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A DIMENSÃO DIALÓGICA E SOCIOAXIOLÓGICA DO DISCURSO REPORTADO EM BAKHTIN Pedro Farias FRANCELINO 1 RESUMO Partindo do princípio de que a linguagem humana apresenta um caráter essencialmente socioaxiológico, discutirei, neste artigo, a noção de discurso de outrem a partir da proposta do princípio dialógico elaborada por Bakhtin e seu Círculo. Mostrarei as implicações dessa abordagem no plano lingüístico e discursivo do enunciado, evidenciando que o tratamento dispensado à questão pela estilística e sintaxe tradicionais acabaram deixando de lado os aspectos sociais, históricos e interacionais determinantes no processo de produção de sentidos entre sujeitos sócio-historicamente situados. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Dialogismo. Sujeito falante. Discurso de outrem. Introdução A difusão do pensamento bakhtiniano no Ocidente trouxe-nos como maior legado a possibilidade de vislumbrar a linguagem humana a partir de uma ótica que – se não desprezada, pelo menos relegada a um plano secundário no arcabouço teórico-metodológico de uma lingüística chamada imanente – dá uma atenção especial a aspectos exteriores decisivos na produção de sentido em atividades de uso da linguagem em situações sócio-interativas. Neste trabalho, discutirei uma questão – dentre muitas outras – que se inclui entre uma das maiores contribuições de Bakhtin e seu Círculo para os estudos lingüísticos. Trata-se do discurso reportado ou discurso de outrem. Meu principal objetivo é mostrar como o tratamento dado por Bakhtin à questão constitui um endosso para sua teoria dialógica e socioaxiológica da comunicação verbal humana, quando propõe um caminho teórico que vai do componente formal da língua, isto é, dos elementos sintáticos propriamente ditos, ao aspecto sócio-histórico, que explica satisfatoriamente – do ponto de vista da proposta do dialogismo – as diversas formas de introdução, recepção e assimilação do discurso do outro no contexto do discurso narrativo. Para isto, recorro aqui a alguns textos que considero relevantes por se tratarem dos trabalhos que apresentam mais clara e enfaticamente a noção abordada. São eles: Marxismo e filosofia da linguagem (1999), que separa alguns capítulos específicos para a discussão do tema; neste trabalho, deter-me-ei apenas ao nono capítulo; Discurso na vida e discurso na arte (1976); Os gêneros do discurso (2000) e O discurso no romance (1993). O procedimento metodológico que norteou este estudo foi o da pesquisa bibliográfica dos textos mencionados, nos quais pude fazer um sucinto levantamento de algumas citações em que se pode observar nitidamente a proposta do autor. Antes, porém, de adentrar à discussão sobre o assunto, trarei algumas considerações sobre o dialogismo, concebido nas teorias do discurso e da enunciação como o princípio constitutivo da linguagem e condição de existência do discurso. Na perspectiva dos trabalhos desenvolvidos pelo Círculo de Bakhtin, a noção de dialogismo constitui o fio condutor de suas teses sobre a linguagem, que passa a ser vista como uma atividade social, histórica, ideológica e interativa. 1 Professor da Universidade Federal da Paraíba. ISSN 1516-1536 Graphos Revista da Pós-Graduação em Letras - UFPB João Pessoa, Vol 6., N. 2/1, 2004 p. 23-30

Bakhtin

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Polifonia, materialismo

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    A DIMENSO DIALGICA E SOCIOAXIOLGICA DO DISCURSO REPORTADO EM BAKHTIN

    Pedro Farias FRANCELINO1

    RESUMO Partindo do princpio de que a linguagem humana apresenta um carter essencialmente socioaxiolgico, discutirei, neste artigo, a noo de discurso de outrem a partir da proposta do princpio dialgico elaborada por Bakhtin e seu Crculo. Mostrarei as implicaes dessa abordagem no plano lingstico e discursivo do enunciado, evidenciando que o tratamento dispensado questo pela estilstica e sintaxe tradicionais acabaram deixando de lado os aspectos sociais, histricos e interacionais determinantes no processo de produo de sentidos entre sujeitos scio-historicamente situados. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem. Dialogismo. Sujeito falante. Discurso de outrem. Introduo

