Upload
others
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Bartolomé de las Casas,
A Pena contra a Espada.
JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal de Pernambuco,
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Teoria da Literatura
Recife, 2006
Universidade Federal de Pernambuco – Centro de Artes e Comunicação –
Programa de Pós-Graduação em Letras de UFPE
Bartolomé de las Casas:
A Pena contra a Espada
JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES
Banca Examinadora:
Doutor Alfredo Cordiviola, UFPE
_____________________
Doutor Anco Márcio Tenório, UFPE
_____________________
Doutora Ildney Cavalcanti, UFAL
_____________________
Dissertação de Mestrado em
Teoria Literária apresentada ao
Departamento de Letras da UFPE
sob a orientação do Professor
Doutor ALFREDO CORDIVIOLA
Recife, 2006.
Martín Rodrigues, Juan Pablo Bartolomé de las Casas: a pena contra a espada /
Juan Pablo Martín Rodrigues. – Recife : O Autor, 2006. 125 folhas : il., fig.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Departamento de Letras, 2006.
Inclui bibliografia
1. Literatura. 2. Literatura hispano-americana . 3. Estudos culturais 4. Las Casas, Bartolomé de. I. Título.
82 CDU (2.ed.) UFPE 800 CDD (22.ed.) CAC2006-4
A minha companheira Neide,
portadora, sem o saber, do pensamento indígena liminar.
A Miguel Espar, J. Ignacio Centurión e Alfredo Cordiviola,
habitantes da fronteira entre pai, amigo, mestre,
A Ermelinda Ferreira, Yaracilda Coimet e Lucila Nogueira,
perpétuas, amorosas e acadêmicas musas.
Ao CNPQ e ao Governo Brasileiro,
por acreditarem num morador da zona zero.
SUMÁRIO
SUMÁRIO 04
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 06
RESUMO 08
RESUMEN 09
PRÓLOGO 10
UMA TENTATIVA: OS ESTUDOS CULTURAIS. A VOZ DOS SUBALTERNOS 13
POR QUÊ RELER O SÉCULO XVI? 18
LAS CASAS: UM DESCONHECIDO NO BRASIL? 23
ANTECESSOR DE LAS CASAS: FRANCISCO DE VITÓRIA 26
A) TÍTULOS ILEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS. 29
B) TÍTULOS LEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS 33
PENSAMENTO DE LAS CASAS 37
A) LAS CASAS VERSUS GOMARA: TESTEMUNHO CONTRA DITIRAMBO 39
B) LAS CASAS VERSUS FDEZ DE OVIEDO: OS INTERESSES CRIADOS 41
C) LAS CASAS VERSUS FRANCISCANOS: HOMO RATIONALIS VS INFANS 43
LAS CASAS VERSUS SEPÚLVEDA: CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID 46
A) SEPÚLVEDA: O INTELECTUAL ORGÂNICO 50
B) LAS CASAS: DEFENSOR DOS ÍNDIOS 52
1) QUATRO CLASSES DE BARBÁRIE 52
2) A IDOLATRIA COMO CAUSA DE GUERRA 56
3) O DIREITO DE INTERVENÇÃO 58
4) ANTROPOFAGIA: SACRIFÍCIOS HUMANOS OU CANIBALISMO 60
IGREJA, ERASMISMO E HUMANISMO ITALIANO 64
LAS CASAS: POLEMISTA, VISIONÁRIO, LITERATO, HISTORIADOR? 73
A “REALIDADE” DO PASSADO HISTÓRICO 89
A) SOB O SIGNO DO MESMO: A “REEFETUAÇÃO” DO PASSADO NO PRESENTE 90
B) SOB O SIGNO DO OUTRO: UMA ONTOLOGIA NEGATIVA DO PASSADO? 95
C) SOB O SIGNO DO ANÁLOGO: UMA ABORDAGEM TROPOLÓGICA? 100
O ENTRECRUZAMENTO DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO: A FICCIONALIZAÇÃO DA
HISTÓRIA 104
LAS CASAS E O LIVRE ARBÍTRIO 117
BIBLIOGRAFIA 120
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
De Bry, Theodor. Americae pars VIII [Frankfurt, Theodor De Bry], 1599, p. 17
_____. Pergrinus in indiam: Colombo chega à Ilha Guanahaní (Bahamas) 12 de outubro de
1492, (Théodore de Bry, Grands Vogages, 1594)Bartholomé de Las Casas, Narratio
regionum indicarum per Hispanos. Frankfurt: 1598, p. 18.
_____. America Pars IV por Benzoni (1592), p. 22.
_____. India Orientalis (1597) p. 28.
_____. Americae pars quinta, 1595, NYPL, p. 29.
_____. The first images of Native Americans (1590-1591), p. 32.
Father Bartolomé de las Casas. A fragment of the mural in Sna Jolobil, in San Cristóbal de
las Casas. Photograph by Sharon Lee House, July 1994. In:
www.historycooperative.org/journals/ahr/105.2/ah000417, p.35.
De Bry. Cannibals in the new world: 1593, p. 36.
Francisco López de Gómara, Historia delle nuove Indie Occidentali... Venice: Giovanni
Bonadio, 1564, p. 40.
De Bry, Theodor. Image of Spanish soldiers murdering Native Americans (From Great
Voyages, Part IV, 1594), p. 42.
_____. Hans Staden with the cannibals in Brazil. Volume III of Grand Voyages p 32, p. 43.
_____. Coleção De Bry lamina IV, edição fac-similar da Brevíssima, p. 22. Detalhe, p. 44.
_____. Ilustração da Brevíssima, p. 45.
_____. VIII Qva ratione indi mexicani mactatis hominibvs sacrificent, p. 63.
_____. English sportmen in the new world: 1618, p. 67.
_____. Mandando queimar os pés dum indígena, Penguin edition, 1992, ed. Nigel
Griffin,pp. 117-18, p. 73.
_____. Mina de Potosí. Trabalhadores indígenas numa mina de prata, p. 74.
_____. God, Glory, and Gold, from America, 13 vols. (Frankfurt, 1590-1634), Pt. 5, p. 75
_____. Narratio regionum indicarum per Hispanos... do original: Frankfurt: 1598, p. 79.
_____. German edition of Brevisima Relacion de la destruycion de las Indias ("A Brief
Relation of the destruction of the Indies") By Bartolome de las Casas, 1552. "Knights of
Spain, Warriors of the Sun: Hernando de Soto and the South's Ancient Chiefdoms", by
Charles Hudson. Spanish savagery: cutting off of hands and noses, dogs hunting natives,
and mass slaughter and murder, p. 81.
_____. Kupferstich von De Bry, in: Las Casas, Werkauswahl Bd. 2, 47, p. 82.
_____. Las Casas, Narratio regionum indicarum per Hispanos...( Frankfurt: Theodor de
Bry, 1598), p. 83.
_____. Collectiones peregrinationum. 1590-1634, p. 86.
_____. Spanish justice in terra florida, 1595, p. 88.
_____. Capa da edição latina de 1598 da Brevíssima, p. 93.
_____. Coleção De Bry lamina VII, edição fac-similar da Brevíssima, p 35. P. 94.
_____."Vierten los indios oro fundido en boca de los españoles para saciar su cudicia", p.103.
_____. Crudelitas Petri de Calyce erga Indos. Pars IV, p. 116.
_____. Además de ser empleados en las minas de oro y plata, los esclavos negros
empezaron a cultivar las plantaciones de caña de azúcar.Pars V, p. 3, p. 120.
RESUMO
Bartolomé de las Casas viveu no século XVI, época em que teve que lidar com
fenômenos de atritos culturais entre o ocidente imperial e os povos por aquele submetidos,
momento em que teve que se abrir para pensar o Outro. Para os sistemas imperiais, as
narrações históricas passam a ter um papel fundamental como gênero que inicia a
modernidade, funda a identidade dos “civilizadores” e deixa entrever os limites do
pensamento colonial. Os textos lascasianos se fundamentam, sobretudo, na filosofia de
Francisco de Vitória, indo além no reconhecimento da autonomia indígena, e dialogam –
polemizam – com as principais correntes ideológicas e autores que estudam a colonização.
O dominicano Las Casas se dirige ao poder (“o Príncipe”) e à crítica (adversários
intelectuais), mas também já visa o grande público utilizando para isso os recursos retóricos
adequados ao gênero de testemunho-denúncia, e a nova imprensa. Precursor do pensamento
liminar latino americano deve ser objeto dos novos estudos culturais.
RESUMEN
Bartolomé de las Casas vivió el siglo XVI, época que tuvo que enfrentarse a
fenómenos como los choques culturales entre el occidente imperial y los pueblos por aquél
sometidos, momento en el que se tuvo que abrir para pensar al Otro. Para los sistemas
imperiales, las narraciones históricas pasan a tener un papel fundamental como género que
inicia la modernidad, funda la identidad de los “civilizadores” y deja trasparecer los límites
del pensamiento colonial. Los textos lascasianos se fundamentan sobre todo en la filosofía
de Francisco de Vitoria, yendo más allá en el reconocimiento de la autonomía indígena, y
dialogan – polemizan – con las principales ideologías y autores que abordan la colonización
El dominico Las Casas se dirige al Poder (“el Príncipe”) y a la “Crítica” (adversarios
intelectuais), pero también ya se orienta al gran Público, empleando para ello los recursos
retóricos adecuados al género de testimonio-denuncia. Las Casas, precursor del
pensamiento liminar latino-americano debe ser objeto de los nuevos estudios culturales.
PRÓLOGO
La justicia no se descuidaba de buscarnos. Rondábamos la puerta, pero, con todo, de media noche abajo,
rondábamos disfrazados. Yo, que vi que duraba mucho este negocio, y más la fortuna en perseguirme, no de
escarmentado, que no soy tan cuerdo, sino de cansado, como obstinado pecador, determiné, consultándolo
primero con la Grajal, de pasarme a Indias con ella a ver si, mudando de mundo y tierra, mejoraría mi suerte.
