremo. Quero todos aqui em meia hora. Meia hora, ouviu bem?

O Secretário sai às carreiras. Hamel arranca a touca da cabeça e com ela enxuga o rosto suado enquanto contempla a carta, que segura como se estivesse pegando um escorpião pela cauda. INT. SALA DO CONSELHO - DIA Também aqui o ambiente é tipicamente holandês, com móveis escuros e pesados. Nas paredes, retratos dos Herren XIX, os 19 Senhores donos da Companhia. Com Hamel presidindo, estão reunidos os membros do Conselho Supremo do Brasil Holandês: P.J. BAS, ourives de Haarlem; A. VAN BULLESTRATE, carpinteiro de Mittelburg; J. VAN WALBEEK, comerciante de Amsterdam; HENDRIK DE MOUCHERON, comerciante de Antuérpia. Todos vestem trajes negros, com golas e punhos de linho debruado em renda. Há resmas de papel e tinteiros diante de cada um deles.

HAMEL Não tive tempo de mandar fazer cópias deste documento para os senhores, portanto vou ler alguns trechos para que todos saibam do que se trata.

Hamel pigarreia e começa a ler.

HAMEL “Admira-se que os senhores se sintam tão seguros, quando é notório que a mata da Paraíba está repleta de forças procedentes do Rio Real constituídas por numerosos negros, mulatos e portugueses chefiados por Camarão.”

BULLESTRATE Chefiados por quem?

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BAS Camarão. Felipe Camarão.

HAMEL Escutem: “Desde março que estão se reunindo, na esperança de se juntarem, agora, às tropas que até aqui estavam detidas pelas cheias dos rios.”

BULLESTRATE Tropas? Que tropas?

HAMEL Bullestrate, por favor... “O que planejam é incitar o povo a se levantar em armas, e, uma vez isso conseguido, consideráveis reforços lhes chegarão da Bahia, tanto por mar como por terra; com isso planejam bloquear o Recife.”

Hamel interrompe momentaneamente a leitura para percorrer com o olhar os rostos perplexos de seus companheiros.

HAMEL

“Alardeiam que suas forças já se acham consideravelmente aumentadas pelos devedores da Companhia e outros vagabundos e ameaçam massacrar todos os súditos de Vs. Excias. que se recusarem a apoiá-los.”

Um murmúrio percorre a mesa.

HAMEL “Pessoa merecedora de todo o conceito e crédito, pertencente ao dito acampamento, deu-nos esta informação para que a transmitíssemos a Vs. Excias., a fim de se acautelarem. A mesma pessoa nos informou que João Fernandes Vieira é o Comandante em Chefe da rebelião...”

Manifestações de surpresa e indignação interrompem a leitura de Hamel, que ergue a mão pedindo silêncio.

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HAMEL Tem mais, tem mais. “Também soubemos que o referido Vieira já não dorme em sua casa e está sempre de prontidão.” Tará, tará, tará... sim, aqui está: “Aconselhamos que de hoje em diante exijam do povo a entrega de suas armas e ordenem a todos os senhores de engenho, principalmente os das freguesias de Várzea, Igarassú, S. Lourenço, S. Amaro, Muribeca, Ipojuca e Serinhaém, que se apresentem no Recife, com seus escravos, etc., etc.”

Hamel se recosta na cadeira e encara seus colegas um por um.

MOUCHERON Quem assina esta carta?

Hamel mostra a última folha.

HAMEL Alguém que usa o pseudônimo de A Verdade. Ele diz que são três os informantes e que continuarão a nos fornecer mais detalhes da conspiração.

MOUCHERON João Fernandes! Mas que canalha. Mas as negociações com ele...?

WAALBECK Moucheron, tenho uma pilha de dossiês sobre os negócios de João Fernandes. As cartas dele há muito deixaram de tratar das dívidas, são só queixas e acusações. É o caloteiro típico.

BAS Se o obrigássemos a pagar tudo o que deve à Companhia, não lhe sobraria sequer a roupa do corpo.

WAALBECK Vamos mandar prendê-lo já.

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BULLESTRATE Sim, isso mesmo. Hamel, vamos prender a ele e a todos os seus associados.

HAMEL Não basta prendê-lo. Se não agirmos com cautela, podemos precipitar as coisas e antecipar a revolta.

BULLESTRATE Mas o que vamos esperar? A carta não diz que eles já estão reunindo tropas? Que mais reforços estão vindo da Bahia? Se não agirmos agora, seremos todos massacrados.

Hamel pega uma folha de papel em branco e, mergulhando uma pena de ganso em elaborado tinteiro de prata, começa a escrever. Não pára de falar enquanto escreve.

HAMEL

Reforços da Bahia... São boatos que eles mesmo espalham. Antônio Teles não teria a ousadia de quebrar as tréguas sem autorização do Rei de Portugal, que afinal é nosso aliado contra a Espanha. Achas que o Bragança se arriscaria a brigar com as Províncias Unidas? De qualquer modo, vou mandar prender João Fernandes. Assina e passa adiante.

Passa a folha para Moucheron.

INT. SANTA CASA - SALVADOR - DIA Esta é a sala em que COSMO DIAS pratica sua arte de médico. É iluminada por algumas janelas redondas, abertas junto ao teto alto. Deitado sobre uma mesa de mármore está um TOUREIRO, com o peito despido. Cosmo Dias está terminando de costurar um enorme talho no abdome do rapaz. Cosmo está sujo de sangue até os cotovelos. O sangue se espalha pela mesa e é recolhido em canaletas. Em torno de ambos, estão os AMIGOS do Toureiro, aflitos com o estado do companheiro, que continua consciente, fazendo uma força enorme para não berrar. A MÃE do Toureiro está à sua cabeça, alisando-lhe os cabelos e se lamentando baixinho. O médico percebe a chegada de Padre Vieira e o cumprimenta, sem interromper o trabalho.

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COSMO DIAS

Ora, Padre Vieira, quanto tempo! Quando voltou do Reino?

PE.VIEIRA Cheguei ontem, Cosmo. Trago as melhores notícias, mas termina antes o teu trabalho.

COSMO DIAS É. Festa da Ascensão de Nossa Senhora. Como sempre, corrida de touros. Este aqui não saiu da frente com a destreza suficiente. É o terceiro que costuro hoje.

Cosmo dá um nó e corta a linha com um escalpelo. Enxuga as mãos no avental, que mais parece o de um açougueiro, e apanha um pote de barro de uma prateleira próxima. Volta para junto do grupo e se dirige à mãe enquanto fala com o padre.

COSMO DIAS Já estou terminando, Padre Vieira, fique à vontade. Aqui, dona, a senhora agora aplique um bocado desse ungüento na barriga do seu filho. Depois, pegue umas ataduras, ali, está vendo? Enfaixe ele direitinho, como a senhora fazia quando ele era neném, lembra?

A mãe sorri entre as lágrimas.

RECANTO DE COSMO Vieira se dirige ao fundo da sala, ultrapassa um BIOMBO e chega ao canto onde Cosmo estuda e descansa. As paredes estão cobertas de DESENHOS anatômicos. Há COBRAS e ESCORPIÕES em boiões de álcool. Num aquário cheio de limo, SANGUESSUGAS serpenteiam preguiçosamente. Há livros abertos em todas as superfícies horizontais que não estejam ocupadas por INSTRUMENTOS CIRURGÍCOS, PRISMAS e LENTES. Padre Vieira acaba de sentar-se numa cadeira de couro puído quando Cosmo Dias se junta a ele.

COSMO DIAS E então, Padre? Como está Lisboa?

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Dirige-se a uma pia de pedra num canto da sala, elaboradamente esculpida, cuja bica é uma cabeça de leão de cuja bocarra verte água ininterruptamente. Cosmo arranca o avental e a camisa e se põe a lavar o torso, falando consigo mesmo.

COSMO DIAS Não, por hoje chega. Não costuro mais ninguém.

PE.VIEIRA Linda como sempre, Cosmo. Mas cheia de intrigas, prevaricações. Achas que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de lá, muito mais se comem os Brancos. Todo aquele bulir, todo aquele andar, aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; aquele subir e descer as calçadas, aquele entrar e sair, sem quietação nem sossego... Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como haverão de comer e como se haverão de comer uns aos outros. Morreu algum deles, vês logo uns tantos sobre o miserável, a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a própria mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido a terra toda.

Padre Vieira lança as mãos para o alto em desencanto e as deixa cair de volta nos braços da cadeira, de onde saltam pequenas nuvens de poeira. Cosmo Dias terminou de se limpar e enfia agora pela cabeça uma camisa limpa. De sobre um aparador, apanha uma garrafa e dois cálices e vem sentar-se perto do jesuíta. Serve duas doses de aguardente, passa uma ao padre e bebe a sua de um

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só gole. Fecha os olhos e fica um tempo com a respiração presa. Depois, verte outra dose em seu copo.

COSMO DIAS Não é só em Lisboa que as coisas são assim, Padre. Qualquer capital do mundo é assim. Aqui em Salvador não estamos longe disso.

PE.VIEIRA Bem, mas não foi para ensaiar meus sermões que vim te visitar.

Dois dos Amigos do Toureiro se chegam timidamente. Cosmo se levanta e vai a eles. Recebe de um deles algumas moedas, que enfia na algibeira.

COSMO DIAS Levem-no com cuidado. O corte foi só na carne, não alcançou as tripas. Mas ele deve ficar imóvel até cicatrizar. Perdeu bastante sangue, tem que tomar muita sopa de feijão, comer muito fígado. Depois de amanhã passo lá para vê-lo. Digam a Dona Brígida que leve aquele pote de ungüento e passe na ferida todas as manhãs. Adeus.

Os dois se afastam e Cosmo retorna para junto de Padre Vieira.

COSMO DIAS Acho que consegui melhorar o ungüento de Ambroise Paré, padre. Acrescentei-lhe óleo de copaíba e...

Padre Vieira se impacienta e interrompe o amigo.

PE.VIEIRA Escuta, Cosmo, senta-te aqui e me escuta. Temos feridas muito mais profundas a curar.

Cosmo retoma seu assento, o interesse despertado pela intensidade de Padre Vieira.

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PE.VIEIRA Vim aqui para te incumbir de uma missão.

COSMO DIAS Missão?

PE.VIEIRA Estamos prontos para invadir o Brasil Holandês e jogar no mar os bebedores de cerveja, com os chama Dom Antônio. Camarão e Dias já estão no São Francisco com suas tropas. Teu amigo Vidal desembarca com dois mil homens no fim de julho. El-Rei enviou muita pólvora e chumbo, e mosquetes biscainhos. Nosso embaixador em Haia continua negando que Portugal esteja pensando em dar qualquer apoio aos pernambucanos, que nosso tratado de tréguas continua de pé, etcetera. Mas vamos atacar! Sua Majestade autorizou.

Cosmo Dias não esconde seu ceticismo diante da comunicação do padre.

COSMO DIAS Padre Vieira, o exército da Companhia é o mais moderno do mundo.

PE.VIEIRA E daí? Lutamos contra eles aqui mesmo em Salvador, em 25, lembras? Dizias a mesma coisa, o exército da Companhia é o mais moderno do mundo, e era, em 25. No entanto nós os pusemos daqui pra fora, não foi?

COSMO DIAS Sim, mas fizemos isso no primeiro ano de ocupação. No Recife, eles já estão há quinze.

PE.VIEIRA E quando o próprio Duque de Nassau veio bombardear nossas portas? Não resistimos bravamente, e não terminamos

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por mandá-lo de volta com o rabo entre as pernas? Pois é chegada a hora de jogar no mar esses aí. A revolução vai estourar a qualquer momento e não podemos deixar que os holandeses massacrem nossa gente. Dom Antônio já despachou tropas para lá. Antônio Dias Cardoso já está lá desde o mês passado, dando treinamento de guerra aos senhores de engenho e seus homens, mas são apenas um punhado de patriotas. Felipe Camarão e Henrique Dias já estão na fronteira, prontos a fazer junção com os rebeldes. André Vidal desembarca com dois mil homens dentro de dez dias. Agora não tem mais volta, alea jacta est! O próprio Rei deu sua chancela.

COSMO DIAS Sim, e o que tenho eu a ver com tudo isso? Não tenho mais a juventude para ser médico de campanha.

PE.VIEIRA Quero-te lá dentro do Recife, na Cidade Maurícia, para seres nosso espião, nossos olhos e ouvidos.

Cosmo Dias olha para o Padre Vieira, joga a cabeça para trás e solta uma gargalhada. Levanta-se e se inclina sobre a figura do padre, sempre rindo.

COSMO DIAS Eu? O senhor está louco, Padre? Quer um pouco de láudano? Deixe-me ver se está com febre.

Padre Vieira afasta com um tapa a mão que Cosmo Dias estendia para tocar-lhe a testa. Levanta-se por sua vez, arrepanha a batina e fala com dureza.

PE.VIEIRA Tu me deves isso, Cosmo Dias. Se não fosse por mim, o Bispo Dom Marcos te teria queimado na fogueira em 32.

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As palavras do jesuíta fazem o riso congelar no rosto de Cosmo Dias. Padre Vieira aponta para os desenhos anatômicos pregados nas paredes.

PE.VIEIRA E o que pensaria o Santo Ofício dos cadáveres que dissecas aqui no porão? Sabes que Dom Antônio está movendo céus e terras para que se instale um Capítulo da Inquisição aqui na Bahia. Está disposto a pagar de seu próprio bolso, como já fez em Goa. És cristão novo e médico, o que faz de ti um bruxo.

Cosmo Dias se levanta da cadeira e dá as costas ao padre, que percebe estar obtendo o resultado oposto ao desejado. Vieira levanta também e se dirige às costas do médico em tom aliciador.

PE.VIEIRA Deves isso a esta terra, que te acolheu em tua fuga pelo mundo e te deu uma nacionalidade, Cosmo Dias. E deves isso a essa gente, teus companheiros, que daqui a um mês estarão enfrentando esse exército mais poderoso do mundo.

A indignação de Cosmo diante da cobrança é tamanha que o deixa mudo. Padre Vieira adota um tom mais persuasivo.

PE.VIEIRA Tu és o homem perfeito para essa missão, Cosmo. Falas holandês, alemão e hebraico perfeitamente. Tens uma capacidade de adaptação diabólica. Não te deixas enganar por ninguém. Tua profissão te abre qualquer porta. Ora, Cosmo, não lembras há vinte anos, tu e Frei Anselmo durante o sítio de Salvador? Quantas vezes penetraram esses muros para vir espionar os holandeses?

COSMO DIAS Sim, até pegarem Anselmo e o pendurarem no cadafalso, na Porta de São Bento.

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Os dois se calam, perdidos em memórias. Cosmo Dias apanha um gibão de um cabide e o veste. Pega também uma bolsa de couro, na qual enfia um estojo de instrumentos que junta de sobre uma mesa. Pega também a garrafa de aguardente.

COSMO DIAS Estou aqui desde as cinco da manhã, Padre, não suporto mais olhar essas paredes. Vamos.

Dando de ombros, Padre Vieira segue Cosmo até a porta, por onde saem. EXT. TERREIRO DE JESUS - NOITE Cosmo Dias e Padre Vieira deixam os portais da Santa Casa e logo alcançam o Terreiro de Jesus. Ainda há barracas de comida remanescentes da festa, fumegando à luz de postes de óleo de baleia. Da banda da Ladeira do Pelourinho, ouve-se música e risadas. Um grupo de cavaleiros exibe proezas diante da Igreja de São Francisco. Padre Vieira pára diante do Colégio dos Jesuítas e segura Cosmo Dias pelo braço.

PE.VIEIRA Escuta, Cosmo, tenho em Recife uma pessoa com acesso a informações de primeira qualidade, mas não posso mais contar com ele. Sua posição é delicada e perigosa. É um homem velho. Não posso exigir demais dele. É um frade capuchinho. Trabalha discretamente junto aos oficiais franceses católicos. Ouve suas confissões e sabe conduzir o catecismo para descobrir o que se passa nos quartéis. Mas o Conselho já está desconfiado dele. Quer sair de Mauriciópolis, teme por sua vida. Preciso que o substituas, Cosmo.

Cosmo Dias dá uma gargalhada. O padre o acompanha, acelerando o passo para acompanhar as passadas do médico. De quando em quando, Cosmo bebe um gole no gargalo da garrafa. Quando chegam ao início da Ladeira do Pelourinho, Cosmo volta a falar.

COSMO DIAS

Metade da minha vida não tenho feito outra coisa, a não ser praticar

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medicina. Há anos que meus dias são todos iguais. Acha que estou disposto a encarar o fio de navalha que é a vida de um espião?

PE.VIEIRA Mas exatamente por isso! Não é de hoje que tenho notado em ti essa... esse desânimo, essa lassidão, esse automatismo com que passas pela vida. É assim que queres acabar? Um autômato naquela sala horrível em que trabalhas, esquartejando cadáveres apodrecidos à procura do que faz o homem funcionar? É dentro de ti que vais encontrar o motivo da vida, Cosmo. Como podes pensar que vais achar a vida entre os mortos? O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.

Cosmo faz um gesto de enfado. Mais uma vez, Padre Vieira interrompe a caminhada e posta-se diante de Cosmo Dias.

PE.VIEIRA

Escuta, Cosmo, dentro de algumas semanas André Vidal vai desembarcar em Pernambuco com dois mil homens. Se não tivermos informações precisas das disposições das tropas holandesas, seus movimentos, suas fortificações, estamos arriscados a sofrer uma derrota de que nunca mais nos recuperaremos. É agora ou nunca, Cosmo.

Sob a luz das lanternas que iluminam as fachadas dos sobrados, Padre Vieira examina o rosto do companheiro.

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PE.VIEIRA Os holandeses são como uma doença que atacou nosso país, Cosmo. Uma doença que se espalha como a lepra. Já ocuparam o Ceará, o Rio Grande, a Paraíba, o Sergipe, as Alagoas. Se não extirparmos logo esse cancro, a Bahia será sua próxima vítima. Logo estarão aqui, com seus navios e seus canhões, matando e saqueando. E aí não vai adiantar te esconderes na tua sala de cirurgia.

Cosmo Dias esfrega o rosto num gesto de irritação e cansaço. Respira fundo, volta-se para o jesuíta e fala.

COSMO DIAS Padre, deixe-me pensar até amanhã. Amanhã eu lhe dou minha resposta. Está bem assim?

Padre Vieira não esconde a alegria por Cosmo Dias não ter dado uma negativa categórica.

PE.VIEIRA Perfeito, Cosmo, perfeito. Amanhã, então. Amanhã.

EXT. ENGENHO DE JOÃO FERNANDES EM CAMARAGIBE - NOITE Sobre um outeiro à margem do rio Camaragibe, erguem-se as construções que constituem o principal engenho de açúcar de João Fernandes Vieira. A casa-forte domina o terreno, tendo ao lado uma pequena igreja. Mais abaixo, junto ao rio, está a casa de purga, com suas caldeiras, paróis e a grande roda do moinho. A lua já começa a minguar. Algumas nuvens pesadas e lentas a ocultam por vezes mas sua luz ainda brilha forte. Nada se move no terreiro, nenhuma luminosidade escapa pelas janelas dos edifícios. Um pelotão de soldados holandeses se aproxima da casa-forte, ocultando-se na vegetação baixa. São homens armados com o que de melhor oferecem os arsenais da Europa. Fuzis de pederneira, pistolas, couraças, lanças e espadas. São comandados pelo Tenente DENNIGER, jovem e louro. Acocorado, espreita o local com

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cuidado. Chama para junto de si o Sargento HILT, prussiano velho e gordo.

DENNIGER Hilt, vamos cercar a casa com duas filas de mosqueteiros. Assim que eu baixar o braço, quero que comecem a atirar nas janelas e portas. Descarreguem as armas, dêem lugar à segunda fila e recarreguem enquanto os outros atiram. Quero fogo de barragem até eu mandar parar. Entendido?

Hilt se afasta de gatinhas para passar as ordens aos soldados, que se preparam. Denniger ergue o braço. Ao abaixá-lo, tem início uma saraivada ininterrupta de balas que gradualmente vão destruindo as janelas e portas da casa. Não há qualquer revide do outro lado. Uma intensa fumaceira começa a ocultar a cena, até que Denniger ordena o cessar fogo. Intrigado com a ausência de reação, o tenente comanda com um gesto o avanço da tropa que, de armas em riste, se aproxima da casa. O sargento e alguns soldados sobem as escadas que conduzem à porta principal, cuja madeira está estilhaçada pelas balas. Um pontapé acaba de derrubá-la e o grupo entra. Denniger se dirige ao porta-estandarte STOLENISKI, um polaco enorme.

DENNIGER Pegue dez homens e vasculhe o engenho e a senzala. Se encontrar alguém, traga-o a mim. Vá!

Stoleniski escolhe seu grupo. Descem trotando para o engenho. Denniger e os demais seguem o sargento para o interior da casa-forte. INT. CASA DE JOÃO FERNANDES - NOITE Hilt e seus homens já acenderam algumas lanternas e velas, que iluminam a destruição causada pelas pesadas balas da mosquetaria. Mesmo assim, é possível perceber que os sucessivos aposentos por onde passam eram ricamente decorados. Os holandeses não encontram viva alma no interior da casa.

DENNIGER Ninguém. Mas não é possível. O miserável foi avisado a tempo. Deve

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estar por aí, escondido no mato com sua gente.

Enfurecido, golpeia com a espada a imagem de uma santa esculpida em madeira, quase em tamanho natural. Sai da casa, acompanhado de seus soldados. EXT. CASA DE JOÃO FERNANDES - NOITE Ao mesmo tempo em que emergem da casa, Stoleniski e seu grupo vêm subindo do engenho. O porta-estandarte traz de arrasto pelos cabelos um ESCRAVO TURCO, que vem chorando e clamando. Quatro ESCRAVOS AFRICANOS vem sendo empurrados a ponta de chuços.

DENNIGER Ah, finalmente. Aqui temos alguém que vai falar. Traz-me aqui este filho de Alá.

O porta-estandarte lança num repelão o escravo turco aos pés de Denniger. O pobre diabo se enrodilha e tapa a cabeça com os braços, sempre se lastimando numa algaravia incompreensível. Denniger o cutuca com a ponta da bota.

DENNIGER Onde está teu dono, cachorro?

O escravo turco tenta fazer-se ainda menor e prossegue choramingando. Denniger se irrita e o arrepanha do chão sem grande esforço. Posto em pé, o turco pára de chorar e encara seu captor com olhos esbugalhados de medo.

DENNIGER Onde está Fernandes Vieira, animal? Fala!

ESCRAVO TURCO Não sei, senhor, não sei. Juro que não sei.

Denniger empurra o turco para o porta-estandarte e desembainha um punhal. Stoleniski abraça o pequeno levantino que imediatamente começa a debater-se, retomando a gritaria. Mas o abraço do enorme soldado o imobiliza e Denniger se aproxima, exibindo a lâmina do punhal pontiagudo.

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DENNIGER Fala, desgraçado, ou te furo os olhos!

Transido de pavor, o turco só consegue sacudir a cabeça numa negativa frenética. Denniger segura-o pelas bochechas e aproxima a ponta do punhal do olho esbugalhado do turco. O mais velho dos escravos africanos dá um passo adiante e fala.

ESCRAVO AFRICANO Nóis num sabe não, coroné. O sinhozinho faz mais de semana que num drome aqui.

Denniger solta o turco e se dirige ao africano. Com toda a calma, enfia a lâmina até o cabo na barriga do velho, dando um pulinho para trás para evitar o sangue que esguicha do talho. O africano olha com espanto, primeiro para Denniger, depois para a própria barriga, de onde o sangue continua a jorrar. Lentamente, suas pernas cedem e ele cai de joelhos. Vacila e acaba por cair de bruços sobre o sangue que empapa a terra. A cena foi observada com indiferença pelos holandeses e resignação pelos africanos. O turco, no entanto, volta a se debater no abraço de urso do porta-estandarte. Denniger volta sua atenção a ele.

DENNIGER Queres acabar como ele, cachorro? Onde está Fernandes Vieira?

ESCRAVO TURCO

Mas é verdade o que ele disse, senhor, é a pura verdade! O patrão não dorme aqui há muito tempo. Vem às vezes, durante o dia, troca de cavalo, pega mantimentos e some. É verdade!

DENNIGER Então não me serves para nada.

Denniger agarra-o pelos cabelos e empurra-lhe a cabeça para trás, expondo a garganta que degola num único golpe. Stoleniski solta o turco, que desaba no chão em estertores. Denniger limpa a lâmina do punhal nas roupas de sua vítima e volta a embainhá-lo.

DENNIGER Acabem com esses outros. Podem saquear a casa. Depois, metam fogo em tudo.

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A ordem é recebida com gritos de alegria pelos soldados. Três lanças trespassam os escravos restantes e a tropa corre para o interior da casa. Denniger tira uma garrafa do alforje que traz a tiracolo, destapa-a e bebe com sofreguidão. Os soldados saem da casa carregando trouxas com o produto do saque. Chamas começam a arder em seu interior. Como que enlouquecidos, os soldados incendeiam com archotes os demais prédios do engenho. Denniger contempla tudo com benevolência. INT. GABINETE DE HAMEL - DIA Hamel e Walbeek recebem o Cel. Hendrik HAUS (comandante do Exército Holandês), o Capitão BLAER e o Ten. Denniger, que conclui seu relatório.

DENNIGER ... e retornamos para Recife, depois de ter batido os matos em volta do engenho sem achar qualquer sinal de João Fernandes.

HAMEL Maldito! Alguém deve tê-lo avisado.

WAALBECK

Pelo que disse o escravo interrogado por Denniger, já faz algum tempo que ele está escondido.

HAMEL Está bem Denniger, estás dispensado. Mas mantém teus homens de prontidão, vamos ter nova missão para vocês ainda hoje.

Denniger faz uma vênia e se retira. Hamel aguarda que a porta se feche.

HAMEL De todos os senhores de engenho que mandamos prender, apenas Sebastião Carvalho foi encontrado em casa. Está agora detido no Forte das Cinco Pontas. Ele tem um irmão, Bernardino de Carvalho, que está no bando de João

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Fernandes. Nosso agente infiltrado já nos garantiu que está virando a casaca.

