127
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Bartolomé de las Casas, A Pena contra a Espada. JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura Recife, 2006

Bartolomé de las Casas, - UFPE · Vierten los indios oro fundido en boca de los españoles para saciar su cudicia ", p.103. _____. Crudelitas Petri de Calyce erga Indos . ... já

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

    Bartolomé de las Casas,

    A Pena contra a Espada.

    JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

    em Letras da Universidade Federal de Pernambuco,

    como requisito parcial para obtenção do grau de

    Mestre em Teoria da Literatura

    Recife, 2006

  • Universidade Federal de Pernambuco – Centro de Artes e Comunicação –

    Programa de Pós-Graduação em Letras de UFPE

    Bartolomé de las Casas:

    A Pena contra a Espada

    JUAN PABLO MARTÍN RODRIGUES

    Banca Examinadora:

    Doutor Alfredo Cordiviola, UFPE

    _____________________

    Doutor Anco Márcio Tenório, UFPE

    _____________________

    Doutora Ildney Cavalcanti, UFAL

    _____________________

    Dissertação de Mestrado em

    Teoria Literária apresentada ao

    Departamento de Letras da UFPE

    sob a orientação do Professor

    Doutor ALFREDO CORDIVIOLA

    Recife, 2006.

  • Martín Rodrigues, Juan Pablo Bartolomé de las Casas: a pena contra a espada /

    Juan Pablo Martín Rodrigues. – Recife : O Autor, 2006. 125 folhas : il., fig.

    Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Departamento de Letras, 2006.

    Inclui bibliografia

    1. Literatura. 2. Literatura hispano-americana . 3. Estudos culturais 4. Las Casas, Bartolomé de. I. Título.

    82 CDU (2.ed.) UFPE 800 CDD (22.ed.) CAC2006-4

  • A minha companheira Neide,

    portadora, sem o saber, do pensamento indígena liminar.

    A Miguel Espar, J. Ignacio Centurión e Alfredo Cordiviola,

    habitantes da fronteira entre pai, amigo, mestre,

    A Ermelinda Ferreira, Yaracilda Coimet e Lucila Nogueira,

    perpétuas, amorosas e acadêmicas musas.

    Ao CNPQ e ao Governo Brasileiro,

    por acreditarem num morador da zona zero.

  • SUMÁRIO

    SUMÁRIO 04

    LISTA DE ILUSTRAÇÕES 06

    RESUMO 08

    RESUMEN 09

    PRÓLOGO 10

    UMA TENTATIVA: OS ESTUDOS CULTURAIS. A VOZ DOS SUBALTERNOS 13

    POR QUÊ RELER O SÉCULO XVI? 18

    LAS CASAS: UM DESCONHECIDO NO BRASIL? 23

    ANTECESSOR DE LAS CASAS: FRANCISCO DE VITÓRIA 26

    A) TÍTULOS ILEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS. 29

    B) TÍTULOS LEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS 33

    PENSAMENTO DE LAS CASAS 37

    A) LAS CASAS VERSUS GOMARA: TESTEMUNHO CONTRA DITIRAMBO 39

    B) LAS CASAS VERSUS FDEZ DE OVIEDO: OS INTERESSES CRIADOS 41

    C) LAS CASAS VERSUS FRANCISCANOS: HOMO RATIONALIS VS INFANS 43

    LAS CASAS VERSUS SEPÚLVEDA: CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID 46

    A) SEPÚLVEDA: O INTELECTUAL ORGÂNICO 50

    B) LAS CASAS: DEFENSOR DOS ÍNDIOS 52

    1) QUATRO CLASSES DE BARBÁRIE 52

    2) A IDOLATRIA COMO CAUSA DE GUERRA 56

    3) O DIREITO DE INTERVENÇÃO 58

    4) ANTROPOFAGIA: SACRIFÍCIOS HUMANOS OU CANIBALISMO 60

    IGREJA, ERASMISMO E HUMANISMO ITALIANO 64

  • LAS CASAS: POLEMISTA, VISIONÁRIO, LITERATO, HISTORIADOR? 73

    A “REALIDADE” DO PASSADO HISTÓRICO 89

    A) SOB O SIGNO DO MESMO: A “REEFETUAÇÃO” DO PASSADO NO PRESENTE 90

    B) SOB O SIGNO DO OUTRO: UMA ONTOLOGIA NEGATIVA DO PASSADO? 95

    C) SOB O SIGNO DO ANÁLOGO: UMA ABORDAGEM TROPOLÓGICA? 100

    O ENTRECRUZAMENTO DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO: A FICCIONALIZAÇÃO DA

    HISTÓRIA 104

    LAS CASAS E O LIVRE ARBÍTRIO 117

    BIBLIOGRAFIA 120

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    De Bry, Theodor. Americae pars VIII [Frankfurt, Theodor De Bry], 1599, p. 17

    _____. Pergrinus in indiam: Colombo chega à Ilha Guanahaní (Bahamas) 12 de outubro de

    1492, (Théodore de Bry, Grands Vogages, 1594)Bartholomé de Las Casas, Narratio

    regionum indicarum per Hispanos. Frankfurt: 1598, p. 18.

    _____. America Pars IV por Benzoni (1592), p. 22.

    _____. India Orientalis (1597) p. 28.

    _____. Americae pars quinta, 1595, NYPL, p. 29.

    _____. The first images of Native Americans (1590-1591), p. 32.

    Father Bartolomé de las Casas. A fragment of the mural in Sna Jolobil, in San Cristóbal de

    las Casas. Photograph by Sharon Lee House, July 1994. In:

    www.historycooperative.org/journals/ahr/105.2/ah000417, p.35.

    De Bry. Cannibals in the new world: 1593, p. 36.

    Francisco López de Gómara, Historia delle nuove Indie Occidentali... Venice: Giovanni

    Bonadio, 1564, p. 40.

    De Bry, Theodor. Image of Spanish soldiers murdering Native Americans (From Great

    Voyages, Part IV, 1594), p. 42.

    _____. Hans Staden with the cannibals in Brazil. Volume III of Grand Voyages p 32, p. 43.

    _____. Coleção De Bry lamina IV, edição fac-similar da Brevíssima, p. 22. Detalhe, p. 44.

    _____. Ilustração da Brevíssima, p. 45.

    _____. VIII Qva ratione indi mexicani mactatis hominibvs sacrificent, p. 63.

    _____. English sportmen in the new world: 1618, p. 67.

  • _____. Mandando queimar os pés dum indígena, Penguin edition, 1992, ed. Nigel

    Griffin,pp. 117-18, p. 73.

    _____. Mina de Potosí. Trabalhadores indígenas numa mina de prata, p. 74.

    _____. God, Glory, and Gold, from America, 13 vols. (Frankfurt, 1590-1634), Pt. 5, p. 75

    _____. Narratio regionum indicarum per Hispanos... do original: Frankfurt: 1598, p. 79.

    _____. German edition of Brevisima Relacion de la destruycion de las Indias ("A Brief

    Relation of the destruction of the Indies") By Bartolome de las Casas, 1552. "Knights of

    Spain, Warriors of the Sun: Hernando de Soto and the South's Ancient Chiefdoms", by

    Charles Hudson. Spanish savagery: cutting off of hands and noses, dogs hunting natives,

    and mass slaughter and murder, p. 81.

    _____. Kupferstich von De Bry, in: Las Casas, Werkauswahl Bd. 2, 47, p. 82.

    _____. Las Casas, Narratio regionum indicarum per Hispanos...( Frankfurt: Theodor de

    Bry, 1598), p. 83.

    _____. Collectiones peregrinationum. 1590-1634, p. 86.

    _____. Spanish justice in terra florida, 1595, p. 88.

    _____. Capa da edição latina de 1598 da Brevíssima, p. 93.

    _____. Coleção De Bry lamina VII, edição fac-similar da Brevíssima, p 35. P. 94.

    _____."Vierten los indios oro fundido en boca de los españoles para saciar su cudicia", p.103.

    _____. Crudelitas Petri de Calyce erga Indos. Pars IV, p. 116.

    _____. Además de ser empleados en las minas de oro y plata, los esclavos negros

    empezaron a cultivar las plantaciones de caña de azúcar.Pars V, p. 3, p. 120.

  • RESUMO

    Bartolomé de las Casas viveu no século XVI, época em que teve que lidar com

    fenômenos de atritos culturais entre o ocidente imperial e os povos por aquele submetidos,

    momento em que teve que se abrir para pensar o Outro. Para os sistemas imperiais, as

    narrações históricas passam a ter um papel fundamental como gênero que inicia a

    modernidade, funda a identidade dos “civilizadores” e deixa entrever os limites do

    pensamento colonial. Os textos lascasianos se fundamentam, sobretudo, na filosofia de

    Francisco de Vitória, indo além no reconhecimento da autonomia indígena, e dialogam –

    polemizam – com as principais correntes ideológicas e autores que estudam a colonização.

    O dominicano Las Casas se dirige ao poder (“o Príncipe”) e à crítica (adversários

    intelectuais), mas também já visa o grande público utilizando para isso os recursos retóricos

    adequados ao gênero de testemunho-denúncia, e a nova imprensa. Precursor do pensamento

    liminar latino americano deve ser objeto dos novos estudos culturais.

  • RESUMEN

    Bartolomé de las Casas vivió el siglo XVI, época que tuvo que enfrentarse a

    fenómenos como los choques culturales entre el occidente imperial y los pueblos por aquél

    sometidos, momento en el que se tuvo que abrir para pensar al Otro. Para los sistemas

    imperiales, las narraciones históricas pasan a tener un papel fundamental como género que

    inicia la modernidad, funda la identidad de los “civilizadores” y deja trasparecer los límites

    del pensamiento colonial. Los textos lascasianos se fundamentan sobre todo en la filosofía

    de Francisco de Vitoria, yendo más allá en el reconocimiento de la autonomía indígena, y

    dialogan – polemizan – con las principales ideologías y autores que abordan la colonización

    El dominico Las Casas se dirige al Poder (“el Príncipe”) y a la “Crítica” (adversarios

    intelectuais), pero también ya se orienta al gran Público, empleando para ello los recursos

    retóricos adecuados al género de testimonio-denuncia. Las Casas, precursor del

    pensamiento liminar latino-americano debe ser objeto de los nuevos estudios culturales.

