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AUTO DA ÍNDIA À Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundada sobre que uma mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia, e ela de pesar está chorando e fala-lhe uma sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha Dona Leonor. Era de MDIX anos. Personagens: Moça, Ama, Castelhano, Lemos, Marido Moça: Jesu! Jesu! Que é ora isso? É porque se parte a armada? Ama: Olhade a mal estreada! 1 Eu hei-de chorar por isso? Moça: Por minha alma, que cuidei E que sempre imaginei Que choráveis por nosso amo. Ama: Por qual demo ou por qual gamo 2 Ali amora chorarei? Como me leixa 3 saudosa! Toda eu fico amargurada! Moça: Pois porque estais anojada? 4 Dizei-mo, por vida vossa! Ama: Leixai-me ora, eramá! 5 Que dizem que não vai já. 1 A mal estreada é uma forma de a Ama insultar a criada. Ser «mal estreada» quer dizer que a Moça perdeu a virgindade com homem de baixa condição. 2 O gamo é um animal que possui chifres e esta é uma das metáforas utilizadas para simbolizar o marido a quem a mulher engana. 3 O mesmo que deixa. 4 Anojada: o mesmo que entristecida. 5 A expressão é da gíria da época e o seu equivalente hoje será «não me aborreças e desaparece».

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AUTO DA ÍNDIA

À Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundada sobre que uma mulher, estando já

embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não

ia, e ela de pesar está chorando e fala-lhe uma sua criada.

Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha Dona Leonor.

Era de MDIX anos.

Personagens: Moça, Ama, Castelhano, Lemos, Marido

Moça: Jesu! Jesu! Que é ora isso?

É porque se parte a armada?

Ama: Olhade a mal estreada!1

Eu hei-de chorar por isso?

Moça: Por minha alma, que cuidei

E que sempre imaginei

Que choráveis por nosso amo.

Ama: Por qual demo ou por qual gamo2

Ali amora chorarei?

Como me leixa3 saudosa!

Toda eu fico amargurada!

Moça: Pois porque estais anojada?4

Dizei-mo, por vida vossa!

Ama: Leixai-me ora, eramá!5

Que dizem que não vai já.

1 A mal estreada é uma forma de a Ama insultar a criada. Ser «mal estreada» quer dizer que a Moça perdeu a virgindade com homem de baixa condição. 2 O gamo é um animal que possui chifres e esta é uma das metáforas utilizadas para simbolizar o marido a quem a mulher engana. 3 O mesmo que deixa. 4 Anojada: o mesmo que entristecida. 5 A expressão é da gíria da época e o seu equivalente hoje será «não me aborreças e desaparece».

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Moça: Quem diz esse desconcerto?

Ama: Dixeram-me por mui certo

Que é certo que fica cá

O Concelos me faz isto.6

Moça: Se eles já estão em Restelo

Como pode vir a pêlo?7

Melhor veja eu Jesu Cristo.

Isso é quem porcos há menos8

Ama: Certo é que bem pequenos

São meus desejos que fique...

Moça: A armada está muito a pique9

Ama: Arreceo al de menos10

Andei na maora e nela11

A amassar e a biscoutar12

Pera o demo o levar

á sua negra canela13

e agora dizem que não.

Agasta-se-me o coração 6 Concelos é a abreviatura de Vasconcelos, e este Concelos é o homem que «me faz isto», ou seja quem a avisou de que o marido já não embarca para a Índia. 7 «Como pode vir a pêlo» é mais uma expressão da gíria da época que significa em português moderno «como pode isso ser possível?». 8 Totalmente opaca para o português de hoje a expressão significa esse facto não é de recear. A expressão original é uma versão truncada do provérbio tradicional «quem a porcos há medo as moutas lhe roncam» e foi utilizado por Gil Vicente no Auto da Lusitânia, vv. 526-527. 9 A expressão «a pique» significa que o navio está prestes a levantar ferro. 10 A expressão significa: receio que já não parta. 11 A expressão é equivalente a «trabalhei que nem uma escrava». 12 A Ama afirma que preparou pão e biscoitos para o Marido comer durante a viagem. Esta era uma prática comum, preparar biscoitos e carne salgada ou fumada para os marinheiros que embracam nas naus das Descobertas. 13 Negra canela é uma metonímia que designa a Índia. Toma-se a parte (neste caso a especiaria) pelo todo (o território), a fim de referir de forma crítica o objectivo da viagem. Aqui a Ama refere a canela – uma especiaria da Índia – para simbolizar a viagem. Preste atenção especial ao adjectivo negra que qualifica «canela». O sentido pejorativo da qualificação pretende atingir a viagem e não a especiaria.

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Que quero sair de mim.

Moça: Eu irei saber se é assim.

Ama: Hajas a minha benção.