HAUS Eu não confio em nenhum deles, são todos dissimulados e mentirosos. Covardes e traiçoeiros. Não quero conversa com essa gente. Por mim, corto a cabeça deles todos.

HAMEL Ainda não, Coronel, ainda não. Aqui estamos pisando em ovos. Há fortunas envolvidas. Ainda há tribunais na Europa, sabia? Nossos antecessores tiveram muito que explicar. Até agora, o único a se sair bem desta aventura brasileira foi o Conde Maurício.

WAALBECK E os Herren XIX.

Os olhos se voltam para os dezenove retratos pendurados nas paredes. As duras caras protestantes nada revelam de suas emoções.

HAMEL

De qualquer modo, continuamos juntando informações, qualquer migalha ajuda. Walbeek vai interrogar este Sebastião, que deve estar em contato com o irmão, deve saber por onde anda João Fernandes com seu bando.

HAUS Já não é mais um bando, senhor Presidente, já é quase um exército. E quando Camarão e os Henriques se juntarem a eles...

HAMEL Ora, Coronel, um exército de paus e pedras. Aposto que não têm mais que duzentas armas de fogo entre eles.

O Capitão Blaer observa à distância a conversa de seus superiores. Walbeek se agita para sair.

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HAUS

Presidente, temos que matar essa cobra no nascedouro.

WAALBECK Bem. Eu vou ter uma conversa com esse Carvalho. Como é o nome do irmão?

HAMEL Bernardino.

WAALBECK Bernardino. Blaer, gostaria que estivesse presente ao interrogatório. Espere-me na casa da guarda.

BLAER Sim senhor!

Walbeek se ergue da cadeira e deixa a sala, seguido de Blaer. CORREDOR Walbeek e Blaer separam-se à porta. Walbeek caminha pelo corredor sombrio, entra em sua sala. INT. SALA DE WALBEEK - DIA A sala de Walbeek é espartana. Um retrato de sua esposa e filhos, todos de negro, as rendas e os bordados sob os rostos pálidos e contidos, adorna uma parede. Walbeek vai a um armário, de onde tira em primeiro lugar uma maleta de couro, que pousa no chão. Em seguida, tira de lá uma espécie de torno, cujos parafusos, borboletas e alavancas examina. Estão bem engraxados. Enfia na maleta. Ali acondiciona depois uma tesoura de capar porcos. Fecha a maleta e sai. INT. FORTE DAS CINCO PONTAS - DIA Acompanhado por Blaer, Denniger e Hilt, Walbeek desce para o calabouço do forte. Carrega uma pesada maleta de couro. Blaer é um holandês ruivo, de seus 30 anos, cuja expressão parece fixa num pequeno sorriso cruel. Os passos ecoam nas paredes úmidas. Archotes iluminam o caminho.

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BLAER Esse Carvalho estava dormindo tranqüilamente em casa, como se nada temesse. Resistiu ferozmente à prisão, então... tivemos que machucá-lo um pouquinho. Mas quem nos deu trabalho, mesmo, foi a mulher dele. Partiu o braço de um dos meus homens e quebrou quatro dentes de outro com um castiçal de prata antes que conseguíssemos dominá-la. Aqui estamos, Excelência.

Param diante de uma pesada porta, que Hilt destranca e abre. CELA DE CARVALHO Uma cela relativamente espaçosa, cavada na rocha viva, sem qualquer abertura para o exterior. A umidade escorre pelas paredes. CARVALHO, um homem franzino ainda de camisola, levanta-se do catre. Tem hematomas no rosto e sua camisola está manchada de sangue. Ao ver os três militares entrarem seguidos de Walbeek, Carvalho entra em pânico e começa a chorar. Hilt fecha a porta da cela sobre a cena. EXT. CASA DE COSMO DIAS - DIA Cosmo habita uma pequena casa pendurada na montanha, atrás dos grandes sobrados do Pelourinho, entre bananeiras e cajueiros. Há uma imensa vista sobre a baía. Nesta manhã, está alimentando as muitas pombas que vivem num pombal existente em seu quintal. Os pássaros revoam em torno de sua cabeça, pousam em seus ombros, brincam com ele. Cosmo é surpreendido pela chegada de Padre Vieira e Vidal.

VIDAL Cosmo, bom dia.

PE.VIEIRA Bom dia, Cosmo. Pareces S. Francisco, aí com tuas pombas.

Os pássaros alçam vôo com a chegada dos visitantes, alguns refugiando-se no pombal, outros pairando sobre o precipício.

COSMO DIAS Ora, sejam bem-vindos. Como estás, André? E o senhor, Padre?

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PE.VIEIRA

E então, Cosmo? Estamos aqui para saber de tua decisão. Podemos contar contigo?

VIDAL (abraçando Cosmo) Cosmo, tu vais adorar Mauriciópolis. É como estar na Europa. A cerveja é ótima, a cozinha nem tanto. Mas as mulheres... Ora, tu sabes como elas são, as holandesas...

Cosmo Dias se desvencilha do abraço do amigo.

COSMO DIAS É por isso mesmo que eu vou, André. Vou por que isto aqui está muito chato. Muito chato! Estou cansado disso tudo aqui, dessa pasmaceira. Quero ouvir outro idioma que não seja o português. Quero conversar com gente que não me fale só do preço do açúcar. Quero ver mulheres louras, de olhos azuis e pele de porcelana. Quero comer chucrute e kassler em vez de mandioca e carne seca, beber cerveja em vez de vinho, genebra em vez de cachaça...

Passando o braço pelos ombros dos dois visitantes, Cosmo Dias os conduz para o interior da pequena casa. INT. SALA DO CONSELHO - NOITE Hamel e Walbeek estão reunidos com os comandantes militares: o Coronel Haus e o Almirante Lichthart. Dois AJUDANTES DE ORDENS encontram-se discretamente postados junto à parede. Hamel tem nas mãos algumas folhas de papel.

HAMEL Nosso prezado Promotor Walbeek obteve a confissão completa de Sebastião Carvalho. O mais surpreendente é o fato de ser ele um dos que nos enviaram a carta de denúncia, cuja cópia está diante dos senhores. Essa carta foi colocada furtivamente entre minha

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correspondência por Abraão Mercado, quando de sua última visita. Devo ter me distraído e ele aproveitou a oportunidade. De qualquer modo, a confissão de Carvalho confirma todos os detalhes da denúncia. João Fernandes é secundado por seu sogro, Francisco Berenguer, Luiz Sepulveda, Manuel de Souza e outros senhores de engenho, cujos nomes estão na lista anexa à cópia da carta.

Os militares examinam suas cópias, espantando-se com os nomes que encontram.

LICHTHART Amador de Araújo! Gadverdamme! Rodrigo Pimentel! João Pessoa!

HAUS Zum Teufel! Lourenço de Albuquerque! João Navarro! Dias Delgado! Castro Passos!

HAMEL São um bando de caloteiros. Tenho dossiês às pilhas sobre cada um deles. João Fernandes é quem mais nos deve. As ordens de prisão já foram emitidas, aqui estão.

Hamel passa a Haus o maço de papéis que têm nas mãos. Haus faz sinal a seu ORDENANÇA, que se aproxima e se inclina para que Haus lhe fale ao ouvido, ao mesmo tempo em que lhe entrega as ordens de prisão.

HAMEL Temos que agir imediatamente. Se conseguirmos prender os cabeças, acabamos com essa rebelião no nascedouro. Os rumores de que Felipe Camarão e Henrique Dias já cruzaram o São Francisco são cada dia mais freqüentes. Se conseguirem se juntar aos revoltosos...

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HAUS Não temos o que temer. Vamos botar esses boerenpummel no calabouço e pronto. Depois, cuidamos dos baianos. A chuva trabalha a nosso favor, as estradas estão impassáveis. Não acredito que Camarão e Dias tenham conseguido atravessar o São Francisco, em plena enchente.

WAALBECK Mesmo que consigam atravessar, não passarão por nossas tropas nos fortes que temos na fronteira.

O Secretário abre a porta para que entre o Ordenança, que se dirige ao Coronel Haus, inclina-se a seu ouvido e cochicha por algum tempo. Todos, é claro, estão calados, com os olhos cravados em Haus e no oficial. Haus, enquanto escuta o que lhe diz o soldado, vai ficando cada vez mais roxo. Quando o oficial termina de falar, Haus rosna.

HAUS Manda o Blaer cuidar disso!

O oficial entrega a seu chefe um maço de papéis, se empertiga e sai marchando da sala. Haus levanta-se e berra.

HAUS Gottverdam! A guarnição de Ipojuca fugiu. Abandonaram a praça. Desguarneceram o porto. Vuile kanker, tyfus, tering-hoer sohn!

HAMEL O que? Mas por que?

Haus consulta os papéis enquanto fala.

HAUS Parece que começou com uma briga entre um português e um judeu, um acerto de contas... o fato é que mataram três comerciantes, um bando chefiado por um tal de Domingos Fagundes.

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WAALBECK É um afilhado de Amador de Araújo. Um criminoso que já matou em emboscadas mais de três dos nossos. Ele alega que foram duelos legítimos e tem testemunhas para confirmar. Mas e aí?

HAUS E aí, meu amigo? E aí, depois de matarem os judeus, eles foram atacar a guarnição do forte. E a guarnição largou as armas para trás e fugiu.

HAMEL Quem estava no comando?

HAUS Mmm... Tenente Godfrey.

WAALBECK Um inglês. Pfui!

HAUS Mas não pára por aí. Tem mais: com as armas da guarnição, esse bando foi atacar o Porto Salgado. Lá estavam três navios carregados de açúcar e farinha. Passaram todos a fio de espada. Todos os portugueses do distrito estão em pé de guerra.

LICHTHART Gott in himmel! Haus, vamos para lá imediatamente.

Haus põe os papéis sobre a mesa.

HAUS Agora, Amador de Araújo já se juntou a eles. Nossa comunicação com o Sul está cortada.

Um pesado silêncio se instala. Finalmente, Hamel se move na poltrona e fala.

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HAMEL Coronel Haus, suas ordens continuam de pé, mas com uma diferença: não estamos mais à procura de honestos pais de família, pilares da comunidade, inocentes senhores de engenho. Estamos no encalço de assassinos desapiedados e é bom que nossos soldados saibam disso quando tiverem que matar um conhecido. Temos que agir e considerar até mesmo a pior hipótese. Precisamos reunir no Recife e nos fortes vizinhos o maior número de homens e a maior quantidade de mantimentos. Se o pior acontecer, estaremos preparados para agüentar um cerco demorado, até que cheguem reforços da Holanda.

HAUS Zum Teufel! Reforços? Mas se a Companhia vem se negando até mesmo a substituir os soldados cujos contratos acabam!

HAMEL Acredito que a ameaça concreta que essa rebelião representa mudará a opinião dos Herren XIX.

Os olhares de todos se voltam para os retratos dos principais acionistas da Companhia das Índias Ocidentais, sombrios e sisudos em suas vestes negras. EXT. COSTA DE PERNAMBUCO - DIA Sob um céu carregado, o mar arrebenta na longa linha de arrecifes que acompanha a costa. Gaivotas pescam agitadas nas águas calmas entre a praia e os rochedos. Cosmo Dias, montado numa mula e seguido por um jumento carregado, avança rumo ao norte. Está vestido à moda holandesa. No ar abafado que antecede a chuva, transpira abundantemente sob o chapelão preto. Na carga do jumento, além de matolas e bolsas, podem ver-se duas gaiolas de vime, contendo as pombas de Cosmo.

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EXT. AFOGADOS - DIA Cosmo Dias se aproxima de Mauriciópolis por trás, passando pelos Afogados, com o Rio Capiberibe à esquerda e o Atlântico à direita. Nuvens espessas se juntaram e agora começam a despejar sobre a paisagem. EXT. FORTE PRINZ WILLEM - DIA Um longo canal, rigorosamente reto, liga o forte Prinz Willem a Cidade Maurícia, que lembra uma cidade holandesa do Século XVII, com suas fachadas recortadas e rentes aos canais construídos pelos holandeses, drenando o pântano. Com a chuva despencando, a paisagem assume um tom flamengo. As quatro torres de Frijburg, o palácio construído por Maurício, se destacam das casas de dois pavimentos. Há muita vegetação entre as casas, altas palmeiras, árvores da África e da Ásia. Cosmo segue pelo caminho que ladeia o canal, observando os soldados que trabalham na restauração dos baluartes do grande forte. Aqui começa a movimentar-se o caminho, com camponeses levando seus produtos para a cidade. Alguns senhores de engenho também se dirigem para lá, carregados em liteiras por escravos ou montando belos cavalos ricamente ajaezados. EXT. PORTA SUL - DIA Cosmo Dias alcança por fim a Porta Sul de Cidade Maurícia, protegida pelo vulto ameaçador do Forte das Cinco Pontas. Também aqui há intenso trabalho de reconstrução de muros e parapeitos. Os soldados que guardam os portões da cidade examinam os papéis de todos os que desejam entrar. Cosmo desce de sua montaria e, conduzindo-a pelas rédeas, aproxima-se da entrada. Quando chega sua vez, retira da algibeira do gibão um salvo-conduto ensebado que apresenta ao cabo da guarda. Cosmo tem um jeito de curvar-se, encolher-se, parecer menor do que realmente é. O soldado examina o papel com cuidado.

CABO DA GUARDA Jacob Rotwild. Alemão, é? E médico? Está chegando do Sergipe?

COSMO DIAS Sim, senhor. Jacob Rotwild, alemão, médico e chegando do Sergipe.

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CABO DA GUARDA E qual é seu negócio em Cidade Maurícia, Herr Rotwild?

COSMO DIAS Ora, senhor cabo da guarda, o mesmo que toda essa gente boa aqui: ganhar algum dinheiro. Não há muito o que fazer para um médico naquela província. Ninguém parece ficar doente por lá.

O soldado considera o aspecto pobretão de Cosmo e, olhando então para a mula e o jumento, percebe as gaiolas de pombas.

CABO DA GUARDA

E essas pombas, doutor?

COSMO DIAS Ah, essas pombas são o segredo do remédio que preparo, Cabo da Guarda. Veja o senhor, o fel dessas pombas é um poderoso remédio contra os humores frios e quentes. Quando as fezes do paciente estão secas, duras e pretas, é sinal de que há um excesso de humores frios no corpo. Por outro lado, se as fezes estão moles, molhadas e amarelas, isso quer dizer que...

CABO DA GUARDA Está bem, está bem. Mas o senhor vai precisar de autorização do Conselho Financeiro para trabalhar em Cidade Maurícia. Apresente-se lá o mais depressa possível. Se for apanhado trabalhando sem autorização, vai ter que pagar uma pesada multa.

Cosmo Dias recebe de volta seu salvo-conduto e apressa-se em sair do caminho. Ultrapassa a grande porta da cidade, alcançando uma larga praça calçada com paralelepípedos. Há grande movimento, gente entrando e saindo de lojas e casas, carroças circulando, grupos de soldados passando. Cosmo olha em volta e, com passo decidido, sai conduzindo seus animais.

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EXT. ESTALAGEM DE FRAU WIRTH - DIA Uma grande casa de quatro pavimentos domina a rua, com muitas janelas e portas. Um portão lateral conduz aos estábulos atrás do prédio. Há uma placa entalhada em madeira, perpendicular à fachada, com um galeão pintado em cores vivas e os dizeres “Der Fliegende Shiff”. Cosmo Dias conduz mula e jumento pelo portão lateral. DIRK, o menino que cuida do estábulo, cumprimenta Cosmo e toma-lhe as rédeas.

DIRK Boa tarde, senhor. Pode deixar que eu cuido de seus animais. Que lindas pombas! O senhor pretende comê-las? Hm, preparadas com batatas e cenouras, um bom nabo e algumas folhas de repolho...

COSMO DIAS Não, menino, essas pombas são como minhas filhas. Fique bem longe delas. Cuide da mula e do burro.

Cosmo desata as gaiolas da carga. De uma porta lateral, surge uma mulher gorda e corada, enxugando as mãos no avental. É FRAU WIRT, a proprietária da estalagem.

FRAU WIRTH

Ora, seja bem vindo, viajante. Meu nome é Frau Wirth. É uma alegria ver alguém chegando em vez de partindo. Depois que começaram as histórias de revolta dos portugueses, tem mais gente indo embora do que chegando. Mas que lindas pombas! Quer que as prepare para o senhor?

COSMO DIAS Não, Frau Wirth, muito obrigado. Essas pombas são de estimação. Mas diga-me, há falta de comida em Cidade Maurícia?

FRAU WIRTH (rindo) Não, caro senhor, é que raramente vemos pombas por aqui, no meio do mar como estamos, praticamente. Só gaivotas, gaivotas, gaivotas.

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COSMO DIAS Sou o Doutor Jacob Rotwild, senhora, e desejo um quarto por algum tempo.

FRAU WIRTH Tenho um quarto vago perfeito para uma pessoa exigente como o senhor parece ser, Doutor. Vamos. Por aqui.

INT. ESCADAS DA ESTALAGEM - DIA Levando as duas gaiolas, Cosmo Dias, carregando as matolas e um pequeno baú, segue Frau Wirth escada acima. Alcançam um longo corredor com várias portas. Frau Wirth, ofegante, tira uma argola de chaves do bolso do avental e abre a última porta, no final do corredor.

FRAU WIRTH É um pouco cansativo subir todas essas escadas, mas aqui o senhor ficará muito bem instalado. E o barulho da taverna não chega até aqui. Nas noites de sexta-feira, ou quando chega um navio no Recife, a algazarra é incrível.

INT. QUARTO DE COSMO DIAS - DIA O quarto é enorme. Ocupa todo o fundo da casa e suas janelas se abrem sobre o canal que separa Cidade Maurícia do Recife. Um enorme guarda-roupa de mogno, uma cama com dossel, uma mesa, um aparador com bacia e jarra, um espelho redondo na parede, um divã otomano, um tapete persa, uma tina atrás de um biombo. Cosmo olha em volta com um sorriso, deposita as gaiolas e enfia a mão na algibeira.

COSMO DIAS Está ótimo Frau Wirth. Quero pagar um mês adiantado. Quanto é?

A estalajadeira considera a vestimenta modesta de Cosmo, sua pouca bagagem.

FRAU WIRTH Considerando os tempos que vivemos, vou fazer um precinho camarada para o senhor. Que tal 70 florins?

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COSMO DIAS (contando as moedas)

Perfeito. Aqui está.

FRAU WIRTH Obrigado, Doutor Rotwild. O jantar estará pronto às sete horas.

Frau Wirth se retira. Cosmo se dirige a uma das janelas e escrutina a paisagem portuária, igual a tantas outras, a multidão de mastros, as gaivotas, os armazéns. INT. GABINETE DE HAMEL - RECIFE - DIA Hamel caminha impaciente diante da janela, as mãos às costas. Chove torrencialmente. Waalbeck examina as unhas, indiferente à irritação do companheiro.

HAMEL Ninguém. Não encontraram ninguém. Todos fugiram, embrenharam-se pelos matos. E agora? O que fazemos? Com essas chuvas, é impossível achar os rastros dessa gente.

WAALBECK Ora, Hamel, não sei porque te irritas tanto. Afinal, sabíamos que não encontraríamos nenhum deles. Escuta, tenho uma proposta a fazer-te.

Hamel volta-se para Waalbeck, esperançoso.

HAMEL Sim, o que é?

WAALBECK Vamos expulsar daqui as famílias dos revoltosos. Mulheres, filhos, mães, sogras, a corja toda. Fora dos muros da cidade. Vamos mandá-los para o mato, para que se juntem aos seus homens. Sabes como os portugueses são sentimentais, não vão suportar ver o sofrimento de suas famílias. Na pior das hipóteses, essa gente vai se tornar um estorvo para os revoltosos. Vão

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perder a mobilidade, que é sua principal vantagem nesses matos. Além disso, é um absurdo que os chefes se revoltem abertamente contra nosso governo e suas famílias continuem aqui, comendo e bebendo sossegadamente, e certamente passando informações para esses bandidos.

HAMEL Grande idéia, Waalbeck! Magnífico! Poupamos nossas reservas de alimentos e jogamos um peso insuportável sobre as costas dos revoltosos. Vou redigir o édito imediatamente.

Hamel senta-se à mesa e começa a escrever. INT. TAVERNA DO FLIEGENDE SCHIFF - NOITE Cosmo Dias chega ao salão da taverna descendo pela escada interna que conduz aos quartos nos andares superiores. O ambiente é enfumaçado e todas as mesas estão ocupadas. Há um intenso burburinho e todos parecem estar se divertindo. As portas estão abertas para a rua noturna. As mesas são longas pranchas de madeira, com bancos inteiriços de cada lado. Os CONVIVAS se acotovelam enquanto bebem cerveja em grandes canecas de estanho. MOÇAS de avental carregam bandejas com assados e pastéis, trocando gracejos com os clientes. Muitos deles fumam longos cachimbos de louça. Frau Wirth supervisiona o movimento, gritando ordens para a cozinha, através de cuja porta pode-se ver grande azáfama junto a fornos e fogões. Percebe a chegada de Cosmo e abre um sorriso. Cosmo procura um lugar e uma das moças, MARIANNE, o ajuda a se instalar numa das mesas.

MARIANNE Ah, o novo hóspede! Sente aqui com esses boas-vidas, mas não deixe que o convençam a jogar cartas. Os baralhos são mais viciados que eles. Abram espaço para o Senhor Rotwild! Sente-se, o que vai beber? Cerveja ou vinho?

Os homens à mesa recebem Cosmo com bom humor, abrindo espaço para que se sente.

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COSMO DIAS Cerveja, por favor. Uma rodada para todos aqui.

Seu pedido é saudado por vivas da parte dos companheiros de mesa. É um grupo de quatro homens. Três deles são obviamente MARINHEIROS, queimados de sol, ostentando argolas de ouro nas orelhas e gibões coloridos. Esses mal tomam conhecimento da chegada de Cosmo e voltam a discutir algo intensamente mas em vozes quase inaudíveis. Dois outros têm o aspecto desbotado dos BUROCRATAS, com mãos bem tratadas e vestes pretas. Dois são SOLDADOS, portando faixas de pano com as cores de suas companhias. Esses encaram o recém-chegado com curiosidade.

BUROCRATA 1 Rotwild, é? Holandês, belga ou alemão?

COSMO DIAS Alemão.

SOLDADO 1 Quando chegou a Cidade Maurícia, Rotwild?

COSMO DIAS Hoje à tarde. Estou chegando do Sergipe.

BUROCRATA 1 Viajando a negócios, Senhor Rotwild?

COSMO DIAS De uma certa maneira, sim. Sou médico e estou pensando em me estabelecer aqui.

BUROCRATA 2 Aqui não falta trabalho para um médico.

SOLDADO 2 É, principalmente se a guerra começar logo.

COSMO DIAS E como está a situação?

SOLDADO 2

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Está para estourar a qualquer momento. Nossa companhia está de folga hoje, mas amanhã entramos em prontidão.

BUROCRATA 1 E no Sergipe, doutor, também por lá há rumores de revolta?

COSMO DIAS Ouvi muita gente falar da chegada das tropas de Felipe Camarão e Henrique Dias. Quem são esses coronéis?

BUROCRATA 2 Um índio tupinambá e um negro liberto. Os dois são cavaleiros da Ordem de Cristo, veja como os portugueses são generosos com suas honrarias.

SOLDADO 1 E o que falam por lá, doutor? Estão marchando para cá?

COSMO DIAS O diabo é que eles foram vistos no mesmo dia em lugares completamente diferentes. Será que são eles? Ou talvez um bando de índios de passagem por uma mata já se transforma nas tropas de Felipe Camarão. E a cheia do São Francisco? Eu mesmo achei melhor tomar passagem num barco e vir por mar até as Alagoas.

SOLDADO 2 É, mas eles são pouco mais do que selvagens. Para eles, jogar-se no meio de um caudal para sair trinta jardas abaixo... Não é como nós, com todo o equipamento que carregamos. Deus me livre de brigar com essa gente no meio do mato. Se João Fernandes receber esse reforço...

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SOLDADO 1 É por isso que nós vamos sair pela várzea. Temos que pegar João Fernandes antes que os baianos o alcancem.

BUROCRATA 1 E um de vocês pode ganhar quatro mil florins. É só apresentar a cabeça de João Fernandes num saco.

BUROCRATA 2 Ora, numa bandeja de prata, pelo menos.

SOLDADO 1 Com uma maçã na boca, é claro!

Os dois soldados dão risadas. Os burocratas acham a piada de mau gosto. Cosmo sorri como um diplomata.

Marianne chega com uma bandeja carregada. Põe na mesa duas jarras de cerveja, uma salva com carnes frias e outra com pastéis. Um pote de mostarda e outro de chucrute se seguem. A chegada da comida interrompe a conversa, todos se põem a beber e comer. Cosmo come e bebe com apetite. Por algum tempo, só se escuta o barulho indistinto das vozes. Em outra mesa, alguém começa a cantar uma canção, outras vozes se juntam. Cosmo de dirige a um dos soldados.

COSMO DIAS Então, amanhã entram em prontidão?

SOLDADO 2 Pois é. Pelo que ouvi dizer, devemos deixar a cidade depois de amanhã. E só devemos voltar trazendo João Fernandes e sua corja.

SOLDADO 1 O Coronel Haus disse que vai pôr João Fernandes acorrentado na estrebaria, para cuidar de seu cavalo.

BUROCRATA 2 Imaginem, o homem mais rico de Pernambuco: cavalariço do Coronel Haus!

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SOLDADO 1 Enquanto isso, a companhia do Capitão Blaer tem muito serviço esta noite. Leram o edital do Conselho Supremo?

COSMO DIAS Eu certamente não li, acabo de chegar. Do que trata?

BUROCRATA 1 Eu tenho aqui uma cópia. (lendo) “O Grande Conselho.... o Príncipe de Orange... tarará...” aqui, “... considerando que muitos dos que se uniram aos três chefes rebeldes, João Fernandes Vieira, Antônio Cavalcanti e Amador de Araújo, contra este Estado, deixaram suas mulheres, filhos e famílias em suas próprias moradias...”