  • PRÓLOGO

    La justicia no se descuidaba de buscarnos. Rondábamos la puerta, pero, con todo, de media noche abajo,

    rondábamos disfrazados. Yo, que vi que duraba mucho este negocio, y más la fortuna en perseguirme, no de

    escarmentado, que no soy tan cuerdo, sino de cansado, como obstinado pecador, determiné, consultándolo

    primero con la Grajal, de pasarme a Indias con ella a ver si, mudando de mundo y tierra, mejoraría mi suerte.

    Y fueme peor, como V.Md. verá en la segunda parte, pues nunca mejora su estado quien muda solamente de

    lugar, y no de vida y costumbres.

    Francisco de Quevedo. Vida del Buscón llamado Don Pablos, in fine.

    Como filho de estrangeira na Espanha, espanhol estrangeiro no Brasil, brasileiro

    retornado na península ibérica, licenciado em direito estudante de Letras que exerce como

    professor (autônomo) de línguas numa capital do Nordeste e que entrara a fazer parte duma

    família interiorana de Pernambuco, minha vida pessoal e acadêmica tende a ser marcada

    não apenas pela televisiva e idílica miscigenação, mas pelas profundas contradições

    culturais que nossa época (re)vive, já sem um possível retorno a uma pura idade de ouro,

    num Brasil que entrou de vez na globalização, num Mundo que penetrou na Europa,

    configurando um Melting Pot étnico onde interagem uma miríade de idéias, pessoas, bits ou

    mercadorias em continua circulação, colaboração, agressão, pirataria, fertilização.

    Minha vinda ao Brasil teve mais a ver com a procura que o meu imaginário

    ordenara do que com o puro utilitário. Preferi lutar por um sonho a me submeter a um

    futuro calculado, prefixado em confortáveis prazos de pagamento vital. Fuga e busca, como

    aqueles imigrantes, retornados, aventureiros forçosos, que conheci na minha adolescência,

    sempre a falar das belezas da África, as riquezas de Macau, a cordialidade brasileira...

  • Para los peregrinos de todas las épocas, la verdad está en otra parte; el verdadero lugar siempre está

    distante en el tiempo y en el espacio. Cualquiera sea el sitio en que esté hoy el peregrino, no es donde

    debería ni donde sueña estar. La distancia entre el verdadero mundo y este mundo del aquí y ahora

    está constituida por la discordancia entre lo que debe alcanzarse y lo que se ha logrado. La gloria y

    solemnidad del destino futuro degradan el presente y se burlan de él. 1

    Descendente legítimo, natural ou adotivo de várias culturas, neto do fado e filho do

    Mío Cid, desde criança preocupou-me o contato, intercâmbio, a distorcida (in)definição do

    Outro. Para Mary Louise Pratt, a abordagem deste fenômeno não resulta simples:

    O que permanece invariável é que sempre deve haver um Outro. As fronteiras multifacetadas com

    esses outros têm sido policiadas e reproduzidas pelas modernas disciplinas acadêmicas

    institucionalizadas no centro na segunda metade do século XIX. A antropologia produz e reforça a

    categoria de primitivo; a economia as de atraso e subdesenvolvimento. A ciência política administra

    as distinções entre estado e não-estado, sociedades simples e complexas; a filosofia distingue entre

    racional e irracional; os estudos literários e a história da arte entre alta e baixa culturas. A história

    administra o conceito de tempo progressivo e determina quem o ocupa e quem não.2

    Tentar uma aproximação do que seja o Outro e eu, requer uma perspectiva

    sensivelmente além da sociologia histórica, da velha filologia, ou da etnografia: uma(s)

    disciplina(s) instalada(s) num entre-lugar que impregne todas elas com uma pitada de

    poética ou de simples palavras que algo esclareçam esta era pós-colonial e excedam as

    clássicas ordenadas e abscissas (que numa incrível abstração deixam as restantes variáveis

    se manterem miraculosa e imotivadamente invariáveis, mudas, ocultas).

    1 BAUMAN, Zygmunt. De peregrino a turista, o una breve historia de la identidad. In: Cuestiones de identidad cultural/ compilado por Stuart Hall y Paul du Gay. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (p. 43). 2 PRATT, Mary Louise. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999 (p.45).

  • Sobre todo, y en contradicción directa con la forma como se las evoca constantemente, las

    identidades se construyen a través de la diferencia, no al margen de ella. Esto implica la admisión

    radicalmente perturbadora de que el significado “positivo” de cualquier término – y con ello su

    ‘identidad’ – sólo puede construirse a través de la relación con el Otro, la relación con lo que él no

    es, con lo que justamente le falta, con lo que se ha denominado su afuera constitutivo.3

    Um europeu que já duvida da própria essência do que seja ser europeu, chegando na

    América Latina, pode se sentir tão desnorteado quanto Gruzinski quando tomara...

    o metrô para ir de Paris ao aeroporto e pensava que talvez estando no Brasil fosse a Bahia, a

    Salvador; no metrô, eu era o único branco e me dizia: “estou no metrô entre Paris e Roissy e

    seguramente, aqui há mais negros que em Salvador” Essa é uma realidade totalmente nova, e as

    ciências sociais européias não estão preparadas para enfrentar essa situação. Ou seja, todos os nossos

    intelectuais, Lacan, Foucault, Bourdieu, são totalmente incapazes de pensar numa sociedade

    pluriétnica e pluricultural. Daí o silêncio das ciências sociais da França e da Europa frente a esse

    problema.4

    Essa sociedade pluriétnica em que vivemos quiçá possa ser intuída ou adivinhada

    naquela que surgira no século XVI dos impérios espanhol e português, ou ainda possamos

    reformular algumas questões, ‘histórias mal contadas’, que nos ajudem na busca de uma via

    que ao menos tente explicar o nosso hoje caótico orbe, um mundo em gestação: México

    1525 é a origo mundi e não mais o umbiculus mundi; é a tradução urbanística de uma

    formação social e cultural completamente singular: a sociedade fractal.5 Já temos um bom

    motivo para nos adentrar nos cronistas dos primórdios da Idade Moderna.

    3 HALL, Stuart. Introducción: ¿quién necesita identidad? In: In: Cuestiones de identidad cultural/ compilado por Stuart Hall y Paul du Gay. Buenos Aires: Amorrortu, 2003 (p. 18). 4 GRUZINSKI, Serge. Do Barroco ao Neobarroco, in: Literatura e História na América Latina, Lígia Chiappini e Flávio Wolf (org). São Paulo: EDUSP, 2001 (p. 94-95). 5 Idem, op. cit. (p.78).

  • UMA TENTATIVA: OS ESTUDOS CULTURAIS

    A VOZ DOS SUBALTERNOS

    El poder necesita de una cultura, casi sacramentaria, que le rinda servidumbres de legitimación.

    Cualquier poder busca con afán sus figuras propias de “respetabilidad” en tanto que refuerzo social

    y simbólico de su poderío. La cultura, además de otras cosas, permite cuestionar un poder instalado (incluso,

    criticarlo), y define la configuración del abanico de posibilidades reales que funda realmente cualquier poder.

    José A. Barata-Moura. La Cultura del Poder y el Poder de la Cultura6.

    Como Gruzinski, qualquer estrangeiro ocidental (e quem não o é neste unipolar

    American Empire?) que aprofundar um pouco na cultura, e, portanto, nas relações de poder,

    do imaginário e das formas de apreensão do entorno e da identidade, na sempre difícil

    negociação com o ente chamado “realidade”, chegará à conclusão de que não só terá

    escassas possibilidades de entender os novos fenômenos imigratórios do Primeiro Mundo,

    mas nenhuma de entender o chamado Terceiro Mundo7, pois se deparará com as próprias

    limitações que os exíguos subsídios que as tradições ocidentais lhe fornecem, no caminho

    para a compreensão ou mera sobrevivência dentro do mal chamado “Mundo em

    Desenvolvimento”. Nesse sentido Bartolomeu de Las Casas e aqueles que o tem sabido ler

    têm muito a nos dizer e acredito ser um bom ponto de partida, pois dão um melhor

    embasamento para a linha de estudos de Mignolo, Saïd, Hall ou Bhabha.

    6 BARATA-MOURA, José A. La Cultura del Poder y el Poder de la Cultura. In: Poder, Política y Cultura: Antropología en Castilla y León e Iberoamérica VII. Ángel B. Espina Barrio (org). Recife: Massangana, 2005, p.378. 7 Preferi utilizar o aparentemente ultrapassado conceito Terceiro Mundo ao de País em Desenvolvimento, conceito muito mais hipócrita pelo que oculta de dominação (exploração inclemente por meio de royalties, falta de isonomia nas taxas de importação, ajudas maciças para a indústria e agricultura dos países centrais, que nos países de Terceiro Mundo são qualificadas como práticas de Dumping, intromissão na política interna dos países periféricos, etc.). Coincido neste sentido com Walter Mignolo (2003).

  • Brasil, como parte deste mundo subalterno, deve investir na compreensão destes

    fenômenos de forma prioritária, sob o perigo de ser por eles engolido, sem chances. Assim,

    Mignolo tenta nos introduzir na importância destes estudos:

    em um mundo onde os processos civilizadores movem-se em todas as direções possíveis, os Estudos

    Subalternos poderiam contribuir para descolonizar a pesquisa, refletindo criticamente sobre sua

    própria produção e reprodução de conhecimento e evitando a reinscrição das estratégias de

    subalternização. 8

    Na realidade o título deste capítulo deveria ser mais ou menos como o subtítulo que

    já colocara Mignolo nas suas Histórias locais/ Projetos globais: como se beneficiar de

    categorias ameríndias de pensamento e de experiências afro-caribenhas sem convertê-las

    em exóticos objetos de estudo.9 Já apontado acima por Marie Louisse Pratt, a

    transdisciplinariedade não se faz importante ou desejável, mas imprescindível para a

    compreensão destes fenômenos. Edward Saïd nos presenteia uma aproximação:

    We live of course in a world not only of commodities but also of representations – their production,

    circulation, history, and interpretation – are the very element of culture. In much recent theory the

    problem of representation is deemed to be central, yet rarely is it put in its full political context, a

    context that is primarily imperial. Instead we have on the one hand an isolated cultural sphere,

    believed to be freely and unconditionally available to weightless theoretical speculation and

    investigation, and on the other, a debased political sphere, where the real struggle between interests

    is supposed to occur. To the professional student of culture – the humanist, the critic, the scholar –

    only one sphere is relevant, and, more to the point, it is accepted that the two spheres are separated,

    where as the two are not only connected but ultimately the same.10

    8 MIGNOLO, Walter. Historias locais/ projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro. Belo Horizonte: editora UFMG, 2003, p. 203. 9 Idem, Op. cit, p. 203. 10 SAÏD, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993, p. 66-67.

