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BAÚ DE MEMÓRIAS Centro de Memória de Cosmópolis

Baú de memórias

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Apresentamos o resultado do projeto “Baú de Memórias – entrevistas em História Oral”. Foram cinco oficinas realizadas entre Dezembro de 2012 e Abril de 2013 para socializar com os participantes a possibilidade de conhecer a história da cidade e a de seus moradores através das narrativas de vida. Durante os encontros estudamos juntos os conteúdos sobre História Oral, fases de produção das entrevistas, ética no relacionamento com os entrevistados, edição e transcrição. O nosso pequeno – e dedicado – grupo trocou experiências e conhecimento. Temos aqui histórias de vida que nos revelam o cotidiano de Cosmópolis de outrora e de agora. Nas narrativas colhidas podemos perceber como o cotidiano tece uma bonita relação entre a vida de cada um com os lugares, personagens e outras histórias da cidade. É uma trama que não tem fim. É o fio da história seguindo o seu curso, não fazendo distinção de classe, cor ou gênero, ele apenas continua e atravessa o tempo. Carina Bentlin

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BAÚ DE MEMÓRIAS

Centro de Memória de Cosmópolis

Ação realizada em contrapartida ao projeto Memória Viva de CosmópolisProAC ICMS 2012.

Responsável Técnico e ArtísticoCarina Bentlin

Responsável LegalMírian Teresa Barrozo Todero

Patrocínio

Apoio

Organização e EdiçãoCarina Bentlin

EntrevistasAmauri de Oliveira, Bruno Micheletti, Carol Vieira, Eliezer Barbosa, Karen Cruz, Marilei Terezinha Barbosa e Walter Frungilo (participantes da

ofi cina Baú de Memórias)

TranscriçõesAndréa Romero, Bruno Teixeira, Haroldo Henrique e Vivian Mukotaka

FotosStephanie Lauria, Carina Bentlin, Acervo do Centro de Memória e Acervo Pessoal dos entrevistados RevisãoIzabel Ribeiro Domingues

Projeto Gráfi co

Baú de memórias (livro eletrônico) / Centro de Memória de Cosmópolis; organização e edição Carina da Silva Bentlin. Cosmópolis, 2013.

3072 Kb; PDF.

ISBN: 978-85-916364-0-2

1. História oral – história da vida – narrativa2. Identidade – experiência3. Cosmópolis – história

CDD 907.2

FICHA CATALOGÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE COSMÓPOLIS

B337

Apoio Cultural

Esse trabalho foi feito a muitas mãos. É fru-to da generosidade de muitas pessoas. A ofi cina surgiu da vontade de compartilhar o conteúdo apreendido em um curso de His-tória Oral ministrado pela Suzana Lopes Del-gado e Marcela Boni, Doutora e Doutoranda em História Oral, respectivamente. A ideia tomou forma como contrapartida ao proje-to de pesquisa e documentação “Memória Viva de Cosmópolis”, pelo ProAC ICMS.

Agradecimento ao Secretário de Cultura de Cosmópolis, Antônio Sérgio dos Santos, que apoiou a iniciativa e priorizou a reativação do Centro de Memória de Cosmópolis e os trabalhos do Laboratório de História Oral, um gesto de sensibilidade ao perceber a po-tencialidade da memória como ferramenta para a cidadania, desenvolvimento social e fortalecimento da cultura.

Aos colaboradores voluntários: Izabel Ribei-ro Domingues, que revisou tudo com muito carinho e Andréa Romero que ajudou nas transcrições.

Aos participantes, que dispuseram de tem-po, energia, toparam e realizaram essa em-preitada.

E principalmente aos que aceitaram contar suas histórias, remexer no baú de lembran-ças, reviver momentos... Agradecemos a acolhida em suas casas, os cafezinhos, sor-risos e abraços.

Carina Bentlin

Agradecimentos

Rua Santa Gertrudes, 254Sericicultura - Cosmópolis - SPCEP13150-000 - (19) 3812-3101

“O narrador conta o que ele

extraí da experiência – sua

própria ou aquela contada

por outros. E, de volta, ele a

torna experiência daqueles

que ouvem sua história”.Walter Benjamin

Prefácio

História Oral

Toninho Trevenzolli

Helena Nallin

Mercedes Frungilo

Guido Landucci

Valber Kowalesky

José Pedroso

Autores

Sumário

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45

61

71

84

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História VivaOlhar pelo retrovisor do tempo nos ajuda a compreender melhor o passado e nos dá subsídios para melhor projetarmos o futu-ro do lugar em que vivemos. Dessa forma o Centro de Memória vem para ser mais um instrumento que nos auxiliará nas ações ci-dadãs em prol de um futuro ainda melhor para a nossa querida Cosmópolis.

Hoje o Centro Cultural de Preservação da Me-mória História de Cosmópolis “Alcides Fringi-lo” é uma realidade e exige de todos nós uma postura cidadã frente à história da cidade e do legado de preservar de maneira dinâmica a história de seu povo. Por isso tenho certe-za que cada cosmopolense contribuirá com o abastecimento do Centro de Memória com histórias, documentos, fotos, pois só assim manteremos viva a nossa história.

Parabéns Cosmópolis!

Antonio Sérgio dos Santos (Moita)Secretário de Cultura de Cosmópolis

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PrefácioApresentamos o resultado do projeto “Baú de Memórias – entrevistas em História Oral”. Foram cinco oficinas realizadas entre De-zembro de 2012 e Abril de 2013 para sociali-zar com os participantes a possibilidade de conhecer a história da cidade e a de seus moradores através das narrativas de vida.

Durante os encontros estudamos juntos os conteúdos sobre História Oral, fases de produção das entrevistas, ética no relacio-namento com os entrevistados, edição e transcrição. O nosso pequeno – e dedicado – grupo trocou experiências e conhecimento.

Temos aqui histórias de vida que nos reve-lam o cotidiano de Cosmópolis de outrora e de agora. Nas narrativas colhidas podemos perceber como o cotidiano tece uma boni-ta relação entre a vida de cada um com os lugares, personagens e outras histórias da cidade. É uma trama que não tem fim. É o fio da história seguindo o seu curso, não fa-zendo distinção de classe, cor ou gênero, ele apenas continua e atravessa o tempo.