Inconscientemente, o tom do Burocrata 1 vai se tornando oficial e peremptório. A mão esquerda bate na mesa ao ritmo de sua leitura.

BUROCRATA 1 “...por esta proclamação ordena expressamente que todas as mulheres e crianças, de ambos os sexos, cujos maridos e pais se tiverem engajado nas fileiras rebeldes, deixem suas respectivas residências... tarará... suspende as garantias aos que acolherem essas mulheres, seus filhos ou haveres...”

SOLDADO 2 Grande idéia! Imagine um exército carregando mulheres, sogras e sogros, mães e pais, irmãos, filhos... No meio da monção, com tudo virado num barreiro! Não dá pra se mexer, quanto mais pra brigar.

BUROCRATA 1 Só podia ser idéia de Walbeek!

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BUROCRATA 2

Você não acha muito boa a idéia do Conselheiro Walbeek?

BUROCRATA 1 Eu não tenho que achar nada, eu tenho que fazer o que me mandam, como tu.

Cosmo Dias aproveita o momento para esvaziar sua caneca. Deposita algumas moedas sobre a mesa e se levanta.

COSMO DIAS Obrigado pela hospitalidade, senhores, mas está ficando tarde e ainda tenho que fazer uma visita.

SOLDADO 2

Visita a essa hora? Deve ser alguma viúva, hem, Doutor?

Os homens se despedem. Ao sair, Cosmo passa por Marianne e deixa cair uma moeda em sua bandeja. Trocam sorrisos. Cosmo sai para a rua, onde já começa a chover. EXT. CIDADE MAURÍCIA - NOITE MONTAGEM Sob a chuva, destacamentos de SOLDADOS holandeses percorrem as ruas. Diante de determinadas casas, o OFICIAL COMANDANTE pára e bate na porta com o punho da espada. Se a porta não é imediatamente aberta, ALABARDEIROS a estilhaçam com seus machados. Os soldados invadem as casas e de lá arrancam os MORADORES, velhos, mulheres e crianças. Não lhes é permitido levar nada consigo. Mulheres são jogadas na lama, velhos têm suas barbas repuxadas pelos soldados jocosos, crianças choram com desespero. Esses grupos são escoltados a ponta de lança até os portões da cidade e lançados fora. Em estado de choque, alguns deixam-se ficar ali, olhando as portas a se fecharem. Outros, lastimando-se em altos brados, deixam-se cair diante dos muros.

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INT. RESIDÊNCIA EM CIDADE MAURÍCIA - NOITE Um grande salão é fracamente iluminado por alguns candeeiros, velas e lampiões. Percebe-se a riqueza de seus móveis e adornos. Numa parede, há um retrato feito à moda um tanto ingênua dos pintores pernambucanos da época, mas é possível reconhecer nele as feições de João Fernandes. À luz de um lampião, uma mulher grávida borda num bastidor. É DONA ANA, mulher de João Fernandes. DONA ANTÔNIA, sua mãe, trabalha uma renda de bilro com grande habilidade. Subitamente, ouvem-se fortes batidas na porta. Um ESCRAVO em libré apressa-se a abri-la e é rudemente empurrado por Denniger, que invade a casa acompanhado pelo Sargento Hilt e seus soldados.

DENNIGER Dona Ana, não é? Mulher do traidor João Fernandes? Tenho boas notícias para a senhora: logo, logo, vai poder juntar-se a seu marido. (Para Dona Antônia) E a senhora o seu, Dona Antonia Berenguer. (Para Hilt) Ponham-nas daqui para fora, com toda a sua gente. Já!

Hilt agarra Dona Ana pelo braço e a arrasta porta afora. O mesmo é feito com Dona Antônia e os serviçais, que acorreram ao tumulto. Denniger vê o retrato de João Fernandes e, sacando a espada, retalha a tela com ódio. EXT. RUAS DE CIDADE MAURÍCIA - NOITE Escondido num portal, Cosmo Dias assiste transfixado a expulsão de uma família. Um chapelão e uma longa capa o protegem da chuva. Esgueirando-se por cantos escuros, vê outras cenas semelhantes. Evadindo-se da vista dos soldados que estão em todos os lugares, Cosmo chega a uma pequena e mal cuidada igreja, isolada das demais construções. Há uma casinha nos fundos dela. Cosmo se aproxima e bate à porta. Após algum tempo, uma janelinha se abre no meio da porta e alguém espreita. É FREI MANUEL, calvo e de barbas brancas, que examina Cosmo da cabeça aos pés, desconfiado. O aspecto do estranho, com seus cabelos ruivos e suas vestes holandesas, deixa o frade ainda mais nervoso.

FREI MANUEL Pois não? Quem é? O que deseja?

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COSMO DIAS Um amigo do Padre Vieira, reverendo. Trago notícias.

FREI MANUEL Amigo de Padre Vieira, hm? E quem é esse Padre Vieira de quem nunca ouvi falar? E o senhor, quem é?

Cosmo Dias retira de um bolso secreto no forro do gibão um envelope em papel pesado e estende-o ao padre. Pela fresta, Cosmo vê o frade abrir o envelope como se esperasse que dali saltasse uma serpente. Retira uma folha de papel e lê cuidadosamente. Dobra o papel e abre a porta apenas o bastante para dar passagem a Cosmo, fechando-a em seguida. INT. CASA DE FREI MANUEL – NOITE A sala onde Cosmo se encontra é pequena e rigorosamente limpa. O único sinal de religiosidade é um crucifixo na parede. O frade aproxima a carta de uma vela e a faz queimar.

FREI MANUEL Sim. O estilo de Vieira é inimitável. É uma lástima destruir um texto seu, mas se caísse em mãos erradas... Seja bem-vindo, Doutor Cosmo Dias. Vieira já me havia escrito a seu respeito, da esperança que tinha de poder convencê-lo a... ajudar Pernambuco.

O frade se dirige a um armário que abre e de onde extrai uma garrafa de Porto e dois cálices. Senta-se à mesa, Cosmo o imita. O velho frade não pára de falar.

FREI MANUEL Vieira e eu nos correspondemos em código. É um exercício que mantém a mente paciente e exata, Doutor Cosmo.

COSMO DIAS Meu salvo-conduto está em nome de Jacob Rotwild, Padre. É melhor chamar-me assim, para não corrermos nenhum risco. Mas Padre, o que está acontecendo? A caminho daqui, vi coisas que nunca poderia imaginar. Os holandeses estão

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arrancando famílias inteiras de suas casas e jogando-as na rua. O que está acontecendo?

O frade passa a mão pelo rosto e solta um gemido.

FREI MANUEL

Então já começou. Era de se esperar. É lógico, estão expulsando as famílias dos revoltosos. Ah, meu Deus, esses miseráveis! Malditos hereges! E ainda dizem que são Cristãos! Velhos, mulheres e crianças inocentes... Os covardes!

Novas batidas são ouvidas na porta. O frade tem um sobressalto. Levanta-se e anda preocupado até a porta, que abre. Gaspar de MENDONÇA e Luiz BEZERRA entram esbaforidos.

BEZERRA Frei Manuel, pelo amor de Deus, temos que fazer alguma coisa! Os holandeses estão expulsando de casa dezenas de famílias...

MENDONÇA A pobre gente está fora dos muros, na chuva, sem nada...

BEZERRA E se tentarem voltar para casa, serão executadas sem dó nem piedade...

MENDONÇA Aqui está o bando que mandaram publicar, Frei Antônio.

O frade pega o papel da mão de Mendonça e lê com incredulidade. Cosmo de levanta e só agora os dois homens se apercebem dele e o examinam com estranheza.

FREI MANUEL Mas isto é um absurdo! Eles não podem fazer isso! Então basta que o marido não esteja em casa para que a família esteja sujeita a isso? Expulsão e perda de suas propriedades. Suspensão de

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garantias para quem não obedecer? Equivale à pena de morte!

MENDONÇA O que podemos fazer, Frei Manuel?

FREI MANUEL Vamos lá! Vamos falar com Hamel. Não é possível, deve haver algum engano. Vamos falar com eles.

O frade percebe os olhares desconfiados que os dois lançam a Cosmo e apressa-se em tranqüilizá-los.

FREI MANUEL Ah, sim, este é o Doutor Rotwild, um bom católico alemão recém chegado do Sergipe. Podem confiar nele.

Cosmo faz uma vênia, correspondida com certa reserva pelos dois pernambucanos. O frade cobre a cabeça com um chapelão e abre a porta. Lá fora, a chuva cai torrencialmente.

FREI MANUEL Vamos, vamos. Precisamos fazer algo por essa pobre gente.

Abrigados sob as abas largas de seus chapéus, os quatro saem para a chuva. INT. GABINETE DE HAMEL – NOITE Examinando alguns papéis, Hamel, Walbeek, Moucheron e Bullestrate são interrompidos pela entrada do Secretário.

SECRETÁRIO Perdão, senhores, mas está aí Frei Manuel e exige uma audiência. Tentei convencê-lo a retornar amanhã, mas ele se recusa a esperar. Diz que é uma questão de vida ou morte.

WALBEEK Ach, du lieber, era só o que faltava!

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MOUCHERON É por causa da expulsão das famílias, com certeza. Veio aqui choramingar por elas.

BULLESTRATE Há muito que tenho esse frade atravessado na garganta. Acho que chegou a hora de o botarmos em seu lugar.

WAALBECK Se lugar é no calabouço, Bullestrate. Estou convencido de que esse frade espiona para os baianos.

HAMEL Bem, vamos recebê-lo. Vamos ver como se comporta. Conforme for, metemo-lo a ferros. Já fomos muito tolerantes com ele. (PARA O SECRETÁRIO) Manda-os passar para a Sala do Conselho. Vamos recebê-los lá.

INT. SALA DO CONSELHO – NOITE Os Conselheiros entram por uma porta lateral e tomam seus lugares habituais. A um toque de sineta de Hamel, a porta principal é aberta e, precedidos pelo Secretário, Frei Manuel, Mendonça e Bezerra são admitidos. Cosmo Dias deixa-se ficar no corredor. INT. CORREDOR DIANTE DA SALA DO CONSELHO - NOITE Cosmo Dias gruda-se à parede e espera a porta fechar-se. Deixa passar algum tempo, ouvindo as vozes no interior da sala. Nada se move no corredor. Cosmo desliza junto à parede, procurando as sombras. INT. SALA DO CONSELHO – NOITE Frei Manuel se adianta e pára em frente à mesa onde estão sentados os Conselheiros. Seu hábito encharcado pinga no tapete. Os dois pernambucanos, igualmente molhados, têm seus chapéus nas mãos e uma postura tímida diante das autoridades holandesas, deixando-se ficar semi-ocultos pela figura indignada do frade.

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FREI MANUEL Senhores, não é esta a primeira vez que aqui venho para protestar contra as arbitrariedades e injustiças cometidas contra a gente de Pernambuco desde a partida do Conde Maurício. Mas esta última excede todos os limites.

Os Conselheiros se olham entre si, com um misto de enfado e irritação. INT. CORREDOR DIANTE DA SALA DO CONSELHO - NOITE A porta da sala de Hamel está entreaberta. Cosmo se esgueira para seu interior e fecha a porta com delicadeza. Olha em torno de si, vê a escrivaninha cheia de papéis. Aproxima-se dela, começa a examinar os papéis, atento a qualquer ruído. INSERT - ORDEM DE CAPTURA DE JOÃO FERNANDES Cosmo lê o papel, escrito em holandês, em que Hamel ordena a Haus a captura de João Fernandes.

COSMO DIAS (V.O.) ... a imediata captura de João Fernandes... saindo de Recife para a Várzea neste 16 de junho... mil e quinhentos homens... quatro mil florins pela cabeça de João Fernandes, vivo ou morto...

A ordem está em triplicata e há três mapas anexos. Cosmo dobra uma cópia e a enfia no gibão. Um ruído de passos no corredor faz com que Cosmo procure freneticamente um local para se esconder. A porta já está se abrindo quando Cosmo se oculta atrás de uma cortina.

INT. SALA DO CONSELHO - NOITE

FREI MANUEL Tratar dessa maneira mulheres e crianças inocentes, lançando-as aos matos, à mercê das feras e dos Potiguares, é uma covardia inominável! Se seus pais, irmãos e maridos têm culpa, têm os senhores soldados e armas. Mandem prendê-los, matem-nos.

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Mas não cometam Vossas Senhorias esse crime de que nem nas mais horrendas guerras da Europa se tem notícia.

Os Conselheiros se agitam em seus assentos. Bullestrate ameaça falar, mas Hamel o faz calar-se com um gesto. INT. SALA DO CONSELHO - NOITE

FREI MANUEL Os Portugueses têm uma natureza muito diferente das de muitas nações do mundo: sofrem com paciência todos os agravos, a perda de seus bens, até mesmo a perda da liberdade ou da vida. Mas quando se trata de desacatos a suas mulheres e filhas, não descansam até que se vinguem. O que os senhores estão fazendo é transformar essa rebelião numa guerra que não acabará até que esteja morto o último pernambucano. Ou o último holandês. É por isso que venho pedir que revoguem esse edital de expulsão das famílias.

HAMEL Terminou, Frei Manuel? Pois saiba o senhor que esse edital não será revogado, sob nenhuma hipótese. E, se dentro de cinco dias, ainda encontrarmos, aqui dentro da cidade ou junto a seus muros, qualquer mulher cujo pai ou marido seja parte dessa conspiração ridícula, a faremos enforcar sem qualquer hesitação.

Frei Manuel fica por um momento encarando os Conselheiros. Já está se voltando para a porta, a fim de retirar-se, quando Bullestrate o interrompe.

BULLESTRATE Um momento, Frei Manuel. É bom que João Fernandes saiba que nem todos os que andam com ele são seus amigos e lhe são fiéis. Também lá com ele andam amigos nossos, que vão entregá-lo em nossas mãos, vivo ou morto.

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Chocado pelo que disse o holandês, Frei Manuel hesita um segundo antes de responder.

FREI MANUEL Senhor Bullestrate, nenhum português que se preze seria capaz de tal traição, a menos que se tenha esquecido de que um dia terá que prestar contas a Deus. Ou então, que já tenha vendido sua alma para o demônio.

Bullestrate se irrita com a resposta do frade e, erguendo-se, saca do bolso um maço de papéis, que agita no ar.

BULLESTRATE Ah, é assim que o senhor pensa? Pois aqui estão algumas cartas que temos recebido desses nossos amigos, dando conta dos movimentos de João Fernandes. É gente que está disposta a acabar com ele, seja pelo punhal, seja por meios mais sutis, como o veneno.

Hamel se levanta e, tomando Bullestrate pelo braço, o obriga a sentar-se, enquanto sussurra furioso em seu ouvido.

HAMEL Cala-te, carpinteiro de merda! Queres pôr tudo a perder?

Bullestrate sacode a mão de Hamel de seu braço com um safanão. Hamel se dirige ao frade.

HAMEL Frei Manuel, nossa decisão é irreversível. Temos tido muita paciência com esses conspiradores, cujo único objetivo é o de não pagar suas dívidas para conosco. Essa paciência acabou. E é bom que todos saibam que acabou mesmo. Não teremos mais qualquer condescendência para os que nos traírem. As coisas agora serão levadas a ferro e fogo. Boa noite!

A essas palavras, erguem-se os membros do Conselho e Frei Manuel, com Bezerra e Mendonça, deixam a sala.

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INT. GABINETE DE HAMEL - RECIFE - NOITE O Secretário entra e se dirige à mesa, recolhe os papéis e começa a arquivá-los. Cosmo o espreita por uma fenda na cortina. A porta se abre e um meirinho introduz um visitante. É Antônio CAVALCANTI. Atrás dele vem BERNARDINO de Carvalho. Trazem as botas cobertas de barro, capas jogada para trás, espadas a tiracolo. Transpiram muito.

CAVALCANTI Boa noite, Secretário. Precisamos falar com o Presidente. É muito importante.

SECRETÁRIO Boa noite, Senhor Cavalcanti. Sinto muito, mas o Presidente está em reunião.

CAVALCANTI Mas é urgentíssimo, Secretário. Temos que voltar para o acampamento imediatamente, antes que dêem falta de nós.

ATRÁS DA CORTINA Cosmo Dias espreita. NO GABINETE O Secretário avalia a intensidade de Cavalcanti.

SECRETÁRIO E quem é este senhor, seu Antônio?

CAVALCANTI Desculpe, é Bernardino de Carvalho.

Bernardino acena pouco à vontade com seu chapéu. O Secretário toma-os pelos braços e os conduz a umas cadeiras.

SECRETÁRIO Sentem-se aqui, senhores. O Presidente não deve demorar.

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Cavalcanti extrai da algibeira uma meia-garrafa, que desarrolha. Toma uma talagada de aguardente. Começa a cochichar no ouvido de Bernardino.

O Secretário escuta o ruído de cadeiras se arrastando na Sala do Conselho e se dirige para a porta que leva a ela.

SECRETÁRIO

Ó, já terminou. Cheguem aqui, tenho certeza de que ele lhes dará alguns minutos. Mas não o cansem muito, ouviu, o dia hoje foi daqueles! As espadas ficam aqui, alstublieft.

Cavalcanti e Bernardino se levantam, tiram talabartes e espadas e os deixam sobre as cadeiras. Compõem-se rapidamente e acompanham o Secretário pela porta. Cosmo Dias espreita detrás da cortina. Deixa seu esconderijo e se aproxima da porta que conduz ao corredor. Escuta. Abre uma fresta. Sai pé ante pé. INT. CORREDOR DIANTE DA SALA DO CONSELHO - NOITE Quando Cosmo emerge do gabinete de Hamel, Frei Manuel e os dois pernambucanos estão quase virando o corredor rumo à saída do Palácio. Antes de virar, Frei Manuel dá uma última olhada para trás e vê Cosmo que, a passos longos e silenciosos, o alcança rapidamente. Sob o olhar inquisitivo do frade, Cosmo junta-se ao grupo e os quatro caminham para a porta de saída da sede da Companhia.

FREI MANUEL Onde o senhor se meteu, Doutor Rotwild?

Cosmo faz sinal para que o frade se cale. Os quatro passam pelos sentinelas e deixam o prédio. EXT. RUA DE RECIFE - NOITE Cosmo, Frei Antônio, Bezerra e Mendonça andam pela rua. A chuva parou e uma densa neblina cobre a paisagem. Bezerra e Mendonça estão arrasados. Despedem-se numa esquina. Ouve-se um grito distante, quase um uivo. Outros gritos de dor respondem, distantes. Um grupo de soldados bêbados cruza a desembocadura da rua. Cosmo e Frei Antônio procuram as sombras. Cosmo sussurra para o frade.

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COSMO DIAS Frei Manuel, precisamos ir ao encontro de João Fernandes imediatamente. Há traidores entre seus homens. Os holandeses vão atacá-lo depois de amanhã. Temos que avisá-lo antes!

FREI MANUEL O que? Depois de amanhã? Traidores?

COSMO DIAS Um Antônio Cavalcanti e um outro que ele chamou de... Carvalho, Bernardino Carvalho.

FREI MANUEL Antônio Cavalcanti? Não pode ser. Ele é parente de João Fernandes! Casamento de sobrinhos, mas é parentesco. São compadres. Não acredito. E o nome dele está na proclamação do Conselho, como um dos cabeças da revolta...

COSMO DIAS Foi por esse nome que o chamou o Secretário do Presidente. Não era a primeira vez que entrava lá, chegou por uma porta secreta e foi recebido com toda a naturalidade. O outro não, o Secretário não o conhecia. Assim que vocês saíram, o Secretário os conduziu à sala do Conselho.

Archotes acesos nas fachadas de algumas casas iluminam esporadicamente os rostos dos dois. O frade olha para Cosmo.

FREI MANUEL

Vosmecê não estava lá, Doutor, mas do jeito que eles se dirigiram a mim... Bullestrate me esfregou na cara uma carta, exatamente de um traidor, que se dizia pronto a assassinar João Fernandes, com o punhal ou a peçonha. E o canalha estava na sala ao lado.

O frade passa a mão pelas barbas, começando a andar mais depressa.

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FREI MANUEL

Foi para me testar que Bullestrate fez aquilo. E se me revela com essa desfaçatez os trunfos que tem na manga é por que sabe que não há nada que eu possa fazer. Meus dias estão contados nesta cidade, e a conta é curta.

EXT. PONTE DA BOA VISTA - NOITE Cosmo Dias e Frei Antônio atravessam a ponte que une o Recife a Cidade Maurícia. Aqui a neblina é ainda mais forte. O Capiberibe transborda em seu delta. Do outro lado do rio, distinguem-se as quatro torres de Frejburg, casa de campo de Maurício de Nassau.

FREI MANUEL Escuta, eles já devem estar assinado minha ordem de prisão, tenho que abandonar isso aqui, de uma vez por todas. Mas antes devo passar em minha casa, para juntar alguns livros e documentos. Meu serviçal os levará de barco para um lugar seguro. Ainda bem que o senhor não estava conosco na sala, não foi visto em minha companhia...

COSMO DIAS A não ser por seus dois amigos.

FREI MANUEL Ah, eles são de confiança. Imagino que vão sumir com as famílias também, se forem espertos.

Aproximam-se do muro da cidade. Neste ponto, a chuva já derrubou boa parte da faxina e uma brecha permite a passagem de um homem. O frade pára diante da saída.

FREI MANUEL O senhor pode sair por aqui, doutor. Siga em frente pelo caminho batido. Após umas duzentas jardas, o senhor vai ver um cruzeiro na beira da estrada, do lado direito. Entre por ali. Há uma

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pequena ermida a poucos passos do caminho. Espere-me ali. Vamos encontrar João Fernandes.

Com um sorriso para o frade, Cosmo ultrapassa a brecha e desce o trilheiro. Frei Antônio apressa-se em sair dali, resmungando.

FREI MANUEL Cavalcanti! O traidor é Cavalcanti! João Fernandes tem que saber já!

EXT. ERMIDA - DIA É manhãzinha e a chuva parou. Sentado nos degraus da pequena ermida, Cosmo Dias dá os últimos retoques com um punhal num forte galho, a que deu a forma simples e eficiente de um cajado. Frei Antônio emerge da mata. Também ele traz um cajado e uma mochila de couro. Cosmo se levanta para recebê-lo.

COSMO DIAS Bom dia, padre. Deixe que eu carregue sua matula.

O frade entrega a mochila de bom grado.

FREI MANUEL Trouxe alguma coisa para comermos no caminho. Vejo que está preparado para a caminhada!

Diz isso revelando surpreendente agilidade, batendo com seu cajado no de Cosmo, que faz de conta que se defende do golpe. Com Cosmo Dias na retaguarda, começam a caminhar pelo mato. Começa a chover e os dois logo estão encharcados. Alcançam um pequeno curso d’água, que atravessam a vau. Avançam pela floresta, onde o único ruído é o da chuva. Mas logo a chuva cessa e o sol penetra pela folhagem brilhante. Pássaros começam a cantar. Os dois avançam por mais algum tempo e, de repente, Cosmo pára, segurando o frade pela batina e fazendo-lhe sinal para que se mantenha calado. Toma a frente e, quase de quatro, adianta-se por entre os troncos. Pouco a pouco, começa-se a ouvir ruídos de vozes e o tilintar de armamento. Afastando alguns galhos, Cosmo pode ver a COMPANHIA de Blaer se deslocando pela floresta. A mata o impede de ver a quantidade de homens em marcha, mas pode perceber que são muitos. Alguns CAVALEIROS vão na vanguarda. O terreno difícil é totalmente inadequado para o

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deslocamento do grupo montado, que atrasa a marcha da infantaria. Além disso, as couraças de metal, mochilas, espadas e mosquetes tornam extraordinariamente penosa a caminhada dos soldados, que tropeçam nas raízes e escorregam no chão embarrado. Os OFICIAIS montados parecem ignorar as dificuldades da tropa. Seguem impávidos. Devido à chuva, panos coloridos substituem as costumeiras plumas nos chapéus. Cosmo Dias recua e volta para junto do frade, que o aguarda ansioso. Cosmo o apanha pelo braço e o leva para longe do exército em movimento. Quando se acham a uma distância segura, Cosmo fala em voz baixa.

COSMO DIAS Temos que nos apressar, padre. Os holandeses já estão a caminho.

Os dois se embrenham na mata. Ainda se escuta o ruído dos holandeses em seu avanço atabalhoado. EXT. VILA DE IGARASSÚ - DIA Igarassú é uma pequena vila perdida no mato, apenas um quadrado de casas em torno de um largo, no centro do qual há um cruzeiro. Uma minúscula igreja se destaca num dos lados e de seu interior é possível ouvir o ruído cadenciado de vozes em oração. INT. IGREJA DE IGARASSÚ - DIA Uma comunidade de não mais que CINQÜENTA PESSOAS, homens, mulheres e crianças, assiste a missa dominical. Nuvens de incenso pairam à luz do sol que entra pelas estreitas janelas. O PADRE ergue o cálice na Consagração e todos silenciam. É nesse silêncio que se ouve o tropel de um cavalo. Todas as cabeças se voltam para a porta. Recortado contra a luz, um HOMEM freia o cavalo diante da igreja, salta e entra correndo. O padre interrompe a cerimônia, contrariado. O homem alcança a frente do altar e fala, assustado e ofegante.

HOMEM Os holandeses! Os holandeses estão chegando!

Os homens presentes à missa se levantam, confusos, entreolhando-se como que em busca de quem lhes diga o que fazer. O recém-chegado torna a correr para fora, gritando.

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HOMEM Vamos pro mato. Vamos nos esconder. Vamos!

EXT. VILA DE IGARASSÚ - DIA No momento em que a comunidade deixa a igreja, um grupo de SOLDADOS HOLANDESES entra na praça pelo lado oposto. À frente, montados, vêm o Capitão Blaer e o Tenente Denniger. Ao se defrontarem, os dois grupos param e se encaram. As mulheres correm de volta para o interior da igreja, arrastando as crianças que, fascinadas pelo brilho das couraças, querem ficar para tudo ver. Blaer esporeia de leve sua montaria, que avança alguns passos. O cavalo de Denniger acompanha.