  • A leitura de Saïd lembra-me da conversa fugaz que tive com um catedrático da

    Complutense de Madri. Quando eu lhe disse do meu interesse pelos estudos culturais, levou

    as mãos à cabeça e respondeu: a Universidade está em quebra, não existem mais autênticos

    estudos sobre temas sérios, filológicos, por exemplo. Os estudos culturais só teriam sentido

    se estudássemos as línguas indígenas e o que pensam. Paralelamente, quiçá num sentido

    diametralmente oposto, Spivak questiona-se em Can the subaltern speak? Serão realmente

    os subalternos do Terceiro Mundo ou as elites universitárias, mesmo aqueles pertencentes

    às antigas colônias (como a própria Spivak) os que têm voz? Para ela, os autênticos

    excluídos não a têm11. Aceitando esta crítica como sadio exercício intelectual, temos que

    observar que certamente estamos diante de um argumento, que levado ao extremo, fecharia

    o debate completamente: se apenas os subalternos pudessem opinar, dado que os que não

    tem voz continuariam silenciados da mesma forma. Assim, segundo Mary Louise Pratt,

    A campanha militar de terror nas regiões montanhosas da Guatemala matou 200 mil nativos, exilou

    outros tantos para o México e varreu do mapa aproximadamente cem vilarejos. Comunidades inteiras

    desaparecem na floresta, levando consigo suas histórias. Voltar para esses lugares procurando fatos

    que esclareçam a verdade significa não compreender os próprios fatos que busca esclarecer. Durante

    anos os habitantes dos vilarejos foram forçados pelo exército a equipar milícias civis com o objetivo

    de descobrir simpatizantes dos movimentos guerrilheiros dentro das suas próprias populações. Se não

    encontrassem nenhum a represália era certa; mas encontrar algum deles também poderia significar

    represálias. Para os sobreviventes desse permanente trauma social e psíquico, perguntas como “o seu

    vilarejo ou você apoiaram a guerrilha?” nem de longe lembram enquêtes do tipo “Como os

    casamentos são arranjados no seu vilarejo?”12

    11SPIVAK in: "Can the Subaltern Speak?" Benjamin Graves '98, Brown University, in:

    http://www.postcolonialweb.org/poldiscourse/spivak/spivak2.html. Acedado em 17/ out/ 2005. 12 PRATT, Mary Louisse. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevante? In: Literatura e História: perspectivas e convergências. Bauru, SP: EDUSC, 1999, p.40.

  • Tal a questão que implicitamente formula Máximo Cajal no próprio título do seu

    livro: ¡Saber quién puso fuego ahí!, o qual não fora outra coisa que a voz-testemunho do

    indígena que sobrevivera ao massacre na Embaixada Espanhola na Guatemala, Gregório

    Yujá, num depoimento num mais que imperfeito castelhano, pouco antes de ser executado

    quase que publicamente pela polícia secreta(?) guatemalteca como queima de arquivo:

    Echaron fuego, saber por qué, como nosotros estábamos ahí y nos iban a matar con con (sic) armas

    también y ahí… y no tuvieron nada. Siempre nosotros no queremos que…tra (sic) vez le quemaron la

    casa, y uno que estaba, por lo menos uno que se va a la costa a trabajar para ellos y si no hay nada

    detrás guerrilleros, bien, ya ya (sic) le están esperando por si llega, pues usted no fue a la costa,

    estaba en la montaña, y nosotros pues no. Estamos a trabajar, cuando terminamos de…la milpa, ahí

    vamos a trabajar…así cuando tiene que trabajar y sólo que trabajar y sólo que trabajar otra vez y nos

    hacen trabajar otra vez. ¡Sólo siempre! Gregorio Yujá. ¡Saber cómo será ha de quedar yo así!13 (Sic)

    O tipo de linguagem em que se expressa o indígena Yujá, fora dos padrões da língua

    culta, não seria aceita em nenhuma Academia de prestigio, e, no entanto cabe se perguntar:

    o seu testemunho merece ser esquecido ou tem menos valor que outras especulações

    intelectuais? Quando utilizamos e aceitamos o discurso subalterno, outro perigo ainda

    pendura qual espada de Dâmocles: A assunção de discursos indígenas introduzidos sem a

    necessária contextualização, poderia nos levar a um lócus dialético próximo do anunciado

    por Homi Bhabha:

    Há outra cena do discurso colonial em que o nativo ou o negro corresponde à demanda do discurso

    colonial, onde a “cisão” subversora é recuperável dentro de uma estratégia de controle social e

    político. É reconhecidamente verdade que a cadeia de significação estereotípica é curiosamente

    misturada e dividida, polimorfa e perversa, uma articulação da crença múltipla. O negro é ao mesmo

    13 CAJAL, Máximo. Saber quién puso fuego ahí! Masacre en la Embajada de España. Madrid: Siddharth Mehta Ediciones, 2000, p. 74-75.

  • tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a

    encarnação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico,

    primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipulador de forças

    sociais. Em cada caso, o que está sendo dramatizado é uma separação – entre raças, culturas,

    histórias, no interior de histórias – uma separação entre antes e depois que repete obsessivamente o

    momento ou a disjunção mítica.14

    14 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p. 126-127.

  • POR QUÊ RELER O SÉCULO XVI?

    Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

    Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.

    De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

    Tupi, or not Tupi that is the question.

    Oswald de Andrade. Manifesto antropófago.

    Entremos na feira popular de Prazeres, no carnaval da Avenida Guararapes, na fila

    do INSS:

    Embrionária, inacabada, incerta quanto a o seu futuro, essa estranha formação é produto da

    justaposição brutal de duas sociedades arrebentadas: os invasores, grupo predominantemente

    europeu, instável, cotidianamente mergulhado no desconhecido e no imprevisível; os vencidos que

    sobrevivem em conjuntos mutilados, dizimados pela guerra e pelas epidemias. A diversidade de

    componentes étnicos, religiosos, culturais, a incidência elevada da perda de raízes, o comando

    limitado ou nulo da autoridade central – delegada ou muito distante, pois o imperador Carlos V está

    constantemente em Bruxelas -, a extensão reduzida das grandes distâncias oceânicas e continentais, a

    predominância da instabilidade, da mobilidade e da irregularidade, multiplicam fenômenos cujo

    caráter caótico, melhor dizendo, fractal, chama a atenção.15

    15 GRUZINSKI, op. cit p. 78.

  • Mutatis mutandis, podemos nos contemplar neste espelho fractal do século XVI,

    com toda a influência que sobre este mundo, neocolonial, re-liberal, proto-materialista,

    onde vivemos, teve? Será efetivamente essa história apenas um grande fardo que

    carregar?16

    Da leitura dos textos dos “fundadores” dos Estudos Culturais e devido ao fato de

    terem a maior parte deles origem nas antigas colônias britânicas, na procura das fontes do

    pensamento colonial, sempre terminam por aprofundar até os limites do século XVIII, dado

    que é este o período do inicio firme da expansão dos Impérios Francês e Inglês. O

    Iluminismo seria, segundo o citado ponto de vista, o fundador da modernidade, com todas

    as vantagens e mazelas que leva aparelhada, deixando o autêntico início da Idade Moderna,

    o século XVI, no esquecimento inconsciente ou, por ficar longe da sua órbita cultural, no

    consciente escanteio. Saïd, no entanto, apesar de não se centrar nos estudos literários do

    século XVI, defende que

    a distinction between anti-colonialism and anti-imperialism needs quickly to be made. There was a

    lively European debate dating from at least the mid-century on the merits and demerits of holding

    colonies. Behind it were the earlier positions of Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitoria,

    Francisco Suárez, Camões and the Vatican, on the rights of the native peoples and European abuses.

    Most French Enlightenment thinkers, among them Diderot and Montesquieu, subscribed to the Abbé

    Raynal´s opposition to slavery and colonialism (…).17

    Homi Bhabha não presta nenhuma atenção para a “fundação” dos impérios

    salvacionistas americanos e Edward Saïd apenas constata que: Are we not as a nation

    16 WHITE, Hayden. O Fardo da História. In: Trópicos do Discurso: ensaios sobre a Crítica da Cultura. Trad. Alípio Correia de França Neto. São Paulo: ESUSP, 2001. 17 SAÏD, Edward. Op. cit, p. 289-290.

  • repeating what a France and Britain, Spain and Portugal, Holland and Germany, did

    before us? And yet do we not tend to regard ourselves as somehow exempt from the more

    sordid imperial adventures that preceded ours?18

    Igualmente, Mary Louise Pratt foca seus estudos especialmente nos relatos de

    viagens do século XVIII e na pura contemporaneidade para estabelecer as bases da sua

    crítica ao dominante pensamento eurocentrista19.

    Walter Mignolo dará uma maior ênfase para a geopolítica que eu qualificaria como

    geohistórica. Para taç os estudos da literatura colonial da América Latina dos séculos XVI

    e XVII são basilares, dado que não existe modernidade sem colonialidade.20

    A geopolítica do conhecimento torna-se um conceito poderoso para evitar a crítica eurocêntrica do

    eurocentrismo e para legitimar as epistemologias liminares que emergem das feridas das histórias,

    memórias e experiências coloniais. A modernidade, repito, leva nos ombros o pesado fardo da

    responsabilidade da colonialidade. A crítica moderna da modernidade (pós-modernidade) é uma

    prática necessária, mas que termina onde começam as diferenças coloniais, As diferenças coloniais

    do planeta são a morada onde habita a epistemologia liminar.

    Por quê? As histórias locais de nações (colonizadas) tiveram que se acomodar a

    projetos globais que lhes diziam respeito, mas sem sua participação direta.21Para não

    repetir este esquema, pode-se encontrar inspiração nos estudos da Academia Anglo-

    18 Idem, Op. cit. p.65. 19 PRATT, Mary Louise. Op, cit. 20 MIGNOLO, Walter, op. cit, p.74. 21 Idem, op, cit, p, 74.

  • saxônica, porem sempre lembrando as nossas origens, seguindo o rasto das próprias

    histórias locais, pois o

    modelo ou metáfora do sistema mundial moderno tem no século XVI a data crucial de sua

    constituição, ao passo que todas as outras possibilidades que mencionei (Saïd, Guha, teoria crítica,

    pós-estruturalismo) têm no século XVIII e no Iluminismo a fronteira cronológica da modernidade.