Y fueme peor, como V.Md. verá en la segunda parte, pues nunca mejora su estado quien muda solamente de
lugar, y no de vida y costumbres.
Francisco de Quevedo. Vida del Buscón llamado Don Pablos, in fine.
Como filho de estrangeira na Espanha, espanhol estrangeiro no Brasil, brasileiro
retornado na península ibérica, licenciado em direito estudante de Letras que exerce como
professor (autônomo) de línguas numa capital do Nordeste e que entrara a fazer parte duma
família interiorana de Pernambuco, minha vida pessoal e acadêmica tende a ser marcada
não apenas pela televisiva e idílica miscigenação, mas pelas profundas contradições
culturais que nossa época (re)vive, já sem um possível retorno a uma pura idade de ouro,
num Brasil que entrou de vez na globalização, num Mundo que penetrou na Europa,
configurando um Melting Pot étnico onde interagem uma miríade de idéias, pessoas, bits ou
mercadorias em continua circulação, colaboração, agressão, pirataria, fertilização.
Minha vinda ao Brasil teve mais a ver com a procura que o meu imaginário
ordenara do que com o puro utilitário. Preferi lutar por um sonho a me submeter a um
futuro calculado, prefixado em confortáveis prazos de pagamento vital. Fuga e busca, como
aqueles imigrantes, retornados, aventureiros forçosos, que conheci na minha adolescência,
sempre a falar das belezas da África, as riquezas de Macau, a cordialidade brasileira...
Para los peregrinos de todas las épocas, la verdad está en otra parte; el verdadero lugar siempre está
distante en el tiempo y en el espacio. Cualquiera sea el sitio en que esté hoy el peregrino, no es donde
debería ni donde sueña estar. La distancia entre el verdadero mundo y este mundo del aquí y ahora
está constituida por la discordancia entre lo que debe alcanzarse y lo que se ha logrado. La gloria y
solemnidad del destino futuro degradan el presente y se burlan de él. 1
Descendente legítimo, natural ou adotivo de várias culturas, neto do fado e filho do
Mío Cid, desde criança preocupou-me o contato, intercâmbio, a distorcida (in)definição do
Outro. Para Mary Louise Pratt, a abordagem deste fenômeno não resulta simples:
O que permanece invariável é que sempre deve haver um Outro. As fronteiras multifacetadas com
esses outros têm sido policiadas e reproduzidas pelas modernas disciplinas acadêmicas
institucionalizadas no centro na segunda metade do século XIX. A antropologia produz e reforça a
categoria de primitivo; a economia as de atraso e subdesenvolvimento. A ciência política administra
as distinções entre estado e não-estado, sociedades simples e complexas; a filosofia distingue entre
racional e irracional; os estudos literários e a história da arte entre alta e baixa culturas. A história
administra o conceito de tempo progressivo e determina quem o ocupa e quem não.2
Tentar uma aproximação do que seja o Outro e eu, requer uma perspectiva
sensivelmente além da sociologia histórica, da velha filologia, ou da etnografia: uma(s)
disciplina(s) instalada(s) num entre-lugar que impregne todas elas com uma pitada de
poética ou de simples palavras que algo esclareçam esta era pós-colonial e excedam as
clássicas ordenadas e abscissas (que numa incrível abstração deixam as restantes variáveis
se manterem miraculosa e imotivadamente invariáveis, mudas, ocultas).
1 BAUMAN, Zygmunt. De peregrino a turista, o una breve historia de la identidad. In: Cuestiones de identidad cultural/ compilado por Stuart Hall y Paul du Gay. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (p. 43). 2 PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999 (p.45).
Sobre todo, y en contradicción directa con la forma como se las evoca constantemente, las
identidades se construyen a través de la diferencia, no al margen de ella. Esto implica la admisión
radicalmente perturbadora de que el significado “positivo” de cualquier término – y con ello su
‘identidad’ – sólo puede construirse a través de la relación con el Otro, la relación con lo que él no
es, con lo que justamente le falta, con lo que se ha denominado su afuera constitutivo.3
Um europeu que já duvida da própria essência do que seja ser europeu, chegando na
América Latina, pode se sentir tão desnorteado quanto Gruzinski quando tomara...
o metrô para ir de Paris ao aeroporto e pensava que talvez estando no Brasil fosse a Bahia, a
Salvador; no metrô, eu era o único branco e me dizia: “estou no metrô entre Paris e Roissy e
seguramente, aqui há mais negros que em Salvador” Essa é uma realidade totalmente nova, e as
ciências sociais européias não estão preparadas para enfrentar essa situação. Ou seja, todos os nossos
intelectuais, Lacan, Foucault, Bourdieu, são totalmente incapazes de pensar numa sociedade
pluriétnica e pluricultural. Daí o silêncio das ciências sociais da França e da Europa frente a esse
problema.4
Essa sociedade pluriétnica em que vivemos quiçá possa ser intuída ou adivinhada
naquela que surgira no século XVI dos impérios espanhol e português, ou ainda possamos
reformular algumas questões, ‘histórias mal contadas’, que nos ajudem na busca de uma via
que ao menos tente explicar o nosso hoje caótico orbe, um mundo em gestação: México
1525 é a origo mundi e não mais o umbiculus mundi; é a tradução urbanística de uma
formação social e cultural completamente singular: a sociedade fractal.5 Já temos um bom
motivo para nos adentrar nos cronistas dos primórdios da Idade Moderna.
3 HALL, Stuart. Introducción: ¿quién necesita identidad? In: In: Cuestiones de identidad cultural/ compilado por Stuart Hall y Paul du Gay. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (p. 18). 4 GRUZINSKI, Serge. Do Barroco ao Neobarroco, in: Literatura e História na América Latina, Lígia Chiappini e Flávio Wolf (org). São Paulo: EDUSP, 2001 (p. 94-95). 5 Idem, op. cit. (p.78).
UMA TENTATIVA: OS ESTUDOS CULTURAIS
A VOZ DOS SUBALTERNOS
El poder necesita de una cultura, casi sacramentaria, que le rinda servidumbres de legitimación.
Cualquier poder busca con afán sus figuras propias de “respetabilidad” en tanto que refuerzo social
y simbólico de su poderío. La cultura, además de otras cosas, permite cuestionar un poder instalado (incluso,
criticarlo), y define la configuración del abanico de posibilidades reales que funda realmente cualquier poder.
José A. Barata-Moura. La Cultura del Poder y el Poder de la Cultura6.
Como Gruzinski, qualquer estrangeiro ocidental (e quem não o é neste unipolar
American Empire?) que aprofundar um pouco na cultura, e, portanto, nas relações de poder,
do imaginário e das formas de apreensão do entorno e da identidade, na sempre difícil
negociação com o ente chamado “realidade”, chegará à conclusão de que não só terá
escassas possibilidades de entender os novos fenômenos imigratórios do Primeiro Mundo,
mas nenhuma de entender o chamado Terceiro Mundo7, pois se deparará com as próprias
limitações que os exíguos subsídios que as tradições ocidentais lhe fornecem, no caminho
para a compreensão ou mera sobrevivência dentro do mal chamado “Mundo em
Desenvolvimento”. Nesse sentido Bartolomeu de Las Casas e aqueles que o tem sabido ler
têm muito a nos dizer e acredito ser um bom ponto de partida, pois dão um melhor
embasamento para a linha de estudos de Mignolo, Saïd, Hall ou Bhabha.
6 BARATA-MOURA, José A. La Cultura del Poder y el Poder de la Cultura. In: Poder, Política y Cultura: Antropología en Castilla y León e Iberoamérica VII. Ángel B. Espina Barrio (org). Recife: Massangana, 2005, p.378. 7 Preferi utilizar o aparentemente ultrapassado conceito Terceiro Mundo ao de País em Desenvolvimento, conceito muito mais hipócrita pelo que oculta de dominação (exploração inclemente por meio de royalties, falta de isonomia nas taxas de importação, ajudas maciças para a indústria e agricultura dos países centrais, que nos países de Terceiro Mundo são qualificadas como práticas de Dumping, intromissão na política interna dos países periféricos, etc.). Coincido neste sentido com Walter Mignolo (2003).
Brasil, como parte deste mundo subalterno, deve investir na compreensão destes
fenômenos de forma prioritária, sob o perigo de ser por eles engolido, sem chances. Assim,
Mignolo tenta nos introduzir na importância destes estudos:
em um mundo onde os processos civilizadores movem-se em todas as direções possíveis, os Estudos
Subalternos poderiam contribuir para descolonizar a pesquisa, refletindo criticamente sobre sua
própria produção e reprodução de conhecimento e evitando a reinscrição das estratégias de
subalternização. 8
Na realidade o título deste capítulo deveria ser mais ou menos como o subtítulo que
já colocara Mignolo nas suas Histórias locais/ Projetos globais: como se beneficiar de
categorias ameríndias de pensamento e de experiências afro-caribenhas sem convertê-las
em exóticos objetos de estudo.9 Já apontado acima por Marie Louisse Pratt, a
transdisciplinariedade não se faz importante ou desejável, mas imprescindível para a
compreensão destes fenômenos. Edward Saïd nos presenteia uma aproximação:
We live of course in a world not only of commodities but also of representations – their production,
circulation, history, and interpretation – are the very element of culture. In much recent theory the
problem of representation is deemed to be central, yet rarely is it put in its full political context, a
context that is primarily imperial. Instead we have on the one hand an isolated cultural sphere,
believed to be freely and unconditionally available to weightless theoretical speculation and
investigation, and on the other, a debased political sphere, where the real struggle between interests
is supposed to occur. To the professional student of culture – the humanist, the critic, the scholar –
only one sphere is relevant, and, more to the point, it is accepted that the two spheres are separated,
where as the two are not only connected but ultimately the same.10
8 MIGNOLO, Walter. Historias locais/ projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro. Belo Horizonte: editora UFMG, 2003, p. 203. 9 Idem, Op. cit, p. 203. 10 SAÏD, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993, p. 66-67.