BLAER Sabemos que o rebelde João Fernandes se encontra nessas vizinhanças. Se nos disserem como chegar a ele, poderão voltar em paz a seu culto.

Os homens o encaram em silêncio.

BLAER Vou perguntar mais uma vez. E só uma. Onde está João Fernandes?

O silêncio continua. Blaer faz um aceno de cabeça para Denniger que, desembainhando a espada, avança com seu cavalo e trespassa o peito do primeiro homem que alcança. O ato é tão inesperado que paralisa os circunstantes. Menos os soldados holandeses que, soltando seus gritos de guerra, caem sem piedade sobre os cidadãos indefesos. Invadem a igreja e arrastam para fora mulheres e crianças. Algumas donzelas são arrastadas para o mato. Blaer e Denniger a tudo contemplam com impassividade.

BLAER Agora vamos ver se esses miseráveis aprendem que com a gente não se brinca. Muito bem, Denniger, ponha os homens em forma. Temos que nos juntar ao Coronel Haus em Santo Antônio.

Os sargentos saem a juntar seus pelotões. O grupo armado entra em forma sob o comando de Denniger e deixa a praça coberta de cadáveres. Alguns retardatários saem da mata fechando as

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braguilhas. Um bando de moscardos logo se forma sobre os mortos, passeando por seus rostos congelados em expressões de horror. EXT. MATA TROPICAL - DIA A mata ainda está encharcada da chuva. Grossos pingos caem do alto e rebrilham na luz oblíqua que penetra copas, galhos, lianas, folhas e flores. Fazem-se ouvir os ruídos da mata, trinados, pequenos gritos de indagação e resposta. À medida que Cosmo Dias e Frei Manuel avançam pela picada íngreme, silencia a mata. Cosmo é o primeiro a ouvir e está com seu cajado em guarda quando QUATRO GUERRILHEIROS saltam de entre os troncos. Mas o líder, Domingos FAGUNDES, reconhece Frei Manuel e freia o ímpeto do ataque.

FAGUNDES Quase meto uma bala nesse holandês aqui! Quem é esse sujeito, Frei Manuel?

Os quatro são muito jovens e olham com raiva para Cosmo Dias. Fagundes continua a apontar uma pistola de dois canos para o peito de Cosmo. Dois outros empunham mosquetes e os demais, espadas. Frei Manuel apressa-se a acalmar os guerrilheiros.

FREI MANUEL Ele não é holandês não, minha gente, é português, se chama Dias. Veio da Bahia preparar a chegada dos reforços. As coisas no Recife estão terríveis. Precisamos falar com o General.

FAGUNDES O General já está sabendo do que fizeram com nossas famílias. Mas esses filhos de puta não sabem o que os espera. Desculpa o palavrão, frade. Mas estamos todos meio doidos. O General está furioso, quer avançar sobre o Recife agora. Os coronéis ‘tão custando a segurar o bicho.

Põe de volta a pistola no cinturão, os outros embainham suas espadas. São todos muito jovens.

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GUERRILHEIRO 1 Eu por mim ia agora! Minha mãe e minhas irmãs estão lá.

FREI MANUEL Onde está o General, Fagundes, temos notícias muito importantes para ele.

FAGUNDES

A essa hora deve estar jantando. Vamos lá.

EXT. ACAMPAMENTO DE JOÃO FERNANDES - DIA Trezentos homens acampam nessa clareira aberta no alto do morro. Redes entre os troncos, toldos improvisados com capas, quatro ou cinco barracas de palha para os mais graduados, uma cozinha de campanha. Os homens se ocupam em secar e lubrificar as armas, brancas e de fogo. A magra refeição da noite já está sendo preparada, pirão de carne seca. INT. BARRACA DE JOÃO FERNANDES - DIA Uma refeição separada está sendo preparada para JOÃO FERNANDES. É o mesmo pirão, preparado por TOBIAS, um preto velho vestindo o que resta de um traje de mordomo, num pequeno fogão a óleo junto à entrada da barraca. João Fernandes escreve um carta, sentado à mesa de campanha. Tobias enche uma cuia com o pirão, enfia nela uma colher e leva-a até a mesa, depositando-a ao lado de seu senhor. João Fernandes levanta os olhos do papel, primeiro para o pirão fumegante, depois para a cara de Tobias, que está enchendo uma caneca de estanho com vinho despejado de um corote. VELOSO, Chefe da Guarda Pessoal do General, entra seguido de Frei Manuel e Cosmo Dias. Fagundes fica na entrada espiando.

VELOSO General, tem visita pro senhor.

João Fernandes se levanta e recebe o frade de braços abertos.

JOÃO FERNANDES Frei Manuel! É Deus que manda o senhor. Preciso da sua benção, de suas orações, padre, porque o sangue já começou a correr. E esse aí, quem é?

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FREI MANUEL É Jacob Rot... Desculpe, é Cosmo Dias, mas está no Recife com passaporte alemão e... bem, chegou da Bahia ontem..

JOÃO FERNANDES Dias? Cosmo Dias? Com essa cara de holandês... Chegou ontem? E então? Quando chegam Camarão e o outro Dias lá, que com certeza não é parente seu? Quando desembarca Vidal de Negreiros com as tropas que me prometeu Dom Antônio Teles?

COSMO DIAS Camarão e Dias, pelo que sei, não podem estar longe, devem chegar por aqui em no máximo cinco dias. André Vidal deve desembarcar no fim do mês.

JOÃO FERNANDES É muito tarde! É tarde demais! O tempo trabalha a favor dos holandeses.

COSMO DIAS O que posso lhe dizer é que os holandeses não estão esperando. Amanhã, o Coronel Haus sai do Recife com mil e quinhentos homens para impedir que o senhor faça junção com os baianos.

JOÃO FERNANDES

Minha informação é melhor que a sua. Tenho de fonte segura que Camarão e Dias estão a dois dias daqui. E o Capitão Blaer já está solto na várzea com seus cachorros, matando nossa gente.

FREI MANUEL Blaer? Aonde?

JOÃO FERNANDES Igarassú. Só sobraram uns pretos que se meteram no mato ao primeiro sinal de holandeses. Mas nós tiramos o primeiro

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sangue. Domingos Fagundes, aí, botou pra correr a guarnição de Ipojuca e degolou a tripulação de quatro navios. Aqui estamos todos precisando de sua absolvição, Frei Manuel.

Cosmo Dias retira do bolso do gibão o mapa que surrupiou do gabinete de Hamel. Desdobra-o e o estende a João Fernandes.

COSMO DIAS Espero que pelo menos isto aqui lhe possa ser útil, General.

João Fernandes pega o mapa e o estuda atentamente. Interpela Cosmo Dias com desconfiança.

JOÃO FERNANDES Onde arranjou isto aqui?

COSMO DIAS No gabinete do Presidente do Conselho da Companhia.

FREI MANUEL É verdade, General, estivemos lá ontem à noite para... para confrontar o Conselho com o absurdo desse edital. Cosmo aproveitou para investigar. Com ótimos resultados, como pode ver.

João Fernandes examinava o mapa enquanto o frade falava. Agora lança um último olhar para Cosmo e se dirige para a saída.

JOÃO FERNANDES Vamos, Veloso, convoca os coronéis. Olha aqui esse mapa. Está vendo, eles vão se juntar em Santo Antônio e de lá eles vêm por aqui, pelo Jaboatão. Eles já sabem que estamos aqui em São Lourenço. Vamos, doutor, acompanhe-me.

EXT. ACAMPAMENTO DE JOÃO FERNANDES - DIA A barraca de João Fernandes está erguida no alto do morro. A vista sobre a Várzea na direção de Recife é magnífica, com o sol da tarde penetrando as nuvens pesadas. À saída do chefe, os

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GUERRILHEIROS urram sua saudação. As constantes chuvas, a umidade da mata tropical e tudo está sempre molhado. Quase todos os homens do acampamento dispensaram as roupas completamente, mantendo apenas as bragas e o talabarte. Muitos têm armas de fogo, de antigos arcabuzes a modernos mosquetes holandeses e biscainhos. Mas a maioria depende de armas brancas, lanças e, na falta destas, chuços. Só usam botas os que são CAVALEIROS, e são poucos. O resto anda descalço, muito mais fácil no lamaçal dos caminhos e nas raízes escorregadias das florestas. Há muitos ÍNDIOS no acampamento, com suas cores tribais, sempre em seus grupos de vinte ou trinta. Há também muitos AFRICANOS, escravos ou libertos. Alguns CORONÉIS vêm subindo rumo ao topo, de lugares diferentes do acampamento. Seus chapelões têm, como adorno, faixas de pano colorido em lugar das plumas. Cosmo enfiou o gibão holandês no alforje de Frei Manuel mas a enorme gola da camisa, mais holandesa ainda, só reforça sua diferenciação no grupo. Sua barba ruiva já está crescendo e nota-se nele um novo ar de interesse pelo que se passa à sua volta, uma respiração mais funda. É o único homem em cena que não porta uma arma. Cosmo percebe que um dos Coronéis que se aproximam de João Fernandes é Antônio Cavalcanti, que viu pela última vez na sala de Hamel. Estende o olhar para além e vê ali o segundo homem, Bernardino, encarando-o. Cosmo segura o olhar até que o outro desvie o seu. O grupo se forma em silêncio, aguardando o motivo da convocação. Além de Cavalcanti e Bernardino, estão presentes Antônio Dias CARDOSO, Antônio Gomes TABORDA, Paulo VELOSO, Francisco RAMOS, Domingos FAGUNDES e João BEZERRA.

JOÃO FERNANDES Senhores, este cidadão é baiano, apesar dessa cara de holandês que ele têm. Foi mandado aqui por Dom Antônio, para espionar os holandeses. O avalista dele é o Padre Vieira, endossado aqui pelo Frei Manuel. São fiadores de peso.

Durante essa arenga, os Coronéis examinaram Cosmo com desconfiança. Diante dos nomes dos religiosos, grande parte começa a ceder. Cavalcanti e Bernardino permanecem de caras fechadas. João Fernandes estende o mapa.

JOÃO FERNANDES Pois o doutor Cosmo Dias, aqui, nos trouxe este mapa, que revela duas

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coisas extraordinárias: o fato de que os holandeses sabem exatamente onde estamos acampados: aqui no sítio do Covas; e o modo como pretendem nos atacar: Haus sai de Recife amanhã de manhã, faz junção com Blaer que já está no campo, certamente cometendo suas atrocidades...

INSERT – MAPA O dedo de João Fernandes percorre o desenho do mapa.

JOÃO FERNANDES (V.O.)

...e avançam, para abrir de novo em duas mangas, olha aqui...

EXT. ACAMPAMENTO DE JOÃO FERNANDES - DIA Taborda e os demais mostram grande interesse pelo mapa. Mas Cavalcanti e Bernardino continuam encarando Cosmo.

CAVALCANTI Não será a primeira vez que os holandeses nos enrabam com fianças ainda mais importantes. Quem é esse sujeito? Frei Manuel vive cheirando o rabo dos holandeses, sei lá de que lado está. Padre Vieira está lá na Bahia. Isso pode ser uma armadilha. Cuidado, João Fernandes...

Os demais Coronéis mudam seu foco de atenção. Bernardino, por cima do ombro de Cavalcanti, quer pôr lenha na fogueira.

BERNARDINO É isso mesmo, quem é esse sujeito?

João Fernandes o interrompe.

JOÃO FERNANDES De uma maneira ou de outra, isso quer dizer que vamos ter que agir. Não podemos ficar sentados à espera das manobras holandesas. E é por isso que eu chamei vocês. Olha aqui, algum sinal de que os holandeses pudessem ter nos

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ultrapassado pelos lados para nos esperarem mais ao norte? Alguém ouviu alguma coisa?

TABORDA Ora, General, se a gente tivesse visto algum sinal de holandês o senhor saberia.

JOÃO FERNANDES Então a hipótese de armadilha é improvável. Sabendo pelo mapa que eles viriam do Sul, diretamente de Recife para cá, nós fugiríamos para o Norte. Então eles já teriam que estar lá para nos esperar. Então a informação do mapa é real. Mas nós não vamos para o Norte. Vamos atravessar o Tapicurá para Oeste.

Enquanto os homens falavam, as nuvens foram se fechando e agora um relâmpago corta o céu. O trovão se arrasta longamente por sobre a várzea.

CAVALCANTI Atravessar o Tapicurá? Você está maluco! O Tapicurá já subiu seiquantas braças. A corrente está impassável.

FAGUNDES

Ora que é isso, Cavalcanti, com a ajuda do pessoal de Poty a gente atravessa qualquer rio.

JOÃO FERNANDES Se a gente sair agora, chegamos no Tapicurá de manhã cedinho. E do lado de lá, a gente espera por eles. Agora não temos gente suficiente para enfrentar os dois mil homens do Coronel Haus. Eles vão seguir nosso rastro, vão tentar a travessia. Vamos segurando eles. Indo para o Oeste, a gente se encontra mais cedo com Felipe Camarão e Henrique Dias. Vocês sabem como eles só sabem fazer guerra em campo aberto. Vamos trazendo eles mais pra dentro do mato. Fazendo escaramuças, matando

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depressa, pegando as armas e saltando fora. Como a gente fez quando eles chegaram.

FAGUNDES Como eu fiz em Ipojuca!

JOÃO FERNANDES Isso, como o Fagundes fez em Ipojuca. Eles não estão preparados para a violência. Há quinze anos que não acontece nada, estão lá, dentro do Recife, donos de Pernambuco. Acham que somos frouxos, porque já nos bateram na mesa de negociação, empurraram os juros que quiseram, usaram a justiça em seu interesse. Agora chegou a hora do confronto e eles acham que ainda somos os mesmos.

Cavalcanti percebe que não é mais o foco da atenção e se afasta para um lado puxando Bernardino. Conversam em cochichos. Bernardino escuta, diz algumas palavras interrogativas. Cavalcanti autoriza e volta para o grupo, os olhos postos em Cosmo Dias.

JOÃO FERNANDES Todos nós aqui sabemos as crueldades que esses comedores de manteiga têm praticado contra nós, nossas mulheres e filhos, e o desaforo com que têm roubado nossas fazendas, morto nossos parentes, desonrado nossas mulheres, violado nossas filhas, profanado os templos sagrados, despedaçando as imagens de Cristo e da Virgem Maria, querendo extinguir de todo a fé católica nesta miserável Província de Pernambuco.

A voz de João Fernandes ecoa pelo acampamento e os guerrilheiros interrompem o que fazem para se aproximar.

JOÃO FERNANDES Eu sou o mais rico de todos aqui e poderia passar minha vida regaladamente, aqui no Brasil ou em

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Portugal, se quisesse. Todavia, tomei sobre os meus ombros esta empresa da liberdade da pátria e nela tenho despendido a maior parte de minha riqueza, e o faço com muito gosto. Deixei para trás minha mulher grávida, meus engenhos, tudo o que possuía, botando minha vida à mercê da espada do inimigo. E, assim como eu, cada um desses patriotas, sem os quais nada se poderia fazer.

A essas palavras, os guerrilheiros lançam brados e vivas a seu Governador que, num gesto grandioso, ergue ambos os braços. Cosmo o observa com olho cínico.

INT. BARRACA DE JOÃO FERNANDES - DIA João Fernandes está comendo pirão frio quando Cosmo e Frei Manuel são introduzidos por Veloso.

JOÃO FERNANDES Estamos jogando as nossas vidas naquele mapa que o senhor trouxe, qual é mesmo seu nome?

COSMO DIAS Cosmo Dias. Pois a minha vida o senhor jogou aqui e agora, revelando que fui eu que lhe trouxe o mapa. Minha vida no Recife não vale mais nada.

JOÃO FERNANDES Ora, não entendo. Que mal tem que minha gente saiba que o senhor está nos ajudando? É bom para o moral da tropa saber que temos gente lá dentro. E veja que informação valiosa o senhor trouxe!

COSMO DIAS Pois pode muito bem ser a última.

JOÃO FERNANDES Como, não entendo.

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COSMO DIAS Amanhã mesmo os holandeses vão saber que eu estive aqui e lhe entreguei um mapa roubado do Palácio do Conselho.

JOÃO FERNANDES E como saberiam?

COSMO DIAS General, há dois traidores entre seus homens.

JOÃO FERNANDES O que, chegou ontem ao Recife e já sabe que há traidores no meu partido? Eu já tenho os colhões cheios com essa história de traidores, de assassinos, de envenenamentos. A acreditar no que me dizem, metade de meus homens está vendida aos holandeses. Ora, bolas, doutor Cosmo Dias, agora me vem o senhor? Só dois? Por que não cinqüenta, ou cem? Mil não, porque só tenho oitocentos.

Cosmo busca algum apoio em Frei Manuel, mas não encontra. Afinal, quem viu foi Cosmo e não ele. E a ira do General não é fácil de se encarar. João Fernandes fuzila Cosmo com o olhar, realmente enfurecido.

COSMO DIAS Eu vi os dois, General, confabulando com metade do Conselho.

JOÃO FERNANDES Não acredito. E você os viu agora, aqui no acampamento?

COSMO DIAS Vi.

Diante da inflexibilidade de Cosmo, João Fernandes hesita. Parece não querer saber mais, indagar nomes.

JOÃO FERNANDES Ora, podia ser qualquer um. Era de noite? Era escuro? Aonde foi? No

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gabinete de Hamel, me disse o senhor. Onde estava o senhor?

COSMO DIAS Atrás de uma cortina.

JOÃO FERNANDES Há, um bom lugar para um alcoviteiro. E a luz? Como era a luz? Conheço bem o gabinete de Hamel, é imenso, cheio de cantos escuros...

COSMO DIAS General, eu sou médico anatomista e as feições dos homens são todas diferentes entre si, mesmo entre gêmeos. E a luz era suficiente. O senhor não quer saber os nomes?

Confrontado, João Fernandes endurece.

JOÃO FERNANDES Então diga lá, doutor Cosmo Dias!

COSMO DIAS Antônio Cavalcanti e Bernardino de Carvalho.

Ao primeiro nome, João Fernandes parece que vai saltar ao pescoço de Cosmo Dias, tanto que este chega a esboçar uma defesa. Mas o ataque explode verbalmente, com João Fernandes andando de um lado para outro no espaço exíguo da barraca.

JOÃO FERNANDES Não admito, entendeu? Não admito que alguém fale mal do meu compadre, entendeu? Quem é que lhe pagou para fazer isso, hem, doutor? Quem foi o filho de puta que lhe pagou pra dizer isso do meu compadre. O meu compadre? Me trair? Nunca!

Cosmo faz um gesto de quem desiste do caso. Mas João Fernandes continua esbravejando.

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JOÃO FERNANDES Não sei por que fui confiar no senhor. E se aquele mapa for mesmo uma armadilha, como disse o compadre? Como posso confiar num espião, num sujeito que se esconde atrás de cortinas? A vida de meus homens depende daquele mapa. Como é que aquele mapa foi parar na sua mão, hem, doutor? Não foi o próprio Haus que mandou o senhor aqui para nos espionar e lançar dissensões?

O crescendo de João Fernandes parece querer desaguar em violência física. Cosmo observa cada movimento dos pés de João Fernandes. Frei Manuel decide interferir, usando toda a sua autoridade eclesiástica.

FREI MANUEL Basta, João Fernandes. Não podes falar assim com um homem que veio para nos ajudar. Como, enviado de Haus? Pode ser que ele esteja enganado, não é Cosmo?

O padre adota agora a melosidade do adulto que tenta fazer as pazes entre duas crianças e, de uma certa maneira, Cosmo e João parecem dois meninos repreendidos.

FREI MANUEL Pode ter-se enganado. Afinal, para os baianos todos os pernambucanos têm a mesma cara, não é?

Essa tentativa de humor passa despercebida. João Fernandes dá de ombros e Cosmo pega o alforje. Sobre a mesa, vê uma miniatura num porta-retratos. Representa uma linda moça de cabelos negros. Passa a alça do alforje pelo ombro e se dirige para a porta.

COSMO DIAS Sinto muito ser o portador de notícia tão desagra...

JOÃO FERNANDES Se Cavalcanti fosse quem vocês dizem que é, não estaria com a cabeça a prêmio. Seu nome está ao lado do meu e do de Amador de Araújo na proclamação do Conselho. Mil florins por cada um,

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mas a minha já subiram para quatro mil, sabia? E isso porque eu recusei a oferta de duzentos mil cruzados para largar tudo e fugir para a Bahia. É assim que pensa aquela corja, que dinheiro é tudo, que com dinheiro tudo se compra.

A barraca é pequena para a indignação de João Fernandes.

JOÃO FERNANDES É por isso que dizem que nós estamos em armas contra eles para escapar das dívidas. Mentira! Já gastei nessa história muito mais do que devo à Companhia. A questão não é essa! A questão é que essa corja é muito pequena para o Brasil. Não têm visão, não tem amor pela terra. É só dinheiro, dinheiro...

Na tentativa de não ter que encarar a informação de que seu compadre é traidor, João Fernandes divaga. Agora, perde o fio da meada e se cala. Num rompante, sai da barraca para o anoitecer. Veloso e os GUARDA-COSTAS pulam para acompanhá-lo.

COSMO DIAS Ele não vai fazer nenhuma besteira, vai, Frei Manuel?

FREI MANUEL O acampamento está cheio de boatos e intrigas. Não é a primeira vez que acusam Cavalcanti. Mas não, João Fernandes não faz besteiras.

COSMO DIAS Bem, eu volto para o Recife. Mas não creio que minha utilidade seja muito duradoura.

Cosmo Dias percebe que ainda carrega o alforje de Frei Manuel e o tira para devolver.

COSMO DIAS

Quase levava o seu alforje comigo, Frei Manuel.

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FREI MANUEL

Pode levar, Doutor Rotwild. Agora estou na mão de Deus e dela virá meu sustento.

EXT. ACAMPAMENTO DE JOÃO FERNANDES - NOITE Cosmo sai da barraca para um acampamento sendo levantado. Os índios são os principais carregadores. Alguns grupos de guerrilheiros já estão a caminho. Cosmo se vira na direção oposta e entra na mata noturna.

EXT. MATA TROPICAL - NOITE Uma onça dorme num galho de uma grande árvore. Escuta ruídos na floresta e levanta a cabeça. De longe, do alto, por entre as árvores, vê passar Cosmo Dias, de cajado e embornal, caminhando pela mata alerta e confiante, como se também ele fosse um animal da floresta e tivesse todo o direito de estar ali. A onça solta um bocejo e volta a dormir. EXT. PORTA SUL - NOITE Cosmo se aproxima dos muros de Cidade Maurícia, encoberto pela escuridão. Alguns archotes iluminam os parapeitos e baluartes. Os sinais de obras são vagamente discerníveis: montes de pedras e terra, andaimes, pás e picaretas, etc. Ouve-se as vozes dos soldados de guarda que, sobre o muro, fazem suas rondas despreocupadamente. Cosmo aguarda o momento apropriado e, com uma agilidade até aqui insuspeita, escala velozmente o muro, saltando silenciosamente para o outro lado e desaparecendo na escuridão. EXT. ESTALAGEM DE FRAU WIRTH - NOITE A primeira luz já rompe quando Cosmo entra no pátio da estalagem. Observa com cuidado através da janela da cozinha. Entra sorrateiramente pela porta, mas é surpreendido por Marianne, que entra pela outra porta carregando uma tina de madeira com roupas brancas.

MARIANNE Doutor Rotwild, está chegando ou saindo?

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COSMO DIAS Você acreditaria seu lhe dissesse que me perdi?

Marianne faz um muxoxo e olha de esguelha para Cosmo.

MARIANNE Perdeu-se, pobrezinho? E nenhuma senhora o achou, doutor, um homem tão grande...

Cosmo está exausto mas precisa dar atenção à moça, que o pegou em flagrante. O sol já começa a dar a tudo um tom róseo. Cosmo percebe que o peitilho da blusa de Marianne está molhado e os seios que se revelam são dos mais apetitosos. Cosmo sorri e se aproxima mais. A garota fica ereta para esperá-lo.

COSMO DIAS Ora, Marianne, que senhora me acharia?

MARIANNE Eu mesma sei de uma dúzia de mulheres de ricos burgueses que dariam qualquer coisa para achar um sujeito como o senhor, doutor.

COSMO DIAS Pois eu sei de uma centena de ricos maridos de burguesas que dariam qualquer coisa para achar alguém como você, Marianne.

Marianne finge encabular-se e encosta em Cosmo. O abraço é espontâneo e natural. Beijam-se.

MARIANNE Ufa, pelo cheiro parece que andou perdido, mesmo. Que é isso, doutor, foi atacado por uma onça? Doutor Rotwild, por que o senhor não sobe para seu quarto enquanto eu preparo um banho para o senhor? Vou levar a água quente. Quer comer alguma coisa?

COSMO DIAS É o que eu digo, Marianne: qualquer um daria tudo por uma mulher como você.

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EXT. ACAMPAMENTO DE JOÃO FERNANDES - DIA A vanguarda do Coronel Haus, comandada pelo Capitão Blaer, avança com dificuldade picada acima pela mata cerrada. Blaer e Denniger conduzem seus cavalos pelas rédeas. Os soldados enfrentam em silêncio os obstáculos: raízes, galhos baixos, lianas e lama. Dois batedores vêm ao encontro de Blaer, que comanda a vanguarda. Trazem a ponta de lança Bernardino de Carvalho, indignado pelos maus tratos.

BATEDOR 1 O acampamento está vazio, senhor. Só encontramos lá este aqui, que diz ser nosso amigo.

BLAER Pode soltá-lo, soldado. E então, Bernardino, o que aconteceu?

Os batedores retornam correndo a seus postos. O Cel. Haus se aproxima, seguido do Ordenança, que traz a montaria inútil pela rédea.

BERNARDINO João Fernandes foi avisado do ataque de vocês. Fugiram todos. Frei Manuel apareceu aqui hoje, com um estranho ruivo. Trouxeram até um mapa de vocês detalhando o plano de ataque.