    (...) O Iluminismo surge em segundo lugar em minha própria experiência de histórias coloniais. A

    segunda fase da modernidade, o Iluminismo e a Revolução Industrial, foi secundária na história da

    América Latina. Entrou no século XIX como a exterioridade que precisava ser incorporada para

    construir a “república” depois de conquistada a independência da Espanha e de Portugal.22

    Pode-se ir além desta afirmação, para postular que não apenas América Latina, mas

    todo o Sistema Mundial viram mudados os seus rumos definitivamente no século XVI, o

    que nos conduz a uma autêntica necessidade de estudá-lo, não apenas como história local,

    mas como pedra basal da construção do Moderno Capitalismo imperial:

    O moderno sistema mundial nasceu no longo século XVI. As Américas, como construto social,

    nasceram no longo século XVI. A criação dessa entidade geossocial, as Américas, foi o ato

    constitutivo do sistema mundial moderno. As Américas não foram incorporadas a uma economia

    capitalista mundial já existente. Não poderia ter havido uma economia capitalista mundial sem as

    Américas.23(grifo nosso)

    Para isso pensei pedir a involuntária colaboração de Bartolomeu de las Casas e os

    seus textos, que para os objetivos propostos resultam iluminadoras. Las Casas, como se

    verá, não apenas constitui um pensador de primeira magnitude para nossa área de estudos,

    mas um autêntico mito per se, no que diz respeito a sua figura como “Defensor dos índios”

    22 Idem, op. cit, p. 43. 23 QUIJANO e WALLERSTEIN, 1992, p. 549 in: MIGNOLO, op. cit, p. 84.

  • e para muitos, um traidor da pátria.24 Beber nas fontes do que escrevera há mais de

    quatrocentos anos, e aproveitar também um pouco do que falaram e defendem muitos dos

    seus seguidores e, sobre tudo, perseguidores, revelará mais do que quiçá se pudesse esperar.

    24 JUDERÍAS, Julián. La Leyenda Negra. Barcelona: Araluce, 1917, p. 302-303: “El iniciador de esta campaña de descrédito, el que primero lanzó las especies que tan valiosas iban a ser para las filosóficas elucubraciones de nuestros enemigos, fue un español: el Padre Las Casas. Un español había sido el calumniador de Felipe II; un español el que describió los horrores de la Inquisición (sic); un español el que pintó la conquista de América como una horrenda serie de crímenes inauditos. Habría que decir como don Francisco de Quevedo: ‘¡Oh desdichada España! Revuelto he mil veces en la memoria tus antigüedades y anales y no he hallado por qué causa seas digna de tan porfiada persecución. Sólo cuando veo que eres madre de tales hijos, me parece que ellos, porque los criaste y los extraños, porque ven que los consientes, tienen razón de hablar mal de ti…”

  • LAS CASAS: UM DESCONHECIDO NO BRASIL?

    «No tiene patria», «Traiciona»,

    pero tu prédica no era

    frágil minuto, peregrina

    pauta, reloj del pasajero.

    Tu madera era bosque combatido,

    hierro en su cepa natural, oculto

    a toda luz por la tierra florida,

    y más aún, era más hondo:

    en la unidad del tiempo, en el transcurso

    de la vida, era tu mano adelantada

    estrella zodiacal, signo del pueblo.

    Hoy a esta casa, Padre, entra conmigo.

    Te mostraré las cartas, el tormento

    de mi pueblo, del hombre perseguido.

    Te mostraré los antiguos dolores.

    Y para no caer, para afirmarme

    sobre la tierra, continuar luchando,

    deja en mi corazón el vino errante

    y el implacable pan de tu dulzura.

    Pablo Neruda, Fray Bartolomé de las Casas, in: Canto General, Buenos Aires, 1963..

    Bartolomé de las Casas constitui um monumento fundamental e fundador no

    pensamento latino-americanista liminar. É ele quem transcreve as cartas de Colombo,

    elabora uma enciclopédica e fabulosa História das Índias, contesta, discute, peleja,

    filosófica, política e juridicamente contra as guerras de conquista das Américas na sua

    Apologética Histórica, elabora o Memorial de Remédios para solucionar os problemas que

    aquela formulou, e até, não longe da ilha Utopia de Morus, faz a denúncia dos prejuízos

    que provocara a colonização espanhola (salvacionista como a portuguesa ou de todas e

    qualquer das formas de imperialismo) no seu mais curto e conhecido livro: a Brevísima

    Relación de la Destruición de las Indias. Poucos o farão com tanta violenta contundência,

    desesperado furor e cáustica perseverança de mais de cinqüenta anos.

  • A melhor forma de analisar a identidade e consciência latino-americana é sondar na

    etapa de choque, miscigenação, surpresa que supus o século XVI não apenas para os

    habitantes do imenso continente americano, mas para toda a humanidade. Para Serge

    Gruzinski, sem que se devam esquecer os horrores da colonização e os estragos causados

    pela ocidentalização, a mestiçagem dos seres e das culturas será incontestavelmente uma

    das heranças mais preciosas e mais duradouras que nos terá transmitido a passagem do

    século XV para o século XVI,25 quiçá apenas continuando um processo que o Rei Don

    Sancho, O Povoador iniciara no século XII.

    Bartolomé e sua obra, pouco conhecido no Brasil porém de grande interesse para

    uma leitura brasileira, é objeto de estudo pelo professor Héctor Bruit, da UNICAMP26 e por

    José Alves de Freitas na sua tese de doutorado pela USP, em 200227. Ambos historiadores

    dão um foco diferenciado ao tratamento da obra deste polemista que já provocara a

    publicação de inúmeros estudos no mundo ocidental: um novo brilho e abordagem que o

    imaginário e a perspectiva literária dão à já clássica, porém fundadora discussão que Las

    Casas gera, arejando um campo às vezes encalhado na “monodisciplinaridade”

    especializada de alguns outros colegas historiadores: o indígena, o latino-americano, o

    Outro, em relação ao “civilizado” , como se desenha, como interage com ele, têm direitos,

    será mais ou menos humano?

    25 GRUZINSKI, Serge. A passagem do século: 1480-1520: as origens da globalização. Trad: Rosa Freire de Aguiar. São Paulo, Companhia das letras, 1999. 26 BRUIT, Héctor H. Bartolomé de las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo, Unicamp/ Iluminuras, 1995. 27 FREITAS NETO, José Alves de. Bartolomé de las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. São Paulo, Anna Blume, 2003.

  • O indígena é um ser capaz de ter direitos e obrigações ou é um ser fadado a

    obedecer, ser conduzido para o que for melhor para ele? A organização indígena merece a

    soberania? Em definitiva, os nativos americanos, e por extensão outros povos colonizados,

    têm direito à autodeterminação e liberdade de escolha? As implicações destas respostas vão

    além dos direitos recolhidos pela ONU, Constituição ou leis ou da aplicação destas para

    entrar no território incerto do imaginário e do inconsciente da relação com o Outro.

    Pretendo acrescentar uma pequena colaboração aos estudos sobre Las Casas,

    apresentando este autor pouco estudado no Brasil e ao mesmo tempo introduzindo uma

    pequena mudança na perspectiva que o estuda. A História, objetiva, isenta e pura, se é que

    ela existe em tal estado, não consegue dar conta por si dos temas que Las Casas levanta.

    Historiadores como Héctor Bruit com o seu estudo da simulação dos indígenas vencidos

    (entre a imitação e a metamorfose) e Freitas aplicando a Poética de Aristóteles ao estudo

    histórico da figura de Las Casas, dão novas visões ao tema da interação de índios e

    conquistadores sob um prisma que já não é o mero positivismo historiográfico, mas uma

    disciplina que precisa abrir seu leque de perspectivas utilizando elementos heterogêneos,

    provenham eles já da velha retórica, já não tão nova tropologia.

    Ao mesmo tempo, Las Casas vem a ser não apenas um precursor do pensamento

    liminar, enquanto pensador ocidental que toma para si as dores do indígena e vive na

    fronteira do amor cristão que chega a lutar perante seus contemporâneos pela soberania

    política e até religiosa dos povos nativos do Novo Mundo. Ele mesmo, objeto desse mesmo

    pensamento, sem negar o já inevitável choque de civilizações, pode vir esclarezer um

    pouco acerca das nossas próprias identidades e relações com o outro.

  • ANTECESSOR DE LAS CASAS: FRANCISCO DE VITÓRIA

    Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

    "Navegar é preciso; viver não é preciso".

    Quero para mim o espírito [d]esta frase,

    transformada a forma para a casar como eu sou:

    Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

    Fernando Pessoa. Obra Poética.

    Famoso precedente dos campeões da Controvérsia de Valladolid, e citado por

    ambos, este doutor pelas universidades de Paris e Salamanca nascido em Burgos firmará as

    bases neo-escolásticas sobre as quais discutirão posteriormente os contendores sobre a

    licitude ou injustiça da colonização espanhola. Nesta época, alguns pensadores como

    Vitória contemplaram a possibilidade de atingir uma mera coexistência das culturas. De

    fato, a Europa estava preparada para isto em virtude do seu já longo convívio com o Islã.

    Era necessário modificar a visão cristocêntrista do mundo.28

    Vitória era um neo-escolástico que tinha consciência de que a unidade implícita do

    Sacro Império Romano Germânico constituía já apenas um ideal obsoleto: a novidade do

    contato com América representava um potencial de mudança suficiente para ter que

    elaborar um novo pensamento, num mundo no qual a unidade havia sido substituída pela

    pluralidade, que deveria ser gerida por um gérmen do Direito Internacional: o ius gentium:

    Con su reconocimiento de los estados indios paganos como estados jurídicamente perfectos y en pie

    de igualdad con sus homónimos europeos, Vitoria trascendió la realidad familiar a todos sus

    28 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, J.A., El Estado, la Guerra y la Paz: El Pensamiento Político Español en el Renacimiento. Trad. Juan Faci Lacasta. Madrid: Akal, 1988, p.69.

  • contemporáneos y tan determinante en el desarrollo del pensamiento político moderno, del paso de la

    vieja idea imperial y la aparición de una respublica christiana fragmentada.29

    O ius gentium era na antiga Roma o direito elaborado pelos pretores (mas não pela

    “comunidade de nações”), isento dos formalismos que o caráter sagrado do direito cível

    exigia e que o fazia pouco flexível. Era utilizado em casos de decisões urgentes e para

    regulamentar as relações com os estrangeiros, sejam eles os clientes que moravam em

    Roma, sejam aqueles que moravam extra limes, ou seja, fora dos limites da Cidade Eterna.