    A difuso do pensamento bakhtiniano no Ocidente trouxe-nos como maior legado a possibilidade de vislumbrar a linguagem humana a partir de uma tica que se no desprezada, pelo menos relegada a um plano secundrio no arcabouo terico-metodolgico de uma lingstica chamada imanente d uma ateno especial a aspectos exteriores decisivos na produo de sentido em atividades de uso da linguagem em situaes scio-interativas. Neste trabalho, discutirei uma questo dentre muitas outras que se inclui entre uma das maiores contribuies de Bakhtin e seu Crculo para os estudos lingsticos. Trata-se do discurso reportado ou discurso de outrem. Meu principal objetivo mostrar como o tratamento dado por Bakhtin questo constitui um endosso para sua teoria dialgica e socioaxiolgica da comunicao verbal humana, quando prope um caminho terico que vai do componente formal da lngua, isto , dos elementos sintticos propriamente ditos, ao aspecto scio-histrico, que explica satisfatoriamente do ponto de vista da proposta do dialogismo as diversas formas de introduo, recepo e assimilao do discurso do outro no contexto do discurso narrativo. Para isto, recorro aqui a alguns textos que considero relevantes por se tratarem dos trabalhos que apresentam mais clara e enfaticamente a noo abordada. So eles: Marxismo e filosofia da linguagem (1999), que separa alguns captulos especficos para a discusso do tema; neste trabalho, deter-me-ei apenas ao nono captulo; Discurso na vida e discurso na arte (1976); Os gneros do discurso (2000) e O discurso no romance (1993). O procedimento metodolgico que norteou este estudo foi o da pesquisa bibliogrfica dos textos mencionados, nos quais pude fazer um sucinto levantamento de algumas citaes em que se pode observar nitidamente a proposta do autor. Antes, porm, de adentrar discusso sobre o assunto, trarei algumas consideraes sobre o dialogismo, concebido nas teorias do discurso e da enunciao como o princpio constitutivo da linguagem e condio de existncia do discurso. Na perspectiva dos trabalhos desenvolvidos pelo Crculo de Bakhtin, a noo de dialogismo constitui o fio condutor de suas teses sobre a linguagem, que passa a ser vista como uma atividade social, histrica, ideolgica e interativa. 1 Professor da Universidade Federal da Paraba.

    ISSN 1516-1536 Graphos

    Revista da Ps-Graduao em Letras - UFPB Joo Pessoa, Vol 6., N. 2/1, 2004 p. 23-30

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    1. A constituio dialgica da linguagem

    Bakhtin e seu Crculo no que se refere s idias lingsticas inauguraram um novo paradigma de reflexo sobre a linguagem partindo da crtica hegemonia de duas grandes correntes do pensamento filosfico-lingstico dominantes em sua poca: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato.