HAUS O que?

BERNARDINO É, um mapa mostrando a sua junção com o Capitão Blaer em Santo Antônio e a marcha em pinças para cá. Eles têm um espião dentro do Palácio do Conselho.

BLAER

Eu vivo reclamando para os Conselheiros da falta de segurança do Palácio. Qualquer um entra, anda por onde quer... Hamel larga os papéis espalhados pelo gabinete inteiro.

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HAUS

Gottverdamm! Então já fugiram. Um espião, você disse?

BERNARDINO É, um sujeito ruivo, parecendo da sua raça, mas diz que veio da Bahia. Um espião de Dom Antônio, aqui pra ajudar João Fernandes. Um sujeito alto, ruivo.

Blaer olha para Haus, que olha para Bernardino.

HAUS E então? O que aconteceu?

BERNARDINO Ora, fugiram todos. Cavalcanti ainda tentou pôr em dúvida a legitimidade do sujeito, do mapa. Mas não adiantou. Ele teve que ficar junto a João Fernandes, porque parece que ele já está desconfiando de alguma coisa. Eu fiquei escondido esperando vocês, por mim ninguém dá falta.

HAUS E então, homem. Fugiram para onde?

BERNARDINO João Fernandes está louco. E os que estão com ele são mais loucos ainda. Vão tentar cruzar o Tapicurá, a oito horas daqui. Para Oeste.

BLAER Eu conheço o Tapicurá. Com essa enchente...

BERNARDINO

Bem, eu só fiquei aqui para avisar vocês. Agora vou pro Recife.

HAUS Fazer o que no Recife?

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BERNARDINO Pegar aquele espião baiano.

BLAER Procure o Conselheiro Walbeek, ele vai lhe dar toda a ajuda.

HAUS Isso mesmo! Espere, vou redigir uma carta para Hamel, você a leva. Ordenança!

O Ordenança se apresenta.

HAUS Escreva uma carta de apresentação para o senhor...

BLAER Bernardino.

O ordenança tira do alforje um estojo de escrita e uma pasta de couro contendo papel e o sinete do Coronel. Encaixa o estojo com o tinteiro na parte superior da pasta, que vira assim uma prancheta. Começa a escrever, com Bernardino a lhe ditar os dados. Blaer, porém, tem sede de João Fernandes.

BLAER

Coronel, enquanto isso vou me adiantando com a vanguarda. Com licença.

HAUS Está dispensado. (DITANDO) Honorável Conselheiro Hamel...

EXT. RIO TAPICURÁ - DIA Grossas cordas de cipós, quase cabos de navio, foram estendidos de uma margem a outra do rio. Agarrados a elas, os guerrilheiros atravessam o caudal. O rio transbordou de suas margens e se mistura à floresta. Galhos descem a corrente e engastalham no cordame. Índios permanecem dentro d’água, soltando esse lixo para liberar as cordas. Já na margem oposta, João Fernandes e seus comandantes observam a manobra. Subitamente, da curva que faz o rio acima desse ponto, começa uma saraivada de balas. A

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fumaça dos mosquetes indica o local de onde os holandeses estão atirando. Os rebeldes redobram seus esforços na travessia e os que se encontram já do outro lado passam a responder ao tiroteio. Não restam muitos portugueses nesta margem e o ângulo não favorece os atiradores. Na outra margem, um grupo de pernambucanos corre por entre a mata, para se postar diante dos mosqueteiros holandês. Começam a atirar. É uma tarefa difícil, por que é preciso recarregar a arma a cada tiro. A recente invenção do cartucho de pólvora reduziu o tempo de recarga e ajuda a manter a pólvora seca. Mesmo assim, muitos disparos falham. Um grupo de indígenas se juntou aos portugueses e começa agora a disparar uma nuvem de flechas. A largura do rio exige uma parábola maior, por isso as setas parecem cair do céu sobre os holandeses. Todos os holandeses usam capacetes de ferro, quase todos usam pescoceira de aço, alguns ainda conservam a couraça, que outros substituíram por gibões de couro, mais flexíveis num combate em que a mobilidade é tudo. A reação dos brasileiros já começa a provocar baixas entre os holandeses. O estrago feito por um pelouro de mosquete, quando chega a atingir seu alvo, não é agradável de se ver. Descendo pela margem do rio, os holandeses procuram aproximar-se mais do ponto onde os guerrilheiros ainda estão atravessando, mas ficam assim expostos ao fogo da margem oposta. Os sargentos tentam fazê-los avançar, mas sem efeito. Logo, o último rebelde alcança a margem oposta e os índios cortam os cipós com um facão. De lá, ficam lançando provocações aos holandeses. Os guerrilheiros desaparecem na selva.

BLAER Maldição! Miseráveis! (berrando) João Fernandes, não perdes por esperar! Ainda hoje hei de cortar tua cabeça.

Sua voz ecoa ao longo do rio, se sobrepondo ao rumor das águas. INT. QUARTO DE COSMO DIAS - DIA Marianne entra carregando um caldeirão de água quente. Cosmo Dias está estirado no divã, desacordado. Marianne sorri e caminha até a tina de banho, a um canto do quarto, onde despeja a água. Vai até Cosmo e começa a tirar-lhe a roupa. Cosmo desperta durante o processo.

MARIANNE Vem, vamos tomar banho, meu neném. Deixa a mamãe te tirar a roupa.

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Cosmo se deixa despir por um instante, mas logo desperta de verdade e começa a desamarrar o corpete de Marianne. Esta lhe dá um tapa na mão.

MARIANNE Menino abusado! Vamos, vem banhar. Alimentei seus pombos ontem, estava fazendo um barulho infernal.

Nu, Cosmo resmunga um agradecimento e se deixa levar ao banho. Senta-se na tina, Marianne o lava com uma grande esponja. O jogo não demora muito e logo Marianne também está despida. A luz da manhã atravessa o quarto, num ângulo flamengo. DISSOLVE PARA INT. QUARTO DE COSMO DIAS - DIA Cosmo Dias acorda com o sol da tarde. Olha pelo quarto mas Marianne, é claro, há muito que o deixou. Levanta-se, lava o rosto na bacia. Dirige-se à bagagem e de um baú retira um estojo de madeira, uma Bíblia e uma pasta de couro. Instala-se à mesa, retira do estojo pena, tinteiro e estilete. Abre a pasta, tira uma folha de papel casca de cebola, da qual recorta uma longa tira. Folheia o livro até achar a página que deseja e começa a escrever, em caracteres minúsculos. Termina seu relatório, enrola-o num estreito cilindro. Apanha no estojo um pequeno tubo de metal, no qual enfia o rolo de papel. Dirige-se a uma das gaiolas e, fazendo ruídos apaziguadores, dela extrai um gordo POMBO. Afixa o cilindro em sua perna e acaricia-lhe as penas com ternura. Anda até a janela e solta a ave, que faz alguns círculos antes de voar rumo ao sul.

MONTAGEM O pombo voa sobre diversas paisagens, à beira mar, seguindo o leito de um rio, no sertão. Escapa por um fio de um gavião (carcará?). Descansa num galho quando chove forte. Voa durante a noite. Continua voando ao amanhecer. Mais uma vez o sol se põe e se levanta ao longo do vôo do pombo-correio. Quando o sol se põe novamente no horizonte, o pombo chega à vista de Salvador.

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EXT. CASA DE COSMO DIAS - ENTARDECER A ave finalmente chega ao pombal. TADEU, um menino africano, está no quintal justamente aguardando aquele evento. Tira de um saco um punhado de milho, que estende para o pombo. Este, esfaimado, pousa no braço de Tadeu e começa a comer. O menino aproveita para retirar o cilindro da perna da ave. INT. COLÉGIO DOS JESUÍTAS - ENTARDECER Tadeu corre afobado pelo interior do Colégio até alcançar uma pesada porta, onde bate com insistência.

TADEU Padre Vieira, Padre Vieira! O primeiro pombo já chegou!

Padre Vieira abre a porta.

PE.VIEIRA Entra, menino, entra.

APOSENTOS DO PADRE VIEIRA Padre Vieira recebe do menino o cilindro metálico, que abre imediatamente, dele retirando o rolinho de papel. Dirige-se à sua mesa de trabalho e, acavalando um par de óculos com grossa armação de madeira, lê a mensagem. Tadeu fica ali inquieto, esperando. Com um sorriso, Padre Vieira enfia a mão no bolso da sotaina e estende uma moeda para o menino, que sai a galope.

PE.VIEIRA (gritando para Tadeu) Esteja lá amanhã, Tadeu. Amanhã e todos os dias.

INT. ANTESALA DO GOVERNADOR - ENTARDECER Padre Vieira é recebido pelo Secretário. Como da vez anterior, a sala está ocupada por figurões à espera de uma audiência.

SECRETÁRIO Infelizmente o senhor vai ter que esperar, Padre.

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PE.VIEIRA Mas o que tenho a falar com Dom Antônio é de extrema urgência!

SECRETÁRIO Sinto muito, Padre, mas Dom Antônio está recebendo agora o embaixador da Costa do Marfim. Ai, que dia! Corre pra cá, corre pra lá...

Padre Vieira se conforma e toma lugar entre os demais, que não escondem sua satisfação com o fato de o padre receber o mesmo tratamento que eles. INT. SALÃO DO GOVERNADOR - NOITE Padre Vieira entra no salão do Governador, visivelmente irritado. Dom Antônio está retirando a peruca, tendo já se desfeito dos paramentos do ofício. Enxuga com um lenço a cabeça e avança para receber o frade.

DOM ANTÔNIO Padre, mil perdões. Sinto muito tê-lo feito esperar até agora, mas não havia como interromper a audiência com os holandeses.

Padre Vieira não responde, deixando clara sua irritação. Dom Antônio finge não perceber e continua falando.

DOM ANTÔNIO A audácia dessa gente! Mandam-nos uma embaixada para fazer acusações veladas e tentar descobrir a extensão de nosso envolvimento com a conspiração de João Fernandes. É claro que neguei tudo! Por outro lado, foi ótimo que Hoogstraeten fosse um dos membros da delegação. Vidal confirmou sua disposição em entregar-nos o forte Santo Agostinho.

PE.VIEIRA.

Pois vamos precisar dele antes do que imaginávamos. Cosmo Dias enviou seu primeiro relatório.

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DOM ANTÔNIO Ah, é? E o que diz?

PE.VIEIRA. As coisas lá estão se precipitando. Temos que enviar Vidal e as tropas imediatamente. Imediatamente. Os holandeses expulsaram da cidades as famílias dos revoltosos. A mulher de João Fernandes, grávida! Velhas, donzelas e crianças jogadas na floresta à mercê dos tapuias e das feras hereges. As feras hereges... Bem, ao mesmo tempo mandaram o exército atrás de João Fernandes, que aparentemente está cercado por traidores. Cosmo nomeia dois, Antônio Cavalcanti e Bernardino de Carvalho.

DOM ANTÔNIO Cavalcanti? Mas os holandeses puseram-lhe a cabeça a prêmio!

PE.VIEIRA. Típico do raciocínio falso e traiçoeiro desses hereges. Para desviar qualquer suspeita do traidor, dão um prêmio por sua cabeça.

DOM ANTÔNIO Cavalcanti! Que bom filho de uma puta.

Pe. Vieira ignora o palavrão.

PE.VIEIRA. Quando Cosmo deixou João Fernandes, este preparava-se para fugir dos holandeses. Pelo que Cosmo viu do exército deles, João Fernandes não deve ter dificuldades em escapar deles. Combater já é outra coisa. Por isso temos que antecipar a ida de Vidal. O relatório de Cosmo, oitocentas e setenta letras numa tirinha de papel, tem data de anteontem e se refere a fatos ocorridos no dia anterior. Qual é

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o mínimo tempo necessário para aprestar os navios e os soldados?

DOM ANTÔNIO Ah, Padre, isso quem vai lhe dizer é Serrão de Paiva.

PE.VIEIRA Então mande chamá-lo, ora essa! E o que, pelas chagas de Cristo, está segurando Felipe Camarão e Henrique Dias?

Pe. Vieira nem se apercebe da maneira como dá ordens ao Governador. Este, entre surpreso e contrafeito, toca uma sineta.

EXT. MATA TROPICAL - DIA A COLUNA de Blaer avança com dificuldade pelo meio da mata. Ouvem-se alguns disparos e gritaria na vanguarda da coluna. Denniger saca uma pistola de dois canos da cintura e corre para a origem dos ruídos. É recebido por uma bala zunindo em seu ouvido. Dispara para onde acredita ter visto o relâmpago do disparo e olha em volta. As árvores engolem a cabeça da coluna. De entre elas, inesperada e desordenadamente, saltam homens com facões, espadas ou lanças e caem sobre os holandeses. Da Mota é um dos mais frios e ativos. Muitos holandeses já estão pelo chão, feridos ou mortos.

DENNIGER Lutem seus desgraçados! Vão atrás deles! Hilt e Stoleniski, comigo!

Seguido pelo Sargento e o Porta-bandeira, que porta agora uma alabarda (longo machado de duas lâminas), Denniger se enfia por entre as árvores mas não encontra ninguém. Gritos e disparos continuam chegando a seus ouvidos. Corre de volta para onde a escaramuça continua.

DENNIGER Formar esquadrões, formar esquadrões!

Hilt repete a ordem ao berros. Os soldados, atarantados, tentam se organizar defensivamente, mas o arvoredo não permite. A essas alturas, o corpo principal da coluna alcança o lugar do conflito e Haus organiza um ataque em pinça com seus oficiais. Duas mangas circundam a vanguarda em apuros, na tentativa de pegar os

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guerrilheiros pelas costas, mas da Mota ordena a retirada, deixando mortos um quarto de seus homens. Gastam sua última munição dando cobertura à fuga. Blaer vai ao encontro de Haus.

BLAER Quais são as ordens, senhor?

HAUS Seguimos em frente, major. Vamos atrás deles. Mas vamos nos dividir. A travessia do Tapicurá é o próximo lugar onde eles nos estarão esperando.

Sob as ordens dos oficiais, a coluna se reorganiza e retoma o avanço. EXT. MARGEM DO TAPICURÁ - DIA A COLUNA de Blaer vem do oeste, em direção ao ponto de travessia do Tapicurá. O exército se desloca com a dificuldade habitual, provocada pelo excesso de equipamento. Os sargentos tocam os soldados como se fossem gado. Chegando ao ponto onde houve o tiroteio no dia anterior, Blaer ordena alto. Denniger tira a espada e grita:

DENNIGER Mosqueteiros!

Um pelotão de mosqueteiros se posta em seis filas, a da frente de joelhos. Denniger baixa a espada e a primeira fila dispara seus mosquetes, fazendo estragos na vegetação. Os que dispararam se erguem e vão para o fim da fila. Os que estavam atrás se adiantam e ajoelham, disparando por sua vez, erguendo-se e indo para o fim da fila. E assim repetem o passo, quase de dança, descarregando ininterruptamente suas balas esféricas sobre a folhagem da outra margem do rio. Não há qualquer revide. O Cel. Haus, que vinha na outra coluna, agora alcança o ponto de travessia. Blaer vai a seu encontro. Com Haus está o corpo de ENGENHEIROS e DOIS ARTILHEIROS com um FALCONETE (pequeno canhão de bronze), carregado numa espécie de liteira por quatro tapuias. A dificuldade do transporte é brutal. Um pelotão de índios faz o transporte da pólvora e das balas em corotes e sacos de lona. Chegados à travessia, depositam suas cargas com alívio e começam a exercitar os músculos.

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HAUS Capitão Gaussmann!

O Capitão Gaussmann se adianta.

GAUSSMANN Pronto, meu Coronel.

HAUS Faça o seu trabalho.

GAUSSMANN Sim, Senhor!

A um gesto de Gaussman, os ENGENHEIROS começam a trabalhar. Com a ajuda dos tapuias, estendem um sistema de cabos com roldanas de lado a lado do rio. A correnteza continua forte. Os sargentos começam a fazer seus homens atravessar. Mal tinham passado duas companhias quando Fagundes e seus homens caem sobre eles e fazem uma carnificina. Os holandeses morrem chocados com a ferocidade do ataque. Os atacantes apoderam-se de tudo o que lhes possa ser útil, armas e munições de fogo e de boca. Ao mesmo tempo, um grupo de guerrilheiros começa a disparar de mais abaixo, alvejando os holandeses que estão atravessando. A maioria é atingida e solta-se dos cabos, sendo arrastada rio abaixo. Os demais voltam apavorados, só para encontrar deste lado os sargentos com suas alabardas, forçando os pobres diabos a voltar e empurrando mais soldados para bucha de canhão. A uma ordem de Haus, os Artilheiros, com sua peça já montada, fazem o primeiro disparo. Uma bala esférica atravessa o rio e rompe através das árvores fazendo grandes estragos e muito barulho, mas não atingindo ninguém, embora tenha passado bem perto de alguns. O insucesso do tiro é saudado por vaias dos guerrilheiros, que voltam a atirar. Haus perde a paciência.

HAUS Capitão, não adianta mandar balas, não estamos querendo derrubar um muro, estamos querendo matar gente. Mude a munição.

Vexado, o Artilheiro1 retira rapidamente a nova bala que estava carregando, dá mais uma socadinha na pólvora, acrescenta mais uma medida e depois enche a boca do canhãozinho com pregos,

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cacos de vidro, pedaços de ferro, lâminas quebradas. Enfia a bucha, soca bem, o Artilheiro 2 aponta, o Artilheiro 1 põe fogo na espoleta e o canhão cospe sua chuva cortante. Espalha-se à medida que avança e chega ao lado oposto fazendo um farfalhar sinistro no arvoredo. Espalha-se entre os homens, causando muitos ferimentos cortantes. Começam a retirar-se, alguns carregando os mais feridos, quando uma segunda descarga é disparada, esta causando dano à frente deles, a mira supercorrigida. Negaceiam para os lados e embrenham-se na mata, esfregando os machucados mas dando risadas. Alguns examinam as armas recém adquiridas.

FAGUNDES Agora vamos esperar por eles na primeira emboscada.

EXT. SOPÉ DO MORRO DAS TABOCAS - DIA Haus organizou seu exército na campina ao pé do morro das Tabocas. Os retângulos de soldados estão em silêncio. O céu continua carregado, a vegetação molhada. Diante do exército está o tabocal, uma trincheira impassável com apenas uma abertura, um corredor obscuro e sinuoso, com acesso para dois homens ombro a ombro. A meia altura do morro há uma campina deserta. O topo do morro é pelado. Lá está concentrado um bom número de guerrilheiros. Haus examina-os com uma luneta.

HAUS Gottverdamt, lá está João Fernandes. Se aquela é toda a gente que ele tem, não vai ser difícil. E mal armados, também, veja.

Blaer toma a luneta da mão de Haus e examina o topo do morro.

HAUS Muito bem, Major, ao ataque.

Blaer faz um sinal para o corneteiro, que dá a primeira clarinada. A esse sinal, dois esquadrões de cada ponta da formação marcham para cercar a entrada do tabocal. Os dois esquadrões do centro avançam por sua vez e penetram no corredor, os soldados dois a dois.

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INTERIOR DO TABOCAL Absoluto silêncio reina no tabocal, rompido apenas pelo ruído do deslocamento dos soldados, que olham receosos em torno de si. Já estão bem avançados no corredor, mais de duzentos holandeses, quando das paredes do tabocal explodem disparos ininterruptos de mosquetaria. É a primeira emboscada. A vanguarda da coluna corre para adiante, desembocando numa clareira, onde são massacrados. O restante da coluna recua aos trambolhões, voltando a emergir do tabocal. Aproveitando-se da fuga desordenada dos holandeses, Fagundes abandona seu esconderijo para persegui-los na campina. A ação imediata dos esquadrões que suportam os flancos obrigam-no a retornar com seus homens para a proteção do tabocal, não sem antes causar algumas baixas entre os fujões. EXT. SOPÉ DO MORRO DAS TABOCAS - DIA Haus, Blaer e Denniger confabulam. Haus parece ansiar por um cavalo em que estar sentado para ver mais do alto o decorrer dos combates.

HAUS Artilheiro! Despeje tudo o que tiver neste tabocal. Tudo! Cargas fortes, de fazer tremer as carnes. Nosso alcance chega ao topo do morro?

ARTILHEIRO1 Com esse falconete? Não, a descarga chegaria fraca, morro acima. Além disso, temos pouca pólvora seca, senhor, a travessia...

HAUS Então concentra no tabocal. Parece que agora temos um muro a derrubar, Capitão.

Os artilheiros apressam-se a montar, carregar e disparar o canhonete. Fazem-no metodicamente, da esquerda para a direita. INTERIOR DO TABOCAL Frei Manuel e sua companhia de eclesiásticos é apanhada por uma descarga que atinge seu flanco direito. A próxima descarga poderá atingi-los em cheio. Alguns começam a se enfiar pelo

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tabocal na tentativa de sair do alvo quando a voz de Frei Manuel os paralisa a todos.

FREI MANUEL Irmãos, sinto como nunca a mão de Deus nos protegendo e sei que a próxima descarga não nos atingirá. Em vez de corrermos feito galinhas, oremos pela vitória da verdadeira Fé sobre o Dragão Holandês. Pai Nosso, que estais no Céu, santificado...

Os demais religiosos juntam suas vozes à oração. Sente-se primeiro o tremor da terra quando o canhão dispara; depois, ouve-se o barulho da descarga. Os projéteis, que agora incluem pequenas esferas de aço, atingem o chão à esquerda do grupo. Sem interromper a oração, Frei Manuel espia o estrago com o rabo do olho e enxuga uma gota de suor que lhe pinga da testa. EXT. SOPÉ DO MORRO DAS TABOCAS - DIA As companhias se reformaram e são novamente retângulos perfeitos, à romana. Diante delas, o pequeno grupo de artilheiros parece ainda menor. Mas é de lá que continua saindo toda a ação. Haus tira o capacete. Blaer, Denniger e outros capitães contemplam o trabalho da artilharia. Haus faz um gesto a Blaer, que dá a ordem.

BLAER Muito bem, senhores. Podem ir.

Os capitães correm para suas companhias e o exército entra em movimento no momento em que o canhãozinho se cala. Os soldados que avançam ouvem elevar-se do tabocal centenas de vozes que rezam a Ave Maria. A mesma manobra é repetida: um terço de cada lado, um terço forçando a entrada da trincheira natural. INTERIOR DO TABOCAL A fila dupla de soldados caminha sobre os cadáveres dos que pereceram na primeira emboscada. Denniger comanda a penetração, com Stoleniski e sua alabarda guardando-lhe as costas. Numa das curvas do corredor, Denniger dá de cara com Fagundes e seu grupo. A segunda emboscada. Fagundes e Denniger duelam. Stoleniski tenta atingir Fagundes, mas este manobra para que o adversário lhe sirva de escudo. Fagundes encerra o duelo tirando uma faca da bota e degolando Denniger. A espada, usa para

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enterrar no vasto peito de Stoleniski, que tem a alabarda erguida acima da cabeça. Os dois holandeses têm a surpresa estampada nos rostos. A luta segue corpo a corpo, no exíguo corredor entre o tabocal e nas clareiras abertas pelos brasileiros para poder matar os holandeses mais à vontade. Alguns soldados resistem até a morte, mas muitos largam as armas e fogem. É notável a diferença entre a sede com que os nacionais se lançam sobre os adversários e o frenesi com que os holandeses tentam se defender do que é a morte certa, que vêem acontecer aos companheiros a seu lado. Mas Fagundes recua. Espicaçados pelos sargentos, os soldados holandeses seguem morro acima, sempre canalizados pelo corredor. E deságuam na última emboscada: numa campina aberta a meia altura do morro, espera Cardoso, com tropas renovadas e doidas pelo combate. EXT. SOPÉ DO MORRO DAS TABOCAS - DIA Haus acompanha com a luneta o desenrolar da campanha e vê seus homens caindo na emboscada. Vira-se para Blaer.

HAUS Só podemos vencê-los pelo número. Ele não tem mais de oitocentos homens nesse morro, nós somos quase o dobro. Temos que atacar em massa, evitando esse maldito corredor e enfiando-nos no tabocal como formigas pela grama. É corpo a corpo e nós somos dois contra um. Se voltarmos para o Recife com apenas trezentos homens e a cabeça de João Fernandes, terá valido a pena.

BLAER Concordo, Coronel. Vamos varrer esse tabocal. Corneteiro, atacar acelerado!

O corneteiro toca e a reserva de Haus avança em linha, enfiando-se pelo tabocal. CAMPINA Um bom número de soldados frescos alcança a campina e começa a dar trabalho a Cardoso e seus homens. Isso permite aos holandeses fixarem a linha de ataque e avançar lentamente morro acima.

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TOPO DO MORRO As nuvens escuras aceleram o anoitecer. A luz já começa a falhar quando João Fernandes dá ordem de atacar e se lança morro abaixo, seguido por sua guarda pessoal e um grupo de escravos tocando atabaques e fazendo enorme alarido. Toda a reserva que estava no alto do morro acompanha João Fernandes. CAMPINA Toda essa gente se junta a Cardoso e cai sobre os holandeses na campina. Os que emergiam do tabocal dão meia volta e refazem o caminho. Mas Cardoso e João Fernandes vão em seu encalço. INTERIOR DO TABOCAL João Fernandes enfia-se no tabocal atrás de um capitão, que mata após brevíssimo duelo. Separou-se da guarda e se vê sozinho, com o holandês morto a seus pés. Ouve um ruído às suas costas. É Cavalcanti, o punhal pronto a esfaquear. Mas a lâmina de João Fernandes o alcança antes e o trespassa. Cavalcanti cai por entre os caules, agonizante.

JOÃO FERNANDES Mas por que, compadre, por que?

CAVALCANTI Porque eu te odeio, João Fernandes. Odeio essa tua empáfia, essa tua pose de grão-senhor...

Um espasmo sacode Cavalcanti e uma golfada de sangue lhe escapa da boca. Cospe.