A leitura de Saïd lembra-me da conversa fugaz que tive com um catedrático da
Complutense de Madri. Quando eu lhe disse do meu interesse pelos estudos culturais, levou
as mãos à cabeça e respondeu: a Universidade está em quebra, não existem mais autênticos
estudos sobre temas sérios, filológicos, por exemplo. Os estudos culturais só teriam sentido
se estudássemos as línguas indígenas e o que pensam. Paralelamente, quiçá num sentido
diametralmente oposto, Spivak questiona-se em Can the subaltern speak? Serão realmente
os subalternos do Terceiro Mundo ou as elites universitárias, mesmo aqueles pertencentes
às antigas colônias (como a própria Spivak) os que têm voz? Para ela, os autênticos
excluídos não a têm11. Aceitando esta crítica como sadio exercício intelectual, temos que
observar que certamente estamos diante de um argumento, que levado ao extremo, fecharia
o debate completamente: se apenas os subalternos pudessem opinar, dado que os que não
tem voz continuariam silenciados da mesma forma. Assim, segundo Mary Louise Pratt,
A campanha militar de terror nas regiões montanhosas da Guatemala matou 200 mil nativos, exilou
outros tantos para o México e varreu do mapa aproximadamente cem vilarejos. Comunidades inteiras
desaparecem na floresta, levando consigo suas histórias. Voltar para esses lugares procurando fatos
que esclareçam a verdade significa não compreender os próprios fatos que busca esclarecer. Durante
anos os habitantes dos vilarejos foram forçados pelo exército a equipar milícias civis com o objetivo
de descobrir simpatizantes dos movimentos guerrilheiros dentro das suas próprias populações. Se não
encontrassem nenhum a represália era certa; mas encontrar algum deles também poderia significar
represálias. Para os sobreviventes desse permanente trauma social e psíquico, perguntas como “o seu
vilarejo ou você apoiaram a guerrilha?” nem de longe lembram enquêtes do tipo “Como os
casamentos são arranjados no seu vilarejo?”12
11SPIVAK in: "Can the Subaltern Speak?" Benjamin Graves '98, Brown University, in:
http://www.postcolonialweb.org/poldiscourse/spivak/spivak2.html. Acedado em 17/ out/ 2005. 12 PRATT, Mary Louisse. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p.40.
Tal a questão que implicitamente formula Máximo Cajal no próprio título do seu
livro: ¡Saber quién puso fuego ahí!, o qual não fora outra coisa que a voz-testemunho do
indígena que sobrevivera ao massacre na Embaixada Espanhola na Guatemala, Gregório
Yujá, num depoimento num mais que imperfeito castelhano, pouco antes de ser executado
quase que publicamente pela polícia secreta(?) guatemalteca como queima de arquivo:
Echaron fuego, saber por qué, como nosotros estábamos ahí y nos iban a matar con con (sic) armas
también y ahí… y no tuvieron nada. Siempre nosotros no queremos que…tra (sic) vez le quemaron la
casa, y uno que estaba, por lo menos uno que se va a la costa a trabajar para ellos y si no hay nada
detrás guerrilleros, bien, ya ya (sic) le están esperando por si llega, pues usted no fue a la costa,
estaba en la montaña, y nosotros pues no. Estamos a trabajar, cuando terminamos de…la milpa, ahí
vamos a trabajar…así cuando tiene que trabajar y sólo que trabajar y sólo que trabajar otra vez y nos
hacen trabajar otra vez. ¡Sólo siempre! Gregorio Yujá. ¡Saber cómo será ha de quedar yo así!13 (Sic)
O tipo de linguagem em que se expressa o indígena Yujá, fora dos padrões da língua
culta, não seria aceita em nenhuma Academia de prestigio, e, no entanto cabe se perguntar:
o seu testemunho merece ser esquecido ou tem menos valor que outras especulações
intelectuais? Quando utilizamos e aceitamos o discurso subalterno, outro perigo ainda
pendura qual espada de Dâmocles: A assunção de discursos indígenas introduzidos sem a
necessária contextualização, poderia nos levar a um lócus dialético próximo do anunciado
por Homi Bhabha:
Há outra cena do discurso colonial em que o nativo ou o negro corresponde à demanda do discurso
colonial, onde a “cisão” subversora é recuperável dentro de uma estratégia de controle social e
político. É reconhecidamente verdade que a cadeia de significação estereotípica é curiosamente
misturada e dividida, polimorfa e perversa, uma articulação da crença múltipla. O negro é ao mesmo
13 CAJAL, Máximo. Saber quién puso fuego ahí! Masacre en la Embajada de España. Madrid: Siddharth Mehta Ediciones, 2000, p. 74-75.
tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a
encarnação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico,
primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador de forças
sociais. Em cada caso, o que está sendo dramatizado é uma separação – entre raças, culturas,
histórias, no interior de histórias – uma separação entre antes e depois que repete obsessivamente o
momento ou a disjunção mítica.14
14 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 126-127.
POR QUÊ RELER O SÉCULO XVI?
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.
De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not Tupi that is the question.
Oswald de Andrade. Manifesto antropófago.
Entremos na feira popular de Prazeres, no carnaval da Avenida Guararapes, na fila
do INSS:
Embrionária, inacabada, incerta quanto a o seu futuro, essa estranha formação é produto da
justaposição brutal de duas sociedades arrebentadas: os invasores, grupo predominantemente
europeu, instável, cotidianamente mergulhado no desconhecido e no imprevisível; os vencidos que
sobrevivem em conjuntos mutilados, dizimados pela guerra e pelas epidemias. A diversidade de
componentes étnicos, religiosos, culturais, a incidência elevada da perda de raízes, o comando
limitado ou nulo da autoridade central – delegada ou muito distante, pois o imperador Carlos V está
constantemente em Bruxelas -, a extensão reduzida das grandes distâncias oceânicas e continentais, a
predominância da instabilidade, da mobilidade e da irregularidade, multiplicam fenômenos cujo
caráter caótico, melhor dizendo, fractal, chama a atenção.15
15 GRUZINSKI, op. cit p. 78.
Mutatis mutandis, podemos nos contemplar neste espelho fractal do século XVI,
com toda a influência que sobre este mundo, neocolonial, re-liberal, proto-materialista,
onde vivemos, teve? Será efetivamente essa história apenas um grande fardo que
carregar?16
Da leitura dos textos dos “fundadores” dos Estudos Culturais e devido ao fato de
terem a maior parte deles origem nas antigas colônias britânicas, na procura das fontes do
pensamento colonial, sempre terminam por aprofundar até os limites do século XVIII, dado
que é este o período do inicio firme da expansão dos Impérios Francês e Inglês. O
Iluminismo seria, segundo o citado ponto de vista, o fundador da modernidade, com todas
as vantagens e mazelas que leva aparelhada, deixando o autêntico início da Idade Moderna,
o século XVI, no esquecimento inconsciente ou, por ficar longe da sua órbita cultural, no
consciente escanteio. Saïd, no entanto, apesar de não se centrar nos estudos literários do
século XVI, defende que
a distinction between anti-colonialism and anti-imperialism needs quickly to be made. There was a
lively European debate dating from at least the mid-century on the merits and demerits of holding
colonies. Behind it were the earlier positions of Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitoria,
Francisco Suárez, Camões and the Vatican, on the rights of the native peoples and European abuses.
Most French Enlightenment thinkers, among them Diderot and Montesquieu, subscribed to the Abbé
Raynal´s opposition to slavery and colonialism (…).17
Homi Bhabha não presta nenhuma atenção para a “fundação” dos impérios
salvacionistas americanos e Edward Saïd apenas constata que: Are we not as a nation
16 WHITE, Hayden. O Fardo da História. In: Trópicos do Discurso: ensaios sobre a Crítica da Cultura. Trad. Alípio Correia de França Neto. São Paulo: ESUSP, 2001. 17 SAÏD, Edward. Op. cit, p. 289-290.
repeating what a France and Britain, Spain and Portugal, Holland and Germany, did
before us? And yet do we not tend to regard ourselves as somehow exempt from the more
sordid imperial adventures that preceded ours?18
Igualmente, Mary Louise Pratt foca seus estudos especialmente nos relatos de
viagens do século XVIII e na pura contemporaneidade para estabelecer as bases da sua
crítica ao dominante pensamento eurocentrista19.
Walter Mignolo dará uma maior ênfase para a geopolítica que eu qualificaria como
geohistórica. Para taç os estudos da literatura colonial da América Latina dos séculos XVI
e XVII são basilares, dado que não existe modernidade sem colonialidade.20
A geopolítica do conhecimento torna-se um conceito poderoso para evitar a crítica eurocêntrica do
eurocentrismo e para legitimar as epistemologias liminares que emergem das feridas das histórias,
memórias e experiências coloniais. A modernidade, repito, leva nos ombros o pesado fardo da
responsabilidade da colonialidade. A crítica moderna da modernidade (pós-modernidade) é uma
prática necessária, mas que termina onde começam as diferenças coloniais, As diferenças coloniais
do planeta são a morada onde habita a epistemologia liminar.
Por quê? As histórias locais de nações (colonizadas) tiveram que se acomodar a
projetos globais que lhes diziam respeito, mas sem sua participação direta.21Para não
repetir este esquema, pode-se encontrar inspiração nos estudos da Academia Anglo-
18 Idem, Op. cit. p.65. 19 PRATT, Mary Louise. Op, cit. 20 MIGNOLO, Walter, op. cit, p.74. 21 Idem, op, cit, p, 74.
saxônica, porem sempre lembrando as nossas origens, seguindo o rasto das próprias
histórias locais, pois o
modelo ou metáfora do sistema mundial moderno tem no século XVI a data crucial de sua
constituição, ao passo que todas as outras possibilidades que mencionei (Saïd, Guha, teoria crítica,
pós-estruturalismo) têm no século XVIII e no Iluminismo a fronteira cronológica da modernidade.