Vai a Moça e fica a Ama dizendo

Ama: A Santo António rogo eu

Que nunca mo cá depare:

Não sinto quem não se enfare14

De um diabo Zebedeu.15

Dormirei, dormirei,

Boas novas acharei.

S. João no ermo estava16

E a passarinha cantava.

Deus me cumpra o que sonhei.

Cantando vem ela e leda17

Moça: Dai-me alvíssaras, Senhora18

Já vai lá de foz em fora.

Ama: Dou-te ua touca de seda.

Moça: Ou, quando ele vier,

Dai-me do que vos trouxer.

Ama: Ali, muitieramá!19

Agora há-de tornar cá? 14 Não sinto quem não se enfare significa «não há quem não se aborreça. 15 Na edição do Auto datada de 1586 aparece a variante «de um diabo como o meu». 16 Preste atenção à relação existente entre o sono, o sonho e a referência biblíca a São João e à passarinha (que aqui simboliza o Espírito Santo): a Ama deseja que durante o seu sono se opere um milagre através do sonho – o desaparecimento do Marido lá, nas remotas paragens. 17 Leda significa alegre. 18 Alvíssara é um prémio dado a quem traz boas notícias. 19 Muitieramá é uma expressão de revolta e que literalmente se traduz por «em hora má».

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Que chegada e que prazer!

Moça: Virtuosa está minha ama!

Do triste dele hei dó.

Ama: E que falas tu lá só?

Moça: Falo cá com esta cama.

Ama: E essa cama, bem, que há?

Mostra-me essa roca cá:

Siquer fiarei um fio.

Leixou-me aquele fastio20

Sem ceitil.21

Moça: Ali, eramá22

Todas ficassem assi.

Leixou-lhe pera três anos

Trigo, azeite, mel e panos.

Ama: Mau pesar veja eu de ti!23

Tu cuidas que não te entendo?

Moça: Que entendeis? Ando dizendo

que quem fica assi sem nada,

coma vós, que é obrigada...24

Já me vós is entendendo?...

Ama: ah, ah, ah, ah, ah, ah! 20 A expressão «leixou-me aquele fastio» é mais uma forma da Ama se referir ao Marido de modo insultuoso. Fastio é todo aquele cuja presença provoca enjoo. 21 Ceitil é uma unidade de conta próxima do tostão. Nesta fala a Ama pede a roca para fiar porque poderá assim ganhar algum dinheiro. Ela queixa-se que o Marido a deixou na miséria. 22 A expressão significa «em má hora o diga». 23 A expressão significa «maldita sejas!». 24 O segundo sentido deste momento do diálogo insinua-se na relação que a Moça estabelece entre a afirmação de pobreza da Ama que, nesta condição, será obrigada a prostituir-se.

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Est' era bem graciosa,

quem se vê moça e fermosa

esperar pola ira má!25

I se vai ele a pescar

mea légua polo mar...

Isso bem o sabes tu:

quanto mais a Calecu!26

Quem há tanto de esperar?27

Melhor, Senhor, sê tu comigo

à hora de minha morte,

que eu faça tão peca sorte!28

Guarde-me Deus de tal perigo.

O certo é dar a prazer.29

Pera que é envelhecer

esperando pelo vento?

Quant' eu por mui nécia sento

a que o contrairo fizer.30

Partem em Maio daqui

quando o sangue novo atiça

parece-te que é justiça?

Melhor vivas tu amém

e eu contigo também.

Quem sobe por essa escada?

Castelhano: Paz sea nesta posada.

Ama: Vós sois? Cuidei que era alguém.31

25 «Ira má» é mais uma expressão pejorativa que a Ama utiliza para se referir ao Marido. 26 Neste segmento do diálogo a Ama confirma o que a Moça insinua, ou seja, que engana o Marido (a ira má) sempre que ele vai à pesca, a meia légua da costa. Agora nesta viagem, sabendo-o em Calecut, na Índia, ela confirma a intenção de se divertir com quem muito bem lhe aprouver. 27 A situação de «viúva de homem vivo», está neste verso exemplarmente tipificada. 28 A expressão significa que a Ama está disposta a não se sujeitar à abstinência sexual a que a ausência do Marido obriga. 29 «Dar a prazer» clarifica a intenção de se divertir com outros homens. 30 A Ama afirma considerar tolas as mulheres que não procedem como ela. 31 Atente na forma desdenhosa como a Ama recebe o Castelhano.

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Castelhano: Asegun esso soy yo nada.32

Ama: Bem, que vinda foi ora esta.

Castelhano: Vengo aqui en busca mia,33

que me perdi en aquel dia

que os vi hermosa y

honesta,

y nunca mas me topé.34

Invisible me torné,

y de mi crudo enemigo;35

el cielo, empero, es testigo

que de mi parte no sé.