CAVALCANTI Minha dívida foi perdoada. E eu já tenho assegurados para mim todos os teus engenhos, João Fernandes... As tuas casas, tua mobília francesa... Tua mulher...

Cavalcanti estrebucha. João Fernandes cospe sobre o cadáver.

JOÃO FERNANDES Vai, compadre, acertar tuas contas com Deus.

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Uma escaramuça se desloca entre o tabocal em sua direção. Pode distinguir que são guerrilheiro que recuam diante de uma investida holandesa. João Fernandes corre em ajuda de seus homens. Logo é encontrado pelos guarda-costas e se junta a Cardoso no vértice do contra-ataque. Os gritos de guerra se misturam ao grunhido ritmado dos tupinambá e ao alarido tribal dos africanos, dos quais um grupo avança tocando atabaques. Os holandeses fogem tão depressa quanto lhes permite a vegetação. Haus e Blaer montam uma última tentativa de resistência, numa curva do corredor. João Fernandes e Cardoso atacam esse foco, mas não chegam a ter a chance de pegar os comandantes, que são defendidos ferozmente pelos soldados, até que consigam escapar. EXT. SOPÉ DO MORRO DAS TABOCAS - DIA Pela segunda vez, os holandeses saem do tabocal em debandada. Os oficiais nada podem fazer para detê-los e logo percebem que é melhor acompanhá-los. Por toda a extensão da campina já sombria, os soldados são perseguidos sem quartel por uma multidão que emerge aos berros do tabocal. Os holandeses que conseguem escapar correm para a margem do Tapicurá. EXT. MARGEM DO TAPICURÁ - NOITE Em completa derrocada, o que restou do exército de Haus atravessa o Tapicurá. A noite já caiu, os holandeses defendem como podem a travessia, para que mais gente possa chegar ao outro lado. Já na margem oposta, Blaer está improvisando uma atadura para estancar o sangue que corre de um corte no antebraço. Haus, com o capacete sob o braço, anda de um lado para o outro.

HAUS Gott in Himmel! Estou fodido! Mas o que aconteceu? Por que todo mundo fugiu? A fina flor do meu exército! Dando as costas e correndo... Estava faltando tão pouco! Um pouco mais e teríamos rompido. Quase tivemos João Fernandes na mão. Cheguei a vê-lo mas...

Blaer termina a atadura improvisada e olha com enfado para seu superior.

BLAER O problema não é mais João Fernandes, Coronel. O problema agora são todos

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eles. Eles estão jogando tudo nessa revolta. E o senhor sabe que não é pouco o que eles têm a perder. É a terra deles, seus filhos nasceram aqui, muitos deles nasceram aqui. Nossos homens estão aqui por seu soldo. Depois de três meses, só pensam em voltar para a Europa. E a maioria já tem mais de seis anos aqui. Este é o primeiro combate de verdade que enfrentam no Brasil. Não se parece em nada com os combates europeus ...

Haus reage como se Blaer o estivesse acusando.

HAUS E eu não sei? Achas que não cansei de avisar o Conselho? Queres que te mostre as cópias dos requerimentos que mandei ao Herren XIX para refrescar as tropas?

Blaer deixa de prestar atenção a Haus. Seu olhar se dirige à outra margem do rio, onde o combate continua. Seu olho brilha de ódio. EXT. MONTE DAS TABOCAS - NOITE Vista do alto do morro, a terra se recorta contra a última luz do dia. Na escuridão ao pé das tabocas, continuam a relampejar descargas de mosquetes, seguidas por seus estampidos. O céu carregado de nuvens responde com seus próprios relâmpagos e a chuva começa a cair, acompanhada de um longo trovão que reverbera pelo vale do Tapicurá. João Fernandes, Cardoso, Taborda, Veloso, Fagundes e Bezerra estão reunidos na segunda clareira, a meio do monte. Todos carregam equipamentos tirados ao inimigo, mosquetes, cantis, talabartes com espadas, chapéus e gibões estofados. O ânimo é de euforia contida sob pressão, mas escapando através de sorrisos e olhares. Os guerrilheiros, no entanto, não são tão disciplinados e dão vaza à sua alegria com gritos e gargalhadas.

JOÃO FERNANDES

Mas não vamos cantar vitória antes do tempo. Vamos ficar de olho, cada um nas suas emboscadas, se esses filhos da

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puta voltarem vão nos achar esperando. Agora vamos, cada um para seu posto! Mas antes vamos agradecer a quem nos deu esta primeira vitória. Frei Manuel!

O frade se encontra ali perto, com três outros clérigos. Atende com alacridade o chamado de João Fernandes.

FREI MANUEL Sim, meu General.

JOÃO FERNANDES Frei Manuel, o senhor não quer chamar um terço para a gente poder agradecer a Deus?

João Fernandes puxa um terço de dentro do gibão e se ajoelha. Os demais comandantes fazem o mesmo. O movimento é percebido e imitado pelos mais próximos. O frade começa a chamar o Credo:

FREI MANUEL Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do Céu e da Terra...

Na escuridão do morro, a resposta dos que se encontram à volta do frade se espalha como uma onda, juntando em seu percurso as vozes e a contrição de todos os guerrilheiros. EXT. VILA DE S. LOURENÇO - DIA O que restou do exército de Haus entra no vilarejo abandonado de São Lourenço, duas ruas no meio da estrada para o Recife. A pequena igreja domina as casas mirradas, outrora dedicadas ao comércio, hoje arrombadas e saqueadas. Um bando de macacos abandona uma das casas à chegada dos holandeses e foge para as árvores próximas, de onde os mais jovens ficam a provocar os soldados, até que Blaer arranca um mosquete das mãos de Hilt e dispara contra o bando. O estampido ecoa na mata úmida. Os macacos desaparecem guinchando. Haus, exausto da caminhada, vai direto para a igreja, entra pelas portas escancaradas e se joga no primeiro banco. Blaer, Denniger e o Ajudante de Ordens o seguem.

HAUS Senta, Blaer. Denniger, chama os engenheiros. Vamos fortificar esta igreja. Manda trazer os feridos cá para

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dentro. Quero uma contagem de cabeças imediatamente.

DENNIGER Sim, senhor!

Denniger sai. Haus se volta para o Ajudante de Ordens.

HAUS Depois que soubermos exatamente o número de baixas, quero mandar um relatório para o Conselho e pedir reforços. Vai atras do Denniger e traz logo essa contagem. Três cópias, três mensageiros por rotas diferentes. Não, é melhor fazer cinco. Isso, cinco. Agora vai!

Sai o Ajudante de Ordens. Durante esse tempo, Blaer ficou sentado do outro lado do corredor, os olhos voltados para dentro de si. Nem percebe a saída dos outros. Haus olha para ele.

HAUS Blaer!

Blaer tem um sobressalto e olha desorientado para Haus. Recompõe-se.

BLAER Desculpe, senhor, mas...

HAUS Escute aqui, Blaer, o que aconteceu foi um acidente. Caímos numa armadilha. Não foi nossa culpa. Há um espião no Conselho, que levou tudo de bandeja para João Fernandes. Eles estavam preparados. Eram em número muito maior do que imaginávamos. Tinham o domínio do terreno. Atacaram com uma ferocidade que nunca vi, em lugar nenhum do mundo. Mas foi isso: uma traição, uma armadilha. Agora vai ser diferente. Agora eles vão ver do que somos capazes!

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Blaer se reanima diante da determinação de Haus e seu olho volta a brilhar com a antecipação da vingança. EXT. CAMPINA - DIA Na manhã chuvosa, João Fernandes e seus coronéis caminham pelo campo de batalha. O chão da campina está coalhado de cadáveres de soldados holandeses. Alguns guerrilheiros ciscam entre os corpos em busca de espólios. No céu de chumbo, os abutres circulam preguiçosos.

JOÃO FERNANDES Alguém já fez a contagem?

BEZERRA Já, General, são setecentos.

JOÃO FERNANDES Setecentos? Só isso?

VELOSO E o senhor acha pouco, General?

JOÃO FERNANDES E quantos dos nossos?

CARDOSO Trinta e sete, General.

JOÃO FERNANDES Trinta e sete? Mas é um milagre!

BEZERRA É o que os padres estão dizendo. Mas aí ficaram Mateus Ricardo, e Martim Machado, e Antônio Cavalcanti, e Francisco Machado, e...

JOÃO FERNANDES Faça um rol e me apresente, esses são os heróis da Pátria. Jamais serão esquecidos.

CARDOSO Enquanto isso, não podemos ficar aqui esperando Haus voltar com reforços. Ele

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não vai engolir com facilidade esta derrota. Vai vir com tudo o que tem.

JOÃO FERNANDES Tens razão. Camarão e Henrique Dias estão por perto. Vamos continuar para Oeste, vamos juntar mais gente no caminho. Amanhã a gente chega no engenho do Ximenes e descansa por lá.

Alguns abutres mais ousados já começaram sua cautelosa dança de aproximação. João Fernandes olha em torno de si com ar de desagrado.

JOÃO FERNANDES Vamos enterrar os nossos e abalar daqui. Esses podem ficar pros urubus.

INT. TAVERNA FLIEGENDE SCHIFF - NOITE Cosmo Dias está sentado a um canto da taverna, saboreando uma sopa de ervilhas. Há pouca gente. Marianne traz uma travessa de carne assada. Aproveita os gestos do servir para roçar a anca em Cosmo. Um tumulto na porta chama-lhes a atenção.

HOMEM Haus! Haus está voltando.

Todos acorrem à porta. EXT. ESTALAGEM DE FRAU WIRTH - NOITE Sob a luz de archotes, o Coronel Haus cavalga à testa da coluna de soldados trôpegos. Na retaguarda, as carroças que transportam os feridos. À medida que avança, o cortejo vai adquirindo seguidores: familiares ou amigos das vítimas, que seguem as carroças a lamentá-los. O coro de murmúrios acentua o clima de derrota. Nos rostos sujos e ensangüentados dos soldados, a vergonha e a frustração. Cosmo se mistura à multidão que rapidamente se formou e acompanha o trajeto das carroças rumo ao hospital construído por Nassau. Distingue entre os guardas um dos soldados com que jantou no Fliegende Shiff. Aproxima-se.

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COSMO DIAS A proteção de Deus andou contigo, pelo que vejo, irmão?

SOLDADO Hã?

COSMO DIAS Ora, aí estás andando e a maior parte de teus companheiros tem que ser carregada. Que aconteceu?

SOLDADO Uma armadilha. Caímos numa armadilha. Uma maldita armadilha.

Cosmo tira da algibeira uma garrafa de aguardente, que passa ao soldado. Este dá uma olhada em volta e, discretamente, bebe um grande e agradecido gole. Cosmo faz um gesto para que fique com a garrafa.

COSMO DIAS E como foi essa armadilha? Quem a preparou?

SOLDADO João Fernandes, aquele canalha. Mas deixa estar! Eles vão pagar caro. Haus não vai engolir isso. Só vim acompanhar o comboio dos feridos e já estou voltando para São Lourenço.

COSMO DIAS Mas como foi isso? Tu mesmo disseste que os pernambucanos...

SOLDADO Foi uma emboscada, entendeste? Uma maldita emboscada! Eles saíam do nada, feito demônios enlouquecidos, cortando a torto e a direito, matando com espadas, facões, chuços, paus e pedras. Mas não te preocupes, matamos muitos deles. E agora vamos voltar lá e acabar com o resto.

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COSMO DIAS E João Fernandes, conseguiram pegá-lo?

SOLDADO Nada, o canalha ficou assistindo tudo lá do alto do morro. Ninguém chegou perto dele. Olha, deixa eu te contar...

O comboio vai se afastando, já não há qualquer aspecto militar em sua formação, parece uma coluna de refugiados andando sem destino. No meio das pessoas que seguem o cortejo, uma não tira o olho de Cosmo Dias: é Bernardino. EXT. HOSPITAL - NOITE As carroças vão sendo conduzidas ao pátio do hospital pela entrada lateral. Os soldados da guarda formam diante do edifício. O conhecido de Cosmo se despede, oferecendo um último gole que Cosmo recusa.

SOLDADO Se o sargento nos dispensar pelo resto da noite, vamos aparecer lá no Fliegende Schiff. Aí eu retribuo o schnapps que você me deu.

Os dois separam-se com sorrisos. Cosmo caminha entre as pessoas aglomeradas diante do hospital. Bernardino o segue. As pessoas rareiam, Bernardino deixa-se ficar mais para trás, mesclando-se às sombras. EXT. RUA DE MAURITZSTAAD – NOITE Uma lanterna esporádica fixada junto à porta de alguma casa ilumina o caminho molhado pela chuva. Cosmo avança pela rua. Entre as sombras atrás dele, pode-se ver Bernardino se esgueirando. Mas Cosmo percebe que há alguém a segui-lo. Prossegue normalmente até alcançar um beco, em cuja boca negra desaparece. Bernardino se acautela. Pé ante pé, aproxima-se da entrada do beco, desembainhando a espada silenciosamente. Com a arma em punho, vai se achegando ao canto do prédio, na tentativa de arriscar um olho pela borda. Um braço se ejeta da escuridão para agarrar o pulso que segura a espada. Outro traz uma mão em garra que segura Bernardino pelo pescoço, erguendo-o do chão. Bernardino começa a espernear, tentando atingir o corpo por trás dos braços, nas sombras, mas é como se nada houvesse ali e os braços fossem entidades autônomas. A mão que segura o pulso

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começa a apertá-lo como se fosse um torno. Bernardino começa uma espécie de rugido contido que vai se soltando com a dor até explodir num berro, logo após o ruído dos ossos do pulso partindo. O barulho da espada caindo nas pedras ecoa no beco. Cosmo puxa Bernardino para dentro da escuridão. Mal silhuetado contra a luz, Bernardino é empurrado contra a parede. A mão que o tem pela garganta aperta e faz calar o berro.

COSMO DIAS Se tentares alguma coisa, faço com tua goela o que fiz com teu pulso. Entendido?

Bernardino pisca para externar sua concordância. Cosmo afrouxa a mão e Bernardino toma um hausto angustiado.

COSMO DIAS Cavalcanti está aqui?

Bernardino sacode a cabeça.

BERNARDINO Cavalcanti está morto. Um soldado nosso amigo viu seu corpo estendido no mato. Se não tivesses avisado João Fernandes, Haus o teria pego desprevenido e seria ele estendido no mato e não meu compadre.

COSMO DIAS Há quanto tempo estás aqui?

BERNARDINO Desde ontem, por que?

COSMO DIAS Com quem falaste a meu respeito?

BERNARDINO Com ninguém, seu bosta, eu queria te pegar sozinho e levar tua cabeça para Hamel. Ela vale bem mil florins.

É aqui que Bernardino se apercebe do que falou e tenta consertar, mas já é tarde.

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BERNARDINO Quer dizer, falei, falei sim, falei para esse meu amigo e... sim, para o sargento, não, o sargento não, o capitão... dei uma descrição perfeita de ti, seu filho da puta...

Bernardino vê pela expressão de Cosmo que não o está convencendo. Num gesto desesperado, tenta arrancar um punhal de dentro do gibão, mas Cosmo aperta a mão e quebra-lhe a traquéia. Bernardino cai ao chão em convulsões, lutando desesperadamente para respirar. Cosmo se apiada de sua agonia. Ajoelha a seu lado, tira-lhe o punhal da mão, vira-o de bruços e insere a ponta da lâmina na base do crânio, secionando-lhe a medula. Bernardino morre instantaneamente. Cosmo revista-o e encontra a carta assinada por Haus. Guarda-a consigo, se ergue e se afasta. EXT. MAR DO RECIFE - NOITE Surfando numa jangada de dois troncos com um remo, um tupinambá avança para o norte entre as ondas do mar. Uma lua tímida espia de entre as severas nuvens. O índio avança célere pelas encostas das ondas que vêm se espatifar nos recifes. INT. TAVERNA FLIEGENDE SCHIFF - NOITE Cosmo e os soldados e burocratas habitués da mesa estão bebendo, inclusive o que Cosmo encontrou mais cedo escoltando os feridos.

SOLDADO 1 Mas é isso que eu digo: não devíamos ter deixado eles escolherem o terreno. Estava tudo muito arrumadinho...

SOLDADO 2 É, mas Haus despejou pólvora e chumbo naquele morro até dizer chega. Onde foi que eles se enfiaram? Hem?

BUROCRATA 1 Quero ver a cara de Haus.

SOLDADO 1 Olha, eu não queria estar na pele desses pernambucanos. Depois dessa, Haus vai ser muito mais cuidadoso. E mais filho da puta, é claro!

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Todos riem. O Burocrata 2, calado até aqui, interrompe a galhofa.

BUROCRATA 2 É, vão rindo. Mas eu não sei, não. Ouvi uma conversa hoje que me deixou preocupado.

BUROCRATA 1 O que?

BUROCRATA 2 O Major Hoogstraeten teria se vendido aos portugueses.

SOLDADO 1 Quem, Hoogstraeten? Do Forte de Santo Agostinho?

BUROCRATA 2 Sim, Hoogstraeten. Vocês sabiam que ele é católico?

Todos demonstram sua surpresa.

BUROCRATA 2 Pois é, e a mulher também. Dizem que ele comprou uma chácara no interior que é uma beleza. Diz que nunca mais deixa o Brasil. E Waalbeck acha que ele se vendeu aos portugueses, achando que a vitória deles está garantida. E diz que não se vendeu barato.

Marianne visita a mesa, finge arrumá-la para estar perto de Cosmo e trocar com ele olhares sugestivos.

SOLDADO 2 O Major Hoogstraeten?

BUROCRATA 2 O Major Dirk Hoogstraeten, sim senhor. O Secretário de Hamel me falou que estão pensando em mandar uma tropa lá amanhã para destituí-lo do comando.

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Cosmo finge estar desinteressado da conversa, ocupando-se em comer e beber. INT. GABINETE DE HAMEL – NOITE Um Coronel Haus descabelado, com o barro já seco nas botas e roupas, caminha de um lado para outro diante de Hamel e Waalbeck. O Major Blaer e o Ajudante de Ordens mantêm-se nas sombras da sala.

HAUS

E quem foi? Quem botou na mão de João Fernandes nosso plano de ataque? Bernardino então não procurou vocês? Mas eu mandei uma carta através dele, pedindo que o ajudassem a encontrar esse espião!

HAMEL O senhor já disse isso, Coronel. E Waalbeck já passou a descrição do suposto espião à Guarda. Quanto a mim...

HAUS

Como, suposto espião? Por acaso estou mentindo? Estou mentindo, Blaer? Não encontramos Bernardino no caminho?

De seu canto escuro, Blaer responde.

BLAER Sim, meu Coronel.

HAMEL Não disse que o senhor está mentindo, Coronel. Só que nunca vi nenhum ruivo grande rondando o meu gabinete. Meu Secretário muito menos. Mas o que me preocupa não é isso. É como vamos nos defender agora.

HAUS Sheisse! Não vou me defender, vou atacar. Esses portugueses não sabem o que os espera!

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Waalbeck observa com ironia a bravata de Haus. Ajeita seu corpo frágil na cadeira e fala baixinho.

WAALBECK Essa guerra não pode ser conduzida nos moldes a que estamos habituados na Europa. Esses brasileiros são uns primitivos. E é aí que está nossa vantagem, se soubermos aproveitá-la.

Wallbeck já tem a atenção de todos.

WAALBECK Eu continuo achando que o segredo está na relação deles com as famílias. Expulsamos toda aquela gente da cidade e o que fizeram? Em lugar de procurar socorro com os pais e maridos, instalaram-se por aí, nas fazendas dos amigos. E os pais e maridos nem tomaram conhecimento, ao contrário, preparam-se para nos receber. E que recepção, hem, Haus?

O Coronel olha com rancor a figura esquálida de Waalbeck mas se mantém calado.

WAALBECK Mas acho que devemos insistir por esse caminho: atacá-los em suas famílias. Só que agora, em vez de expulsá-las, vamos trazê-las como reféns para dentro dos muros. É primitivo o bastante para atingir esses animais. E vamos fazê-lo com o máximo de violência, para que saibam que não estamos brincando.

Ao cessar, a voz de Waalbeck deixa uma ressonância no silêncio que se segue. Blaer é o primeiro a se manifestar.

BLAER É uma excelente idéia, Conselheiro.

Haus olha com irritação para o subordinado, que ousa emitir sua opinião antes do chefe, mas sua autoridade já está minada.

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HAMEL Sim, considerando as baixas que tivemos, talvez uma ação inesperada como essa...

Vendo para que lado pende o Conselho e não tendo alternativa viável, Haus cede.

HAUS

Sim, talvez isso nos dê alguma vantagem...

WAALBECK Meus agentes já me passaram os locais onde estão escondidas as famílias de João Fernandes e dos principais cabeças. A lista estará à sua disposição amanhã pela manhã, Coronel. Mas não esqueça: o máximo de violência. Dadas as circunstâncias, acho que isso não será difícil para o senhor.

Haus engole o insulto velado, mas treme de raiva. INT. QUARTO DE COSMO DIAS - NOITE Cosmo entra em seu quarto. Solta os pombos das gaiolas imundas. As aves vêm pousar sobre ele. Num canto junto à bagagem, tira uns punhados de milho de um saco e os espalha sobre o chão. Os pombos pousam para comer. Enquanto cuida dos bichos, Cosmo conversa com eles.

COSMO DIAS Então já sabem a meu respeito. Saberiam antes, se esse idiota do Bernardino não quisesse a recompensa só para ele. Mas Haus já está na cidade, já informou o Conselho. Temos que ficar de olhos abertos, meus queridos, de olhos bem abertos...

Cosmo senta-se à mesa. Serve-se de uma genebra que ali está, tira do bolso do gibão a carta de Haus ao Conselho. Bebe. Termina de ler o texto e está colocando-o de volta no bolso quando percebe uma janela abrir-se lentamente. As pombas também, e sua revoada no espaço limitado do quarto alerta o recém chegado, que termina de abrir o postigo e salta para dentro do

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quarto. É ITAOBI, o índio que surfava na jangada o mar de Pernambuco. Cosmo, que já estava para saltar sobre o intruso, contém o ímpeto, surpreso.

COSMO DIAS Itaobi!

O índio salta do parapeito para o interior do quarto.

ITAOBI Doutor Cosmo!

COSMO DIAS Que fazes aqui?

ITAOBI Trago mensagem de Padre Vieira. Aqui.

Itaobi adorna seu lábio inferior com um botoque: uma pedra verde que dá origem a seu nome. Tira de um bornal de palha um envelope de couro e o entrega a Cosmo, que dele retira duas folhas de papel escritas em código.

ITAOBI E agora eu vou.

COSMO DIAS Não, espera. Pode haver resposta.

Cosmo senta-se à mesa, pega pena e papel, abre a Bíblia e se põe a decodificar a mensagem. Itaobi senta-se no chão, encostado à parede, tira do alforje um punhado de paçoca e fica a mastigar pacientemente. Cosmo vai decifrando o texto em voz alta.

COSMO DIAS ...Vidal... antecipa chegada... quinze de julho... mas é domingo! Depois de amanhã! ...baía de Tamandaré... junção com Hoogstraeten... mas é esse que vai ser destituído e preso! ... informar posição de João Fernandes...

Itaobi continua mastigando, indiferente ao monólogo do médico.

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COSMO DIAS E eu sei lá onde estará João Fernandes numa hora dessas! Tenho é que impedir que esse Hoogstraeten seja preso.

Cosmo pega uma nova folha, mergulha a pena no tinteiro e escreve. Depois, codifica a partir da Bíblia o que escreveu. Terminando, queima o original, dobra cuidadosamente a mensagem encriptada, coloca-a no envelope de couro e o devolve a Itaobi, que já sé ergueu do chão e, no mesmo gesto, enfia o envelope no bornal e galga o parapeito da janela.

ITAOBI Adeus, Doutor Cosmo.

COSMO DIAS Até breve, Itaobi.

Mas o índio já desapareceu na escuridão. Da janela, Cosmo contempla o céu ameaçador. Atrás dele, a porta se abre e entra Marianne, trazendo uma bandeja coberta por um pano, que deposita sobre a mesa. Enche o copo de Cosmo e serve-se também. Traz os dois copos para junto dele, à janela, e se aconchega familiarmente em sua ilharga. Relâmpagos cortam o céu, trovões ressoam longe.

MARIANNE Jacob, és médico de verdade?

COSMO DIAS Sim, Marianne, por que?

MARIANNE E como vieste acabar aqui, na América?

Cosmo deita a cabeça para trás e ri.

COSMO DIAS Ah, é uma longa história, Marianne. Não preferes me contar a tua?

MARIANNE Não há o que contar, fui paga para vir. Mas tu... Se lá, tu não és o que pareces ser. Tu és uma pessoa importante.

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Cosmo volta a rir.

COSMO DIAS A importância, Marianne, a importância. Quem são os homens mais importantes do mundo, hoje? O Rei Felipe de Espanha? O rei Luiz de França? O statthouter Príncipe de Nassau e Orange? O que achas que estão fazendo a essa hora?

Abraça Marianne e fala-lhe ao ouvido.

COSMO DIAS Achas que estão assim, como eu, sentindo esse cheiro gostoso, essa pele macia, esse calor delicioso? Não, estão reunidos com um monte de homens, falando de guerra e dinheiro.

Vai empurrando Marianne para a cama. Ela se deixa levar com um sorriso. MADRUGADA Cosmo Dias acorda à primeira luz. Marianne dorme a seu lado. Nu, levanta-se e apanha dois punhados de milho. As pombas descem de seus poleiros nas traves do telhado e pousam em seus braços ou adejam em torno de suas mãos para comer. Cosmo joga o resto do milho no peitoril da janela e deixa-as comer. Depois, uma a uma, pega-as nas mão e lança-as ao espaço. O bando se afasta rumo ao sul. Cosmo é surpreendido por Marianne, que o abraça por trás.

MARIANNE Por que soltaste as pombas, Jacob?

COSMO DIAS Não vou precisar mais delas.

MARIANNE E o remédio que preparas com o fel delas? Não vais fazer mais?

COSMO DIAS Eu vou embora, Marianne.