    A primeira tendncia caracterizava-se pelo interesse no ato de fala individual, o que significa dizer que o ato de criao lingstica semelhante ao ato de criao artstica e isso o que constitui a realidade fundamental da lngua, que vista como um sistema de formas acabado, pronto para ser usado pelos falantes. Wilhelm Humboldt destacou-se como um dos maiores representantes desse pensamento. Essa perspectiva baseava-se na crena de que todos os fatos lingsticos so explicados por uma psicologia individual, como pregava Wundt e seus discpulos no quadro de uma psicologia empirista. Os adeptos do subjetivismo idealista privilegiavam a realizao estilstica e a modificao das formas abstratas da lngua, de carter individual e que dizem respeito apenas a esta enunciao (BAKHTIN, 1999, p. 76). A segunda tendncia o objetivismo abstrato defendia a tese de que a lngua concebida como um sistema de formas fonticas, gramaticais e lexicais constitui o verdadeiro objeto de estudo de uma cincia. Nessa perspectiva, o sujeito falante posto de lado e no interessam suas realizaes lingsticas. A lngua, o sistema, basta-se a sim mesmo. Trata-se de investigar os aspectos imanentes da lngua, que no se reduzem a leis ideolgicas e/ou artsticas. A sincronia determina sua abordagem, escanteando a histria. A viso de lngua que regeu essa tendncia a de uma lngua convencional, arbitrria, em que a relao signosigno no interior de uma sistema fechado o que determina a sua existncia. a partir da crtica a esses dois sistemas de idias que Bakhtin prope o princpio do dialogismo com a essncia do funcionamento da linguagem. Ele afirma:

    A verdadeira substncia da lngua no constituda por um sistema abstrato de formas lingsticas nem pela enunciao monolgica isolada, nem pelo ato psicofisiolgico de sua produo, mas pelo fenmeno social da interao verbal, realizada atravs da enunciao ou das enunciaes. A interao verbal constitui assim a realidade fundamental da lngua (BAKHTIN, 1999, p. 123 ) (Grifos do autor).

    Conforme se percebe, Bakhtin constri uma reflexo sobre a natureza da linguagem a partir de uma vis sociolgico. O aspecto social da linguagem esboado, na verdade, desde o redimensionamento da noo de signo lingstico, que para ele se define pela trao ideolgico. Essa concepo de signo ideolgico surge como contraponto, na lingstica, teoria formalista/ estrututalista proposta por Saussure e seus seguidores, para quem o signo era imotivado e arbitrrio. No que se refere ao elemento social, destaco a perspiccia com que Bakhtin trata o sujeito falante, tema que tem merecido discusses acirradas nas diversas perspectivas tericas da lingstica contempornea e que constitui um dos aspectos contemplados no esboo da idia de dialogia. Para ele, o sujeito se define pelas relaes sociais que estabelece com seus interlocutores, no contexto social amplo e imediato das prticas lingsticas interlocutivas que ocorrem no espao enunciativo. Isso pode ser evidenciado nas seguintes palavras:

    Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte (BAKHTIN, 1999, p. 113) (Grifos do autor).

    V-se, dessa forma, que a orientao para o outro um dos pontos nodais da concepo de

    linguagem na viso do autor. Bakhtin estabelece no corpo terico de seus apontamentos a alteridade como constitutiva da linguagem; o sujeito falante elabora suas enunciaes em virtude da relao

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    real ou virtual que mantm com o(s) parceiro(s) da interao. Essa idia fica melhor esclarecida com a noo de atitude responsiva ativa, que consiste na(s) reao(es) que o locutor apresenta para o seu interlocutor nas situaes comunicativas. Essa atitude do sujeito falante constitui uma das caractersticas dialgicas da linguagem. Ela rompe com o modelo de comunicao pautado numa teoria da informao de base mecanicista, em que os protagonistas do processo comunicativo apenas trocam seus enunciados, em que o locutor considerado o participante ativo e o ouvinte o passivo. Contudo, na proposta de Bakhtin (2000: 290),

    (...) o ouvinte que recebe e compreende a significao (lingstica) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar etc. e, esta atitude do ouvinte est em elaborao constante durante todo o processo de audio e de compreenso desde o incio do discurso, s vezes j nas primeiras palavras emitidas pelo locutor (Grifo do autor).

    O outro eixo de configurao do dialogismo o da relao entre os enunciados. Na

    perspectiva bakhtiniana, a palavra est sempre relacionada com o que j foi dito e com o que ainda h de vir. Ela no um elemento solto, aleatrio, perdido no imenso fluxo da comunicao verbal; pelo contrrio, ela estabelece um dilogo contnuo e ininterrupto com outras palavras circundantes no meio social. Segundo Bakhtin (1993: 86):

    O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determi-nado momento social e histrico, no pode deixar de tocar os milhares fios dialgicos existentes, tecidos pela conscincia ideolgica em torno de um dado objeto da enunciao, no pode deixar de ser participante ativo do dilogo social.