    De modo que este direito tem um forte caráter de conveniência prática, frente à lei natural,

    imutável e universal. Os estados, no son creados por ley natural o bajo su compulsión sino

    por el acto volitivo del hombre que actúa bajo el impulso de la necesidad; así puede

    decirse que en este caso la naturaleza permanece neutral.30

    Para Margarida Cantarelli, Francisco de Vitória constrói a gênese dos direitos

    indígenas e ainda dos Direitos Humanos. O direito natural se encontra na base da sua

    pirâmide jurídico-moral:

    El Derecho Natural, en la concepción de Vitoria, reconocía que la comunidad internacional resultaría

    de la sociabilidad inherente a la naturaleza humana, que se extendería a todo el género humano al que

    llamó de orbis – conjunto de estados, pueblos y naciones. Su vínculo era el ius gentium. El Derecho

    de Gentes estaría concebido por Vitoria en un doble sentido: como Derecho universal del género

    humano, por un lado, en la tradición romana; por otro, como derecho de los pueblos, de las naciones,

    en sus relaciones recíprocas (ius inter.gentes). Claro está que, para él, a pesar de que el Derecho de

    Gentes formase parte del Derecho Natural, la voluntad humana, expresada o tácita, daría origen, por

    29 Ibidem, p. 72. 30 Ibidem, p. 76.

  • otro lado, a un Derecho de las Gentes Positivo, dado que el orbis tendría el poder de decretar ‘leyes

    justas y a todos convenientes.’31

    A negação do império, que parece muito ousada, é basilar para a fundação do

    Direito Internacional e os Direitos Humanos: Vitória reafirma a permanência dos estados

    soberanos autônomos e afirma contundente: tampoco se lee que por derecho divino hubiera

    antes de la venida de Cristo un señor del mundo…Luego nunca el emperador fue señor de

    todo el mundo.32 Dai a reconhecer outros soberanos não cristãos, há um curto percurso: no

    cabe duda alguna respecto al hecho de que pueden existir príncipes y potentados legítimos

    entre los paganos.33

    Segundo Vitória existem títulos legítimos e ilegítimos de guerra aos índios:

    31 CANTARELLI, Margarida. A doutrina colonial para o novo mundo: Francisco de Vitória – um Decênviro do Direito Internacional. Revista Acadêmica, v2 anos 2001/2002 – Recife: UFPE. Aurélio Boa Viagem (org) Editora Universitária da UFPE, p. 49 y ss. In: Cantarelli, Margarida. Poder, Política y Derechos Humanos, ESPINA BARRIO, Ángel B (org). Poder, Política y Cultura: Antropología en Castilla y León e Iberoamérica VII. Recife: Ed Massangana, 2005, p.30. 32 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 75. 33 Ibidem, p. 84.

  • A) TÍTULOS ILEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS

    Assim, supuesto pues, que los indios eran verdaderos señores, resta por ver por qué

    títulos pudieran ellos, o su región, venir a poder de los españoles.(…) Pudieran

    pretenderse, pero no son idóneos ni legítimos34:

    Em primeiro lugar, dado que el emperador no es ni ha sido señor de todo el orbe,

    los españoles por este título no pueden ocupar aquellas provincias. 35

    Em segundo lugar, utilizando-se do mesmo argumento, el Papa no es señor civil o

    temporal de todo el orbe, hablando del dominio y potestad civil en sentido propio.36 É,

    sem dúvida, muito ousado para um dominicano que tem voto de obediência ao Papa.

    34 Ibid, p. 89. 35 Ibid, p. 89. 36 Ibid, p. 89.

  • Em terceiro lugar, se invoca comumente o direito que procede do descobrimento, ou

    seja, como los españoles fueron los primeros que encontraron y ocuparon aquellas

    provincias, síguese que las poseen legítimamente, lo mismo que si descubrieran

    deshabitada soledad.37Vitória quebra com simplicidade escolástica o sofisma: mas en este

    título, que es el tercero, no es preciso gastar muchas palabras, puesto que está probado

    antes que los bárbaros eran verdaderos dueños pública y privadamente.38

    Em quarto lugar o argumento de negarem-se os índios a aceitar a fé de Cristo.

    Vitória anula este motivo com várias razões. Os bárbaros, antes de tener noticia alguna de

    la fe de Cristo, no cometían pecado de infidelidad por no creer en Cristo.39Além do mais,

    os bárbaros não têm obrigação de acreditar no cristianismo al primer anuncio que se haga,

    de modo que pequen mortalmente no creyendo por serles simplemente anunciado y

    propuesto (…) sin que acompañen milagros o cualquier otra prueba o persuasión en

    confirmación de ello.40 Vitória não acredita que a fé cristã tivesse sido anunciada com

    paciência e eficácia, mas ainda sendo assim, aunque la fe haya sido anunciada a los

    bárbaros de un modo probable y suficiente y éstos no la hayan querido recibir, no es lícito,

    por esta razón hacerles la guerra ni despojarles de sus bienes.41

    Em quinto lugar um motivo mais sério que são os pecados dos mesmos bárbaros.

    Alegam que os pecados contra a lei positiva divina, não podem ser perseguidos, no entanto

    podem perseguir-se aqueles que forem contra natura, como comer carne humana, ou ter

    37 Ibid, p. 89. 38 Ibid, p. 89. 39 Ibid, p. 90. 40 Ibid, p. 90. 41 Ibid, p. 90.

  • concubinato com mãe, irmãs ou varões. Mas Vitória tampouco aceita tais argumentos: los

    príncipes cristianos, aun con la autoridad del Papa, no pueden apartar por la fuerza a los

    bárbaros de los pecados contra naturaleza ni por causa de ellos castigarlos.42 Segundo

    Vitória, fica muito difícil diferenciar pecados contra a lei positiva divina e a lei natural.

    Alem do mais, tampoco pueden hacerse ostensibles con evidencia los pecados contra ley

    natural; por lo menos no a todos son patentes.43

    No sexto título, Vitória se deslancha como idealizador duma teoria com grandes

    repercussões para a práxis perante os desafios que gerará a presença dos europeus no Novo

    Mundo, na formulação do princípio de que o livre consentimento dos indígenas pode sim

    constituir um justo motivo de domínio hispânico: “Cuando los españoles se llegan a los

    bárbaros, les dan a entender cómo son enviados por el rey de España para su propio bien

    y les exhortan a recibirlo y aceptarlo por rey y señor; ellos contestan que les place”.44

    Ainda assim, o pensador dominicano considera que estes requisitos não se davam, porque

    “los bárbaros no saben lo que hacen, y aun quizá ni entienden lo que les piden los

    españoles. Además, esto lo piden gentes armadas que rodean a una turba desarmada y

    medrosa”. Além do mais, existe outra causa impeditiva de primeira ordem:

    Además, teniendo ellos, según se dijo antes, sus propios señores y príncipes, no puede el pueblo, sin

    causa razonable llamar a nuevos señores, porque sería con perjuicio de los primeros. Por su parte,

    tampoco pueden sus señores elegir nuevo príncipe sin consentimiento de su pueblo.45

    42 Ibid, p. 91. 43 Ibid, p. 92. 44 Ibid, p. 92. 45 Ibid, p. 92.

  • O sétimo título, baseado na idéia de castigo aos pecados dos indígenas, é ironizado

    por Vitória: Ojalá que, fuera del pecado de infidelidad, no hubiera entre algunos cristianos

    mayores pecados contra las buenas costumbres que entre estos bárbaros.46

    O pensamento vitoriano é de uma grandíssima coerência. Sendo os reinos indígenas

    reinos pagãos legítimos, que formam uma pré-comunidade de nações, não podem ser

    arbitrariamente ocupados, sob ameaça de desestabilizar todo o sistema, que poderíamos

    chamar de “multipolar” frente a unipolaridade religiosa, filosófica e política que defendiam

    os partidários do Império. Carlos V entra em conflito, pois a negativa da doação papal de

    América elimina a cobertura de soberania que o Imperador tinha tanto respeito ao Papa

    como aos restantes reinos europeus, a espera da menor brecha nesta trama de privilégios:

    La cólera de Carlos V se expresa en la orden que da, ya el 10 de noviembre de 1539, al prior del

    convento de San Esteban de Salamanca, lugar de residencia de Vitoria, de incautarse de las

    ‘lecciones en las que algunos maestros religiosos de este convento han tratado sobre el derecho que

    Nos poseemos sobre las Indias’ y enviarlas al Consejo Real.47

    46 Ibid, p. 92. 47 DUMONT, Jean, op. cit, p. 84.

  • B) TÍTULOS LEGÍTIMOS DE OCUPAÇÃO DOS REINOS INDÍGENAS

    Primeiro título, primordial para a multipolaridade de Vitória, o ius comunicationis:

    Al principio del mundo (como todas las cosas fuesen comunes), era lícito a cualquiera dirigirse y

    recorrer las regiones que quisiese. Y no se ve que haya sido esto abolido por la división de las tierras.

    Pues nunca fue la intención de las gentes evitar la mutua comunicación entre los hombres por esta

    repartición.48

    Hugo Grotius no século XVIII assumirá este principio como primordial para o

    Direito Internacional.49 Depois servirá a outro Império, o Britânico, para embasar a Union

    Act: os barcos ingleses teriam direito de atracar em qualquer porto do mundo desfrutando

    da liberdade dos mares e do comércio (a recíproca liberdade quiçá não se verificasse). De

    modo que para Vitória, la violación de este privilegio humano justifica el primer título que

    permite a los españoles subyugar a sus transgresores.50

    O segundo título, em parte deriva do primeiro, e consiste no ius predicationis, ou

    seja, si estos, sean los jefes o el pueblo, se lo impiden, los españoles pueden, tras un

    requerimiento previo, predicar contra su voluntad. Y si es necesario, aceptar por ello la

    guerra, o declararla, hasta que obtengan la seguridad de la predicación.51 No entanto, o

    doutor de Salamanca sustenta que apenas se trata de teoria, porque as guerras obstaculizam

    mais que favorecem a conversão dos índios.52

    48 FERNANDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 93 49 DUMONT, Jean, op. cit, p. 80. 50 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit, p. 93. 51 DUMONT, Jean, op. cit, p. 80. 52 Ibidem, p. 80.