Carina Bentlin

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História Oral:sintonizando saberes e fazeresSuzana Lopes Salgado Ribeiro1 e Marcela Boni Evangelista2

Tem sido cada vez mais comum acompanharmos diferentes profissionais mencionarem a realização de trabalhos sob a denominação da história oral, ou de maneira ainda mais geral trabalhos com a memória. A produção acontece em meio a um movimento pendu-lar entre a academia e trabalhos desenvolvidos fora dos muros da universidade. Assim, vemos crescer a preocupação com esses temas e, cada vez mais, são publicados novos livros e revistas especializadas que buscam dar conta de definir, orientar e registrar dife-rentes experiências e pesquisas neste campo.

Academia e iniciativas particulares, sejam institucionais ou comunitárias, avançam no sentido de incorporar em seus escopos técnicas e métodos voltados para a captação de materiais que se baseiam nas experiências vivenciadas pelas pessoas e na visualização de diferentes pontos de vista sobre um mesmo acontecimento ou contexto histórico.

Assim como quando do momento em que surgia a chamada moderna história oral, após a Segunda Guerra Mundial, esta área de conhecimento mantém ao longo do tempo, uma intrínseca relação com os aparatos técnicos característicos de seu tempo. Do gravador de áudio aos mais modernos dispositivos audiovisuais, o registro de entrevistas de história oral vem se adequando às demandas atuais – tanto tecnológicas, quanto sociais.

Esta peculiaridade inicialmente técnica, mas que possui importantes desdobramentos de ordem metodológica e teórica, resulta em uma necessidade permanente de atualização do profissional, a qual deve prever além da pesquisa constante sobre novos mecanismos de captação das histórias, soluções práticas para o encaminhamento das relações pesso-ais que caracterizam este fazer.

Acompanhando este aspecto, mostra-se fundamental a necessidade de pensar a respei-to das formas de disponibilização pública dos resultados dos trabalhos desenvolvidos. E são muitas as possibilidades! Estas vãos das tradicionais teses e dissertações – cujo alcance infelizmente não ultrapassa sem dificuldades os espaços acadêmicos – até livros,

1. Doutora em História pela USP, professora universitária, pesquisadora do NEHO-USP e coordenadora da Fala Escrita - Pesquisa, Documentação, História Oral e Memória.2. Doutoranda em História Social na USP, pesquisadora do NEHO-USP e do Memorial da Resistência de São Paulo.

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revistas, sites, materiais de divulgação, vídeos institucionais, blogs, exposições, perfor-mances teatrais, publicações digitais, sem contar iniciativas ainda em experimento dian-te do grande potencial deste tipo de trabalho.

Também na etapa voltada para a publicização, a atenção aos recursos disponíveis em tecnologia e comunicação é indispensável. Tamanha gama de atividades distintas e co-nhecimentos específicos apontam não apenas para uma formação mais diversificada dos profissionais que se dedicam à história oral, mas para possibilidades voltadas para novos tipos de atuação através de equipes multiprofissionais – importa lembrar que o uso de tecnologias e formatos diferenciados exigem formação de equipes especializadas que possam somar conhecimentos.

A despeito de tamanha inovação e intensificação da produção teórica e da prática em história oral, é possível identificar algo que perpassa as diferentes etapas da trajetória da história oral: a valorização das experiências e das subjetividades!

Considerar diferentes olhares e pontos de vista advindos de grupos diversos, muitos dos quais com acesso limitado aos meios de expressão pública, coincide ainda com outra di-mensão da prática da história oral: a valorização dos saberes particulares destes grupos. E é a partir destes saberes marcados por especificidades que são fomentados os pro-dutos dos projetos desenvolvidos e, sobretudo, é com este arsenal de saberes que são elaborados novos conhecimentos.

Desta forma, temos a história oral como uma forma específica de produzir conhecimen-tos cuja base está na sintonia entre um fazer conectado a seu tempo e saberes, em sua multiplicidade. Nesta forma de trabalho é essencial o respeito ao outro e o estabeleci-mento de uma escuta atenta para que aconteça o diálogo. Diferentes sujeitos, portanto, são envolvidos em um processo colaborativo de trabalho que se fundamenta no registro que considera memórias, identidades, subjetividade e experiências. Neste processo de mediação se configura um mosaico social a partir do qual buscamos pensar, compreen-der e compartilhar reflexões e práticas relativas a pessoas ou grupos.

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Dentre as diversas possibilidades de aplicação da história oral está aquela que se apoia nas histórias de vida e experiências vivenciadas no âmbito de comunidades. Estas podem configurar as mais variadas combinações e, em geral, entrelaçam diferentes gerações e gêneros. Contudo, costumam guardar nas trajetórias individuais elementos comuns a todos que delas participam.

Suas origens, as histórias que atravessam o tempo para contá-la e legitimar suas parti-cularidades, as lendas, os acontecimentos que marcaram o grupo, sejam vividos direta-mente ou referências de uma memória coletiva, perpassam as narrativas que se consti-tuem a partir dos estímulos evocados pela história oral.

Dessa forma, ao trabalhar as memórias coletivas de grupos ou comunidades, possibilita-se o contato com um conjunto de registros eleitos pelo grupo como significativos, que estabelece sua identidade, seu jeito de ser e viver o mundo, e que decorre dos seus pa-râmetros históricos e culturais. A possibilidade de compartilhar desta memória é que dá a cada um de nós o senso de pertencimento. Trata-se de uma relação criativa e dinâmica entre o indivíduo e o grupo.

As memórias que cada um de nós carrega dentro de si são acompanhadas de suas vi-vências, impressões e aprendizagens. Não guardamos tudo, pois a memória é sempre seletiva. Mas vale ressaltar que nosso jeito de considerar o que é significativo ou não resulta do espaço e do tempo em que vivemos. A história de cada um de nós contém a história de um tempo, dos grupos a que pertencemos e das pessoas com quem nos relacionamos.