(...) O Iluminismo surge em segundo lugar em minha própria experiência de histórias coloniais. A
segunda fase da modernidade, o Iluminismo e a Revolução Industrial, foi secundária na história da
América Latina. Entrou no século XIX como a exterioridade que precisava ser incorporada para
construir a “república” depois de conquistada a independência da Espanha e de Portugal.22
Pode-se ir além desta afirmação, para postular que não apenas América Latina, mas
todo o Sistema Mundial viram mudados os seus rumos definitivamente no século XVI, o
que nos conduz a uma autêntica necessidade de estudá-lo, não apenas como história local,
mas como pedra basal da construção do Moderno Capitalismo imperial:
O moderno sistema mundial nasceu no longo século XVI. As Américas, como construto social,
nasceram no longo século XVI. A criação dessa entidade geossocial, as Américas, foi o ato
constitutivo do sistema mundial moderno. As Américas não foram incorporadas a uma economia
capitalista mundial já existente. Não poderia ter havido uma economia capitalista mundial sem as
Américas.23(grifo nosso)
Para isso pensei pedir a involuntária colaboração de Bartolomeu de las Casas e os
seus textos, que para os objetivos propostos resultam iluminadoras. Las Casas, como se
verá, não apenas constitui um pensador de primeira magnitude para nossa área de estudos,
mas um autêntico mito per se, no que diz respeito a sua figura como “Defensor dos índios”
22 Idem, op. cit, p. 43. 23 QUIJANO e WALLERSTEIN, 1992, p. 549 in: MIGNOLO, op. cit, p. 84.
e para muitos, um traidor da pátria.24 Beber nas fontes do que escrevera há mais de
quatrocentos anos, e aproveitar também um pouco do que falaram e defendem muitos dos
seus seguidores e, sobre tudo, perseguidores, revelará mais do que quiçá se pudesse esperar.
24 JUDERÍAS, Julián. La Leyenda Negra. Barcelona: Araluce, 1917, p. 302-303: “El iniciador de esta campaña de descrédito, el que primero lanzó las especies que tan valiosas iban a ser para las filosóficas elucubraciones de nuestros enemigos, fue un español: el Padre Las Casas. Un español había sido el calumniador de Felipe II; un español el que describió los horrores de la Inquisición (sic); un español el que pintó la conquista de América como una horrenda serie de crímenes inauditos. Habría que decir como don Francisco de Quevedo: ‘¡Oh desdichada España! Revuelto he mil veces en la memoria tus antigüedades y anales y no he hallado por qué causa seas digna de tan porfiada persecución. Sólo cuando veo que eres madre de tales hijos, me parece que ellos, porque los criaste y los extraños, porque ven que los consientes, tienen razón de hablar mal de ti…”
LAS CASAS: UM DESCONHECIDO NO BRASIL?
«No tiene patria», «Traiciona»,
pero tu prédica no era
frágil minuto, peregrina
pauta, reloj del pasajero.
Tu madera era bosque combatido,
hierro en su cepa natural, oculto
a toda luz por la tierra florida,
y más aún, era más hondo:
en la unidad del tiempo, en el transcurso
de la vida, era tu mano adelantada
estrella zodiacal, signo del pueblo.
Hoy a esta casa, Padre, entra conmigo.
Te mostraré las cartas, el tormento
de mi pueblo, del hombre perseguido.
Te mostraré los antiguos dolores.
Y para no caer, para afirmarme
sobre la tierra, continuar luchando,
deja en mi corazón el vino errante
y el implacable pan de tu dulzura.
Pablo Neruda, Fray Bartolomé de las Casas, in: Canto General, Buenos Aires, 1963..
Bartolomé de las Casas constitui um monumento fundamental e fundador no
pensamento latino-americanista liminar. É ele quem transcreve as cartas de Colombo,
elabora uma enciclopédica e fabulosa História das Índias, contesta, discute, peleja,
filosófica, política e juridicamente contra as guerras de conquista das Américas na sua
Apologética Histórica, elabora o Memorial de Remédios para solucionar os problemas que
aquela formulou, e até, não longe da ilha Utopia de Morus, faz a denúncia dos prejuízos
que provocara a colonização espanhola (salvacionista como a portuguesa ou de todas e
qualquer das formas de imperialismo) no seu mais curto e conhecido livro: a Brevísima
Relación de la Destruición de las Indias. Poucos o farão com tanta violenta contundência,
desesperado furor e cáustica perseverança de mais de cinqüenta anos.
A melhor forma de analisar a identidade e consciência latino-americana é sondar na
etapa de choque, miscigenação, surpresa que supus o século XVI não apenas para os
habitantes do imenso continente americano, mas para toda a humanidade. Para Serge
Gruzinski, sem que se devam esquecer os horrores da colonização e os estragos causados
pela ocidentalização, a mestiçagem dos seres e das culturas será incontestavelmente uma
das heranças mais preciosas e mais duradouras que nos terá transmitido a passagem do
século XV para o século XVI,25 quiçá apenas continuando um processo que o Rei Don
Sancho, O Povoador iniciara no século XII.
Bartolomé e sua obra, pouco conhecido no Brasil porém de grande interesse para
uma leitura brasileira, é objeto de estudo pelo professor Héctor Bruit, da UNICAMP26 e por
José Alves de Freitas na sua tese de doutorado pela USP, em 200227. Ambos historiadores
dão um foco diferenciado ao tratamento da obra deste polemista que já provocara a
publicação de inúmeros estudos no mundo ocidental: um novo brilho e abordagem que o
imaginário e a perspectiva literária dão à já clássica, porém fundadora discussão que Las
Casas gera, arejando um campo às vezes encalhado na “monodisciplinaridade”
especializada de alguns outros colegas historiadores: o indígena, o latino-americano, o
Outro, em relação ao “civilizado” , como se desenha, como interage com ele, têm direitos,
será mais ou menos humano?
25 GRUZINSKI, Serge. A passagem do século: 1480-1520: as origens da globalização. Trad: Rosa Freire de Aguiar. São Paulo, Companhia das letras, 1999. 26 BRUIT, Héctor H. Bartolomé de las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo, Unicamp/ Iluminuras, 1995. 27 FREITAS NETO, José Alves de. Bartolomé de las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. São Paulo, Anna Blume, 2003.
O indígena é um ser capaz de ter direitos e obrigações ou é um ser fadado a
obedecer, ser conduzido para o que for melhor para ele? A organização indígena merece a
soberania? Em definitiva, os nativos americanos, e por extensão outros povos colonizados,
têm direito à autodeterminação e liberdade de escolha? As implicações destas respostas vão
além dos direitos recolhidos pela ONU, Constituição ou leis ou da aplicação destas para
entrar no território incerto do imaginário e do inconsciente da relação com o Outro.
Pretendo acrescentar uma pequena colaboração aos estudos sobre Las Casas,
apresentando este autor pouco estudado no Brasil e ao mesmo tempo introduzindo uma
pequena mudança na perspectiva que o estuda. A História, objetiva, isenta e pura, se é que
ela existe em tal estado, não consegue dar conta por si dos temas que Las Casas levanta.
Historiadores como Héctor Bruit com o seu estudo da simulação dos indígenas vencidos
(entre a imitação e a metamorfose) e Freitas aplicando a Poética de Aristóteles ao estudo
histórico da figura de Las Casas, dão novas visões ao tema da interação de índios e
conquistadores sob um prisma que já não é o mero positivismo historiográfico, mas uma
disciplina que precisa abrir seu leque de perspectivas utilizando elementos heterogêneos,
provenham eles já da velha retórica, já não tão nova tropologia.
Ao mesmo tempo, Las Casas vem a ser não apenas um precursor do pensamento
liminar, enquanto pensador ocidental que toma para si as dores do indígena e vive na
fronteira do amor cristão que chega a lutar perante seus contemporâneos pela soberania
política e até religiosa dos povos nativos do Novo Mundo. Ele mesmo, objeto desse mesmo
pensamento, sem negar o já inevitável choque de civilizações, pode vir esclarezer um
pouco acerca das nossas próprias identidades e relações com o outro.
ANTECESSOR DE LAS CASAS: FRANCISCO DE VITÓRIA
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Fernando Pessoa. Obra Poética.
Famoso precedente dos campeões da Controvérsia de Valladolid, e citado por
ambos, este doutor pelas universidades de Paris e Salamanca nascido em Burgos firmará as
bases neo-escolásticas sobre as quais discutirão posteriormente os contendores sobre a
licitude ou injustiça da colonização espanhola. Nesta época, alguns pensadores como
Vitória contemplaram a possibilidade de atingir uma mera coexistência das culturas. De
fato, a Europa estava preparada para isto em virtude do seu já longo convívio com o Islã.
Era necessário modificar a visão cristocêntrista do mundo.28
Vitória era um neo-escolástico que tinha consciência de que a unidade implícita do
Sacro Império Romano Germânico constituía já apenas um ideal obsoleto: a novidade do
contato com América representava um potencial de mudança suficiente para ter que
elaborar um novo pensamento, num mundo no qual a unidade havia sido substituída pela
pluralidade, que deveria ser gerida por um gérmen do Direito Internacional: o ius gentium:
Con su reconocimiento de los estados indios paganos como estados jurídicamente perfectos y en pie
de igualdad con sus homónimos europeos, Vitoria trascendió la realidad familiar a todos sus
28 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, J.A., El Estado, la Guerra y la Paz: El Pensamiento Político Español en el Renacimiento. Trad. Juan Faci Lacasta. Madrid: Akal, 1988, p.69.
contemporáneos y tan determinante en el desarrollo del pensamiento político moderno, del paso de la
vieja idea imperial y la aparición de una respublica christiana fragmentada.29
O ius gentium era na antiga Roma o direito elaborado pelos pretores (mas não pela
“comunidade de nações”), isento dos formalismos que o caráter sagrado do direito cível
exigia e que o fazia pouco flexível. Era utilizado em casos de decisões urgentes e para
regulamentar as relações com os estrangeiros, sejam eles os clientes que moravam em
Roma, sejam aqueles que moravam extra limes, ou seja, fora dos limites da Cidade Eterna.