  • Como terceiro e quarto títulos, Vitória segue em parte a John Meyr, com alguma

    diferença: se para o doutor da Universidade de Paris, Meyr, os cristãos poderiam depor

    sempre aos príncipes indígenas que tolerarem práticas idolátricas, para o dominicano

    apenas o poderão fazer no caso de perseguição a um grande número de indígenas

    conversos, a modo de proteção das minorias.53 Ou, seja, estamos diante do gérmen do que

    mais adiante será chamado Direito Humanitário de Intervenção, de múltiplas leituras.

    Como desdobramento dos anteriores princípios, o quinto título, que como veremos

    não coincide com Las Casas, pois este último vai bem além no reconhecimento da

    diferença. A descrição de Vitória deste título é:

    Otro título puede ser la tiranía de los mismos señores de los bárbaros o de las leyes inhumanas que

    perjudican a los inocentes, como el sacrificio de hombres inocentes o el matar a hombres inculpables

    para comer sus carnes…No es obstáculo el que todos los bárbaros consientan en tales leyes y

    sacrificios y no quieran que los españoles los libren de semejantes costumbres. Pues no son en esto

    dueños de sí mismos ni alcanzan sus derechos a entregarse ellos a la muerte ni a entregar a sus

    hijos.54

    Fundamentado num principio de certa soberania popular, se aceita que se tanto os

    caciques como os outros livremente aceitassem ao rei da Espanha, poderia ser feito, e seria

    título legítimo e de lei natural, porque para Vitória, cada república puede constituir su

    propio señor, sin que para ello sea necesario el consentimiento de todos, sino que parece

    basta el de mayor parte.55

    53 Op. cit, ibidem, p. 80-81. 54 FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, op. cit, p. 94. 55 Op cit, ibidem, p. 94.

  • O sétimo título não oferece muitas controvérsias, segundo os autores consultados

    por Fernández Santamaría: trata-se do caso no qual aliados e amigos possam acudir na

    defesa um do outro: como se cuenta que hicieron los tlaxcaltecas, concertándose con los

    españoles para que les ayudaran a combatir contra las gentes de México.56 Seguramente

    nem Vitória nem o professor Santamaría não tivessem advertido as astúcias que

    possibilitaria este título, dado que sempre se pode fomentar, como bem viu Maquiavel,

    dentro de uma república, as divergências internas, e depois acudir a “auxiliar” a um dos

    contendores para obter o poder. Outra possibilidade de manipular o conceito de país amigo

    é o de instalar diretamente algum governador títere.57

    56 DUMONT, op. cit, p. 82. 57 MAQUIAVEL, Nicolás, El Príncipe. In: www.librodot.com.

  • O oitavo título será o que o próprio Vitória deixa entrever como uma certa aporia: el

    octavo título podría no ciertamente afirmarse, pero sí ponerse a estudio y parecer a

    algunos legítimo. Yo no me atrevo a darlo por bueno ni a condenarlo en absoluto. Quiçá

    sem o querer o autor das Relectio De Indis pode estar antecipando o que seria o ponto

    fundamental da controvérsia de Valladolid: o problema da racionalidade dos nativos das

    Américas, facilmente trasladável à questão qualquer habitante dos países subalternos. Ele

    formula assim o principio:

    Esos bárbaros, aunque, como se ha dicho, no sean del todo faltos de juicio, distan, sin embargo, muy

    poco de los amentes, por lo que parece que no son aptos para formar o administrar una república

    legítima dentro de los términos humanos y civiles. Por lo cual no tienen una legislación conveniente,

    ni magistrados, y ni siquiera son suficientemente capaces para gobernar la familia. Por eso carecen

    también de ciencias y artes, no sólo liberales, sino también mecánicas, y de cuidada agricultura, de

    trabajadores y de otras muchas cosas provechosas y hasta necesarias para los usos de la vida humana.

    Podría entonces decirse que para utilidad de ellos pueden los reyes de España tomar a su cargo la

    administración de aquellos bárbaros, nombrar prefectos y gobernadores para sus ciudades y aun

    darles también nuevos príncipes si constara que esto era conveniente para ellos. Esto digo que puede

    ser legítimo, porque si todos fueren amentes, no hay duda que ello seria lícito y convenientísimo.58

    58 FERNÁNDEZ SANTAMARÍA, op. cit, p. 94-95.

  • PENSAMENTO DE LAS CASAS

    La sangre se estanco; ya no circula.

    Ya por el rumbo de Texcoco viene

    la tempestad y yo no tengo

    adonde ir. Se deshojó

    la flor de cuatro puntas cardinales.

    Se mojarán las lágrimas con la lluvia que viene.

    La noche será horrible.

    (Después llovió toda la noche

    y amaneció lloviendo sobre las ruinas.)

    Trece de Agosto. Bronce.

    Me da tristeza,

    no por mexicano,

    sino sólo por hombre.

    Carlos Pellicer. 13 de agosto, ruina de Tenochtitlán. Antología Poética.

    Lembrar da longa vida aventureira deste sevilhano é imprescindível para explicar e

    até justificar sua obra e pensamento, e isto não é uma afirmação retórica: conheceu, sofreu

    e foi testemunha direta dos primeiros passos dos espanhóis nas Índias. Nascido em 1484 ou

    1474, no que nenhuma das miríades de biografias, hagiografias e libelos a ele dedicados

    concordam. Descendente de nobres, possivelmente começara seus estudos de direito em

    Salamanca, mas provavelmente não os terminou.59Parece que ainda estudante aderiu às

    teorias de Colombo, e que o próprio tio de Bartolomeu se dedicara ao recrutamento de

    marujos para o Almirante. O pai e o tio de Las Casas embarcaram em 1493 na segunda

    viagem do Genovês: Despachado el correo, Don Cristóbal Colón, ya Almirante, con el

    mejor aderezo que pudo, se partió de Sevilla llevando consigo los indios, que fueron siete

    lo que le habían quedado de los trabajos pasados, porque los demás se le habían muerto.60

    59 ANABITARTE, Héctor. Bartolomé de las Casas. Madrid: Labor, 1992, p. 26. 60 Op. cit, ibidem, p. 28.

  • Segundo André Saint-Lu, em 1495 estuda na Academia Latina, fundada por

    Antonio de Nebrija61, autor da primeira gramática do Castelhano. No ano 1498 Don Pedro

    de Las Casas, seu pai, entre las alhajas que de la Indias trajo una fue un indiezuelo que le

    dio el Almirante Colón, el cual dio por paje a su hijo Bartolomé de Casaus.62Apaixonado

    pelo descobrimento do índio, pretende ingenuamente conocer, a través de un tierno fruto,

    todo el árbol genealógico del mundo descubierto por Colón.63

    A rainha Isabel de Castilha decreta a imediata devolução dos índios para o Novo

    Mundo, sob pena de morte. Esta medida produziu um grande efeito no espírito do jovem,

    pois: muchos años después de sucedido y recordando, incluso, las palabras literales

    pronunciadas por la Reina, a saber: ‘¿qué poder tiene mío el Almirante para dar a nadie

    mis vasallos?’ como cosa que tan gravada había quedado en su memoria.64

    Em 1502 embarca numa expedição com uma frota de 32 navios e 2.500 homens, na

    qual viaja o novo governador de La Hispaniola, don Nicolás de Ovando, e como ele mesmo

    descreve na História das Índias,

    Los de tierra decían que la isla estaba muy buena, y dando razón de su bondad y regocijo, añadían el

    porqué, conviene a saber: porque había mucho oro y se había sacado un grano solo que pesaba tantos

    mil pesos de oro, y porque se habían alzado ciertos indios en cierta provincia, donde captivarían

    muchos esclavos. Yo lo oí por mis oídos mismos, porque yo vine aquel viaje con el comendador de

    Lares a esta isla (…)65(Grafos nossos).

    61 SAINT-LU, A e BATAILLON, M. El padre Las Casas y la Defensa de los Índios. Madrid: Sarpe, 1985,p13 62 ANABITARTE, Op. cit, ibidem, p. 29. 63 Ibidem, p. 29. 64 MARTÍNEZ, Fray Manuel, O.P. Fray Bartolomé de las Casas, Padre de América. Madrid: La Rafa, 1958, p.12. 65 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias, lib II, cap III, p. 215.

  • Qual o móbil e finalidade da viagem para América do nosso jovem Bartolomeu?

    Habría ido a encargarse de la administración de los repartimientos adquiridos en la

    Española por su padre, Pedro de Las Casas y por su tío Fco. de Peñalosa. Es cierto, que

    años adelante le vemos disfrutando del trabajo de los indios, como uno de tantos.66

    A) LAS CASAS VERSUS GÓMARA: TESTEMUNHO CONTRA DITIRAMBO

    O batismo de sangue do nosso frade fora em 1511, na expedição em Cuba. No

    próprio relato do dominicano, pasé yo allá habiendo enviado por mí el dicho Diego

    Velázquez, por el amistad que en esta isla habíamos tenido pasada, y anduvimos juntos

    Narváez y yo, asegurando todo el resto de aquella isla para mal de toda ella.67 Las Casas

    não oculta a finalidade nem se furta à auto-critica, junto com seu amigo Velázquez:

    Hostigados y atemorizados los indios de aquella provincia de Maycí, como está dicho,

    comenzó Diego Velázquez a pensar en repartir los indios della por los españoles (…).68

    A participação pessoal, o conhecimento direto dos testemunhos e a própria

    confissão de culpa inicial nas conquistas ou ao menos nos benefícios que estas geraram,

    confere, paradoxalmente para Las Casas, mestre na “pintura do horror” da conquista, uma

    tonalidade de verossimilhança e autoridade frente aos historiadores oficiais, como Gómara,

    humanistas como Sepúlveda ou ao próprio Filipe II, ausentes fisicamente das Índias. Las

    Casas, através da dialética vai construindo um pensamento que até hoje continua clássico,

    66 MARTÍNEZ, op. cit, p. 13. 67 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. Lib III, cap. XXVI, p. 525. 68 Ibidem, p. 525.