Por esta dinâmica entre indivíduo e coletividade é que se estabelecem muitas motiva-ções para levar a cabo um projeto de história oral em uma comunidade. As demandas para fazê-lo, quando identificadas por alguém “de fora”, muitas vezes, estimulam inte-grantes do conjunto. Por outro lado, as iniciativas também podem surgir de pessoas que compartilham o cotidiano do grupo e notam o potencial do registro de suas histórias.

Em ambas as situações é indispensável a busca por aparatos metodológicos e teóricos para a realização de um projeto que tenha consistência e possa reverberar os objetivos traçados desde a elaboração da proposta. Assim, entram em cena outras personagens, os profissionais da área que possibilitam a capacitação dos grupos e direcionam as ati-vidades delineadas a partir das expectativas explicitadas.

Protagonizando a própria história:história oral e empoderamento comunitário

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Esta fase de capacitação tem importância central no processo como um todo e pode ser realizada a partir de atividades de curta e média duração, como cursos e oficinas, os quais buscam aliar formação teórico-metodológica e exercícios práticos, além de promo-ver discussões sobre os formatos possíveis de publicização dos resultados do projeto.

Após esta etapa, chega o momento em que a atuação da comunidade é evidenciada. Tendo como ponto de partida o projeto de história oral, são selecionados os colaborado-res e realizadas as entrevistas, que são de fato o eixo de todo o trabalho. O registro das histórias em suporte de áudio ou audiovisual constituem o material a partir do qual serão elaborados os produtos que chegarão ao público.

Para além dos aspectos formativos e aplicados, cabe ressaltar aquele cujos significados extrapolam a objetividade inicial necessária ao trabalho. Falamos aqui de um investi-mento subjetivo que remete à apropriação por parte da comunidade dos conhecimentos adquiridos através dos profissionais com os quais estabelecem uma relação de compar-tilhamento de saberes. Importante notar que “estar lá” (GEERTZ, 2002) sempre provoca alterações nos conhecimentos que são produzidos a partir de então – seja na comunida-de, seja na academia.

Mais que isso, tal apropriação reflete em um movimento crescente de produção de novos conhecimentos e reconhecimento de habilidades entre os integrantes do grupo. O cenário que se forma, por sua vez, possibilita a ressignificação dos papéis assumidos socialmente tanto internamente à comunidade como nas relações que se delineiam externamente. As pessoas encontram nas suas histórias e nas histórias de seu grupo os elos de per-tencimento e empoderamento. Não se veem mais sozinhas e podem falar por todo um grupo. Têm uma história. A questão do empoderamento é muito importante, pois com isso os sujeitos se sentem melhores, percebem possibilidades de outros caminhos além de receber um suporte para o caminhar conjunto. Estas iniciativas, assim, contribuem para o empoderamento dos grupos que se propõem a protagonizar sua própria história.

Referências:BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. BOSI, Eclea. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.EVANGELISTA, Marcela B.; RIBEIRO, Suzana, L. S. e ROVAI, Marta G. O. Audiovisual e história oral: utilização de novas tecnologias em busca de uma história pública. Oralidades (USP), v. 1, p. 89-105, 2011.GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.HALBAWCS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.RIBEIRO, Suzana L. S.; MEIHY, José C. S. B. Guia Prático de História Oral. São Paulo: Contexto, 2011.

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“Abra os olhos e apure os

ouvidos. É só prestar atenção.

Você testemunhará grandes e

pequenos episódios que estão

acontecendo à sua volta. Um

dia será chamado a contar

também. Então, verá que o

tecido das vidas mais comuns

é atravessado por um fio

dourado: este fio é a história”.

Ecléa Bosi

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Walter Luiz Frungilo

No início dos anos sessenta fi z parte de um grupo de músi-cos que acabou entrando para a história cultural da cidade de Cosmópolis. Era “Rage e seu conjunto”. Na época em que ingressei, a banda já era um sucesso na região e choviam convites para apresentações em bailes das cidades mais pró-ximas e foi nesse sucesso que embarquei com muita alegria. Fazia aquilo que gostava de fazer: cantar.

O grupo já tinha um “crooner”, como se chamavam os vo-calistas na época, mas tinham necessidade de outro que pudesse cantar em idiomas estrangeiros. A moda da época eram os “rock-baladas”, os “standards” da música americana, as canções francesas, italianas e os boleros em espanhol. Eu tinha, como tenho até hoje, certa facilidade com essa coisa de falar idiomas. Recomendado pela irmã do Rage, a Senhora Jacintha Baracat, mais conhecida como “Raia” e que morava na casa vizinha à minha, tendo que me ouvir cantar o tempo todo, fui fazer um teste. E, aprovado, entrei para o grupo.

Toninho Trevenzollie sua participação no“Rage e seu Conjunto”

Continua... 15

Da esquerda para a direita: Leone, Ítalo Fernandes, Beni Benito Nallin, Rage Baracat, Luiz Gallani, Alcides Carão e Antônio Trevenzolli.Crédito: acervo pessoal

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Hoje, ficaram apenas as lembranças na memória de cada um, algumas fotografias e raramente um en-contro com os antigos companheiros de “noitadas dançantes”, como o apresentador do grupo chama-va o evento no início dos bailes.

Quando chega a hora de contar essa história, po-rém, eu particularmente, sinto falta da inclusão de um dos músicos que deram início ao projeto. Todos se lembram de citar o Rage Baracat, o Rubens Bi-chara, o Ítalo Fernandes, o Alcides Carão, mas fre-quentemente se esquecem de uma pessoa que fez parte do grupo inicial: o saxofonista Antônio Tre-venzolli. Talvez por ele ter deixado o grupo poucos anos depois do começo do conjunto, antes da gra-vação do primeiro disco, sua figura não se fixou na memória coletiva.

Foi essa a razão de eu ter escolhido esse moço para minha participação no “Baú de Memórias – oficina de História Oral”, o projeto da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Cosmópolis e do “Centro Cultural de Pre-servação da Memória Histórica de Cosmópolis” que, para minha felicidade, leva o nome de meu pai Alcides e que tem como intuito registrar com os recursos de que dispomos hoje, o acervo iconográfico das famílias cosmopolenses que se dispuserem a isso.