Y ando un cuerpo sin alma,

um papel que lleva el viento

un pozo de pensamiento

una fortuna sin calma.36

Pese al dia em que nasci;

vos e Dios sois contra mi,

e nunca topo el diablo.

Reís de lo que yo hablo?37

Ama: Bem sei eu do que me ri.

Castelhano: Reísvos del mal que

padezco,

32 O Castelhano acusa o remoque e irrita-se pelo facto de a Ama o considerar «nada». 33 Atente na linguagem do Castelhano e não esqueça que na corte portuguesa se falava português e castelhano, simultaneamente. 34 O mesmo que «nunca mais me reencontrei». 35 Jogo de palavras típico de Petrarca: o Castelhano considera que o Amor o transformou em inimigo de si próprio. 36 No que diz respeito a estilo e atitudes comportamentais esta persongem adopta o padrão de amor cortês e neste conjunto de versos lamenta-se de que ficou de tal forma apaixonado pela Ama «desde o dia em que a viu» que se considera «um corpo sem alma». 37 Note que o efeito que esta declaração de amor inflamado tem sobre a Ama é apenas uma gargalhada. Esta atitude deixa o castelhano desconcertado.

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reísvos de mi desconcierto,

reísvos que teneis por cierto

que miraros non meresco.38

Ama: Andar embora.39

Castelhano: Ó mi vida y mi señora,

luz de todo Portugal,

teneis gracia especial

para linda matadora.40

Supe que vuesso marido41

era ido.42

Ama: Ant'ontem se foi.

Castelhano: Al diablo que lo doy

el desastrado perdido.43

Que mas Índia que vos,

que mas piedras preciosas,

que mas alindadas cosas,

que estardes juntos los

dos?44

No fué él Juan de Çamora.

Que arrastrado muera yo,45

si por quanto Dios crió

os dexara media hora.

Y aunque la mar se

38 O Castelhano procura não perder terreno e insiste nas estratégias do amor cortês afirmando que ela se ri porque considera que ele não é sequer digno de a mirar. 39 Expressão que equivale a «continua, continua». 40 «Matadora» é um adjectivo que qualifica a Ama como mulher que inspira amores fatais. 41 Supe: o mesmo que soube. 42 Neste verso o Castelhano revela o motivo da visita: alguém o informou que o Marido tinha embarcado. 43 O Castelhano considera o Marido um desastrado, um homem que está perdido. 44 Atente na crítica que o Castelhano faz às viagens marítimas. Segundo ele não há Índia que valha o estarem juntos os dois, marido e mulher. A crítica vicentina às consequências sociais dos descobrimentos está aqui patente. 45 O adjectivo «arrastado» refere-se à pena mortal de morrer arrastado pelas ruas.

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humillara

y la tormenta cessara,

y el viento me obedeciera

y el quarto cielo se abriera,

un momiento no os dexara.46

Mas como evangelio es esto:

que la Índia hizo Dios,

solo porque yo con vos

pudiesse passar aquesto.

Y solo por dicha mia,

por gozar esta alegria

la hizo Dios descobrir:47

y no ha mas que dezir

por la sagrada Maria!

Ama: Moça, vai àquele cão

que anda naquelas tigelas.48

Moça: Mas os gatos andam nelas.

Castelhano: Cuerpo del cielo con vos!

Hablo en la tripas de Dios49

Y vos hablaisme en los

gatos!

Ama: Se vós falais desbaratos50

em que falaremos nós?

Castelhano: No me hagais derreñegar 46 Note o excesso da linguagem típica da galanteria cortesã que tradu o arrebatamento da paixão: nem o mar, nem as tormentas, nem os ventos obrigariam o Castelhano a abandonar a Ama «sequer meia hora». 47 Note o humor finíssimo que Gil Vicente coloca na fala do Castelhano: segundo ele Deus mandou descobrir a Índia apenas para que o Castelhano gozasse dos prazeres da companhia da Ama. 48 A Ama revela total desrespeito e desinteresse pelo discurso pinga-amor do Castelhano e manda a Moça afastar o cão que come numa tijela. 49 O mesmo que: falo de assuntos sagrados. 50 O mesmo que «se vós dizeis disparates».

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o hazer un desatino.

Vós pensais que soy divino?

Soy hombre y siento el pesar.51

Trayo de dentro un león

metido en el corazón:

tiéneme el alma dañada

d'ensangrentar esta espada

en hombres, que és

perdición.52

Ya Dios es importunado

de las almas que le embio;

y no es en poder mio

dexar uno acuchillado.53

Dexé bivo allá en el puerto

un hombrazo alto e tuerto,

y despues fuylo encontrar;

pensó que lo iba a matar

y de miedo cayó muerto.54

Ama: Vós queríeis ficar cá?55

Agora é cedo ainda;

tornareis vós outra vinda

e tudo bem se fará.