    A afirmao acima destaca de forma reiterada a dupla natureza dialgica do enunciado: o fato de ele constituir-se scio-historicamente e de manter contato com outras rplicas do grande dilogo social. Neste ltimo caso, pode-se ver com Bakhtin que nossos enunciados esto entre-laados como os fios de uma grande rede. Nossas palavras no podem fugir dessa condio mesma da linguagem, que de estar permeada pela voz alheia e de servir, ao mesmo tempo, como tema a outros enunciados. Essa mtua relao caracteriza um aspecto que mereceu ateno especfica por parte de Bakhtin e que ele denominou de discurso de outrem, do qual falarei a partir de agora. 2. O discurso de outrem: o falante e sua relao com a palavra alheia

    O pensamento bakhtiniano sobre a linguagem no que concerne ao conjunto de sua obra demonstra claramente as limitaes do formalismo/estruturalismo no tratamento de questes como o discurso citado. Sabemos que na perspectiva da tradio gramatical2, o discurso de outrem visto como a fala do nosso interlocutor que trazida para nossos enunciados sob trs formas bsicas: discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. O discurso direto seria a forma de reproduzir fielmente e textualmente as nossas palavras e a do nosso interlocutor, em dilogo, com a ajuda explcita ou no de verbos chamados dicendi (BECHARA, 1999, p.481).3

    V-se, dessa forma, que a abordagem tem a preocupao voltada para o aspecto sinttico, isto , da organizao da palavra alheia no enunciado do falante. Nesse caso, deixam-se de lado as formas de introduo e de assimilao do discurso de outrem no discurso citante, as quais remetem, na perspectiva bakhtiniana, a questes de ordem extralingstica. , no entanto, deste aspecto de que

    2 Recorro, aqui, gramtica tradicional normativa. 3 BECHARA, Evanildo. Moderna gramtica portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.

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    se ocupa o trabalho de Bakhtin. Para ele, a lingstica se omitiu muito no tratamento dos problemas sintticos, em detrimento dos problemas fonticos e morfolgicos. Alis, os problemas sintticos segundo ele sempre tiveram o mesmo tratamento que os morfolgicos. Na sua viso, Bakhtin destaca que a sintaxe deveria ser vista com outros olhos, uma vez que um dos componentes gramaticais que mais se aproxima das formas concretas da enunciao, dos atos de fala.

    Para Bakhtin (1999:144), o discurso citado o discurso no discurso, a enunciao na enunciao, mas , ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciao sobre a enunciao. (Grifos do autor)

    O primeiro aspecto discutido por Bakhtin o de que o discurso citado, quando integrado ao discurso narrativo, passa a ser tratado como um tema dentro de um outro tema. Nesse novo contexto, o discurso citado mantm sua autonomia estrutural, desencadeando apenas pequenas alteraes sintticas, estilsticas e composicionais no discurso do narrador, para que haja por parte deste uma adaptao ao discurso recebido. Nesse sentido, proponho reconstituir o percurso terico e metodolgico traado por Bakhtin para a discusso do assunto, colocando-o em termos tcnicos, cientficos. Evidentemente tenho conscincia de que Bakhtin se destaca mais como um pensador no quadro epistemolgico das cincias humanas do que como um lingista preocupado em estabelecer categorias e conceitos tericos bem delimitados. Ningum mais antidogmtico do que ele nesse sentido. Suas formulaes inscrevem-se muito mais num esprito reflexivo o que no significa que ele no tenha se utilizado de procedimentos cientficos, afinal, a prpria filosofia constitui, com suas peculiaridades, uma rea do conhecimento humano do que numa atitude cientfica nos moldes de cincia. Para esboar esse fazer cientfico do autor, tomo como texto base o nono captulo do livro Marxismo e filosofia da linguagem (1999), intitulado O discurso de outrem. Isso no me impede, todavia, de recorrer a outros textos de seus trabalhos que tambm tocaram nesse ponto. Primeiramente, podemos perceber a elaborao do problema, registrado nos seguintes termos: Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o discurso ativamente absorvido pela conscincia e qual a influncia que ele tem sobre a orientao das palavras que o receptor pronunciar em seguida? O problema revelador de uma preocupao constante em todo o texto, que a de mostrar que a recepo do discurso alheio pelo discurso narrativo no fortuita, desprovida de uma atitude avaliativa do falante; ao contrrio, conforme afirma Bakhtin (1999: 147-148):