De modo que este direito tem um forte caráter de conveniência prática, frente à lei natural,
imutável e universal. Os estados, no son creados por ley natural o bajo su compulsión sino
por el acto volitivo del hombre que actúa bajo el impulso de la necesidad; así puede
decirse que en este caso la naturaleza permanece neutral.30
Para Margarida Cantarelli, Francisco de Vitória constrói a gênese dos direitos
indígenas e ainda dos Direitos Humanos. O direito natural se encontra na base da sua
pirâmide jurídico-moral:
El Derecho Natural, en la concepción de Vitoria, reconocía que la comunidad internacional resultaría
de la sociabilidad inherente a la naturaleza humana, que se extendería a todo el género humano al que
llamó de orbis – conjunto de estados, pueblos y naciones. Su vínculo era el ius gentium. El Derecho
de Gentes estaría concebido por Vitoria en un doble sentido: como Derecho universal del género
humano, por un lado, en la tradición romana; por otro, como derecho de los pueblos, de las naciones,
en sus relaciones recíprocas (ius inter.gentes). Claro está que, para él, a pesar de que el Derecho de
Gentes formase parte del Derecho Natural, la voluntad humana, expresada o tácita, daría origen, por
29 Ibidem, p. 72. 30 Ibidem, p. 76.
otro lado, a un Derecho de las Gentes Positivo, dado que el orbis tendría el poder de decretar ‘leyes
justas y a todos convenientes.’31
A negação do império, que parece muito ousada, é basilar para a fundação do
Direito Internacional e os Direitos Humanos: Vitória reafirma a permanência dos estados
soberanos autônomos e afirma contundente: tampoco se lee que por derecho divino hubiera
antes de la venida de Cristo un señor del mundo…Luego nunca el emperador fue señor de
todo el mundo.32 Dai a reconhecer outros soberanos não cristãos, há um curto percurso: no
cabe duda alguna respecto al hecho de que pueden existir príncipes y potentados legítimos
entre los paganos.33
Segundo Vitória existem títulos legítimos e ilegítimos de guerra aos índios:
31 CANTARELLI, Margarida. A doutrina colonial para o novo mundo: Francisco de Vitória – um Decênviro do Direito Internacional. Revista Acadêmica, v2 anos 2001/2002 – Recife: UFPE. Aurélio Boa Viagem (org) Editora Universitária da UFPE, p. 49 y ss. In: Cantarelli, Margarida. Poder, Política y Derechos Humanos, ESPINA BARRIO, Ángel B (org). Poder, Política y Cultura: Antropología en Castilla y León e Iberoamérica VII. Recife: Ed Massangana, 2005, p.30. 32 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 75. 33 Ibidem, p. 84.
A) TÍTULOS ILEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS
Assim, supuesto pues, que los indios eran verdaderos señores, resta por ver por qué
títulos pudieran ellos, o su región, venir a poder de los españoles.(…) Pudieran
pretenderse, pero no son idóneos ni legítimos34:
Em primeiro lugar, dado que el emperador no es ni ha sido señor de todo el orbe,
los españoles por este título no pueden ocupar aquellas provincias. 35
Em segundo lugar, utilizando-se do mesmo argumento, el Papa no es señor civil o
temporal de todo el orbe, hablando del dominio y potestad civil en sentido propio.36 É,
sem dúvida, muito ousado para um dominicano que tem voto de obediência ao Papa.
34 Ibid, p. 89. 35 Ibid, p. 89. 36 Ibid, p. 89.
Em terceiro lugar, se invoca comumente o direito que procede do descobrimento, ou
seja, como los españoles fueron los primeros que encontraron y ocuparon aquellas
provincias, síguese que las poseen legítimamente, lo mismo que si descubrieran
deshabitada soledad.37Vitória quebra com simplicidade escolástica o sofisma: mas en este
título, que es el tercero, no es preciso gastar muchas palabras, puesto que está probado
antes que los bárbaros eran verdaderos dueños pública y privadamente.38
Em quarto lugar o argumento de negarem-se os índios a aceitar a fé de Cristo.
Vitória anula este motivo com várias razões. Os bárbaros, antes de tener noticia alguna de
la fe de Cristo, no cometían pecado de infidelidad por no creer en Cristo.39Além do mais,
os bárbaros não têm obrigação de acreditar no cristianismo al primer anuncio que se haga,
de modo que pequen mortalmente no creyendo por serles simplemente anunciado y
propuesto (…) sin que acompañen milagros o cualquier otra prueba o persuasión en
confirmación de ello.40 Vitória não acredita que a fé cristã tivesse sido anunciada com
paciência e eficácia, mas ainda sendo assim, aunque la fe haya sido anunciada a los
bárbaros de un modo probable y suficiente y éstos no la hayan querido recibir, no es lícito,
por esta razón hacerles la guerra ni despojarles de sus bienes.41
Em quinto lugar um motivo mais sério que são os pecados dos mesmos bárbaros.
Alegam que os pecados contra a lei positiva divina, não podem ser perseguidos, no entanto
podem perseguir-se aqueles que forem contra natura, como comer carne humana, ou ter
37 Ibid, p. 89. 38 Ibid, p. 89. 39 Ibid, p. 90. 40 Ibid, p. 90. 41 Ibid, p. 90.
concubinato com mãe, irmãs ou varões. Mas Vitória tampouco aceita tais argumentos: los
príncipes cristianos, aun con la autoridad del Papa, no pueden apartar por la fuerza a los
bárbaros de los pecados contra naturaleza ni por causa de ellos castigarlos.42 Segundo
Vitória, fica muito difícil diferenciar pecados contra a lei positiva divina e a lei natural.
Alem do mais, tampoco pueden hacerse ostensibles con evidencia los pecados contra ley
natural; por lo menos no a todos son patentes.43
No sexto título, Vitória se deslancha como idealizador duma teoria com grandes
repercussões para a práxis perante os desafios que gerará a presença dos europeus no Novo
Mundo, na formulação do princípio de que o livre consentimento dos indígenas pode sim
constituir um justo motivo de domínio hispânico: “Cuando los españoles se llegan a los
bárbaros, les dan a entender cómo son enviados por el rey de España para su propio bien
y les exhortan a recibirlo y aceptarlo por rey y señor; ellos contestan que les place”.44
Ainda assim, o pensador dominicano considera que estes requisitos não se davam, porque
“los bárbaros no saben lo que hacen, y aun quizá ni entienden lo que les piden los
españoles. Además, esto lo piden gentes armadas que rodean a una turba desarmada y
medrosa”. Além do mais, existe outra causa impeditiva de primeira ordem:
Además, teniendo ellos, según se dijo antes, sus propios señores y príncipes, no puede el pueblo, sin
causa razonable llamar a nuevos señores, porque sería con perjuicio de los primeros. Por su parte,
tampoco pueden sus señores elegir nuevo príncipe sin consentimiento de su pueblo.45
42 Ibid, p. 91. 43 Ibid, p. 92. 44 Ibid, p. 92. 45 Ibid, p. 92.
O sétimo título, baseado na idéia de castigo aos pecados dos indígenas, é ironizado
por Vitória: Ojalá que, fuera del pecado de infidelidad, no hubiera entre algunos cristianos
mayores pecados contra las buenas costumbres que entre estos bárbaros.46
O pensamento vitoriano é de uma grandíssima coerência. Sendo os reinos indígenas
reinos pagãos legítimos, que formam uma pré-comunidade de nações, não podem ser
arbitrariamente ocupados, sob ameaça de desestabilizar todo o sistema, que poderíamos
chamar de “multipolar” frente a unipolaridade religiosa, filosófica e política que defendiam
os partidários do Império. Carlos V entra em conflito, pois a negativa da doação papal de
América elimina a cobertura de soberania que o Imperador tinha tanto respeito ao Papa
como aos restantes reinos europeus, a espera da menor brecha nesta trama de privilégios:
La cólera de Carlos V se expresa en la orden que da, ya el 10 de noviembre de 1539, al prior del
convento de San Esteban de Salamanca, lugar de residencia de Vitoria, de incautarse de las
‘lecciones en las que algunos maestros religiosos de este convento han tratado sobre el derecho que
Nos poseemos sobre las Indias’ y enviarlas al Consejo Real.47
46 Ibid, p. 92. 47 DUMONT, Jean, op. cit, p. 84.
B) TÍTULOS LEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS
Primeiro título, primordial para a multipolaridade de Vitória, o ius comunicationis:
Al principio del mundo (como todas las cosas fuesen comunes), era lícito a cualquiera dirigirse y
recorrer las regiones que quisiese. Y no se ve que haya sido esto abolido por la división de las tierras.
Pues nunca fue la intención de las gentes evitar la mutua comunicación entre los hombres por esta
repartición.48
Hugo Grotius no século XVIII assumirá este principio como primordial para o
Direito Internacional.49 Depois servirá a outro Império, o Britânico, para embasar a Union
Act: os barcos ingleses teriam direito de atracar em qualquer porto do mundo desfrutando
da liberdade dos mares e do comércio (a recíproca liberdade quiçá não se verificasse). De
modo que para Vitória, la violación de este privilegio humano justifica el primer título que
permite a los españoles subyugar a sus transgresores.50
O segundo título, em parte deriva do primeiro, e consiste no ius predicationis, ou
seja, si estos, sean los jefes o el pueblo, se lo impiden, los españoles pueden, tras un
requerimiento previo, predicar contra su voluntad. Y si es necesario, aceptar por ello la
guerra, o declararla, hasta que obtengan la seguridad de la predicación.51 No entanto, o
doutor de Salamanca sustenta que apenas se trata de teoria, porque as guerras obstaculizam
mais que favorecem a conversão dos índios.52
48 FERNANDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 93 49 DUMONT, Jean, op. cit, p. 80. 50 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 93. 51 DUMONT, Jean, op. cit, p. 80. 52 Ibidem, p. 80.