MARIANNE Embora? Mas mal chegaste!

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COSMO DIAS

É, mas tenho que partir. Recebi uma carta, tenho que voltar.

MARIANNE O que, uma carta da mulherzinha? Uma carta da patroa te chamando de volta?

COSMO DIAS Ora, Marianne, com ciúmes? Não, não sou casado. Não tenho essa fortuna.

MARIANNE Então me leva contigo.

Cosmo se surpreende com a intensidade do pedido. Afasta-se, vai despejar água na bacia e lavar o rosto. Começa a se vestir. Marianne percebe a evasiva e também se veste.

COSMO DIAS Marianne, não sei o que vai ser da minha vida, não posso reparti-la com ninguém.

MARIANNE Esquece, foi uma bobagem.

Cosmo a abraça com ternura.

COSMO DIAS Não, Marianne, não foi bobagem. Esses dias foram... as horas que passamos juntos... é como eu gostaria que o casamento fosse.

Marianne sorri, escondendo sua emoção sob a capa do bravado.

MARIANNE Casamento? Quem falou em casamento? Achas que eu agüentaria muito tempo contigo, aparecendo e desaparecendo feito um cometa, uma miragem? Ora, Jacob Rotwild, tenho coisa melhor a fazer nos dias que me restam sobre a Terra.

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Cosmo sorri aliviado pela mudança de clima.

COSMO DIAS Vem me ajudar com a bagagem.

E os dois começam a arrumar as poucas posses de Cosmo. MONTAGEM Sucessão de seqüências, diurnas e noturnas, em diversas fazendas, em que soldados holandeses comandados por Blaer e Denniger prendem as mulheres, mães e irmãs dos cabeças da rebelião, entre elas Dona Ana, a grávida mulher de João Fernandes. A criadagem e os homens presentes são sumariamente executados. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA A casa de grosso adobe mais parece um fortim. É enorme, dois andares erguidos sobre pesados pilares, deixando um espaço sob o piso onde se acomodam algumas galinhas e porcos. É cercada em toda a volta por uma varanda de madeira, a que se chega por uma larga escada. O terreno diante dela está transformado num lodaçal pelas chuvas e pelas botas dos soldados holandeses. Além dela, há a grande casa de engenho junto ao rio e a senzala, agora ocupada pelos potiguares de Haus. Sob a chuva, algumas sentinelas montam guarda desconsoladamente. Vêem-se alguns índios, fumando e conversando sob as árvores próximas. A chuva cai à vontade. Pelas janelas, pode-se ver que a casa está apinhada de soldados. INT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Haus e Blaer estão no segundo piso da casa. Observam pela janela. A chuva limita a visão a poucas dezenas de metros.

HAUS É, vamos ter que esperar passar a chuva para seguir para o Recife. Pegamo-las todas, então?

BLAER Todas as que estavam na lista de Waalbeck, senhor.

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HAUS Estou começando a achar que essa idéia de Waalbeck pode dar certo.

Blaer não responde. Segue Haus, que se dirige para a escada e começa a descer. À medida em que descem, começa-se a ouvir um choro longo e lamentoso de dezenas de vozes femininas. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA É esse mesmo som, muito arrefecido, que Cosmo Dias escuta em seu caminho pelo mato. Acautela-se e se dirige para ele. O vento lhe traz o cheiro dos índios, suas narinas se dilatam, seus olhos percebem à distância, pela mata rala, as figuras indistintas e o brilho ocasional da brasa de um cigarro. Como está com o vento e a chuva a seu favor, continua o arco que vinha fazendo. À sua frente, distingue através da chuva as faixas alaranjadas que adornam os uniformes holandeses. Para além, uma mancha escura na luz prateada da chuva, a casa forte de Ana Paes, de onde se evola o lamento. Cosmo tira do embornal uma faixa cor de laranja, que amarra sobre o gibão. Caminhando com naturalidade, aproxima-se da casa. Sob a chuva, os sentinelas se protegem como podem, escorados em suas armas, sob as grandes capas e largos chapelões. Uma ou outra figura se move como Cosmo nessa paisagem desfocada. Cosmo chega próximo à casa sem ser molestado. Pelas janelas estreitas, vê que os dois andares do casarão estão cheios de soldados. O lamento está mais nítido. Agora, é capaz de identificar sua fonte: a capela construída rente à casa. Cosmo olha em torno, ninguém está interessado nele. Deixa-se escorregar pela parede, aproxima-se quase de quatro da janela mais próxima olha para dentro. Lá estão as mulheres e crianças a rezar ajoelhadas, juntando ais doloridos à oração. Cosmo reconhece Dona Ana da miniatura que viu sobre a mesa de João Fernandes. Ergue-se dali e se afasta, levando a imagem do rosto sofrido de Dona Ana. EXT. ENGENHO DE MANUEL XIMENES - DIA João Fernandes também está acampado, no engenho de Manuel Ximenes. Igualmente aqui há um lodaçal e as criaturas se espalham sem sossego. Alguns, de tão exaustos, dormem na lama enrolados em sua capas. Mas os capitães têm suas sentinelas a postos e uma delas entra no terreiro dando o alarme.

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111.

SENTINELA Vem um grupo armado se aproximando. São bem uns quinhentos. Mas não são holandeses.

CARDOSO Como não?

João Fernandes e os Capitães se juntam a Cardoso e ao Sentinela.

JOÃO FERNANDES Devem ser Camarão e Dias. E já não é sem tempo.

Caminham todos na direção de onde veio o sentinela, as companhias se formando atrás de seus capitães, avançando pela chuva e pela mata. E de fato, logo encontram a vanguarda de Camarão e Dias. Africanos e tupinambás, vestidos de todas as maneiras possíveis com as combinações de três culturas. Gibões de damasco e colares de penas, argolas e ossos nos narizes, brincos nas orelhas, botoques nos lábios, peles de animais, rendas e contas. Vêm todos com ar festivo, os africanos já cantando e dançando, os tupinambás chorando ritualmente ao encontrar seus parentes. FELIPE CAMARÃO e HENRIQUE DIAS vêm ao encontro de João Fernandes e seus capitães. Após o abraço, todos os que têm armas de fogo disparam as suas, numa salva de regozijo. Tanto Felipe Camarão quanto Henrique Dias são maiores que João Fernandes. Somente Veloso ombreia com eles.

HENRIQUE DIAS E então, General, quais são as ordens?

JOÃO FERNANDES A ordem é de descansar, General.

FELIPE CAMARÃO Passamos pelas Tabocas. Viemos seguindo sua trilha.

HENRIQUE DIAS Bonito trabalho, João Fernandes. Quantos? Setecentos? Não paramos para contar.

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JOÃO FERNANDES É, setecentos. Mas ainda são muitos. O Conselho já mandou virem as tropas do Ceará e da Paraíba.

HENRIQUE DIAS Sim, mas nós agora também somos muitos. E seremos mais quando Vidal chegar.

JOÃO FERNANDES E Vidal chega?

FELIPE CAMARÃO Quando saímos de lá, Vidal estava certo de vir no final deste mês.

JOÃO FERNANDES Mas ainda não é dia 15!

FELIPE CAMARÃO Não importa. Se com teu exército liquidaste setecentos, com a gente junto eles podem mandar dez mil!

A bravata provoca outra salva de tiros. EXT. COSTA DE PERNAMBUCO - DIA Cosmo, montado em sua mula e puxando seu jumento, segue pela praia rumo ao sul. A chuva parou. Do lado do continente, o sol se põe por entre as nuvens. As ondas arrebentam nos recifes ao longo da costa. Na ponta da praia surge a silhueta de um forte, como um enorme crustáceo acachapado à beira d’água. Cosmo avança para ele. EXT. FORTE DE SANTO AGOSTINHO - DIA Logo é interpelado por uma sentinela de um dos parapeitos.

SENTINELA Quem vem lá?

COSMO DIAS Trago uma carta do Coronel Haus para o Major Hoogstraeten.

Cosmo tira a carta de Haus da algibeira e acena com ela.

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SENTINELA

Do Coronel Haus? E desde quando o correio do Coronel Haus anda à paisana?

COSMO DIAS Sou agente secreto.

SENTINELA Hm! Vá andando até o portão.

A essa altura, um bom número de soldados já havia acorrido ao muro da fortaleza. Na ponte sobre o fosso, o sargento da guarda o espera com seus alabardeiros. Cosmo Dias desmonta e se aproxima.

SARGENTO Deixe-me ver a carta.

COSMO DIAS Só posso entregá-la ao Major Hoogstraeten.

HOOGSTRAETEN

Pois pode entregá-la a mim.

HOOGSTRAETEN é um holandês alto e magro, o cabelo louro descorado pelo sol, o nariz ossudo despelando, uma expressão impassível de camponês.

COSMO DIAS Em particular, senhor.

Os olhos azuis de Hoogstraeten examinam Cosmo de alto abaixo. Dá meia volta e se encaminha para o interior do forte. EXT. SALA DE HOOGSTRAETEN - DIA Além de uma mesa de despacho, pouco há de militar na sala de Hoogstraeten. Um mapa da região, em grande escala, ocupa uma parede. Junto à janela que se abre sobre o mar, um cavalete exibe uma tela semi-acabada, grandes manchas azuis em movimento. Aparadores e balcões cheios de potes de pincéis e tintas. Cosmo encara Hoogstraeten com outros olhos. Estende a carta para o holandês, que anda até a janela para ler na luz lilás do fim do dia. Termina de ler e olha perplexo para Cosmo.

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114.

HOOGSTRAETEN Mas não entendo, esta é uma carta de Haus para Hamel e não para mim. E que história é essa de espião que ele narra aqui?

À medida em que fala, Hoogstraeten vai se alarmando, procurando se afastar de Cosmo e se aproximar do talabarte com a espada pendurados junto à porta.

COSMO DIAS Estou me pondo em suas mãos, Major. O homem de quem fala esta carta sou eu.

HOOGSTRAETEN O senhor? Mas e por que me diz...?

COSMO DIAS Para que confie em mim, sabendo quem eu sou, do mesmo modo que estou confiando no senhor, sem saber quem é.

HOOGSTRAETEN Pare de falar por enigmas, homem, que história é esta?

COSMO DIAS O Conselho já sabe de seu acordo com a Bahia. Amanhã chega aqui uma tropa para prendê-lo e levá-lo para o Recife.

Hoogstraeten fica pálido. Seu pomo de Adão sobe e desce vezes seguidas.

COSMO DIAS E Vidal de Negreiros antecipou sua vinda. Desembarca depois de amanhã e vem juntar-se ao senhor, conforme o combinado. Então é uma escolha entre ir preso para o Recife amanhã ou no comando de sua companhia, para conquistar a cidade depois de amanhã.

Hoogstraeten parece estar grogue com o impacto da notícia. Passa a mão pelo rosto, esfrega os olhos, respira fundo, anda até a janela. Volta-se bruscamente para Cosmo Dias.

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HOOGSTRAETEN E o senhor, quem é?

COSMO DIAS Meu nome é Dias, Cosmo Dias. Sou o homem que Bernardino de Carvalho viu no acampamento de João Fernandes, como o Coronel Haus descreve na carta que o senhor acabou de ler.

HOOGSTRAETEN Disse que seu nome é Dias. Então não é holandês?

COSMO DIAS Não, sou português. Na verdade, posso dizer que já sou brasileiro. Há mais de vinte anos que vivo aqui.

HOOGSTRAETEN Pois eu vivo aqui há cinco e já me sinto brasileiro.

Um fio de simpatia parece ligar os dois homens. Mas Hoogstraeten logo cai na real.

HOOGSTRAETEN Disse que amanhã chega uma tropa para me prender? Como sabe?

COSMO DIAS Já é voz corrente entre os soldados. O Conselho se assustou com a derrota de Haus e resolveu eliminar áreas de risco. O senhor é uma delas.

HOOGSTRAETEN Que derrota de Haus?

COSMO DIAS Haus pretendia pegar João Fernandes de surpresa. Já sabia onde ele estava acampado, há traidores entre os rebeldes.

Cosmo percebe a gafe e o efeito da palavra “traidores” em Hoogstraeten. Finge não notar.

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116.

COSMO DIAS

Por um desses acasos, tive acesso ao gabinete de Hamel. Major, a segurança na sede da Companhia é não existente. Entrei, achei em cima da mesa um mapa de Haus detalhando sua estratégia para o Conselho. Levei o mapa para João Fernandes, que abandonou imediatamente o lugar. Voltei para Recife. Dois dias depois, Haus chega à cidade derrotado, com carroças cheias de feridos. Caiu numa armadilha preparada por João Fernandes. Perdeu setecentos homens.

HOOGSTRAETEN Setecentos homens? Mas João Fernandes não tem mais que trezentos homens com ele!

COSMO DIAS Sua informação está velha. Dizem que já tem mais de mil homens em armas.

HOOGSTRAETEN Armas? Que armas? Não têm trezentos mosquetes entre eles!

COSMO DIAS Mesmo que não tivessem, agora têm as armas dos setecentos que mataram. E mais as que os soldados que fugiram largaram para trás.

Hoogstraeten tenta absorver a informação de Cosmo.

COSMO DIAS Enfim, agora é guerra, mesmo. Haus vai concentrar no Recife o máximo de tropas que tiver. Eles sabem que reforços vão chegar da Bahia, que Camarão e Dias já entraram no Brasil Holandês. Ele precisa desta posição, deste forte, para controlar a fronteira com a Bahia. Ele não pode deixar o comando nas suas mãos, tendo as suspeitas que tem.

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HOOGSTRAETEN Mas como eles sabem a meu respeito?

COSMO DIAS João Fernandes sabia?

HOOGSTRAETEN Sabia. Estive com ele mais de uma vez.

COSMO DIAS Pois então. Os informantes que o Conselho tem entre os rebeldes são íntimos de João Fernandes. Mas o que interessa agora é o que o senhor pretende fazer.

HOOGSTRAETEN Vidal desembarca quando?

COSMO DIAS Depois de amanhã.

HOOGSTRAETEN Está claro que vou resistir. Tenho que manter esta posição para Vidal. Na verdade, tenho que pegá-los antes que cheguem aqui.

COSMO DIAS Os seus homens estão com o senhor nessa empreitada?

Hoogstraeten sorri.

HOOGSTRAETEN Sim, meus homens estão comigo. Nenhum deles quer voltar para a Europa. Quase todos têm filhos com mulheres daqui, alguns têm suas chacrinhas, são felizes, não querem que nada mude. Não se preocupe, Senhor Dias, Vidal vai me encontrar no comando. Agora, se me permite, tenho providências a tomar. Fique à vontade, vou mandar trazer algum refresco para o senhor.

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118.

Hoogstraeten sai. Cosmo Dias se aproxima da tela sobre o cavalete, o céu e o mar, ondas e nuvens, grossas pinceladas que parecem pôr as formas em movimento. MONTAGEM Sob o comando de Blaer, os holandeses saqueiam as casas de engenho. Carregam prataria e jóias, quadros e instrumentos musicais, tapeçarias e sedas. O vandalismo é escandaloso. Incêndios consomem casas. Numa igreja, um grupo de soldados destrói a golpes de espada as imagens de madeira dos santos. No quintal de uma casa, um holandês cava buracos. Já cavou dezenas. Finalmente, encontra um baú cheio de moedas. Festeja. Num torvelinho de violência, mulheres são ultrajadas e violentadas por grupos de soldados e civis. Blaer e Denniger estão entre eles. No porão da casa forte de Ana Paes, Dona Ana, mulher de João Fernandes, toma conforto da criança em seu ventre. EXT. CASA DE COSMO DIAS - DIA O menino Tadeu vê chegarem em bando as sete pombas de Cosmo Dias. Fica espantado e se põe a chamá-las. Lembra-se do milho e o tira às mancheias do saco. As aves pousam a seu redor em algazarra. Tadeu tenta ver se alguma delas traz o cilindro de metal. Nenhuma. O menino hesita, dá uma corridinha, pára, olha para as pombas e finalmente parte às carreiras. INT. APOSENTOS DO PE. VIEIRA - DIA Tadeu irrompe na cela de Vieira para encontrá-lo falando em tupi com Itaobi. O índio entrega ao padre o envelope de couro. Enquanto retira o relatório de Cosmo, fala com Tadeu.

PE.VIEIRA. O que foi, menino, fala logo.

TADEU As pombas, padre. As pombas.

PE.VIEIRA. E o que têm as pombas, Tadeu?

TADEU Voltaram todas, padre, as sete de uma vez.

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PE.VIEIRA. As sete de uma vez? Espera aí.

Pe. Vieira lê as páginas de Cosmo em silêncio. Sua expressão se anuvia. Ao ler o último trecho, um leve sorriso se desenha.

PE.VIEIRA. Está tudo em ordem, Tadeu, esta aqui é uma carta dele, trazida por Itaobi. Ele soltou as pombas, não precisa mais delas. E escreveu dizendo que é para tomares conta delas direitinho.

TADEU Ele escreveu isso aí? Ele escreveu meu nome? Posso ver meu nome, padre?

Vieira aponta para o menino o trecho final da carta. Entre cifras ininteligíveis estão as letras grafadas em romano: TADEU. O menino olha pasmo para o papel.

TADEU Meu nome. Doutor Cosmo escreveu meu nome. Tadeu.

E bate no peito com orgulho.

TADEU Pode dizer pro Doutor Cosmo que eu vou cuidar direitinho das pombas dele, pode deixar.

E sai zunindo da sala. INT. IGREJA DA CONCEIÇÃO DA PRAIA - NOITE Uma missa cantada tem lugar na grande igreja. Uma orquestra de escravos toca sopros e cordas na galeria. O coro das carmelitas enche a nave de som cristalino. É uma das raras ocasiões em que homens e mulheres se misturam, portanto as atenções não estão voltadas nem para o padre que celebra nem para o coro que canta. Num dos esconsos junto ao altar, Dom Antônio e Pe. Vieira confabulam.

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DOM ANTÔNIO Então, se Vidal chegar a tempo, pode juntar-se a João Fernandes e marchar sobre o Recife!

PE.VIEIRA. Sim, se não cair direto na boca do lobo. Espero que Cosmo Dias consiga avisar Hoogstraeten.

DOM ANTÔNIO Vidal não é idiota, vai tomar suas precauções. Imagine, padre, Pernambuco pode ser libertado no primeiro golpe!

PE.VIEIRA. Os holandeses vão se trancafiar no Recife. A cidade é inexpugnável, eles podem se manter ali por meses a fio.

DOM ANTÔNIO Quanto mais cedo for o desenlace, melhor. Temo que Dom João volte atrás se as coisas se arrastarem.

PE.VIEIRA. Exatamente. Quando estive em Lisboa, já se falava em vender o Brasil para as Províncias Unidas. E não só o que eles têm ocupado, mas tudo!

Padre Vieira chamou sobre si a atenção dos circunstantes. Sorri e faz uma vênia, abre o missal e disfarça. Um burguês aproveita para abordar Dom Antônio. O coral em barca no Te Deum e a missa vai para seu final. EXT. PRAIA - DIA Uma companhia de holandeses vem marchando pela praia. O céu continua carregado, mas fachos de luz conseguem penetrar as nuvens sombrias. Há uma sonolência no ritmo em que se move a coluna, no ruído repetitivo de metais, nos passos sobre a areia molhada. Aproximam-se de um recife que rompe a areia, uma grande formação rochosa carcomida pela água, com entrâncias e reentrâncias que lhe dão ares de castelo.

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121.

É daí que uma saraivada de mosquetaria rompe a modorra da cena. Uma nuvem de fumaça logo envolve o recife, de onde os tiros continuam espocando. Os soldados atacados caem como moscas. Aproveitando a surpresa, Hoogstraeten sai de trás das rochas com seus homens e cai sobre os remanescentes da coluna. A luta é curta e brutal. Alguns tentam fugir pela praia mas são imediatamente alcançados e mortos. Do ponto mais alto do rochedo, Cosmo Dias contempla a carnificina. A chuva volta a cair. EXT. FORTE DE SANTO AGOSTINHO - NOITE O exército de André Vidal está acampado diante do forte. A multidão de homens se estende pela praia, pontilhada de fogueiras. As nuvens estão sendo varridas do céu. Um quarto de lua fria preside a cena. EXT. PÁTIO DO FORTE - NOITE Hoogstraeten, Cosmo Dias e Vidal estão em pé, formalmente, cada um com uma taça de vinho na mão. Os oficiais de Hoogstraeten confraternizam com os de Vidal. Há um clima civilizado. Vidal conta uma história a Cosmo enquanto Hoogstraeten escuta com ar divertido.

VIDAL E foi assim: o Major esteve na Bahia, numa embaixada, quando as coisas começaram a esquentar por aqui. Na primeira ocasião em que peguei ele sozinho, fiz a proposta. Eu sabia que Hoogstraeten ia topar, ele é diferente dessa cambada. É católico, para começar. Casou com uma brasileira, sabias? E como vai ela, Major, a dona...

HOOGSTRAETEN Isabel, Dona Isabel vai bem. Está esperando mais uma criança.

VIDAL Ora, a senhora de João Fernandes também.

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122.

COSMO DIAS Foi bom falares nela, André, tenho péssimas notícias. Não falei antes porque...

VIDAL Sim, sim, as negociações foram demoradas, não é Hoogstraeten?

Uma lufada de vento agita o cabelo do holandês, que aproveita o gesto de segurá-lo para disfarçar seu desconforto. Vidal pisca o olho para Cosmo e fala.

VIDAL Sim, que péssima notícia é essa?

COSMO DIAS Haus está acampado a uma légua daqui, numa casa forte. O porão da casa está cheio de mulheres portuguesas. Tenho a impressão que a mulher de João Fernandes está entre elas.

VIDAL O que? Dona Ana?

COSMO DIAS Acho que ela, sim. Vi seu retrato sobre a mesa de João Fernandes. De qualquer modo, é uma mulher grávida e não é a única. Muitas velhas e crianças, também.

HOOGSTRAETEN Então Haus se rebaixou a isso? Vingar-se em mulheres e crianças! O que ele quer, usá-las como reféns?

VIDAL Só pode ser isso. Já tentaram tudo com João Fernandes, comprá-lo ou matá-lo, mas não conseguiram. Agora Haus acha que pode dobrá-lo tendo sua mulher cativa! Mas nós não vamos deixar, não é mesmo, Major?

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123.

HOOGSTRAETEN Não mesmo! Amanhã cedo estaremos visitando o Coronel Haus, a vergonha de qualquer exército.

EXT. CANAVIAL - DIA João Fernandes, Camarão e Dias conduzem o que já é um exército considerável pelo terreno ondulado do canavial. Andam pela estrada que serve habitualmente aos carros de boi. Há um expressivo número de cavaleiros. As chuvas deram grande vigor às canas, que ondulam ao vento. O tempo parece ter firmado. A estrada chega ao topo de um outeiro e os homens têm diante de si a paisagem pernambucana, de outeiros e bambuzais, grupos de palmeiras e capões, bosquetes e braços de rios. Ao longe, Felipe Camarão percebe um movimento. Firma o olho e vê uma minúscula figura montada se deslocando em sua direção. João Fernandes nota a concentração do tupinambá e puxa a luneta do cinturão. Foca-a na figura.

JOÃO FERNANDES Parece ser um holandês. Fagundes!

Domingos Fagundes se adianta.

FAGUNDES Sim, meu General.

JOÃO FERNANDES Vai com tua gente interceptar aquele holandês. Traz ele pra mim. Vivo e inteiro, ouviu? Quero interrogá-lo pessoalmente.

Fagundes sorri, faz sinal a seu pessoal e sai em galope acelerado na direção da figura que continua se aproximando. Em pouco tempo, Fagundes e seus cavaleiros alcançam e cercam o recém-chegado. Trocam algumas palavras e se põem em movimento, retornando ao corpo do exército. À medida que se aproximam, João Fernandes reconhece Cosmo Dias.

JOÃO FERNANDES É o espião do Padre Vieira. Mas o que estará fazendo aqui?

O grupo chega diante do General, cercando Cosmo.

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JOÃO FERNANDES Cosmo Dias, não é? O que está fazendo aqui? Trouxe-me outro mapa?

COSMO DIAS Bom dia, General. Não, mas trago-lhe boas e más notícias.

João Fernandes perde o ar galhofeiro e fica à espera. Cosmo prossegue.

COSMO DIAS As boas notícias são que André Vidal desembarcou e já tomou posse do forte de Santo Agostinho. Neste momento, está se deslocando para a casa forte de Ana Paes, onde o Coronel Haus está acampado. Essas são as boas notícias.

JOÃO FERNANDES Haus está a uma légua daqui? Então, o que estamos esperando? Vamos pegá-lo!

COSMO DIAS Há também a má notícia, General.

JOÃO FERNANDES E qual é ela?

COSMO DIAS Haus prendeu várias mulheres. Entre elas está sua esposa.

JOÃO FERNANDES O que? Ana? Haus prendeu Ana?

COSMO DIAS Sim, General. Ela e várias outras mulheres e crianças.

As emoções que explodem em João Fernandes são tão intensas que contagiam sua montaria. O cavalo se agita, caracola, ameaça empinar. João Fernandes o controla com dificuldade enquanto solta uma fieira de impropérios. Cardoso se dirige a Cosmo Dias.

CARDOSO Quantos soldados Haus tem com ele?

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COSMO DIAS

Mais de quinhentos, se contarmos os índios.

CARDOSO Então nós o batemos três por um. É agora que vamos acertar contas com aquele safado.

João Fernandes consegue finalmente dominar sua montaria, mas não suas emoções. Seu transtorno é tamanho que não encontra interlocutor digno ao seu redor. João Fernandes dirige-se então a Deus, batendo na Cruz da Ordem de Cristo bordada na opa que lhe cinge o peito.

JOÃO FERNANDES Senhor, aí está! É o próprio Demônio que me confronta. Por defender a verdadeira Fé contra esses hereges, por lutar pela Coroa de meu Rei, por trazer em meu peito a Cruz de Cristo. Por isso ele me ataca assim, roubando minha mulher e meu filho que está por nascer. Mas eu conto com o Senhor, meu Deus. Dai-me forças agora, ó Senhor, para que eu destrua essa criatura de Satanás, esse Coronel Haus!