  • sobretudo devido a sua legião de antagonistas. Vejamos algumas observações sobre

    Gómara:

    Gómara, clérigo, que escribió la Historia de Cortés, que vivió con él en Castilla siendo ya marqués, y

    no vido cosa ninguna, ni jamás estuvo en las Indias, y no escribió cosa sino lo que el mismo Cortés le

    dijo, compone muchas cosas a favor dél, que, cierto, no son verdad, y entre otras, dice, hablando en

    el principio de la conquista de México, que no quiso hablar en muchos días de enojado a Diego

    Velázquez, y que una noche fue armado donde Diego Velázquez estaba solo con solos sus criados, y

    que temió Diego Velázquez cuando lo vido a tal hora y armado (…) Yo vide a Cortés en aquellos

    días, o muy pocos después, tan bajo y tan humilde, que del más chico criado que Diego Velázquez

    tenía quisiera tener favor; y no era Diego Velázquez de tan poca cólera, ni aun de tan poca gravedad

    que, aunque por otra parte, cuando estaba en conversación era muy afable y humano [pero cuando

    era menester y se le antojaba, temblaban los que estaban delante dél, y quería siempre que le tuviesen

    toda reverencia, y ninguno se sentaba delante dél (…)] por lo cual si sintiera de Cortés una punta de

    alfiler de cerviguillo o presunción, o lo ahorcara, o a lo menos lo echara de la tierra y lo sumiera de

    ella sin que alzara cabeza en su vida. Así que Gómara mucho se alarga imponiendo a Cortés, su amo,

    lo que en aquellos tiempos no sólo por pensamiento estando despierto, pero ni durmiendo, por sueños

    parece poder pasarle. Pero como el mismo Cortés, después de marqués, dictó lo que había de escribir

    Gómara, no podía sino fingir de sí todo lo que le era favorable; porque como subió tan de súpito de

    tan bajo a tan alto estado, ni aun hijo de hombre, sino de Júpiter desde su origen quisiera ser

    estimado.69

    69 Ibidem, p. 529.

  • B) LAS CASAS VERSUS FERNÁNDEZ DE OVIEDO: OS INTERESSES CRIADOS

    Sobre Fernández de Oviedo, cronista mor do Reino, Las Casas não é menos

    inclemente e, no entanto, não consegui encontrar uma refutação direta às acusações que Las

    Casas lhe faz, as quais ficam ressoando nos ouvidos dos amantes dos Cantares de Gesta dos

    heróis hispânicos, ao mais puro estilo Comentarii De Bello Gallico de Júlio César:

    Para probar su pestilentísima opinión, Sepúlveda cita a un tal Oviedo que escribió una Historia

    General, según él la titula, sobre la realidad de las Indias. Este escribe en su obra que la gente de la

    isla La Española es perezosa, ociosa, mentirosa, inclinada al mal y culpable de muchos vicios; a esto

    añade que esta gente tiene flaca memoria, es inconstante, perezosa, ingrata y absolutamente incapaz

    para todo. Después dice que, aunque tienen alguna virtud en la adolescencia, en cuanto llegan a la

    edad adulta caen en vicios abominables. (…) Sé que hay que tener piedad de una persona tan

    ignorante y ocupada en pintar los árboles genealógicos de cada nación. 70

    Las Casas serve-se da mesma narrativa de Oviedo para combatê-lo, empunhando

    uma arma dialética que poucos tratados de retórica ou Cortesãos de Castiglione aprovariam:

    Pues así dice en el prólogo de la primera parte de su Historia, que no tiene el mínimo valor: Así he

    trabajado, en obsequio de Vuestra Majestad, como inspector de cuentas, cuando y como convenía,

    para estar presente en la guerra y en la pacificación de estas tierras mediante las armas. Este

    impostor llama pacificación a matar a criaturas racionales de Dios con crueldad propia de un turco,

    sin ningún o levísimo motivo (…)71

    Além do mais, o próprio Oviedo descreve sua conduta: yo hice que mis siervos

    indios extrajeran oro. Ya ves, lector, que éste fue uno de los que utilizaba indios; también

    fue líder y se siente orgulloso de esta guerra diabólica, es más de la desolación y

    70 LAS CASAS, Bartolomé. Apologia. Cap LVII, p.345-346. 71 Ibidem, p. 348.

  • destrucción de las provincias que se llamaban ‘Del Darién’72. A continuação, de novo o

    argumento da autoridade que lhe confere ser testemunha, serve para rebater os argumentos

    historiográficos de Gomara e para afirmar as teses de Las Casas:

    Oviedo escribió que los indios de la isla La Española practicaban la sodomía y eran culpables de

    otros nefandos pecados; esto es falso, en realidad. Pues yo fui uno de los primeros que viajé allí, si

    no en el primero, en el segundo viaje, hacia el año 1500, en la época en que estaba allí el comendador

    Bobadilla, que envió a Colón encadenado a España, y me quedé en la isla algunos años. Hice una

    investigación diligentísima sobre este asunto y descubrí que el nefando vicio de la sodomía es entre

    ellos rarísimo o inexistente. (…). En la época que Oviedo llegó a la isla, el pueblo indio, constituido

    en una inmensa multitud de gente, había desaparecido totalmente y de los españoles que habían

    matado a los indios, sólo quedaban a los sumo dos o tres, pues todos habían muerto.

    O ilustrador de Las Casas, Theodor De Bry73 consegue imprimir a crueza das cenas.

    De Bry's image of Spanish soldiers murdering Native Americans (From GREAT VOYAGES, Part IV, 1594)

    72 Ibidem, p. 348 73 Nasceu em Lieja, Flandes, em 1528, onde morou até 1560. Filho de uma família protestante, ele teve que se exilar para Estrasburgo fugindo da morte e saques das guerras de religião da época. Discípulo de Albert Durero, e despojado pela contenda, De Bry sobreviveu graças a sua arte, sendo um dos primeiros em retratar os indígenas do Novo Mundo. Baseado nos relatos de Standen e de Sir Walter Raleigh, elabora as imagens mais conhecidas do canibalismo americano do século XVI, na ilustração da Storia del mondo nuovo (1565), de Girolamo Benzoni, e o monumental “Idéia verdadeira e genuína de todas as principais histórias, e de os vários ritos, cerimoniais y costumes dos habitantes das Índias; tal como as principais cidades e ilhas e fortalezas ou defesas das quais se trata nesta parte nona da história da América ou Índia Ocidental, em Francfort, imprenta de Mateo Becker, 1602”, impresso em Frankfort pela viúva na última cidade onde residiu73. Idôneo para as muitas edições da Brevíssima de Las Casas, e como ele, dentro de um caustico e crítico visceral realismo, é difícil se pensar em Las Casas sem sentir as cruas imagens de De Bry.

  • C) LAS CASAS VERSUS FRANCISCANOS: HOMO RATIONALIS VS INFANS

    Os franciscanos manifestam, na época, a tendência a considerar os índios como

    crianças pequenas em cultura e raciocínio. Pensam, portanto, que é melhor primeiro batizá-

    los para depois instruí-los para o posterior crescimento em fé e amadurecimento cristãos. Já

    os dominicanos, entre eles Las Casas, consideram aos índios como pessoas adultas, e por

    isto antepõem ao batismo a instrução na fé e os costumes cristãos. Foi este um dos motivos

    dos enfrentamentos entre ambas ordens e de Motolínia com Las Casas. A obra deste último,

    De Único Vocationis Modo foi o fundamento da encíclica Sublimis Deus, na qual se predica

    a plena racionalidad, humanidad y derechos humanos de los amerindios y de todos los

    pueblos, incluso antes y con independencia de su conversión a la fe.74

    Tal encíclica batera frontalmente com o edifício colonial sustentado pelos alicerces

    das encomendas: los satélites del Enemigo del género humano tienen la audacia de afirmar

    74 ABRIL CASTELLÓ, Vidal. Bartolomé de las Casas y la Escuela de Salamanca en la Historia de los Derechos Humanos: la Apologia. In: Apologia, op, cit, p. XVII y XVIII.

  • en todas partes que es necesario reducir a los indios a servidumbre (…) bajo pretexto de

    que son como bestias incapaces de recibir la fe católica (…)75

    Em contraste, Motolínia e, por extensão, os franciscanos, tinham optado por um

    caminho mais prático ou “realista” , como se mostra na carta que enviara em dois de janeiro

    de 1505 a Carlos V, acerca de Fernão Cortez: Por este capitán nos abrió Dios las puertas

    para predicar su Santo Evangelio, y éste puso a los indios que tuviesen reverencia a los

    santos sacramentos, y a los ministros de la Iglesia en acatamiento.76 O fim do mundo se

    aproximava e era urgente a conversão maciça do maior numero de pagãos, pelos métodos

    que fossem necessários. Las Casas destila ironia em relação às conversões avulsas por parte

    dos franciscanos, como no caso da conversão do índio que se encontra na fogueira:

    Quando lo querían quemar, estando atado al palo, un religioso de Sant Francisco le dijo como mejor

    pudo que muriese cristiano y se baptizase; respondió que ‘para qué había de ser como los cristianos,

    que eran malos’. Replicó el padre: ‘porque los que mueren cristianos van al cielo y allí están viendo

    siempre a Dios y holgándose’; tornó a preguntar si iban a l cielo cristianos; dijo el padre que sí iban

    los que eran buenos; concluyó diciendo que no quería ir allá, pues ellos allá iban y estaban. Esto

    acaeció al tiempo que lo querían quemar, ya sí luego pusieron leña al fuego y lo quemaron (…)77

    75 DUMONT, op. cit, p. 69-70. 76 DE ROUX, Rodolfo. Dos Mundos Enfrentados. Colômbia: CINEP, 1990, p. 171. 77 LAS CASAS, Bartolomé. Historia de las Indias. Lib III, cap XXV, p. 533-534.

  • Motolínia consegue ser explicito e prático, dentro do seu milenarismo:

    Será predicado este evangelio en todo el universo antes de la consumación del mundo. Pues a V.M.

    conviene de oficio darse prisa que se predique el Santo Evangelio pro todas estas tierras y los que no

    quisieren oír de grado, sea por fuerza, que aquí tiene lugar aquel proverbio: más vale vueno por

    fuerza que malo por grado.78

    De forma congruente, Fray Toribio de Motolinia arremete, na sua carta ao

    Imperador Carlos V, contra Las Casas, e argumenta com o método da citação, para ele auto

    inculpatória:

    Dice en aquel confesionario, que ningún español en esta tierra ha tenido buena fe acerca de las

    guerras, ni mercaderes, en llevarles a vender mercaderías, y en esto juzga los corazones. Asimismo

    dice que ninguno tuvo buena fe en el comprar y vender esclavos. Y no tuvo razón, pues muchos se

    vendieron por las plazas con el hierro de V.M. y algunos años estuvieron muchos cristianos bona fide

    y en ignorancia invencible.79

    78 DE ROUX, op. cit. p. 171. 79 TORIBIO DE MOTOLINIA. Carta a Carlos V. In: Pereña, Luciano: Proceso a la Leyenda Negra. Salamanca: Universidad Pontificia, 1989.