    Toda a essncia da apreenso apreciativa da enunciao de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expresso no discurso interior. Aquele que apreende a enunciao de outrem no um ser mudo, privado da palavra, mas um ser cheio de palavras interiores. (...) no quadro do discurso interior que se efetua a apreenso da enunciao de outrem, sua compreenso e sua apreciao, isto , a orientao ativa do falante.

    Esse primeiro aspecto o do problema fornece-nos, conseqentemente, sua hiptese: as formas da lngua manifestam as tendncias sociais estveis caractersticas da apreenso ativa do discurso de outrem. Isso constitui o segundo elemento da pesquisa sobre o tema em questo. O modo de apreenso do discurso citado pelo falante no constitui o momento de subjetivao dos processos psicolgicos deste, mas decorrente da tenso social instaurada pelo (des)encontro da palavra interior representada pela viso de mundo, pontos de vista de cada um com o enunciado do outro. Essa relao desencadeia trs orientaes que descrevem a natureza da inter-relao entre o discurso narrativo e o discurso citado, natureza esta que reitera a perspectiva social do funcionamento discursivo, conforme afirma Bakhtin (1999: 148):

    O objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a interao dinmica dessas duas dimenses, o discurso a transmitir e a aquele que serve para transmiti-lo. Essa dinmica, por sua vez, reflete a dinmica da inter-relao social dos indivduos na comunicao ideolgica verbal.

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    Essas trs orientaes constituem aquilo que poderia chamar o movimento argumentativo do autor para explicar o problema levantado. A primeira delas defende que a reao ativa ao discurso de outrem pode visar conservao da sua integridade e autenticidade. Nesse caso, o discurso citado tem suas fronteiras nitidamente delimitadas pelos prprios elementos da lngua. Essa primeira tendncia chamamos estilo linear, cuja principal funo (...) criar contornos exteriores ntidos volta do discurso citado (BAKHTIN, 1999, p. 150).

    Na segunda orientao, ocorre o processo inverso: as fronteiras entre discurso citado e discurso narrativo so apagadas, permitindo que este ltimo absorva o enunciado de outrem de forma que no se possam delimitar as particularidades lingsticas que os separam. Essa tendncia Bakhtin chamou estilo pictrico.

    Finalmente, existe uma terceira orientao, em que, ao contrrio da anterior, o discurso citado que dissolve o contexto narrativo que o envolve. O discurso citado, nesse caso, ganha fora e o decompe.

    Essa discusso nos mostra que as inter-relaes entre o discurso narrativo e o discurso citado vo muito alm de questes meramente lingsticas. Como j se afirmou anteriormente, as formas lingsticas apenas so reveladoras do que acontece no plano scio-histrico das relaes intersubjetivas e interativas. Afinal:

    O enunciado concreto (e no a abstrao lingstica) nasce, vive e morre no processo da interao social entre os participantes da enunciao. Sua forma e significado so determinados basicamente pela forma e carter desta interao (BAKHTIN, 1976, p. 9).