Castelhano: A que horas me mandais?

Ama: Às nove horas e nô mais.

51 Os arrebatamentos da paixão vivida e sentida segundo as normas do amor cortês fazem do Castelhano uma personagem cómica: nestes versos ele questiona a Ama dizendo-lhe que se ela julga que ele é de estirpe divina e que não sente os desaforos, pois está enganada, ele é um simples mortal. 52 A gabarolice do Castelhano é de um cómico irresistível: afirma ter um leão no coração e a sua ferocidade é tamanha que só deseja ensanguentar a espado no corpo de muitos homens. 53 O crescendo da gabarolice do Castelhano leva-o a afirmar que até mesmo Deus já está um pouco «importunado» com as almas dos defuntos que ele, Castelhano, matou. Note a palavra acuchillado, o mesmo que «espadeirado». 54 O momento máximo da fanfarronice acontece quando ele narra o episódio de um homem que ele poupou a vida e que ao voltar-se a cruzar com ele, no porto, morreu só com o susto de o ver. 55 Note que a Ama não se interessa minimamente pelas fanfarronices e vai directa ao que lhe interessa.

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E tirai ua pedrinha,

pedra muito pequenina

à janela dos quintais.

Entonces vos abrirei

de muito boa vontade:

pois sois homem de verdade,

nunca vos falecerei.56

Castelhano: Sabeis que ganais en

esso?

El mundo todo por vuesso!57

Que aunque tal capa me veis,58

tengo mas que pensareis:

y no lo tomais en gruesso.

Bésoos las manos Señora,

Voyme con vuessa licencia

Mas ufano que Florencia.59

Ama: Ide e vinde muit'embora.60

Moça: Jesu! Como é rebolão!61

Dai, dai ò demo o ladrão!

Ama: Muito bem me parece ele.

Moça: Não vos fieis vós naquele,

Porque aquilo é refião.62

56 O mesmo que nunca vos faltarei, ou seja, estarei sempre pronta a amar-vos. 57 O Castelhano, felicíssimo, promete à Ama todo o mundo como presente. 58 A referência à capa, que na encenação aparece rota, é uma forma de contraste entre as palavras ricas e a fatiota pobre do Castelhano. 59 Esta referência à bela cidade de Florença, rica e poderosa, serve como termo de comparação que o Castelhano encontra para demonstrar o seu contentamento. 60 O mesmo que em boa hora. 61 O mesmo que fanfarrão. 62 Rufião é um desordeiro que só gosta de arranjar brigas.

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Ama: Já lh'eu tenho prometido.63

Moça: Muito embora, seja assi.

Ama: Um Lemos andava aqui

Meu namorado perdido.

Moça: Quem? O rascão do sombreiro?64

Ama: Mas antes era escudeiro.65

Moça: Seria, mas bem safado;

não suspirava o coitado

senão por algum dinheiro.66

Ama: Não é homem dessa arte.

Moça: Pois inda ele não esquece?

Há muito que não parece.67

Ama: Quant'eu dele não sei parte.

Moça: Como ele souber, à fé,

que nosso amo aqui não é,

Lemos vos visitará.

Lemos: Hou da casa!

Ama: Quem é lá?

63 Já lhe prometi que ia dormir com ele. 64 O mesmo que o vadio que usa um chapéu de abas largas. 65 A Ama tenta valorizar o estatuto social do Lemos afirmando que ele já foi escudeiro. 66 A Moça revela que também este namorado é muito pobre. 67 O mesmo que aparece.

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Lemos: Subirei?

Ama: Suba quem é.

Lemos: Vosso cativo, Senhora!68

Ama: Jesu! Tamanha mesura!

Sou rainha por ventura?

Lemos: Mas sois minha emperadora.

Ama: Que foi do vosso passear

com luar e sem luar

toda a noite nesta rua?69

Lemos: Achei-vos sempre tão crua,70

que vos não pude aturar.

Mas agora como estais?

Ama: Foi-se à Índia meu marido,

e depois homem nacido

não veo onde vós cuidais;

e por vida de Constança71

que se não fosse a lembrança...72

Moça: Dizei já essa mentira.

Ama: ...que eu vos não consentiria

entrar em tanta privança. 68 O Lemos demonstra logo na primeira fala dominar com maestria a arte de saber galantear uma mulher, ao afirmar ser seu cativo, ou seja, seu escravo. 69 A Ama queixa-se de que o Lemos nnuca mais rondou a casa, de noite. 70 O Lemos queixa-se de que a Ama foi crua (o mesmo que cruel) e que essa foi a razão que o levou a não rondar mais a sua porta. 71 A Ama revela o seu nome – Constança – e jura por sua vida que nenhum homem entrou em sua casa desde que o Marido partiu. 72 A Ama afirma que recebe o Lemos como recordação grata dos dias em que ele a cortejou.