  • LAS CASAS VS SEPÚLVEDA: CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID

    Yo no soy el filósofo.

    El filósofo dice: Pienso…luego existo.

    Yo digo: Lloro, grito, aúllo, blasfemo…luego existo.

    Creo que la Filosofía arranca del primer juicio. La Poesía, del primer lamento.

    No sé cuál fue la palabra primera que dijo el primer filósofo del mundo.

    La que dijo el primer poeta fue: ¡Ay! Este es el verso más antiguo que conocemos.

    La peregrinación de este ¡Ay! Por todas las vicisitudes de la historia ha sido hasta hoy la Poesía.

    Un día este ¡Ay! Se organiza y santifica. Entonces nace el salmo.

    Del Salmo nace el templo. Y a la sombra del salmo ha estado viviendo el hombre muchos siglos.

    León Felipe. “El Poeta y el Filósofo”. De Poeta Maldito.

    Juan Ginés de Sepúlveda, antagonista de Las Casas por antonomásia, nasceu na

    pequena aldeia andaluza de Pozoblanco numa família humilde. Estudou em Alcalá de

    Henares e depois em Sigüenza, universidade que já foi ironizada no próprio Quixote, o que

    indica as dificuldades iniciais deste esforçado estudante, que concluiria sua formação no

    Colégio Espanhol em Bolonha, onde seria aluno de Pomponazzi, graças à política de bolsas

    do Cardeal Cisneros, então regente da Coroa de Castela. Protegido dos grandes mecenas

    italianos, Julián de Médicis (futuro Clemente VII), Alberto Pio, príncipe de Carpi e Ercole

    Gonzaga, Aldo Manucio e o papa Adriano VI, Sepúlveda se destaca como brilhante

    tradutor do grego de Aristóteles, teólogo, jurista e espelho do perfeito cortesão. Quando

    Carlos V foi se coroar imperador em Bolonha, estava rodeado por um círculo erasmista que

    acreditava num messianismo imperial que faria chegar à idade de ouro. Seria o já

    humanista “italiano” Sepúlveda o representante papal que recebera o César Carlos.

  • Fiel seguidor dos conselhos de Castiglione80, ele compôs engenhosamente e para

    maior glória do Imperador a Cohortatio ad Carolum bellum suspiciat in turcas. Dois anos

    depois, as tropas imperiais realizam o Saco de Roma e Sepúlveda é convidado para a Corte

    dos Austrias como cronista imperial.81

    Adversário do círculo erasmista, ele intui rapidamente as contradições dos ideais

    daqueles com os imperativos da real politik e tenta se inserir no contexto imperial da Corte

    de Carlos, prevendo o perigo do protestantismo para o seu programa imperial. Então

    escreve o Demócrates Alter em defesa da guerra justa contra os índios e a pertinência das

    encomiendas para o efetivo governo do Novo Mundo. O antagonista de Demócrates,

    Leopoldo, é um jovem alemão luterano que se opõe à guerra, contra o qual o alter ego de

    Sepúlveda, Demócrates, argumenta em favor da submissão dos índios aos europeus:

    Y vemos que esto está sancionado en el libro de los Proverbios: “El que es necio servirá al sabio”. Es

    creencia que tales son los pueblos bárbaros e inhumanos apartados de la vida civil, conducta

    morigerada y práctica de la virtud. A éstos les es beneficioso y más conforme al derecho natural el

    que estén sometidos al gobierno de naciones o príncipes más humanos y virtuosos, para que con el

    ejemplo de su virtud y prudencia y cumplimiento de sus leyes abandonen la barbarie y abracen una

    vida más humana, una conducta morigerada y practiquen la virtud. Y si rechazan su gobierno,

    pueden ser obligados por las armas, y esta guerra los filósofos enseñan que es justa por naturaleza

    con estas palabras: “De esto resulta que en cierto modo brota de la naturaleza la obtención de

    riquezas por medio de la guerra, puesto que una parte de ella es la facultad de la caza, de la cual

    conviene usar no sólo contra las bestias, sino también contra aquellos hombres que habiendo nacido

    para obedecer rehúsan el dominio, pues tal guerra es justa por naturaleza” Hasta aquí Aristóteles.82

    80 CASTIGLIONE, Baldassare. O Cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 81 FERNÁNDEZ SANTAMARIA, op. cit. p. 167-171, 82 SEPÚLVEDA, Juan Ginés. Obras Completas III, Demócrates Segundo, Trad. A. Coroleu, Ayuntamiento de Pozoblanco, 1997, libro I, p. 55-56.

  • Frei Bartolomeu conseguiu das Universidades de Alcalá e Salamanca relatórios

    desfavoráveis com os quais impedir a publicação do Demócrates. O teólogo Sepúlveda

    contra-atacou e conseguiu que o Conselho de Índias ordenasse a retirada de todos os

    exemplares impressos e manuscritos da obra Confesionario do dominicano Las Casas83.

    Acusações e informes foram, num fogo cruzado entre os beligerantes, arremessados um

    contra outro. O Conselho de Índias decidira confrontá-los na que fora chamada a

    Controvérsia de Valladolid, celebrada em duas sessões, entre 1550 e 1551. Participaram do

    Conselho importantes filósofos da Escola de Salamanca, como Melchor Cano, sucessor da

    cátedra em Salamanca de Francisco de Vitória, e Domingo de Soto, sendo este último quem

    elaborou um resumo com as conclusões, nas quais nenhum erudito até hoje coincidiu em

    determinar como favoráveis para um ou outro contendedor. O Conselho imediatamente

    depois declarou o fim das conquistas e a ilicitude da escravidão dos índios.84

    Diante da desobediência desta e das demais leis de Índias, Bartolomeu decide então

    difundir os argumentos que defendera na Controvérsia, primeiro por meio de cópias

    privadas e depois editadas por Cromberger e Trujillo com até sete reimpressões, feitas a

    custa dos próprios livreiros que visavam um lucro quase certo. Já em 1553 aparecera um

    concorrente anônimo que editara a edição pirata da Disputa entre Las Casas e Sepúlveda.85

    Enquanto as obras de Las Casas eram sucesso, o Demócrates Alter apenas seria resgatado

    no século XVIII pela Real Academia de História e editado por Menéndez Pelayo em 1892,

    até então condenado à poeira do esquecimento: este su libro presento al Dotor en el

    83 DE LAS CASAS, Bartolomé, Brevísima Relación de la Destruición de las Indias, Madrid, Castalia, 1999, p. 25. 84 Idem, Op. Cit, p. 26. 85 Idem, Op. Cit, p. 31.

  • Consejo Real de las Indias, suplicando con gran instancia e importunidad que le diesen

    licencia y autoridad para imprimirlo. La qual le negaron muchas vezes, conociendo el muy

    cierto escándalo y daño de publicarlo se recrecería.86.

    Poucos entenderão o porquê desta discriminação. Ao final, não seria a tese do

    esquecido Sepúlveda aquela que terminaria triunfando nos fatos? Até hoje, milhares de

    indígenas continuam sendo exterminados por grupos para-militares, desde o México até a

    Colômbia, e de fome ou pobreza no resto do continente, pois são considerados necios como

    sabiamente observara Sepúlveda: seu latim era cristalino e os conhecimentos que sobre

    Aristóteles acumulara rivalizavam com o próprio Avicena. Intercambiava cartas com

    Erasmo, que ainda discordantes sempre falam da altura intelectual de Ginés. Por quê, então,

    a injustiça com a obra deste preclaro homem? Apenas lembrado por alguns nostálgicos

    “idealistas” do que a Grandeza da Espanha poderia ter sido e não foi, este tradutor do

    estagirita fora resgatado por autores como Menéndez Pelayo, autor-perseguidor dos

    Heterodoxos Españoles, em plena crise fin-de-sécle colonial espanhola do século XIX, por

    Losada nos postremeiros tempos do regime de Franco, ou atualmente nesta incerta época

    das “invasões bárbaras” na Espanha, com um 8,4% de população estrangeira em janeiro de

    200587, resgatado por Solana Pujalte e Coroleu.

    Assim como uma fotografia não existiria sem o seu negativo, Las Casas mesmo sem

    o saber, nunca seria compreensível sem Sepúlveda, e nenhuma imagem mais gráfica que a

    da Controvérsia de Valladolid sobre a licitude das Guerras de Conquista contra os índios.

    86 Soto, Domingo. Relecciones y Opúsculos, in: SEPÚLVEDA, Ginés, Obras Completas III, Demócrates Segundo, Trad. A. Coroleu, Ayuntamiento de Pozoblanco, 1997, libro I, p. XII). 87 Instituto Nacional de Estadística de España, INE, in: www.ine.es, novembro de 2005.

  • A) SEPÚLVEDA: O INTELECTUAL ORGÂNICO.

    There is nothing more consistent than a racist humanism,

    since the European has only been able to become a man through

    creating slaves and monsters.

    Jean Paul Sartre. Preface of Fanon.

    Teólogo, filósofo e jurista humanista da escola italiana, Juan Ginés utilizará

    idênticas fontes de autoridade – o estagirita e a Bíblia – que os dominicanos tomistas, e

    como num jogo de xadrez, os princípios, estratégias e estilos de cada qual formularão um

    desenvolvimento do Grande Jogo, que a Controvérsia representa, diametralmente oposto.

    O tradutor da Ética e da Política de Aristóteles para o Latim fundamenta a

    conquista, ocupação e conseguinte dominação dos indígenas pelos europeus na servidão

    natural dos bárbaros que o preceptor do Imperador Alexandre Magno ideara. Baseia-se

    tanto na carência ou menor razão dos nativos, quanto no seu caráter selvagem e inferior,

    que estava baseado na ausência de escritura, idolatria e rituais de canibalismo e sacrifícios

    humanos que realizavam, o que fazia deles primatas sub humanos ou “monstrua”. Portanto,

    ficam sentadas as bases para a mission civilisatrice, o que transforma Sepúlveda numa

    figura inaugural na filosofia da conquista e ao mesmo tempo, talvez numa máscara branca

    que o Império não gostasse muito de exibir.

    Alem da erudição clássica, o que converte a Sepúlveda numa f