Como terceiro e quarto títulos, Vitória segue em parte a John Meyr, com alguma
diferença: se para o doutor da Universidade de Paris, Meyr, os cristãos poderiam depor
sempre aos príncipes indígenas que tolerarem práticas idolátricas, para o dominicano
apenas o poderão fazer no caso de perseguição a um grande número de indígenas
conversos, a modo de proteção das minorias.53 Ou, seja, estamos diante do gérmen do que
mais adiante será chamado Direito Humanitário de Intervenção, de múltiplas leituras.
Como desdobramento dos anteriores princípios, o quinto título, que como veremos
não coincide com Las Casas, pois este último vai bem além no reconhecimento da
diferença. A descrição de Vitória deste título é:
Otro título puede ser la tiranía de los mismos señores de los bárbaros o de las leyes inhumanas que
perjudican a los inocentes, como el sacrificio de hombres inocentes o el matar a hombres inculpables
para comer sus carnes…No es obstáculo el que todos los bárbaros consientan en tales leyes y
sacrificios y no quieran que los españoles los libren de semejantes costumbres. Pues no son en esto
dueños de sí mismos ni alcanzan sus derechos a entregarse ellos a la muerte ni a entregar a sus
hijos.54
Fundamentado num principio de certa soberania popular, se aceita que se tanto os
caciques como os outros livremente aceitassem ao rei da Espanha, poderia ser feito, e seria
título legítimo e de lei natural, porque para Vitória, cada república puede constituir su
propio señor, sin que para ello sea necesario el consentimiento de todos, sino que parece
basta el de mayor parte.55
53 Op. cit, ibidem, p. 80-81. 54 FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, op. cit, p. 94. 55 Op cit, ibidem, p. 94.
O sétimo título não oferece muitas controvérsias, segundo os autores consultados
por Fernández Santamaría: trata-se do caso no qual aliados e amigos possam acudir na
defesa um do outro: como se cuenta que hicieron los tlaxcaltecas, concertándose con los
españoles para que les ayudaran a combatir contra las gentes de México.56 Seguramente
nem Vitória nem o professor Santamaría não tivessem advertido as astúcias que
possibilitaria este título, dado que sempre se pode fomentar, como bem viu Maquiavel,
dentro de uma república, as divergências internas, e depois acudir a “auxiliar” a um dos
contendores para obter o poder. Outra possibilidade de manipular o conceito de país amigo
é o de instalar diretamente algum governador títere.57
56 DUMONT, op. cit, p. 82. 57 MAQUIAVEL, Nicolás, El Príncipe. In: www.librodot.com.
O oitavo título será o que o próprio Vitória deixa entrever como uma certa aporia: el
octavo título podría no ciertamente afirmarse, pero sí ponerse a estudio y parecer a
algunos legítimo. Yo no me atrevo a darlo por bueno ni a condenarlo en absoluto. Quiçá
sem o querer o autor das Relectio De Indis pode estar antecipando o que seria o ponto
fundamental da controvérsia de Valladolid: o problema da racionalidade dos nativos das
Américas, facilmente trasladável à questão qualquer habitante dos países subalternos. Ele
formula assim o principio:
Esos bárbaros, aunque, como se ha dicho, no sean del todo faltos de juicio, distan, sin embargo, muy
poco de los amentes, por lo que parece que no son aptos para formar o administrar una república
legítima dentro de los términos humanos y civiles. Por lo cual no tienen una legislación conveniente,
ni magistrados, y ni siquiera son suficientemente capaces para gobernar la familia. Por eso carecen
también de ciencias y artes, no sólo liberales, sino también mecánicas, y de cuidada agricultura, de
trabajadores y de otras muchas cosas provechosas y hasta necesarias para los usos de la vida humana.
Podría entonces decirse que para utilidad de ellos pueden los reyes de España tomar a su cargo la
administración de aquellos bárbaros, nombrar prefectos y gobernadores para sus ciudades y aun
darles también nuevos príncipes si constara que esto era conveniente para ellos. Esto digo que puede
ser legítimo, porque si todos fueren amentes, no hay duda que ello seria lícito y convenientísimo.58
58 FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, op. cit, p. 94-95.
PENSAMENTO DE LAS CASAS
La sangre se estanco; ya no circula.
Ya por el rumbo de Texcoco viene
la tempestad y yo no tengo
adonde ir. Se deshojó
la flor de cuatro puntas cardinales.
Se mojarán las lágrimas con la lluvia que viene.
La noche será horrible.
(Después llovió toda la noche
y amaneció lloviendo sobre las ruinas.)
Trece de Agosto. Bronce.
Me da tristeza,
no por mexicano,
sino sólo por hombre.
Carlos Pellicer. 13 de agosto, ruina de Tenochtitlán. Antología Poética.
Lembrar da longa vida aventureira deste sevilhano é imprescindível para explicar e
até justificar sua obra e pensamento, e isto não é uma afirmação retórica: conheceu, sofreu
e foi testemunha direta dos primeiros passos dos espanhóis nas Índias. Nascido em 1484 ou
1474, no que nenhuma das miríades de biografias, hagiografias e libelos a ele dedicados
concordam. Descendente de nobres, possivelmente começara seus estudos de direito em
Salamanca, mas provavelmente não os terminou.59Parece que ainda estudante aderiu às
teorias de Colombo, e que o próprio tio de Bartolomeu se dedicara ao recrutamento de
marujos para o Almirante. O pai e o tio de Las Casas embarcaram em 1493 na segunda
viagem do Genovês: Despachado el correo, Don Cristóbal Colón, ya Almirante, con el
mejor aderezo que pudo, se partió de Sevilla llevando consigo los indios, que fueron siete
lo que le habían quedado de los trabajos pasados, porque los demás se le habían muerto.60
59 ANABITARTE, Héctor. Bartolomé de las Casas. Madrid: Labor, 1992, p. 26. 60 Op. cit, ibidem, p. 28.
Segundo André Saint-Lu, em 1495 estuda na Academia Latina, fundada por
Antonio de Nebrija61, autor da primeira gramática do Castelhano. No ano 1498 Don Pedro
de Las Casas, seu pai, entre las alhajas que de la Indias trajo una fue un indiezuelo que le
dio el Almirante Colón, el cual dio por paje a su hijo Bartolomé de Casaus.62Apaixonado
pelo descobrimento do índio, pretende ingenuamente conocer, a través de un tierno fruto,
todo el árbol genealógico del mundo descubierto por Colón.63
A rainha Isabel de Castilha decreta a imediata devolução dos índios para o Novo
Mundo, sob pena de morte. Esta medida produziu um grande efeito no espírito do jovem,
pois: muchos años después de sucedido y recordando, incluso, las palabras literales
pronunciadas por la Reina, a saber: ‘¿qué poder tiene mío el Almirante para dar a nadie
mis vasallos?’ como cosa que tan gravada había quedado en su memoria.64
Em 1502 embarca numa expedição com uma frota de 32 navios e 2.500 homens, na
qual viaja o novo governador de La Hispaniola, don Nicolás de Ovando, e como ele mesmo
descreve na História das Índias,
Los de tierra decían que la isla estaba muy buena, y dando razón de su bondad y regocijo, añadían el
porqué, conviene a saber: porque había mucho oro y se había sacado un grano solo que pesaba tantos
mil pesos de oro, y porque se habían alzado ciertos indios en cierta provincia, donde captivarían
muchos esclavos. Yo lo oí por mis oídos mismos, porque yo vine aquel viaje con el comendador de
Lares a esta isla (…)65(Grafos nossos).
61 SAINT-LU, A e BATAILLON, M. El padre Las Casas y la Defensa de los Índios. Madrid: Sarpe, 1985,p13 62 ANABITARTE, Op. cit, ibidem, p. 29. 63 Ibidem, p. 29. 64 MARTÍNEZ, Fray Manuel, O.P. Fray Bartolomé de las Casas, Padre de América. Madrid: La Rafa, 1958, p.12. 65 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias, lib II, cap III, p. 215.
Qual o móbil e finalidade da viagem para América do nosso jovem Bartolomeu?
Habría ido a encargarse de la administración de los repartimientos adquiridos en la
Española por su padre, Pedro de Las Casas y por su tío Fco. de Peñalosa. Es cierto, que
años adelante le vemos disfrutando del trabajo de los indios, como uno de tantos.66
A) LAS CASAS VERSUS GÓMARA: TESTEMUNHO CONTRA DITIRAMBO
O batismo de sangue do nosso frade fora em 1511, na expedição em Cuba. No
próprio relato do dominicano, pasé yo allá habiendo enviado por mí el dicho Diego
Velázquez, por el amistad que en esta isla habíamos tenido pasada, y anduvimos juntos
Narváez y yo, asegurando todo el resto de aquella isla para mal de toda ella.67 Las Casas
não oculta a finalidade nem se furta à auto-critica, junto com seu amigo Velázquez:
Hostigados y atemorizados los indios de aquella provincia de Maycí, como está dicho,
comenzó Diego Velázquez a pensar en repartir los indios della por los españoles (…).68
A participação pessoal, o conhecimento direto dos testemunhos e a própria
confissão de culpa inicial nas conquistas ou ao menos nos benefícios que estas geraram,
confere, paradoxalmente para Las Casas, mestre na “pintura do horror” da conquista, uma
tonalidade de verossimilhança e autoridade frente aos historiadores oficiais, como Gómara,
humanistas como Sepúlveda ou ao próprio Filipe II, ausentes fisicamente das Índias. Las
Casas, através da dialética vai construindo um pensamento que até hoje continua clássico,
66 MARTÍNEZ, op. cit, p. 13. 67 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. Lib III, cap. XXVI, p. 525. 68 Ibidem, p. 525.