Depois de acertado com a oficineira Carina Bentlin, que deu as instruções, comecei a fazer contato com o Toninho. Primeiramente falei com sua esposa Dona Soeli e expliquei minhas razões e minha in-tenção. Não tinha certeza de que ele gostaria de falar sobre o assunto e precisei do auxílio dela. Ela prometeu-me que explicaria todo o projeto a ele e que entraria em contato comigo logo que pudesse. Minha ansiedade, entretanto, não conseguiu impe-dir-me de telefonar de novo e procurar saber o re-sultado. Foi positivo. Ele concordou em falar comigo e, assim, marcamos um dia para essa conversa.

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Foi em sua casa que ele nos recebeu. Ca-rina apareceu munida de todos os equi-pamentos e apetrechos de que dispunha: câmera de vídeo, gravador, câmera foto-gráfi ca, enfi m, a parafernália toda e eu, claro, indo atrás.

Era uma tarde e ele, gentilmente, abriu os portões de sua garagem para que não tivéssemos nem o trabalho de encontrar uma vaga na Rua Expedicionários, que tem um trânsito bem intenso e onde as vagas são exíguas.

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A conversa transcorreu de uma maneira leve e foi tudo muito agradável. Toninho se dispôs a mostrar orgulhosamente o saxofone que usou nas apresentações, as partituras de música e até o método pelo qual aprendeu música, o famosíssimo “Bona”1 (não tenho certeza, mas acredito que esse seja o único método de solfejo existente). Nunca vi ninguém aprender música sem passar pelo “Bona”. Entre as raridades que ele possui, estão várias fo-tografi as do conjunto e até o cartaz de propaganda do baile em que fi zeram a estreia do conjunto. O Cosmopolitano Fu-tebol Clube deu adequadamente o nome de “Prata da Casa” a esse evento.

Terminamos nossa conversa com refres-cos oferecidos pela Dona Soeli e fi cou-me a impressão de que tudo havia sido ensaiado minuciosamente. Não houve falha, não houve esquecimentos, não houve nenhum assunto que ele não te-nha querido abordar. Enfi m, na minha cabeça, tenho aquela sensação de que o trabalho feito foi concluído com sucesso.

Agora quanto às anotações, as grava-ções e todo o material que fi cou desse trabalho, são públicas. Esperamos que isso tudo tenha trazido às pessoas que participaram o mesmo prazer que deu a mim, e que tenhamos conseguido passar aos que vierem a conhecer o resultado, esse sentimento de satisfação.

E que o registro dessa nossa experiência fi -que à disposição de quem quiser ver e ouvir a história contada por quem dela participou.

1. Método muito utilizado na aprendizagem musical

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“Eu realmente me encantei pelo saxofone”

Toninho TrevenzolliCa

rina

Bent

lin

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A minha família mora em Cosmópolis desde 1946. Meu pai se instalou com a família na Rua Campinas, 350, na esquina em frente de onde tinha perto um posto de gasolina. Nós crescemos e meu pai formou o comércio dele e todos os filhos trabalhavam juntos.

O meu interesse por música surgiu quando comecei a frequentar o Cosmo-politano Futebol Clube (CFC). Eu frequento o Clube desde os 12 anos e fiquei sócio aos 13 anos. Gostava de ver as orquestras, os conjuntos e comecei a comprar discos. Com 14 anos comprei o primeiro LP! Gostava de ouvir os conjuntos tocarem e então surgiu o interesse, um gosto bom pela música. Eu realmente me encantei pelo saxofone. Naquela época brincava, tocava no meu quarto de solteiro e o vizinho do meu lado era o Benjamin Simões de Almeida e a Jacira (filha do Sr. Benjamin), que era professora de acordeão. Então eu fazia barulho aqui com o meu sax e ela fazia barulho de lá com o acordeão.

Por volta dos 15 anos já frequentava Campinas. Passava em frente à Loja Santa Cecília, conhecida por muitos naquela época, hoje nem sei se existe mais, e comprei um disco, ouvia as músicas e comecei a me interessar cada vez mais. Aí apareceu um colega que tinha um saxofone Mi Bemol Menor e eu comprei o saxofone.

Eu ia para Campinas com um professor que era músico de uma orquestra, se não me engano a Orquestra Colúmbia, que vinha tocar em Cosmópolis. Era um senhor negro, mas ele já tinha idade e então ele estava parando de tocar. Eu ia à casa dele, perto da Avenida Aquidaban com a rua General Câmara. A viagem era feita de ônibus ou trem. O ônibus era um pouquinho mais rápido. Como a estrada era de terra e fazia muita poeira, usávamos um guarda-pó amarelo com mangas compridas para proteger a roupa.

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Comecei a aprender a tocar com o método “Bona”1. Depois comecei a tocar o saxofone e de vez em quando fazia uns ensaios. Minha família apoiava, não tinha nada contra. Eu trabalhava no armazém de meu pai e tinha uma folga para isso, geralmente durante a noite. Quando meu pai mudou o comércio dali da esquina, sobrou um salão vazio. O Beni (Beni Benito Nallin) tocava “piston” na casa dele, ali na alfaiataria, meia quadra para cima de casa, e um dia nós resolvemos tocar juntos e falamos “vamos lá soprar juntos, fazer barulho, pra nós mesmos”. Começamos a tocar os dois juntos, mas só para ensaio, para ver o que dava. O tempo foi passando e comecei a estudar em Campinas com um professor que era músico de uma das orquestras que vinha fazer baile em Cosmópolis, o Seu Américo. Eu ia uma vez por semana a Campinas só para aprender. Só que ele falou “eu não vou ensinar saxo-fone. Você tem que aprender clarinete”. Tive que comprar um clarinete para aprender. Tocava o clarinente com ele em Campinas e o saxofone em casa.

A ideia foi vingando até que um dia o Rage Baracat conversando com uns amigos pelos bares teve a ideia de juntar o grupo. Nessa época eu traba-lhava no armazém como encarregado. Jogava basquete no Cosmopolitano e arrumava um tempinho para a música também. E no fim resolvemos formar o conjunto! Na primeira formação do conjunto eram quatro componentes, o Rage Baracat, Luiz Gallani, Beni Benito Nallin e eu, Antônio Trevenzolli, os quatro que demos o arranque, mas, faltava cantor e ritmista. Para fazer isso tinha o Rubens Bichara, Ismael, Alcides Carão e o Ítalo Fernandes. Aí o grupo ficou com sete. A ideia foi crescendo, o Rage comprou uma bateria, eu já tinha o sax, mas meu sax era pequeno. Precisei ir a São Paulo comprar um novo que é este que está aqui ainda. Para estrear o conjunto precisei com-prar esse sax novo para fazer os duetos certinhos, sabe? E assim começamos ensaiar.