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Lemos: Pois que agora estais singela73

que lei me dais vós, Senhora?

Ama: Digo que venhais embora.74

Lemos: Quem tira àquela janela?75

Ama: Meninos que andam brincando

e tiram de quando em quando.

Lemos: Que dizeis, Senhora minha?

Ama: Metei-vos nessa cozinha,

que me estão ali chamando.

Castelhano: Abrame, vuessa merced,

que estoy aqui a la verguenza;76

esto úsase en Siguenza:77

pues prometeis, mantened.

Ama: Calai-vos, muitieramá,

até que meu irmão se vá

dissimulai por i entanto.

Ora vistes o quebranto?78

Andar, muitieramá!79

Lemos: Quem é aquele que falava?

73 O mesmo que sozinha. 74 O mesmo que bem-vindo sejas. 75 O Lemos ouve pedrinhas a bater nas vidraças. 76 Verguenza, o mesmo que exposto ao ridículo. 77 Cidade de Castela, de onde provavelmente o Castelhano seria natural e onde quem promete, mantém a palavra dada. 78 Ao usar a palavra quebranto a Ama considera o Castelhano como um mau olhado, uma assombração. 79 O mesmo que desaparece daqui!

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Ama: O Castelhano vinagreiro.

Lemos: Que quer?

Ama: Vem polo dinheiro

Do vinagre que me dava.

Vós quereis cá cear?

Eu não tenho que vos dar.

Lemos: Vá esta moça à Ribeira80

e traga-a cá toda inteira81

que toda se há-de gastar.

Moça: Azevias trazerei?82

Lemos: Dai ó demo as azevias:

Não compres, já me enfastias.

Moça: O que quiserdes comprarei.

Lemos: Traze ua quarta de cerejas

E um ceitil de breguigões.83

Moça: Cabrito?

Lemos: Tem mil barejas.84

Moça: E ostras, trazerei delas?

Lemos: Se valerem caras, não:

80 O Lemos referencia o Mercado da Ribeira, junto à zona do Cais do Sodré, em Lisboa. 81 O Lemos, fanfarrão, manda comprar tudo o que houver na Praça da Ribeira. 82 A Moça sugere que se compre um peixe aparentado com o linguado. 83 O mesmo que berbigões. 84 O mesmo que moscas varejeiras.

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ante traze mais um pão

e o vinho das Estrelas

Moça: Quanto trazerei de vinho?

Lemos: Três pichéis deste caminho.85

Moça: Dais-me um cinquinho, nô mais?86

Lemos: Toma aí mais dous reais.

Vai e vem muito emproviso.87

(Canta)

«Quem vos anojou, meu bem,88

bem anojado me tem.»

Ama: Vós cantais em vosso siso?89

Lemos: Deixai-me cantar, Senhora.

Ama: A vizinhança que dirá,

se meu marido aqui não está,

e vos ouvirem cantar?

Que razão lhe posso eu dar

que não seja muito má?

Castelhano: Reniego de Marinilla:90

esto és burla, ó és burleta?

Quereis que me haga

trompeta,

que me oiga toda la villa?91 85 O pichel era geralmente um vaso de cobre que servia para beber. 86 Cinquinho era uma moeda de pouco valor equivalente a dois reais. 87 Emproviso: o mesmo que depressa. 88 Anojou: o mesmo que aborreceu. 89 A Ama acha que o Lemos é louco, por cantar a plenos pulmões. 90 Fórmula de juramento da época.

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Ama: Entrai vós ali, senhor,

Que ouço o corregedor.92

Temo tanto esta devassa!93

Entrai vós nessoutra casa

Que sinto grande rumor.

(Chega à janela)

Falai vós passo, micer94

Castelhano: Pesar ora de San Pablo

Esto és burla ó es diablo?

Ama: Eu posso-vos mais fazer?

Castelhano: E aun en esso está ahora

La vida de Juan de Çamora?95

Son noches de Navidá96

quiere amanecer ya97

que no tardará media hora.

Ama: Meu irmão cuidei que se ia.

Castelhano: Ah, Señora y reísvos vós

Abrame cuerpo de Dios!

Ama: Tornareis cá outro dia.

Castelhano: Assosssiega, corazón 91 O Castelhano ameaça que a sua voz fará o mesmo efeito que um trompete, que se vai ouvir em toda a cidade. 92 O corregedor desempenha as funções do polícia. 93 A Ama afirma ter medo que o corregedor faça uma busca em sua casa. 94 Falai vós passo, significa falai vós baixo; Micer: o mesmo que Mister. 95 Juan de Zamora é o nome do Castelhano. 96 É noite de Natal. 97 O mesmo que é já madrugada.