sobretudo devido a sua legião de antagonistas. Vejamos algumas observações sobre
Gómara:
Gómara, clérigo, que escribió la Historia de Cortés, que vivió con él en Castilla siendo ya marqués, y
no vido cosa ninguna, ni jamás estuvo en las Indias, y no escribió cosa sino lo que el mismo Cortés le
dijo, compone muchas cosas a favor dél, que, cierto, no son verdad, y entre otras, dice, hablando en
el principio de la conquista de México, que no quiso hablar en muchos días de enojado a Diego
Velázquez, y que una noche fue armado donde Diego Velázquez estaba solo con solos sus criados, y
que temió Diego Velázquez cuando lo vido a tal hora y armado (…) Yo vide a Cortés en aquellos
días, o muy pocos después, tan bajo y tan humilde, que del más chico criado que Diego Velázquez
tenía quisiera tener favor; y no era Diego Velázquez de tan poca cólera, ni aun de tan poca gravedad
que, aunque por otra parte, cuando estaba en conversación era muy afable y humano [pero cuando
era menester y se le antojaba, temblaban los que estaban delante dél, y quería siempre que le tuviesen
toda reverencia, y ninguno se sentaba delante dél (…)] por lo cual si sintiera de Cortés una punta de
alfiler de cerviguillo o presunción, o lo ahorcara, o a lo menos lo echara de la tierra y lo sumiera de
ella sin que alzara cabeza en su vida. Así que Gómara mucho se alarga imponiendo a Cortés, su amo,
lo que en aquellos tiempos no sólo por pensamiento estando despierto, pero ni durmiendo, por sueños
parece poder pasarle. Pero como el mismo Cortés, después de marqués, dictó lo que había de escribir
Gómara, no podía sino fingir de sí todo lo que le era favorable; porque como subió tan de súpito de
tan bajo a tan alto estado, ni aun hijo de hombre, sino de Júpiter desde su origen quisiera ser
estimado.69
69 Ibidem, p. 529.
B) LAS CASAS VERSUS FERNÁNDEZ DE OVIEDO: OS INTERESSES CRIADOS
Sobre Fernández de Oviedo, cronista mor do Reino, Las Casas não é menos
inclemente e, no entanto, não consegui encontrar uma refutação direta às acusações que Las
Casas lhe faz, as quais ficam ressoando nos ouvidos dos amantes dos Cantares de Gesta dos
heróis hispânicos, ao mais puro estilo Comentarii De Bello Gallico de Júlio César:
Para probar su pestilentísima opinión, Sepúlveda cita a un tal Oviedo que escribió una Historia
General, según él la titula, sobre la realidad de las Indias. Este escribe en su obra que la gente de la
isla La Española es perezosa, ociosa, mentirosa, inclinada al mal y culpable de muchos vicios; a esto
añade que esta gente tiene flaca memoria, es inconstante, perezosa, ingrata y absolutamente incapaz
para todo. Después dice que, aunque tienen alguna virtud en la adolescencia, en cuanto llegan a la
edad adulta caen en vicios abominables. (…) Sé que hay que tener piedad de una persona tan
ignorante y ocupada en pintar los árboles genealógicos de cada nación. 70
Las Casas serve-se da mesma narrativa de Oviedo para combatê-lo, empunhando
uma arma dialética que poucos tratados de retórica ou Cortesãos de Castiglione aprovariam:
Pues así dice en el prólogo de la primera parte de su Historia, que no tiene el mínimo valor: Así he
trabajado, en obsequio de Vuestra Majestad, como inspector de cuentas, cuando y como convenía,
para estar presente en la guerra y en la pacificación de estas tierras mediante las armas. Este
impostor llama pacificación a matar a criaturas racionales de Dios con crueldad propia de un turco,
sin ningún o levísimo motivo (…)71
Além do mais, o próprio Oviedo descreve sua conduta: yo hice que mis siervos
indios extrajeran oro. Ya ves, lector, que éste fue uno de los que utilizaba indios; también
fue líder y se siente orgulloso de esta guerra diabólica, es más de la desolación y
70 LAS CASAS, Bartolomé. Apologia. Cap LVII, p.345-346. 71 Ibidem, p. 348.
destrucción de las provincias que se llamaban ‘Del Darién’72. A continuação, de novo o
argumento da autoridade que lhe confere ser testemunha, serve para rebater os argumentos
historiográficos de Gomara e para afirmar as teses de Las Casas:
Oviedo escribió que los indios de la isla La Española practicaban la sodomía y eran culpables de
otros nefandos pecados; esto es falso, en realidad. Pues yo fui uno de los primeros que viajé allí, si
no en el primero, en el segundo viaje, hacia el año 1500, en la época en que estaba allí el comendador
Bobadilla, que envió a Colón encadenado a España, y me quedé en la isla algunos años. Hice una
investigación diligentísima sobre este asunto y descubrí que el nefando vicio de la sodomía es entre
ellos rarísimo o inexistente. (…). En la época que Oviedo llegó a la isla, el pueblo indio, constituido
en una inmensa multitud de gente, había desaparecido totalmente y de los españoles que habían
matado a los indios, sólo quedaban a los sumo dos o tres, pues todos habían muerto.
O ilustrador de Las Casas, Theodor De Bry73 consegue imprimir a crueza das cenas.
De Bry's image of Spanish soldiers murdering Native Americans (From GREAT VOYAGES, Part IV, 1594)
72 Ibidem, p. 348 73 Nasceu em Lieja, Flandes, em 1528, onde morou até 1560. Filho de uma família protestante, ele teve que se exilar para Estrasburgo fugindo da morte e saques das guerras de religião da época. Discípulo de Albert Durero, e despojado pela contenda, De Bry sobreviveu graças a sua arte, sendo um dos primeiros em retratar os indígenas do Novo Mundo. Baseado nos relatos de Standen e de Sir Walter Raleigh, elabora as imagens mais conhecidas do canibalismo americano do século XVI, na ilustração da Storia del mondo nuovo (1565), de Girolamo Benzoni, e o monumental “Idéia verdadeira e genuína de todas as principais histórias, e de os vários ritos, cerimoniais y costumes dos habitantes das Índias; tal como as principais cidades e ilhas e fortalezas ou defesas das quais se trata nesta parte nona da história da América ou Índia Ocidental, em Francfort, imprenta de Mateo Becker, 1602”, impresso em Frankfort pela viúva na última cidade onde residiu73. Idôneo para as muitas edições da Brevíssima de Las Casas, e como ele, dentro de um caustico e crítico visceral realismo, é difícil se pensar em Las Casas sem sentir as cruas imagens de De Bry.
C) LAS CASAS VERSUS FRANCISCANOS: HOMO RATIONALIS VS INFANS
Os franciscanos manifestam, na época, a tendência a considerar os índios como
crianças pequenas em cultura e raciocínio. Pensam, portanto, que é melhor primeiro batizá-
los para depois instruí-los para o posterior crescimento em fé e amadurecimento cristãos. Já
os dominicanos, entre eles Las Casas, consideram aos índios como pessoas adultas, e por
isto antepõem ao batismo a instrução na fé e os costumes cristãos. Foi este um dos motivos
dos enfrentamentos entre ambas ordens e de Motolínia com Las Casas. A obra deste último,
De Único Vocationis Modo foi o fundamento da encíclica Sublimis Deus, na qual se predica
a plena racionalidad, humanidad y derechos humanos de los amerindios y de todos los
pueblos, incluso antes y con independencia de su conversión a la fe.74
Tal encíclica batera frontalmente com o edifício colonial sustentado pelos alicerces
das encomendas: los satélites del Enemigo del género humano tienen la audacia de afirmar
74 ABRIL CASTELLÓ, Vidal. Bartolomé de las Casas y la Escuela de Salamanca en la Historia de los Derechos Humanos: la Apologia. In: Apologia, op, cit, p. XVII y XVIII.
en todas partes que es necesario reducir a los indios a servidumbre (…) bajo pretexto de
que son como bestias incapaces de recibir la fe católica (…)75
Em contraste, Motolínia e, por extensão, os franciscanos, tinham optado por um
caminho mais prático ou “realista” , como se mostra na carta que enviara em dois de janeiro
de 1505 a Carlos V, acerca de Fernão Cortez: Por este capitán nos abrió Dios las puertas
para predicar su Santo Evangelio, y éste puso a los indios que tuviesen reverencia a los
santos sacramentos, y a los ministros de la Iglesia en acatamiento.76 O fim do mundo se
aproximava e era urgente a conversão maciça do maior numero de pagãos, pelos métodos
que fossem necessários. Las Casas destila ironia em relação às conversões avulsas por parte
dos franciscanos, como no caso da conversão do índio que se encontra na fogueira:
Quando lo querían quemar, estando atado al palo, un religioso de Sant Francisco le dijo como mejor
pudo que muriese cristiano y se baptizase; respondió que ‘para qué había de ser como los cristianos,
que eran malos’. Replicó el padre: ‘porque los que mueren cristianos van al cielo y allí están viendo
siempre a Dios y holgándose’; tornó a preguntar si iban a l cielo cristianos; dijo el padre que sí iban
los que eran buenos; concluyó diciendo que no quería ir allá, pues ellos allá iban y estaban. Esto
acaeció al tiempo que lo querían quemar, ya sí luego pusieron leña al fuego y lo quemaron (…)77
75 DUMONT, op. cit, p. 69-70. 76 DE ROUX, Rodolfo. Dos Mundos Enfrentados. Colômbia: CINEP, 1990, p. 171. 77 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. Lib III, cap XXV, p. 533-534.
Motolínia consegue ser explicito e prático, dentro do seu milenarismo:
Será predicado este evangelio en todo el universo antes de la consumación del mundo. Pues a V.M.
conviene de oficio darse prisa que se predique el Santo Evangelio pro todas estas tierras y los que no
quisieren oír de grado, sea por fuerza, que aquí tiene lugar aquel proverbio: más vale vueno por
fuerza que malo por grado.78
De forma congruente, Fray Toribio de Motolinia arremete, na sua carta ao
Imperador Carlos V, contra Las Casas, e argumenta com o método da citação, para ele auto
inculpatória:
Dice en aquel confesionario, que ningún español en esta tierra ha tenido buena fe acerca de las
guerras, ni mercaderes, en llevarles a vender mercaderías, y en esto juzga los corazones. Asimismo
dice que ninguno tuvo buena fe en el comprar y vender esclavos. Y no tuvo razón, pues muchos se
vendieron por las plazas con el hierro de V.M. y algunos años estuvieron muchos cristianos bona fide
y en ignorancia invencible.79
78 DE ROUX, op. cit. p. 171. 79 TORIBIO DE MOTOLINIA. Carta a Carlos V. In: Pereña, Luciano: Proceso a la Leyenda Negra. Salamanca: Universidad Pontificia, 1989.