Não tínhamos lugar para ensaiar, ensaiava na casa do Rage ou no depósito de pinga, conforme era possível. O Rage já tinha quatro ou cinco filhos, fi-cavam todos juntos, em volta, era até bonito de ver. A coisa foi crescendo e no começo de 1961 preparamos uma estréia do conjunto. Até então a gente só fazia brincadeiras. Mas aí o negócio ficou oficial, fizemos o uniforme e marcamos o baile de estréia, e o Carnaval veio logo em seguida.

Tivemos dois conjuntos de roupas. O primeiro, para ficar barato, era uma camisa de bolinha, bordô e uma calça branca. Então todo mundo gastava pouco e conseguia fazer. O segundo já era um paletó com gola de outra cor,

1. Método muito utilizado na aprendizagem musical

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já era mais a rigor, mas nesta ocasião já estávamos ganhando algum dinhei-ro. O Rage era o empresário, eu era o contador, o Beni e o Galani eram os arranjadores. Cada um tinha uma função. Eu fazia a contabilidade, pagava as contas e o que sobrava dividia um pouquinho para cada um. Nós pagávamos os contratados que seria o violão, o cantor e o restante a gente rachava.

O grupo ganhou o nome de “Rage e seu conjunto” por ter sido o Rage o idealizador e também porque ele era uma beleza de pessoa. Ele era o ba-terista, tinha a caminhonete para transportar os instrumentos e girava tudo em torno dele. Acho que ninguém impôs nada que não fosse bom. Não foi uma decisão autoritária, foi de muita boa vontade de todos. Era tudo muito gostoso. Até, depois de algum tempo, eu já tinha montado uma vitrola em casa com o dinheiro da música. Comprei uma picape (toca disco), mandei fazer um móvel e foi com dinheiro da música daquela época. Era muito bom! Eu fazia o repertório dos bailes, fazia a lista certinha, passava para o Beni e o Galani (os responsáveis pela música), e eu tocava junto.

Crédito: acervo pessoal

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A estreia do conjunto foi no Cosmopolitano Futebol Clube, tenho o folheto de propaganda. O conjunto continuou firme. Eu trabalhava bastante e tinha poucas horas para ensaiar. Toda vez que ensaiávamos até tarde chegáva-mos à meia-noite. Nessa época eu era solteiro e não tinha problema ne-nhum. Quando casei a coisa complicou! A Soeli tinha dezoito anos e quando ia ensaiar eu a levava para a casa da mãe dela e tirava ela à meia-noite da casa da mãe. Depois fazia um baile que terminava quatro horas da manhã e sobrava uma hora e pouco para dormir. Dormia e às oito horas da manhã ti-nha que trabalhar. Então, não tinha como continuar. Eu trabalhava o dia intei-ro no armazém, era o responsável pelas contas do armazém, da tecelagem, da telefônica (empresa do meu pai), não podia deixar de fazer o serviço. Então o meu principal trabalho era o armazém. A música era secundária e, quando eu casei, a música ficou em terceiro lugar. Não tinha como continuar e minha mãe ficou muito triste: “Ah, mas agora que o pessoal se juntou...”. Eu falava “Ah, mãe! Não dá, não tem outro jeito”. Na época eu tinha 21 anos. A responsabilidade estava em minhas mãos.

Rage e seu Conjunto durante apresentação.Crédito: acervo pessoal

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O meu pai tinha três estabelecimentos comerciais em Cosmópolis. A Tele-fônica, administrada pelo meu cunhado Hermínio de Campos, a tecelagem administrada por outro cunhado, o José Giuzio (Zico), a engomadeira gerida pelo meu cunhado Álvaro Decreci e o armazém que eram os três filhos: eu, o Alcides e o Valdemar (Tito). Somos sete irmãos. Seis colocados e sobrava o José Carlos, o mais novo que nasceu aqui em Cosmópolis, pois nós somos todos de Paulínia. Então meu pai montou um comércio que era a Construtex que ficou para o José Carlos. Cada um tinha a sua função. No armazém eu era o encarregado e cuidava das contas e contabilidade interna, o Alcides era do transporte, o Tito (Valdemar), era da mercadoria e das entregas. O trabalho era de segunda a sábado, eu não podia tirar um dia para dormir depois de um baile. Tocava na Sexta, Sábado e Domingo. Senti muito quando deixei o grupo em julho de 1962. Nós estreamos no começo de 61. Quando saí eles contrataram um saxofonista de Piracicaba, o Pompêo, depois ele saiu e en-

trou o Gomes que trouxe também o guitar-rista Café, de Campinas. Foi nessa época que eles gravaram um disco, em 1962, chamado “Nós e o Mar”, com 45 rotações. Até hoje ele existe. Foi reproduzido em fita, depois em CD. Eu participava de muitos bailes. Quando tocava no Cosmopolitano, a Soeli ia e ficava sentada ali na frente. Eu tinha que parar e ir dançar em algum momento, né? A gente sempre gostou de dançar!

A dificuldade de fazer baile naquela época é que só havia um microfone. Quan-do o cantor cantava, os outros ficavam na garganta. E olha que fazer Carnaval na garganta não era fácil. Eu fiz dois carnavais aqui no Cosmopolitano. Mas tinha reforço, a gente contratou o José Bordim, de Cosmópolis, e o Euzébio Tagliari de Artur Nogueira, mas era tudo no sopro mesmo. Não era como hoje que cada um tem seu microfone. O do saxofone fica penduradinho na boca. Eram tempos difíceis, era o que tínhamos. Então era daquele modo mesmo!