    O que vimos at agora refere-se aos modos de relaes mtuas entre esses discursos no plano da forma, isto , no aspecto da integrao do discurso citado pelo discurso narrativo. Contudo, se observarmos o texto O discurso no romance (1934-1935), veremos que Bakhtin retorna problemtica do discurso de outrem esboada no texto do Marxismo e filosofia da linguagem, originalmente escrito em 1929. Em O discurso no romance, percebemos que ele enfatiza o aspecto scio-histrico dessas relaes entre discursos, s que o faz direcionando para um gnero discursivo especfico, que o romance. Porm, seja de uma forma mais abrangente, como no texto de 1929, seja de forma mais direcionada, como no texto de 1934-1935, o fato que Bakhtin cada vez mais corrobora em suas reflexes a tese do dialogismo como princpio constitutivo da linguagem. Segundo ele:

    A orientao dialgica naturalmente um fenmeno prprio a todo o discurso. Em todos os seus caminhos at o objeto, em todas as direes, o discurso se encontra com o discurso de outrem e no pode deixar de participar, com ele, de uma interao viva, intensa (BAKHTIN, 1993, p. 88).

    O fragmento acima descreve a natureza de todas as nossas aes com a linguagem. Estamos fadados a falar sempre a partir de um j-dito, que est relacionado a um porvir. E no importa a orientao apreciativa de nossos enunciados: quer concordemos com o discurso alheio, quer rejeitemo-lo, o discurso nasce no dilogo com sua rplica viva, forma-se na mtua orientao dialgica do discurso de outrem no interior do objeto. A concepo que o discurso tem de seu objeto dialgica (BAKHTIN, 1993, pp. 88-89). Ainda no escopo dessa perspectiva, destaco a questo do domnio daquilo que se fala. A palavra, o enunciado no pertence a mim, enquanto falante da lngua; pelo contrrio, ela se situa numa zona fronteiria em cujos extremos encontram-se os interlocutores. Estes, por sua vez, dotados de determinadas intenes, povoam esses discursos com seus ndices de valorao e com seus acentos apreciativos, conforme observamos nos seguintes fragmentos:

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    At o momento em que foi apropriado, o discurso no se encontra em uma lngua neutra e impessoal (...); ele est nos lbios de outrem, nos contextos de outrem e a servio das intenes de outrem (BAKHTIN, 1993, p. 100). A linguagem no um meio neutro que se torne fcil e livremente a propriedade intencional do falante, ela est povoada ou superpovoada de intenes de outrem. Domin-la, submet-la s prprias intenes e acentos um processo difcil e complexo (BAKHTIN, 1993, p. 100).

    Tanto em um quanto em outro fragmento, v-se o projeto do autor e seu grupo em desenvolver uma concepo de linguagem pautada pela estratificao socioaxiolgica, em que a heterogeneidade das vozes sociais (heteroglossia) define as relaes estabelecidas entre os sujeitos falantes nas situaes de interao. No texto O discurso no romance, o tema do plurilingismo usado como sinnimo de pluridiscursividade intensamente abordado, referindo-se ao conjunto de linguagens diferentes que compem o discurso do prosador-romancista. Embora Bakhtin discuta tal conceito ao tratar do gnero romanesco, procuro estend-lo aqui ao tratar da linguagem de uma forma geral por entender que o mesmo princpio que rege o funcionamento da linguagem no romance o que rege na linguagem ordinria cotidiana, que o princpio dialgico. Ainda em O discurso no romance, mais precisamente no terceiro captulo o plurilingismo no romance Bakhtin trata do romance humorstico e faz algumas consideraes com base em alguns fragmentos extrados de um romance4 de Dickens. Nesses trechos, ele identifica uma forma de introduo da fala de outrem no discurso narrativo chamada forma dissimulada, ou seja, sem nenhuma referncia formal ao discurso do outro. Nas anlises, Bakhtin destaca o estilo humorstico como o tipo de discurso em que as fronteiras entre os discursos citante e citado so propositadamente frgeis. Segundo ele, justamente o carter plurilnge, e no a unidade de uma linguagem comum normativa, que representa a base do estilo (BAKHTIN, 1993, p. 113). A questo vista tambm no texto Os gneros do discurso (2000), quando Bakhtin trata da palavra e sua expressividade. Nessa discusso, ele retoma inevitavelmente a temtica da alteridade, no apenas por se tratar do dialogismo, mas pela importncia dada fala de outrem como sendo o elemento constitutivo de nossos enunciados quer orais, quer escritos no fluxo da comunicao verbal. Nesse processo de retomada do discurso alheio, o trabalho do sujeito falante no seu discurso o de assimilar, modificar e reestruturar, pois os enunciados de outrem so introduzidos nos nossos enunciados carregados do tom valorativo e da expressividade que trazem de seus contextos de origem, dirigindo, assim, nosso intuito discursivo. Nesse sentido, a orientao para o outro determinante at no modo como formulamos nossas enunciaes, desde o aspecto estritamente lingstico (lexical, por exemplo) at as entonaes especficas. Conforme Bakhtin (2000: 316):