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adormientate, león,

no heches la casa en tierra,98

ni hagas tan cruda guerra,

que mueras como Sansón.99

Esta burla es de verdad,

Por los uesos de Medea,100

sino que arrastrado sea

mañana por la ciudad;

por la sangre soberana

de la batalla troiana,101

y juro a la casa sancta...

Ama: Para que é essa jura tanta?

Castelhano: Y ain vos estais ufana?

Quiero destruir el mundo,

quemar la casa, es la

verdad,

despues quemar la ciudad;

Señora en esto me fundo.

Despues, si Dios me dixere,

quando allá con él me viere,102

que por sola una mujer...

Bien sabré que responder,

quando a esso viniere.

Ama: Isso são rebolarias.103

98 O Castelhano tenta acalmar-se a si mesmo pois com a fúria de que está possuído receia deitar a casa abaixo. 99 Referência à figura de Sansão que perdeu a força quando a mulher lhe cortou o cabelo. 100 Fórmula de juramento a Medeia, poderosa feiticeira da mitologia que casou com Jasão. 101 Referência à guerra de Tróia, iniciada com a paixão de Páris por Helena de Tróia, que era casada com Menelau. 102 Nestes versos o Castelhano em delírio, afirma querer destruir o mundo, queimar a casa e a cidade e quando for presente perante Deus e tiver de responder pelas suas loucuras, explicará que tudo aconteceu apenas por causa de uma mulher. 103 O mesmo que fanfarronices.

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Castelhano: Séame Dios testigo,104

que vós vereis lo que digo

antes que passem tres dias

Ama: Má viagem faças tu

caminho de Calecu,

preza à Virgem consagrada!

Lemos: Que é isto?

Ama: Não é nada.

Lemos: Assi viva Berzebu.105

Ama: I-vos embora, Senhor

que isto quer amanhecer.

Tudo está a vosso prazer,

com muito dobrado amor.

Oh, que mesuras tamanhas!106

Moça: Quantas artes, quantas manhas,

que sabe fazer minha ama!

Um na rua, outro na cama!

Ama: Que falas? Que te arreganhas?107

Moça: Ando dizendo entre mi108

que agora vai em dous anos

que eu fui lavar os panos

104 O mesmo que testemunha. 105 Belzebu é uma das designações do Diabo. 106 Oh, quantas vénias. 107 Arreganhar refere a acção de abrir a boca, falar e, consequentemente, mostrar os dentes. 108 A mim mesma.

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além do chão de Alcami;109

e logo partiu a armada

domingo de madrugada.

Não pode muito tardar

nova se há-de tornar110

Nosso amo pera a pousada.111

Ama: Asinha?112

Moça: Três anos há

que partiu Tristão da Cunha.

Ama: Quant'eu ano e meo punha.113

Moça: Mas três e mais haverá.

Ama: Vai tu comprar de comer.

Tens muito pera fazer,

não tardes.

Moça: Não, Senhora;

eu virei logo nessora,114

se m'eu lá não detiver.115

Ama: Mas que graça que seria,

se este negro116 meu marido

tornasse a Lisboa vivo

pera minha companhia!

109 Pequeno largo da antiga Lisboa. 110 Nova: o mesmo que notícia. 111 O mesmo que casa. 112 Asinha: o mesmo que tão cedo. 113 Punha: o mesmo que pensava. 114 Nessora: o mesmo que imediatamente. 115 Atente na irreverência da Moça que afirma ir num pé e vir no outro, se por acaso, não se demorar mais do que previsto. 116 Neste contexto o adjectivo «negro» classifica o Marido de forma pejorativa.

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Mas isto não pode ser;

que ele havia de morrer

somente de ver o mar.117

segura de nunca o ver.

Moça: Ai, Senhora! venho morta:

nosso amo é hoje aqui.

Ama: Má nova venha por ti.

perra118 excomungada, torta!119

Moça: A Garça,120 em que ele ia,

vem com mui grande alegria;

per Restelo121 entra agora.

Por vida minha, Senhora,

que não falo zombaria.122

E vi pessoa que o viu

gordo, que é pera espantar.

Ama: Pois, casa, se te eu caiar,

mate-me quem me pariu.123

Quebra-me aquelas tigelas

e três ou quatro panelas,

que não ache em que comer.124

Que chegada e que prazer!