Toquei em dois carnavais, o de 1961 e 1962, o conjunto tocou em outros. O baile de Carnaval era animado igual a um baile comum. Tinha que tocar das dez até as quatro da manhã e o pistonista ficava com os lábios vermelhos, o saxofonista morde o lábio por dentro porque tem que segurar a boquilha, o cantor fica rouco... Depois de quatro dias, imagine! Além de duas matinês, rapaz, é difícil! Mas era muito gostoso porque era animado. O pessoal era animado, brincava e dançava bastante, mas era difícil tocar no Carnaval na-

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quele tempo. Sofria mesmo, mas dividíamos um pouco. Parava um pouqui-nho, o outro tocava enquanto o pistonista passava gelo na boca. O Carnaval era bom no Cosmopolitano. Enfraqueceu depois de 64, 65, que começou a crescer o Carnaval da Usina. O Rage era um amigão e lembro ainda que o conjunto comprou uma marim-ba2 e era o Rubens (Bichara Jemael) que tocava. Tinham aquelas varetinhas com a bolinha na ponta, ele era um grande baterista, mas a bateria era do Rage. O lugar dele (Rubens) era o violoncelo ou ritmo, depois ele ficou na marimba. Quando o conjunto acabou por conta do falecimento do Rage em um acidente, o Rubens ficou como saxofonista. No violão a gente contratava um rapaz do Saltinho, o Osvaldo e depois o Leone lá de Limeira. E quando você (Walter Frungilo) cantou, eu também gostava muito. Era diferente do Carão. O Carão era um cantor romântico muito bom, já você cantava umas músicas estrangeiras. Lembro de uma passagem, uma vez nós fomos tocar em Campinas e eu ia com o carro do meu pai. Ele tinha um Chevrolet 51 e o Rage uma caminhonete 54. Então, quando acabava o baile a gente tinha que encaixotar tudo, amarrar bem. Vínhamos por Paulínia e aí caiu a roda da caminhonete, ali na fazenda Santa Genebra, antes de chegar em Paulínia. A gente indo de carro e caminhonete fazendo um risco de fogo com a roda. Já pensou isso às cinco horas da manhã? Era um sofrimento, mas era gostoso. Era divertido porque o grupo se dava muito bem. Não tinha nenhuma rusga um com o outro. Era amizade mesmo. Assim nós fomos tocando e hoje eu estou aqui, relembrando meus 50 anos junto com a minha mulher, a Soeli. Nós temos os três filhos, o Antônio Júnior, Fábio e Renato, todos casados, já não temos nenhum em casa faz mais de dez anos. Aí a gente se cuida.

Depois que parei de tocar o instrumento dentro da banda, deixei de tocar de-finitivamente. Uma vez ou outra eu abria, dava uma sopradinha, mas não era a mesma coisa. Perdi aquele interesse, aquele entusiasmo. Eu o acho muito bonito. O som, o estilo... É uma beleza o saxofone. Deixei todas as partituras com o conjunto (Ouve-se o som de um relógio carrilhão pendurado na pa-rede da sala, marcando ¾ de hora). Agora a gente está ouvindo um relógio que veio do tempo do meu pai!

2. Instrumento de percussão, que consiste numa série de lâminas de madeira ou de metal, graduados em escala, percutidas, com duas baquetas, e dispostas sobre tubos de metal que funcionam como caixa de ressonância.

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Antônio Trevenzolli em sua casa, durante a entrevista.Crédito: Carina Bentlin

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Uma lição para a vidaEliezer Barbosa

Em dias em que vivemos uma arquitetura familiar em constan-te transformação, Helena Nallin mostra como uma vida simples pode formar homens e mulheres para fazer a diferença à sua volta. A situação faz a pessoa e isso fica bem claro quando nos anos de 1950, com opções profissionais bastante limitadas para as mulheres, Dona Helena iniciou sua jornada como professora. Helena foi minha professora e com ela aprendi muito. Sigo a mes-ma profissão e missão, e os ensinamentos de Helena continuam presentes em minha vida. Realizar essa entrevista foi uma visita ao passado. Passeamos por salas de aulas, escolas, alunos. Como professor, aprendi sobre como era a vida e o sistema de educa-ção naquela época e como os professores levavam adiante esta importante tarefa. Como aluno, entendi o que movia a dedicação daquela mulher que nos ensinava todos os dias. Como cidadão e pai de família, saí com a certeza de que precisamos investir na formação das nossas crianças e fazer com esmero tudo que nos foi dado.

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“Antigamente ospais respeitavammais os professores”

Helena Curiacos NallinSt

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Meus pais eram libaneses. Eles eram muito cultos. A maior herança que meu pai deixou para nós filhos foi o amor pelo conhecimento. Ele dizia que só o conhecimento iria nos manter integrados na vida. Para ele, era de grande importância que nós estudássemos e tivéssemos um diploma para sobrevi-ver, fazendo parte da sociedade e transmitindo alguma coisa. Ele considera-va o conhecimento algo muito importante.

Ele sempre nos falava que essa capacidade para estudar vinha de Deus, en-tão, não poderíamos trancá-la numa gaveta. Ela deveria ser usada para o bem da sociedade. Tudo isso que ele nos ensinava sempre foi muito impor-tante, sempre me fez refletir que, se Deus nos deu uma cabeça, então não deveríamos ficar sem fazer nada, e que, fazendo parte desse mundo, eu deveria participar dele da melhor maneira e não da pior, sendo minha contri-buição uma obrigação. Agradeço muito a Deus todos os dias pela minha vida e pelos pais maravilhosos que eu tive, os quais já faleceram.

Minha mãe veio do Líbano quando era criança, e meu pai já moço. Quando meu pai se casou com minha mãe ela tinha vinte e três anos e ele quaren-ta. Viveram cinquenta anos juntos. Eu admiro muito a educação que meu pai tinha com a minha mãe e com os filhos, algo que não existe muito hoje em dia. Meu pai nunca bateu num filho, nunca gritou com um filho. Quan-do precisava puxar nossa orelha, ele chamava a gente e falava que o que estávamos fazendo era indecente para uma família, para uma pessoa, para uma criança de família, e dizia “não faça mais isso”, e eu e meus irmãos não fazíamos mais. Ele me dizia: “filha, você só vai ser feliz com o que tem dentro de você, o que tiver fora te dá conforto e não te dá felicidade. Você tem que ter aí dentro amor, paz, alegria, conhecimento. Tudo que você tiver dentro de você é importante, se tiver fora não faz diferença nenhuma”. E naquele tempo só os ricos tinham valor, e muitas vezes eu pensava que ele falava isso só porque não éramos ricos. Mas não era. Hoje, na verdade há muito tempo, eu sei o quanto meu pai era sábio.