    (...) com muita freqncia, a expressividade do nosso enunciado determinada s vezes nem tanto no s pelo teor do objeto do nosso enunciado, mas tambm pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos, com os quais polemizamos; so estes ltimos que determinam igualmente a insistncia sobre certos pontos, a reite-rao, a escolha de expresses mais contundentes (ou, pelo contrrio, menos contundentes), o tom provocante (ou, pelo contrrio, concilia-trio), etc. (...) A expressividade de um enunciado sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta no s sua prpria relao com o objeto do enunciado, mas tambm a reao com os enunciados do outro.

    4 Refiro-me ao romance humorstico Litte Dorrit.

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    Pelo visto, percebemos que o estudo das formas de transmisso do discurso de outrem no discurso narrativo um tema bastante frutfero no tratamento dos variados gneros discursivos. Bakhtin, como estudioso da literatura, deteve-se enfaticamente aos gneros poticos e prosaicos, mas o conhecimento que temos, hoje, dos diversos gneros que circulam na nossa sociedade, permite-nos afirmar que o dialogismo esse princpio fundador da prpria linguagem, dos sujeitos falantes, dos discursos a condio sine qua non do funcionamento da comunicao verbal humana. atravs da temtica do discurso de outrem que notamos, ainda, o quanto nossa relao com a linguagem que a princpio parece to natural, banal e ingnua est saturada pelos diversos ndices de valorao, variados pontos de vista sobre o mundo. Com a linguagem, revelamos nossas crenas, convices, ideologias, e isso s possvel porque ela chega at ns no como uma palavra neutra, desprovida de intenes, mas permeada pelos vieses daqueles que j a utilizaram em contextos, s vezes, contraditrios. Como Bakhtin (1999) mesmo j afirmara, a palavra uma arena onde variadas posies ideolgicas lutam por firmar esta ou aquela ideologia.

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    REFERNCIAS BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico na cincia da linguagem. Traduo de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira; com a colaborao de Lcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 9.ed. So Paulo: Hucitec, 1999. 196p. _____. Os gneros do discurso. In: Esttica da criao verbal. [traduo feita a partir do francs por Maria Ermantina Galvo; reviso da traduo Marina Appenzeller]. 3.ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleo Ensino Superior). 421p. _____. O discurso no romance. In: Questes de esttica e de literatura. 3.ed. So Paulo: Ed. da UNESP, 1993. _____. Discurso na vida e na arte: sobre a potica sociolgica. Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristvo Tezza da edio inglesa de TITUNIK, I. R. Discourse in life and discourse in art concerning sociological poetics. In: VOLOSHINOV, V. N. Freudism. New York: Academic Press, 1976 (Texto originalmente publicado em 1926).