LAS CASAS VS SEPÚLVEDA: CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID
Yo no soy el filósofo.
El filósofo dice: Pienso…luego existo.
Yo digo: Lloro, grito, aúllo, blasfemo…luego existo.
Creo que la Filosofía arranca del primer juicio. La Poesía, del primer lamento.
No sé cuál fue la palabra primera que dijo el primer filósofo del mundo.
La que dijo el primer poeta fue: ¡Ay! Este es el verso más antiguo que conocemos.
La peregrinación de este ¡Ay! Por todas las vicisitudes de la historia ha sido hasta hoy la Poesía.
Un día este ¡Ay! Se organiza y santifica. Entonces nace el salmo.
Del Salmo nace el templo. Y a la sombra del salmo ha estado viviendo el hombre muchos siglos.
León Felipe. “El Poeta y el Filósofo”. De Poeta Maldito.
Juan Ginés de Sepúlveda, antagonista de Las Casas por antonomásia, nasceu na
pequena aldeia andaluza de Pozoblanco numa família humilde. Estudou em Alcalá de
Henares e depois em Sigüenza, universidade que já foi ironizada no próprio Quixote, o que
indica as dificuldades iniciais deste esforçado estudante, que concluiria sua formação no
Colégio Espanhol em Bolonha, onde seria aluno de Pomponazzi, graças à política de bolsas
do Cardeal Cisneros, então regente da Coroa de Castela. Protegido dos grandes mecenas
italianos, Julián de Médicis (futuro Clemente VII), Alberto Pio, príncipe de Carpi e Ercole
Gonzaga, Aldo Manucio e o papa Adriano VI, Sepúlveda se destaca como brilhante
tradutor do grego de Aristóteles, teólogo, jurista e espelho do perfeito cortesão. Quando
Carlos V foi se coroar imperador em Bolonha, estava rodeado por um círculo erasmista que
acreditava num messianismo imperial que faria chegar à idade de ouro. Seria o já
humanista “italiano” Sepúlveda o representante papal que recebera o César Carlos.
Fiel seguidor dos conselhos de Castiglione80, ele compôs engenhosamente e para
maior glória do Imperador a Cohortatio ad Carolum bellum suspiciat in turcas. Dois anos
depois, as tropas imperiais realizam o Saco de Roma e Sepúlveda é convidado para a Corte
dos Austrias como cronista imperial.81
Adversário do círculo erasmista, ele intui rapidamente as contradições dos ideais
daqueles com os imperativos da real politik e tenta se inserir no contexto imperial da Corte
de Carlos, prevendo o perigo do protestantismo para o seu programa imperial. Então
escreve o Demócrates Alter em defesa da guerra justa contra os índios e a pertinência das
encomiendas para o efetivo governo do Novo Mundo. O antagonista de Demócrates,
Leopoldo, é um jovem alemão luterano que se opõe à guerra, contra o qual o alter ego de
Sepúlveda, Demócrates, argumenta em favor da submissão dos índios aos europeus:
Y vemos que esto está sancionado en el libro de los Proverbios: “El que es necio servirá al sabio”. Es
creencia que tales son los pueblos bárbaros e inhumanos apartados de la vida civil, conducta
morigerada y práctica de la virtud. A éstos les es beneficioso y más conforme al derecho natural el
que estén sometidos al gobierno de naciones o príncipes más humanos y virtuosos, para que con el
ejemplo de su virtud y prudencia y cumplimiento de sus leyes abandonen la barbarie y abracen una
vida más humana, una conducta morigerada y practiquen la virtud. Y si rechazan su gobierno,
pueden ser obligados por las armas, y esta guerra los filósofos enseñan que es justa por naturaleza
con estas palabras: “De esto resulta que en cierto modo brota de la naturaleza la obtención de
riquezas por medio de la guerra, puesto que una parte de ella es la facultad de la caza, de la cual
conviene usar no sólo contra las bestias, sino también contra aquellos hombres que habiendo nacido
para obedecer rehúsan el dominio, pues tal guerra es justa por naturaleza” Hasta aquí Aristóteles.82
80 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 81 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit. p. 167-171, 82 SEPÚLVEDA, Juan Ginés. Obras Completas III, Demócrates Segundo, Trad. A. Coroleu, Ayuntamiento de Pozoblanco, 1997, libro I, p. 55-56.
Frei Bartolomeu conseguiu das Universidades de Alcalá e Salamanca relatórios
desfavoráveis com os quais impedir a publicação do Demócrates. O teólogo Sepúlveda
contra-atacou e conseguiu que o Conselho de Índias ordenasse a retirada de todos os
exemplares impressos e manuscritos da obra Confesionario do dominicano Las Casas83.
Acusações e informes foram, num fogo cruzado entre os beligerantes, arremessados um
contra outro. O Conselho de Índias decidira confrontá-los na que fora chamada a
Controvérsia de Valladolid, celebrada em duas sessões, entre 1550 e 1551. Participaram do
Conselho importantes filósofos da Escola de Salamanca, como Melchor Cano, sucessor da
cátedra em Salamanca de Francisco de Vitória, e Domingo de Soto, sendo este último quem
elaborou um resumo com as conclusões, nas quais nenhum erudito até hoje coincidiu em
determinar como favoráveis para um ou outro contendedor. O Conselho imediatamente
depois declarou o fim das conquistas e a ilicitude da escravidão dos índios.84
Diante da desobediência desta e das demais leis de Índias, Bartolomeu decide então
difundir os argumentos que defendera na Controvérsia, primeiro por meio de cópias
privadas e depois editadas por Cromberger e Trujillo com até sete reimpressões, feitas a
custa dos próprios livreiros que visavam um lucro quase certo. Já em 1553 aparecera um
concorrente anônimo que editara a edição pirata da Disputa entre Las Casas e Sepúlveda.85
Enquanto as obras de Las Casas eram sucesso, o Demócrates Alter apenas seria resgatado
no século XVIII pela Real Academia de História e editado por Menéndez Pelayo em 1892,
até então condenado à poeira do esquecimento: este su libro presento al Dotor en el
83 DE LAS CASAS, Bartolomé, Brevísima Relación de la Destruición de las Indias, Madrid, Castalia, 1999, p. 25. 84 Idem, Op. Cit, p. 26. 85 Idem, Op. Cit, p. 31.
Consejo Real de las Indias, suplicando con gran instancia e importunidad que le diesen
licencia y autoridad para imprimirlo. La qual le negaron muchas vezes, conociendo el muy
cierto escándalo y daño de publicarlo se recrecería.86.
Poucos entenderão o porquê desta discriminação. Ao final, não seria a tese do
esquecido Sepúlveda aquela que terminaria triunfando nos fatos? Até hoje, milhares de
indígenas continuam sendo exterminados por grupos para-militares, desde o México até a
Colômbia, e de fome ou pobreza no resto do continente, pois são considerados necios como
sabiamente observara Sepúlveda: seu latim era cristalino e os conhecimentos que sobre
Aristóteles acumulara rivalizavam com o próprio Avicena. Intercambiava cartas com
Erasmo, que ainda discordantes sempre falam da altura intelectual de Ginés. Por quê, então,
a injustiça com a obra deste preclaro homem? Apenas lembrado por alguns nostálgicos
“idealistas” do que a Grandeza da Espanha poderia ter sido e não foi, este tradutor do
estagirita fora resgatado por autores como Menéndez Pelayo, autor-perseguidor dos
Heterodoxos Españoles, em plena crise fin-de-sécle colonial espanhola do século XIX, por
Losada nos postremeiros tempos do regime de Franco, ou atualmente nesta incerta época
das “invasões bárbaras” na Espanha, com um 8,4% de população estrangeira em janeiro de
200587, resgatado por Solana Pujalte e Coroleu.
Assim como uma fotografia não existiria sem o seu negativo, Las Casas mesmo sem
o saber, nunca seria compreensível sem Sepúlveda, e nenhuma imagem mais gráfica que a
da Controvérsia de Valladolid sobre a licitude das Guerras de Conquista contra os índios.
86 Soto, Domingo. Relecciones y Opúsculos, in: SEPÚLVEDA, Ginés, Obras Completas III, Demócrates Segundo, Trad. A. Coroleu, Ayuntamiento de Pozoblanco, 1997, libro I, p. XII). 87 Instituto Nacional de Estadística de España, INE, in: www.ine.es, novembro de 2005.
A) SEPÚLVEDA: O INTELECTUAL ORGÂNICO.
There is nothing more consistent than a racist humanism,
since the European has only been able to become a man through
creating slaves and monsters.
Jean Paul Sartre. Preface of Fanon.
Teólogo, filósofo e jurista humanista da escola italiana, Juan Ginés utilizará
idênticas fontes de autoridade – o estagirita e a Bíblia – que os dominicanos tomistas, e
como num jogo de xadrez, os princípios, estratégias e estilos de cada qual formularão um
desenvolvimento do Grande Jogo, que a Controvérsia representa, diametralmente oposto.
O tradutor da Ética e da Política de Aristóteles para o Latim fundamenta a
conquista, ocupação e conseguinte dominação dos indígenas pelos europeus na servidão
natural dos bárbaros que o preceptor do Imperador Alexandre Magno ideara. Baseia-se
tanto na carência ou menor razão dos nativos, quanto no seu caráter selvagem e inferior,
que estava baseado na ausência de escritura, idolatria e rituais de canibalismo e sacrifícios
humanos que realizavam, o que fazia deles primatas sub humanos ou “monstrua”. Portanto,
ficam sentadas as bases para a mission civilisatrice, o que transforma Sepúlveda numa
figura inaugural na filosofia da conquista e ao mesmo tempo, talvez numa máscara branca
que o Império não gostasse muito de exibir.
Alem da erudição clássica, o que converte a Sepúlveda numa f