Meu pai conheceu minha mãe quando foi se despedir do meu avô. Ele (avô) ia para o Líbano, pois sempre levava notícias para lá, e nesse dia, quem ser-viu o almoço foi minha mãe que era a filha mais velha. E ele simplesmente se encantou com ela. Logo depois escreveu uma carta para meu avô pedin-do a mão dela em casamento. Meu avô conversou com minha mãe e contou sobre a carta e ela lhe perguntou: “Quem pai, aquele velho”? Ela tinha vinte e três anos e ele quarenta. Meu avô disse para ela que não o considerava velho, que ele era um moço de boa família, culto, e que ela lhe daria muita

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alegria em se casar com ele. E minha mãe concordou. Ela viu meu pai três vezes, aquele dia que ele veio almoçar, mais duas vezes e eles casaram. Nunca vi meus pais brigarem, discutirem, nunca o vi maltratar minha mãe, nem minha mãe responder para ele. O que meu pai falava estava falado, e isso valia para minha mãe também. Ele a ajudava em tudo que podia, levava cafezinho para ela na cama. Quando minha mãe tinha filhos ele fazia canja, nunca vi homem fazer isso. Quando nós filhos ficávamos doentes, imagine... sete filhos, eles tiveram nove, mas criaram sete, pois dois morreram, era meu pai quem cuidava da gente. Farmacêutico nunca veio em casa, meu pai pincelava nossa garganta, dava injeção, remédio, fazia tudo que fosse preciso. Ele não era médico, mas tudo que fosse necessário ele fazia. Mes-mo eles tendo se visto apenas três vezes antes de casarem, ela aprendeu a respeitá-lo, a gostar dele e os dois viveram cinquenta anos juntos.

Lembro-me que meu pai sempre me falava: “Filha, o que você quer para você, faça para os outros, porque vai voltar para você”. Quando eu me recor-do de como ele era cuidadoso com os filhos, com a mulher, com a família, sinto muito orgulho e reflito como meu pai era sábio!

Minha mãe era muito religiosa, muito mesmo. Ela tratava bem de todo mun-do. Meu pai não deixava minha mãe limpar chão, lavar roupa – naquela épo-ca ainda não existia máquina de lavar. Ele dizia que esses serviços eram “brutos” e que não eram para ela. Ele sempre arrumava alguém para fazer, porque ele tinha muito respeito por ela, um respeito que existia entre eles, de marido e mulher e eu ficava impressionada. Eu não vejo isso hoje em dia. Hoje um quer ter mais direito que o outro. Meu pai e minha mãe passaram pra gente um estilo de vida. Minha mãe fazia flores de pano para festa de formatura, pois, naquele tempo não existiam muitos enfeites. Ela tingia e fazia arranjos que hoje nós encontramos com facilidade. Essa era a distração dela, além de cuidar dos filhos, o que não é tarefa fácil. Eu agradeço muito a Deus pelos pais que tive, irmãos, todos eles, que também eram maravilho-sos. É muito importante acordar agradecendo o que a gente tem. Hoje em dia as pessoas já acordam resmungando pelo que não tem. Pedem mais do que agradecem. Sempre digo: “Deus, muito obrigado porque eu estou em pé, estou andando, estou falando”. Hoje em dia as coisas acontecem porque as pessoas dão mais importância para as coisas materiais e se esquecem de valorizar o que é importante, o que tem dentro da gente.

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Na minha infância, criança não tinha direito de nada, só de obedecer. Criança não brincava na rua e na porta de casa com bola. O que a gente mais fa-zia mesmo era brincar de teatrinho. Na nossa turminha brincava eu, meus irmãos, dois deles, os colegas deles e uma amiga minha mais velha. Então a gente fazia teatrinho e tinha que declamar poesias, e é por isso que eu gosto muito de poesia. Eu pegava o livro e decorava a poesia que eu não sabia nem o que queria dizer, mas eu declamava e a gente fazia teatrinho – era nossa distração. Era tudo improvisado, podia ser teatro inventado ou declamação. Lembro-me que eu gostava de colocar uma saia rodada para brincar. A gente cantava, contava histórias, e era essa a nossa distração. Não existia televisão, computador, só rádio. Não tinha quase nada, então a gente brincava de fazer teatro em casa. Minha mãe não deixava ficar na rua, os meus irmãos ainda ficavam na porta. A gente lia muito, muitas vezes aqueles livros que eu nem sabia o que queria dizer, porém, sempre pedia a autorização da minha mãe para ler. Eu me lembro do livro chamado “O Crime do Padre Amaro” e minha mãe não deixava ler. Até hoje eu não li esse livro, preciso qualquer dia ler, só por curiosidade. Eu era criança e só me lembro da minha mãe me dizer: “Filha, esse livro não é pra você, mais tarde você lê”. E eu o deixava na estante.

Minha mãe e meu pai tinham muitos livros. Além do português, meu pai lia e falava árabe e falava também francês. E com isso, o pessoal de Piracica-ba que vinha do Líbano, pedia para ele escrever cartas para seus amigos e parentes, eles ditavam em português e meu pai escrevia em árabe para enviar. Fico feliz por ter convivido em um ambiente onde o que importava era a postura, a maneira de viver, a educação e a cultura. Naquele tempo só milionário estudava e eu sinto muito orgulho do meu pai e minha mãe por terem conseguido estudar os sete filhos. Fui estudar em colégio de freira, minha mãe queria educação religiosa para nós e foi conversar com as freiras. Éramos quatro irmãs mulheres e ficava pesado para ela pagar a escola para todas, mas ela conseguiu. Posso dizer que isso foi algo muito bom, porque nós tínhamos um professor de música que era fabuloso e ele me colocou no coral. Eu não pensava que tinha condições de cantar no coral, mas fui e fiquei muito feliz. Naquela época os exames eram muito rígidos, tinha exame oral de música, de desenho, de todas as disciplinas e a gente tinha que fazer na lousa, imagine nossa tensão! Quando ele falava: “Zero”, a gente ficava gela-da! A dificuldade era muito grande, principalmente para quem não entende muito de música. Mas valeu a pena, eu aprendi a gostar de música.