Com lágrimas correndo-lhe pela cara contorcida, João Fernandes saca a espada e dá rédeas ao cavalo, que salta e frente e dispara pela estrada enlameada. Cardoso esporeia sua montaria e sai atrás do chefe quase que simultaneamente. Os demais seguem o exemplo e a cavalaria, de espada em riste, berrando seus brados de guerra, explode atrás de João Fernandes. A infantaria, aquele caos organizado de brancos, negros e índios, de Europa, África e América, abala atrás da vanguarda, brandindo uma variedade de armas brancas e de fogo, também lançando aos céus seus gritos de guerra.

EXT. CASA FORTE DE ANA PAES – DIA Soldados holandeses preparam a partida: os cavalos dos oficiais estão sendo encilhados, os bois estão sendo atrelados às carroças que transportam o rancho e a munição. Um sol pálido banha a cena.

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INT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Haus, Blaer, Denniger e o CAPITÃO LISTRY estão fazendo uma refeição antes de tomarem o caminho do Recife. Riem e brincam. Embora seja ainda de manhã, a refeição inclui muitas garrafas de cerveja e vinho. Haus está visivelmente embriagado, assim como boa parte dos oficiais. EXT. PROXIMIDADES DA CASA FORTE - DIA Domingos Fagundes e mais CINCO HOMENS avançam pela vegetação que margeia a estrada. À frente, surge o portão que conduz ao pasto da casa forte. DOIS SOLDADOS montam guarda, conversando e segurando indolentemente os mosquetes. A um sinal de Fagundes, os seis saltam sobre os sentinelas. Um deles é imediatamente degolado por Fagundes, mas o outro ainda consegue erguer o mosquete e disparar, atingindo no braço um dos guerrilheiros. Mas outro o atravessa de lado a lado com a espada. O ferido é rapidamente retirado dali por um dos guerrilheiros. Fagundes e os outros três permanecem imóveis, atentos. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA O ruído do disparo interrompeu a atividade no terreiro. Todos escutam, para ver se o rebate se repete. Silêncio. Alguém diz uma frase, que é respondida com uma risada. Gradualmente, todos voltam a seus afazeres. INT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Denniger e Blaer estão à porta, para ver o que se passa. Diante da aparente normalidade, voltam-se para o interior da sala. Haus serve-se de outra dose de genebra, que vira de um gole.

HAUS Outro alarme falso?

BLAER O pessoal está nervoso.

HAUS Em poucas horas estaremos no Recife. Do que eles têm medo? João Fernandes está longe daqui.

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BLAER É melhor irmos andando. Já é quase meio dia.

Um violento tiroteio irrompe lá fora, acompanhado de uma gritaria medonha. Todos correm para as janelas. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Os SOLDADOS HOLANDESES correm pelo terreiro, fugindo à mosquetaria que vem do pasto ao lado da casa forte. À frente dos PERNAMBUCANOS, João Fernandes veio formar no meio do pasto abandonado com seus MOSQUETEIROS, sua CAVALARIA e seus INFANTES. Domingos Fagundes, com seus GUERRILHEIROS, e Felipe Camarão, comandando seus TUPINAMBÁS, avançam para o nordeste, circundando a casa e fechando-lhe a saída para o Recife. Henrique Dias, com seu ESQUADRÃO DE AFRICANOS, fecha a pinça pelo noroeste, cercando a casa forte pelo lado do ENGENHO. Nesse meio tempo, os MOSQUETEIROS HOLANDESES conseguem se organizar e responder ao fogo, dando cobertura para que os CAPITÃES metam em forma suas COMPANHIAS, os SARGENTOS aos berros, até que têm seus homens em forma. Esse é o momento que os pernambucanos escolhem para atacar, e o fazem com a violência habitual. O exército de João Fernandes é visivelmente superior em número e quando os holandeses vêem aproximar-se o esquadrão de Henrique Dias, tocando atabaques e cantando, os dentes serrilhados, as cicatrizes tribais, os olhos saltando das órbitas, largam as armas e correm para a proteção da casa. É constrangedor o tumulto na escada para se chegar à porta. INT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Da janela do segundo andar, Haus vê diante de si os três batalhões do exército de João Fernandes. E, para sua incredulidade, vê aproximar-se na distância o EXÉRCITO de Vidal de Negreiros. Volta-se para o interior da sala com expressão de total perplexidade. Blaer percebe a incompetência do chefe e toma a iniciativa.

BLAER Denniger, organize os mosqueteiros nas janelas. Coloque os outros tantos para recarregar. Listry, vamos tentar trazer a munição da carroça para cá. Vamos.

Os três saem da sala, deixando Haus emborcando a garrafa de genebra.

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EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA André Vidal, à frente de seus capitães, entra no pasto e se dirige a João Fernandes. Há um ar medieval no exército disposto no campo, com seus estandartes e lanças, seus cavaleiros briosos. A retirada dos holandeses para o interior da casa forte criou um vácuo que a chegada de Vidal preenche, trazendo ainda mais alegria aos guerrilheiros, que soltam um grande alarido. Vidal retém seu cavalo diante de João Fernandes.

VIDAL Mas então, João Fernandes? Acabou chegando antes de mim!

JOÃO FERNANDES O amor e o ódio me deram asas, André Vidal. Esse miserável tem minha mulher presa aí dentro. E as de vários aqui, mulheres e mães.

João Fernandes está totalmente focado na casa. Deixa o amigo ali parado para aproximar-se com o cavalo da casa forte, berrando.

JOÃO FERNANDES Sai daí e vem brigar como homem, Haus, seu covarde. Vais ficar aí escondido atrás das saias de nossas mulheres?

Uma saraivada de balas responde ao desafio. O cavalo de João Fernandes se assusta enquanto as balas redondas levantam tufos de terra ao seu redor. Os mosqueteiros de André Vidal, em grande número e armados com modernas armas biscainhas, revidam o fogo. João Fernandes recua para as fileiras de seu exército, onde o espera Vidal.

VIDAL Agora te aquieta aí e deixa nossa artilharia trabalhar. Quero ver do que são capazes esses mosquetes biscainhos.

Os mosqueteiros desferem uma barragem ininterrupta de tiros contra a casa. Os grandes pelouros fazem buracos nas paredes, estilhaçam os postigos da janela, causam um estrago terrível. Os holandeses tentam revidar das janelas, mas muitos são atingidos. LISTRY e um GRUPO DE SOLDADOS faz uma sortida da casa, sob a cobertura de CINCO MOSQUETEIROS que ousaram sair para a varanda.

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Os soldados correm em direção à carroça, onde os barris de pólvora já haviam sido acomodados. Os bois de tração estão lutando contra suas amarras, em pânico. Listry corta a corda que prende um dos barris à carroça. Um dos bois é atingido e arria. Os outros redobram seus esforços. Um soldado pega o barrilete liberado por Listry e corre em direção à casa, mas é atingido, cai e o barrilete rola de suas mãos. Listry corta outra corda, mas neste momento uma bala acerta no barril e toda a carga de pólvora explode. Os brasileiros festejam. Um índio corre em direção à carroça em chamas, abaixa-se, apanha do chão o barrilete de pólvora deixado cair pelo soldado morto e o traz de volta para sua linha, triunfante.

A fuzilaria prossegue até que Blaer assoma a uma das janelas segurando a mulher e a sogra de João Fernandes. Em outras janelas, vultos de mulheres são empurrados para diante por soldados que se ocultam atrás delas. Vidal dá ordem imediata de cessar fogo. Um grande silêncio cai sobre o lugar, entrecortado apenas pelo choro das mulheres.

JOÃO FERNANDES Covarde! Vem lutar como homem, seu filho da puta!

VIDAL Cala-te, João. Vamos ter que resolver isso na diplomacia. João Batista!

Um SARGENTO VELHO, com um TAMBOR a tiracolo, se aproxima.

JOÃO BATISTA Pronto, meu General.

VIDAL Arma a bandeira branca e vamos lá parlamentar com o Coronel.

JOÃO FERNANDES Parlamentar? Eu não vou parlamentar com esse cachorro. Não viste o que ele fez? Usar as mulheres como escudo!

VIDAL Foi para isso que ele as capturou, João Fernandes. Para usá-las como escudo. Mas também como reféns. Ele quer negociar, por isso ele mostrou o seu

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trunfo. Ele sabe que a situação é insustentável. Podemos sitiá-lo aqui e ainda nos sobram forças para atacar o Recife. Ele quer negociar.

JOÃO FERNANDES E quais são os termos?

VIDAL Os mais simples possíveis: as vidas deles em troca das delas.

JOÃO FERNANDES E Haus e sua corja vão embora, livres?

VIDAL Achas um preço alto a pagar por tua mulher e teu filho?

A cara de João Fernandes se turva e ele dá meia volta ao cavalo. Vidal faz um sinal a João Batista, que já tem a bandeira branca desfraldada de uma haste presa ao talabarte. O sargento começa a tocar o tambor num ritmo de marcha lenta e se põe a caminhar em direção da casa. Em seu cavalo, Vidal segue o velho sargento. Subitamente, há um disparo da casa que atinge João Batista nos peitos, jogando-o para trás. Muitos outros tiros se seguem ao primeiro. Um estojo de madeira, em que Vidal carrega duas pistolas no arção da sela, é atingido por um balaço e se espatifa, lançando as armas ao chão. O cavalo de Vidal é atingido por dois balaços e ajoelha. Vidal salta da sela e cata as duas pistolas, que dispara enquanto corre. É só o que espera a mosquetaria baiana para começar a atirar, dando cobertura ao chefe. Vidal volta para junto de João Fernandes, furioso.

VIDAL Traidor! Canalha! Filho de uma puta! Matou-me o João Batista, o miserável. E meu Corisco! Traidor. Ah, canalha!

JOÃO FERNANDES Não se negocia com o Diabo, André Vidal. Com ele tem que ser até a morte. Cardoso!

CARDOSO Sim, General.

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JOÃO FERNANDES Manda gente na casa de engenho. Lá deve ter lenha seca. Vamos meter fogo nessa casa, tirar esses ratos daí e matá-los um a um.

Vidal e Cardoso se chocam com a ordem de João Fernandes. SENZALA Nesse momento, os potiguares de Haus tentam uma fuga em massa da senzala rumo ao mato, mas são rechaçados pelos africanos de Henrique Dias. Correm de volta à proteção da longa casa, deixando vários mortos para trás. Uns poucos se enfurnam na mata e desaparecem. CASA DE ENGENHO Taborda, Veloso, Fagundes, CORDEIRO e CARDOSO encontram a lenha junto à fornalha. Está um pouco úmida.

VELOSO É até melhor que esteja um pouco úmida, no começo faz mais fumaça do que fogo, assusta mas dá tempo de eles pensarem um pouco e resolverem se entregar. E poupar a vida dessas mulheres. João Fernandes é louco!

FAGUNDES É, mas eu não pretendo poupar a vida de nenhum holandês, belga, alemão, francês, inglês e o que sair de dentro daquela casa, assim como um dia vão sair também do Recife, como ratos. E eu quero estar lá para degolar um por um.

Veloso sorri da bravata do rapaz e começa a juntar um feixo de lenha. Todos fazem o mesmo. Mais alguns guerrilheiros chegam para ajudar. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Os mosqueteiros baianos dão cobertura aos pernambucanos que correm da casa de engenho para junto da casa forte. Os holandeses revidam. A cavalaria brasileira circunda a casa, disparando mosquetes. Voltam para pegar armas carregadas e

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retornam ao círculo infernal que traçam em torno do forte. Um dos holandeses que arriscam meter a cara numa janela tem sorte e consegue descarregar um tiro, que atinge Henrique Dias na coxa. O africano sente o balaço, vê o buraco aberto na braga, o sangue correndo, mas continua cavalgando. A bala, no entanto, atravessou sua perna e o cavalo agora desaba, com a bola de chumbo enfiada na ilharga. Dias salta da sela a tempo e, capengando, corre para a escada que dá acesso à varanda da casa forte. Os holandeses tentaram uma sortida mas encontraram a escadaria já ocupada pelos pernambucanos, com Fagundes à testa. O combate ali se trava corpo a corpo, homem a homem. Henrique Dias já foi visto pelos seus homens, que acorrem aos gritos para o combate. Os holandeses não tem alternativa a não ser recuar e tentar fechar novamente a porta, o que conseguem com o sacrifício de muitas vidas. SOB A CASA Veloso já tem um isqueiro aceso e está tentando pôr fogo na madeira úmida. Cordeiro puxa da algibeira um maço de cartas amarradas por um laço, que distribui entre os companheiros. Todos têm seus isqueiros de pedra e mecha. Gradualmente, as páginas cor de rosa alimentam pequenas labaredas entre a fumaça, que se torna rapidamente mais densa, a ponto de expulsar os porcos, patos e galinhas que ainda estavam por ali. Também os guerrilheiros têm que recuar, pois há bastante lenha sob a casa e a varanda de madeira já começa a pegar fogo, apesar de úmida. INT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA A mosquetaria baiana cessou. A fumaça começa a se infiltrar pelas falhas do assoalho e pelas janelas estraçalhadas. A casa está apinhada de soldados, barriga a barriga, como sardinhas em lata. O calor é insuportável e se agrava com a fogueira que começa a crepitar sob a casa. Um soldado solta um grito de terror e logo se instala o pandemônio entre os homens encurralados. ANDAR SUPERIOR DA CASA FORTE Haus e Blaer, sujos de pólvora e caliça, vêem a fumaça entrar pela janela e ouvem a gritaria dos soldados. Largam seus mosquetes e correm para a porta. A massa de soldados avança tão logo a porta é aberta. Ã frente deles, Denniger é a imagem do pânico.

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DENNIGER

Temos que nos render, Coronel, a casa está em chamas, não podemos ficar aqui, vamos morrer como ratos, diga a ele, Major, temos que nos render, esses brasileiros são loucos, pouco importa que as mulheres estejam aqui, eles vão queimá-las junto com a gente, eles são loucos...

Os soldados atrás de Denniger fazem ruídos e gestos de frenético apoio. Blaer grita.

BLAER Cala-te, Denniger!

O berro de Blaer cria um momento de silêncio. Blaer fuzila Haus com o olhar. Vacilante, o Coronel se aproxima da janela. Num gesto formal, tira o chapéu da cabeça e acena com ele três vezes, um largo gesto lento de capitulação. TERREIRO Os brasileiros, assistindo a grande casa lentamente pegar fogo, soltam um berro uníssono de vitória ao ver o gesto do inimigo admitindo a derrota. Tambores e atabaques ressoam, cornetas estridem, estandartes são jogados para o alto, a salva de tiros lançada para os céus parece não terminar. Vidal, João Fernandes, os capitães, todos exultam. EXT. CASA FORTE DE ANA PAES - DIA Começa a anoitecer. O exército rebelde está formado em torno da casa forte, os mosqueteiros com suas armas apontadas e mechas acesas, os comandantes reunidos sob seus estandartes, aguardando. Lentamente, a porta se abre e Haus sai, passando por sobre os cadáveres ali caídos. O Coronel traz a sua espada estendida nas palmas das mãos, em mais um gesto formal de submissão.

JOÃO FERNANDES Pode parar aí mesmo, seu cachorro. Antes de qualquer coisa, mande as mulheres para fora. Depois cuidamos do resto.

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Haus hesita, vacila, mais zonzo do que bêbado, enfia a cara para dentro e dá uma ordem. Tem dificuldade em voltar à postura anterior, portar a espada dessa forma desacostumada o desconcerta. As mulheres emergem da porta e correm para seus maridos, filhos e pais. A sogra de João Fernandes, ao passar por Haus, desfere-lhe um tabefe que lhe joga a cabeça para o lado e o faz dar um passo atrás. Dona Ana, com sua barriga, não pode correr. João Fernandes atiça seu cavalo e vai a seu encontro, erguendo-a do chão para sua sela num movimento de absoluto carinho. Dona Ana se achega ao peito do marido e rompe num choro convulsivo.

JOÃO FERNANDES Eles te fizeram alguma coisa, meu amor? Abusaram de ti?

A mulher sacode a cabeça enfaticamente, sem parar de chorar.

DONA ANA Não, ninguém me fez nada, eu estava com medo, achava que nunca mais ia te ver, que eu nunca veria o nosso filho, que ele nunca viria ao mundo...

Dona Ana torna a meter o rosto no peito do marido, abraçando-o com força. João Fernandes a ajeita melhor diante de si e gira o cavalo, para encarar o Cel. Haus.

JOÃO FERNANDES E então Coronel, não é o senhor quem dizia que ia fazer de mim seu lacaio? Que ia me acorrentar à estrebaria para eu tratar dos seus cavalos? Agora eu é que tenho o senhor aqui debaixo dos meus pés, e sua vida está nas minhas mãos. Agora o senhor vai saber que a crueldade e a tirania não podem prevalecer.

Haus tenta arregimentar algum resquício de dignidade, mas em vão. Com a cabeça baixa, vai descendo os degraus da casa forte, seguido de Blaer, Denniger e três outros capitães, em seguida os tenentes, os alferes, os sargentos. Aos OFICIAIS SUPERIORES é concedido portarem suas armas. Os NÃO-COMISSIONADOS, contudo,

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têm que entregar suas armas aos vencedores, que vão montando sarilho após sarilho de mosquetes, espadas e piques. Desde sua tentativa desesperada de fuga, os POTIGUARES se mantiveram encerrados na senzala, de onde saem agora, tendo presenciado o fim das hostilidades. Saem cabisbaixos e sem jeito, como crianças arteiras. Estes são os mesmos que praticaram chacinas e estupros entre os pernambucanos. Entregam suas armas, como os holandeses. Mas, quando deparam com o terço de Felipe Camarão, percebem que não vão ser perdoados.

FELIPE CAMARÃO Meus parentes! Será que ainda posso chamá-los assim? Depois que traíram a nossa Santa Mãe a Igreja? Depois que se aliaram com nossos inimigos, mostrando a eles os nossos caminhos, deitando armadilhas, matando nossas mulheres, estuprando nossas filhas, vocês não são mais meus parentes. São um bando de cães traiçoeiros e por isso não merecem mais viver.

A autoridade do tupinambá é tamanha que os potiguares permanecem imóveis. De tal forma que, quando os homens de Camarão se aproximam, não reagem e, desarmados, se deixam degolar passivamente. Quatro deles, no entanto, conseguiram ocultar armas brancas e, com elas, vendem caro suas vidas. Taborda é um dos capitães que morre nessa luta. Com um tiro de pistola, Camarão dá cabo de um potiguares, que avançava com a lâmina em riste. Em minutos, duzentos corpos de índios se juntam aos dos soldados abatidos durante o cerco. As mulheres brasileiras, junto a seus maridos, estimulam o holocausto, exudando ódio e vingança. Os africanos de Henrique Dias parecem aprovar a limpeza étnica. Blaer aproveita o momento para tentar fugir, mas Fagundes o alcança. Esgrimem. Blaer é mais experiente, mais forte. Seus golpes fazem tremer a figura jovem de Fagundes. Mas o brasileiro é muito rápido e atrevido e consegue estocar o holandês, tirando-lhe sangue. Mais alguns passes e, como num passo de dança, Fagundes penetra a guarda de Blaer e corta-lhe o pescoço. Os guerrilheiros de Fagundes, que assistiam atentos e prontos a intervir se perigasse o chefe, jogam seus chapéus para o alto. Fagundes faz uma pose.

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INT. CASA DE ENGENHO – NOITE Cosmo Dias, um MÉDICO FRANCÊS e um MÉDICO ITALIANO improvisaram aqui um hospital de campanha. Há poucos homens incapacitados, a maioria ainda está ambulante e espera sua vez de ser cauterizado ou costurado, dependendo do tipo de ferimento. Henrique Dias se aproxima, mancando um pouco.

HENRIQUE DIAS

Tem óleo quente aí, doutor?

Cosmo interrompe o curativo que está fazendo no antebraço de um soldado e aponta para o caldeirão de óleo fervente na boca da fornalha, agora acesa.

COSMO DIAS

Sim senhor, General. É para o senhor mesmo?

HENRIQUE DIAS É, e pode deixar que eu mesmo faço o serviço. Já estou acostumado.

Henrique Dias tira o chapéu e senta numa pilha de lenha. Com um punhal, termina de rasgar a calça. O ferimento é um buraco de três centímetros de diâmetro no músculo, vermelho escuro na carne negra. Enrola um chumaço de algodão na ponta da faca e o mergulha no óleo fervente. Imediatamente, enfia a bola fumegante na ferida, produzindo um chiado de fritura e a fumaça correspondente. A expressão com que Henrique Dias segura a dor é quase orgásmica. Cosmo Dias se aproximou e agora estende ao general uma atadura limpa. Henrique Dias agradece com um sorriso e enfaixa a perna.

COSMO DIAS Amanhã de manhã gostaria de dar uma olhada nesse ferimento, General, se não se importar.

HENRIQUE DIAS Amanhã de manhã estaremos indo acampar às portas do Recife, Doutor. Mas não se preocupe, eu cuido bem de mim.

Dando uma risada, Henrique Dias sai mancando para a noite. Cosmo termina o último curativo. Olha em torno, a casa de engenho está vazia. Cata seus instrumentos, enfia-os no embornal, sai.

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EXT. CASA DE ENGENHO – NOITE A mula e o jumento de Cosmo Dias estão amarrados a uma árvore perto do rio, que corre manso sob o quarto de lua. Cosmo se dirige para a margem do rio, tira as roupas sujas de pólvora e sangue e mergulha na água. Banha-se, sai, pega uma muda de roupas numa das matolas, encontra junto uma liga de rendas. Sorri, leva-a ao rosto, cheira-a. O sorriso se alarga. EXT. PASTO DA CASA FORTE - NOITE Montado em sua mula, puxando o burrico, Cosmo Dias vai deixando a cena da batalha. Passa pelos soldados de Hoogstraeten, que estão enterrando seus compatriotas numa vala comum. Pouco adiante está Hoogstraeten, supervisionando o trabalho. Vem ao encontro de Cosmo.

HOOGSTRAETEN E então, Doutor, vai nos deixar? Agora que as coisas estão ficando boas?

COSMO DIAS Não, não tenho mais serventia para a guerra. Vou voltar para minha vidinha em Salvador, cuidar de meus pombos, de meus doentes.

HOOGSTRAETEN Como não tem mais serventia? Se o senhor não tivesse ido me avisar, a história poderia ter sido diferente.

COSMO DIAS Serviço de mensageiro. Estou muito velho para isso. Adeus, Major, e felicidades. Essa guerra vai ser curta.

HOOGSTRAETEN Não sei, não, Doutor, meu povo é muito obstinado, teimoso, birrento, como vocês dizem. Se o Conselho segurar o Recife, as Províncias Unidas vão mandar reforços, pode ter certeza. E se perderem aqui, vão para as Cortes de Genebra processar o Rei de Portugal.

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Cosmo dá risada. Estende a mão ao holandês.

COSMO DIAS Essa é uma guerra que eu queria ver, uma guerra de advogados. Bem, Major, se esta guerra terminar logo, eu venho visitá-lo em sua chácara, em seu novo país. Bem-vindo ao Brasil.

Cosmo se afasta com a mula a passo, buscando o portão que leva à estrada. Atrás ficam os soldados e Hoogstraeten com sua macabra tarefa. EXT. ESTRADA – MADRUGADA Ao divisar a estrada, a mula se entusiasma e rompe num trote alegre. O burrico esforça-se por acompanhá-la. Assim percorrem um trecho de estrada, a luz começando a se insinuar por entre as árvores. Logo Cosmo observa diante de si um grande grupo de pessoas em movimento. Vai se aproximando, pois o ritmo dessa quase multidão é ditado pelos que andam a pé. Carros de boi carregados de mantimentos vão rangendo atrás. Cosmo os alcança e vê que são os prisioneiros holandeses sendo escoltados para a Bahia. Diminui a marcha de sua mula e ultrapassa lentamente a coluna, observando os prisioneiros, em sua maioria jovens. Vão acorrentados uns aos outros, como escravos africanos. Estão sujos e ensangüentados. São tangidos pelos piques dos baianos como se fossem gado. Há um ar de fatalidade em suas expressões. Cosmo chega à cabeça da coluna e lá está Haus, acorrentado como os outros, perplexo, resmungando.

HAUS Não está certo, não está certo. Pelas convenções internacionais, eu tenho direito a portar armas. Eu tenho direito ao meu cavalo. E ninguém pode me acorrentar. Ninguém. Não está certo, não está certo...

Conduzindo a coluna, montado num belo baio de arreios reluzentes, portando uma espada de magnífica lavra num talabarte marroquino está Fagundes.

FAGUNDES Doutor, também vai à Bahia?

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COSMO DIAS Fagundes, o Coronel Haus... esse é o cavalo dele?

FAGUNDES É. Viu que beleza? E essa espada? Aço alemão, Doutor, aço alemão!

COSMO DIAS Mas Fagundes, o direito internacional...

FAGUNDES Foda-se o direito internacional, Doutor. O Brasil não é internacional, o Brasil é o Brasil. Esse filho da puta veio aqui pra nos roubar, não foi? É, roubar o que era nosso. Trouxe toda essa gente, todo esse armamento, pra que? Pra foder com a gente! Então, Doutor, eles têm que dar graças a Deus de ainda estarem vivos. E de serem despachados de volta pra Holanda, ou Inglaterra, ou França, ou Alemanha, ou seja lá de onde vieram esses filhos da puta. Por mim, Doutor, degolava tudo. Aqui e agora.

Cosmo Dias contempla a ira estampada na cara do rapaz. Dá de ombros, espicaça a mula e avança pela estrada, levando um dedo à aba do chapéu. Deixa para trás Fagundes e sua carga. Alcança o topo da estrada, de onde se divisa o mar. A aurora começa a dividir o horizonte. Os primeiros raios de sol se lançam, iluminando por baixo as nuvens que persistem. Cosmo pára, arrebatado pela vastidão da paisagem.

COSMO DIAS O Brasil. O Brasil...

FIM

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