Fecha-me aquelas janelas;

117 A Ama tem o Marido em muito pouca consideração uma vez que o considera medricas que possivelmente morreu «somente de ver o mar». 118 O substantivo no feminino do singular tem origem no castelhano e significa cadela. 119 Torta significa pessoa de muito mau feitio. 120 Garça é o nome dado ao navio em que o Marido embarcou. Pelo nome da nau deduz-se que Gil Vicente se refere à armada de Tristão Vaz da Cunha, comandante de uma das expedições à Índia. 121 A zona de Lisboa a que se refere a Moça é a área do Restelo que, na época, bordejava o rio Tejo. 122 Zombaria é um termo que deriva de zombar e significa brincar. 123 Nesta imagem, de um realismo gótico, a Ama afirma que não irá caiar a casa para receber o Marido, nem que a sua mãe a mate. 124 Este conjunto de actos de destruição destinam-se a simular um estado de pobreza extrema, a fim de que o Marido não se aperceba dos divertimentos ocorridos.

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deita essa carne a esses gatos;125

desfaze toda essa cama.126

Moça: De mercês está minha ama;127

desfeitos estão os tratos.128

Ama: Porque não matas o fogo?129

Moça: Raivar, que este é outro jogo.130

Ama: Perra, cadela, tinhosa,

que rosmeas, aleivosa?131

Moça: Digo que o matarei logo.

Ama: Não sei pera que é viver.

Marido: Hou lá!132

Ama: Ali, maora, este é.133

Quem é?

Marido: Homem de pé.

Ama: Gracioso se quer fazer.134

125 O acto de ofertar a carne aos gatos reforça o cenário de pobreza que a Ama deseja montar para a chegada do Marido. 126 A cama, o elemento central da cena é neste momento desfeita, ou mesmo retirada do palco. 127 A expressão da Moça refere-se ao mau humor da Ama. 128 A frase significa «acabaram-se os arranjinhos». 129 Apagar o fogo no lar significa simbolicamente luto, ausência de um ente querido, ou casa abandonada. 130 A Moça perde o medo à Ama e diz «enfurece-te à vontade porque a partir de agora, com a chegada do Marido, o jogo vai ser outro». 131 O conjunto de insultos não só demonstra o mau feitio da Ama como assinala a pouca consideração que tem pela Moça. 132 A expressão com que a Ama marca a entrada do Marido em cena pretende simular um efeito de surpresa aparente. 133 A expressão significa «infelizmente, é ele mesmo». Esta é a última fala em que a Ama usa de sinceridade quanto à real afectividade que nutre pelo Marido.

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Subi, subi pera cima.135

Moça: É nosso amo: como rima!

Ama: Teu amo? Jesu! Jesu!

alvíssaras136 pedirás tu!

Marido: Abraçai-me, minha prima.

Ama: Jesu! Quão negro e tostado!137

Não vos quero, não vos quero!

Marido: E eu a vós si; porque espero

serdes mulher de recado.138

Ama: Moça, tu que estás olhando?

Vai muito asinha139 saltando,

faze fogo140 e vai por vinho

e a metade dum cabritinho,

enquanto estamos falando.141

Ora como vos foi lá?142

Marido: Muita fortuna143 passei.

Ama: E eu, oh quanto chorei,

quando a armada foi de cá! 134 Está a armar-se em engraçadinho. 135 Atenção ao pleonasmo «subir para cima». 136 Alvíssaras é uma quantia em dinheiro paga aos portadores de boas notícias. 137 A longa viagem bronzeou a pele do Marido e esse é motivo suficiente para a Ama evitar o abraço com que ele a tenta enlear. 138 No decorrer do diálogo o Marido não percebe o jogo de hipocrisia da mulher e diz desejá-la porque a considera uma mulher de recato, ou seja, bem comportada. 139 O mesmo que depressa. 140 Compare a contra-ordem de «fazer fogo» com a expressão «porque não matas o fogo?». 141 O jogo hipócrita da Ama leva-a a ordenar a compra de meio cabrito para celebrar a chegada do Marido. 142 Como passaste por lá? 143 A expressão fortuna tem neste contexto o significado de infortúnio.

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E quando vi desferir,

que começastes de partir,

Jesu! Eu fiquei finada;144

três dias não comi nada,

a alma se me queria sair.

Marido: E nós, cem léguas daqui,

saltou tanto sudoeste,

sudoeste e oes-sudoeste,145

que nunca tal tormenta vi.

Ama: Foi isso à quarta-feira,

aquela logo primeira?

Marido: Si; e começou na alvorada.

Ama: E eu fui-me de madrugada

a Nossa Senhora d'Oliveira.

E com a memória da cruz

fiz-lhe dizer ua missa,

e prometi-vos em camisa146

a Santa Maria da Luz:

e logo à quinta-feira

fui ao Spírito Santo

com outra missa também;

chorei tanto que ninguém

nunca cuidou ver tal pranto.

Correstes aquela tormenta?147

Andar.148

144 O mesmo que morta. 145 O Marido referencia um conjunto de ventos soprando em direcções opostas que estiveram na base de uma tempestade marítima. 146 A expressão significa que a Ama prometeu à santa o peso do Marido em cera. 147 Como passaste tal tempestade? 148 O mesmo que continua.

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Marido: Durou-nos três dias.

Ama: As minhas três romarias,149

com outras, mais de quarenta.

Marido: Fomos na volta do mar150

quase quase a quartelar:151

a nossa Garça voava,

que o mar se espedaçava.

Fomos ao rio de Meca,152

pelejámos e roubámos,153

e muito risco passámos

à vela, árvore seca.154

Ama: E eu cá esmorecer,155

fazendo mil devações,

mil choros, mil orações.

Marido: Assi havia de ser.

Ama: Juro-vos que de saudade

tanto de pão não comia

a triste de mi cada dia.

Doente, era ua piedade.

Já carne nunca a comi:

esta camisa que trago

em vossa dita a vesti,156

149 A estratégia da Ama é fazer crer ao Marido que ele se salvou das tempestades porque ela passou o tempo nas igrejas a rezar pela salvação da Armada. 150 O mesmo que «afastando-nos de terra». 151 Mudar de rumo ao sabor dos ventos. 152 Rio de Meca serve para referenciar o Mar Vermelho. 153 Gil Vicente assume que a maioria das armadas portuguesas tinha como objectivo combater e saquear, atitude que neste contexto ele considera como roubo. 154 A expressão significa que a Armada chegou sem velas, ou com parte do velame desfeito pelas tempestades e brigas. 155 Morrendo aos poucos.

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porque vinha bom mandado.

Onde não há marido

cuidai que tudo é tristura,

não há prazer nem folgura;

sabei que é viver perdido.157

Alembrava-vos eu lá?158

Marido: E como!...159

Ama: Agora, aramá:160

Iá há índias mui fermosas;

lá faríeis vós das vossas

e a triste de mi cá,

encerrada nesta casa,

sem consentir que vizinha

entrasse por ua brasa,

por honestidade minha.

Marido: Lá vos digo que há fadigas,

tantas mortes, tantas brigas

e p'rigos descompassados,

que assi vimos destroçados,

pelados coma formigas.161

Ama: Porém vindes muito rico?162

156 Como não teve tempo de mudar de roupa a Ama justifica o seu fato como manifestação de alegria pela chegada do Marido. 157 O conjunto de frases feitas sobre a honestidade das «viúvas de homens vivos» melhor realça a extrema hipocrisia das atitudes da Ama. 158 Numa inversão do rumo da conversa feita de forma muito inteligente, a Ama passa agora a questionar o Marido sobre se teve saudades dela durante a viagem e estadia na Índia. 159 A sinceridade das palavras e atitudes do Marido está exemplarmente expressa na expressão «e como», que traduz as imensas saudades que sentiu. 160 A Ama com a expressão «eu acredito lá nisso!» inverte a situação dramática. A partir deste momento é ela quem acusa o Marido de a ter traído durante a estadia na Índia. 161 Este conjunto de cinco redondilhas maiores (versos de sete sílabas) contém uma das críticas mais directas às viagens que os portugueses faziam ao Extremo Oriente. Note que o Marido se queixa das guerras, das mortes, dos perigos e de ter regressado pelado, ou seja sem ter obtido as riquezas com que sonhou à partida.

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Marido: Se não fora o capitão,

eu trouxera a meu quinhão

um milhão, vos certifico.163

Calai-vos, que vós vereis

quão louçã haveis de sair.164

Ama: Agora me quero eu rir

disso que me vós dizeis.

Pois que vós vivo viestes,

que quero eu de mais riqueza?165

Louvada seja a grandeza

de vós, Senhor, que mo trouxestes.

A nau vem bem carregada?

Marido: Vem tão doce166 embandeirada!

Ama: Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.

Marido: Far-vos-ei nisso prazer?

Ama: Si, que estou muito enfadada.167

Vão-se a ver a nau, e fenece esta primeira farsa.

162 A Ama ainda alimenta alguma esperança quanto a eventuais riquezas. 163 Gil Vicente coloca na boca do Marido uma queixa que foi comum à maioria dos embarcados, ou seja, o Capitão da Armada apoderou-se da parte das riquezas que cabiam aos marinheiros. 164 O Marido afirma que a mulher sairá à rua louçã (bonita), provavelmente porque trouxe panos e algumas bugigangas. 165 A Ama refugia-se de novo na beatice para dissimular hipocrisia. 166 O mesmo que linda. 167 A expressão «enfadada» - o mesmo que aborrecida – dita pela Ama é tanto mais cómica quanto o espectador sabe que na ausência do Marido ela pouco se aborreceu...