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Antigamente as mulheres eram professoras ou donas de casa. Não tinha muita alternativa. Então foi a opção que eu tive, estudei e já comecei a tra-balhar. Na época que me formei todas as escolas pertenciam ao Estado. Então, para podermos ingressar numa escola e lecionar precisávamos ter pontos. Para obter esses pontos, a gente começava lecionando em escolas muito longe de casa. A primeira classe que eu peguei foi na cidade de Biguá, muita gente nunca nem ouviu falar, mas era uma estação que ficava a três horas de Peruíbe e seis de Santos. Não tinha água, nem luz, era uma estação de japoneses, por sinal um povo muito educado, e lá eu fiquei por um ano. Depois de Biguá eu fui para perto de Jaú, numa outra cidade pequena cha-mada Boracéia. Trabalhei em Oswaldo Cruz também, a doze horas da minha casa. E era assim que funcionava naquele tempo, para ingressar numa escola a gente tinha que fazer os pontos. Foi esse o motivo da minha chegada aqui em Cosmópolis. Eu fui chegando e foi o mais perto que consegui de Piracica-ba. Não tinha nada mais perto.

Cheguei em Cosmópolis no ano de 1961. Nessa época tinha a escola do Ro-drigo que não era como é hoje, pois naquele tempo as escolas funcionavam de uma maneira diferente. Tinha o primário que era da 1ª a 4ª série e depois os alunos faziam um curso para ingressar no ginásio. Esse curso não existia, mas depois foi incluído. Era chamado de curso para admissão ao ginásio. Esse curso só tinha no Gepan1. O curso de admissão ao ginásio era de um ano e o aluno tinha que saber tudo que aprendeu no primário e mais as coisas que se aprendia no ginásio para entrar. Se não soubesse não entrava. Isso valia para as disciplinas de português, matemática e estudos sociais. O aluno tinha que saber todos os verbos, os tipos de verbos, conjugar tudo, saber toda a tabuada, saber tudo de matemática, tudo de estudos sociais.

A educação em Cosmópolis

1. Escola Estadual Dr. Paulo de Almeida Nogueira

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Recordo-me muito de uma aluna que eu tive, inteligentíssima. Ela fez o curso comigo e no exame obteve nota 8,0 de português. E para conseguir 8,0 de português nessa prova de admissão, o aluno precisava ser excelente, pois além das questões precisava fazer também uma redação. Ela obteve nota 7,0 de matemática e 4,5 em estudos sociais. E eles não a aprovaram para estudar no ginásio. Eu fui falar com a diretora: “Vocês estão ficando loucos, a menina obteve nota 8,0 de português, 7,0 de matemática e vocês repro-varam a menina porque ela teve 4,5 de estudos sociais”? E eu fiquei muito triste, pois a garota ficou tão desgostosa que nunca mais estudou. Pouco tempo atrás eu mandei um recado para ela, porque foi uma grande tristeza ela não ter sido aprovada e não ter dado continuidade aos seus estudos. E ela respondeu pedindo que eu não ficasse triste, que isso não fez falta para ela. Senti muito porque a menina ficou abalada e nunca mais quis estudar. A educação era muito rígida.

Depois do ginásio, os alunos que quisessem exercer a função de professor cursavam o antigo magistério – mais três anos, ou a pessoa poderia optar por outro curso que fosse de sua escolha. Entretanto, aqui em Cosmópolis o cur-so de magistério não existia, ele foi implantado na década de 1980. Estudar era ainda muito limitado. As oportunidades de educação aumentaram quan-do começou a funcionar a Escola de comércio. Eu lecionei lá um bom tempo, dando aulas de português, em virtude da carência de professores no início. O grande diferencial da Escola de Comércio foi a oportunidade que as pes-soas tiveram de estudar à noite. Muita gente só pôde dar continuidade aos estudos por meio dessa escola. Em geral, os alunos que estudavam lá não tinham feito o ginásio e precisavam estudar à noite. Muitos eram casados e trabalhavam. Atualmente ela é conhecida como escola Dr. Moacir do Amaral.

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Meus planos eram de ir embora de Cosmópolis. Minha intuição dizia que se eu permanecesse aqui por um ano acabaria ficando. Estava decidida então a sair da cidade na próxima remoção. No entanto, eu conheci meu marido que trabalhava no Gepan como secretário e nós acabamos nos casando. Quando eu o vi, pensei comigo, vou namorar esse rapaz e me casar com ele. Não sabia nada sobre ele, se era solteiro, casado. Eu sempre tive uma intuição muito grande, já tive para várias pessoas, minhas irmãs, alguns amigos. Na-quele dia fui até o Gepan para perguntar se eles tinham o curso de admissão para o ginásio. Minha intenção era dar aulas para os alunos que iriam fazer a prova de admissão – quem aplicava os exames eram os professores do ginásio. Eu e outra colega apenas ministrávamos o curso e assim eu apro-veitaria o tempo que tinha livre, pois não havia muita coisa para se fazer em Cosmópolis na época. Logo que consegui pegar as aulas do curso, observei que o Oswaldo Heitor Nallin ia sempre à sala dos professores para conversar. Lembro-me até de uma professora que sempre me falava: “o secretário está vindo sempre aqui conversar, por que será né”? Ele ia lá só para me ver. Co-meçamos a namorar, namoramos por quatro anos e em 1965 nos casamos.

Inauguração da Biblioteca Municipal, que funcionava no prédio onde está locado o fórum (Rua Ramos de Azevedo).Crédito: acervo pessoal

Permanência em Cosmópolis

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Na época que eu dava aulas aqui na cidade os alunos eram muito bons perto do que são hoje em dia, eles obedeciam. Eu sempre falava para eles que eu não era melhor que eles, mas que era a professora deles. E explicava que como professora alguma coisa de cultura eu tinha a mais. Explicava que não existe ninguém melhor ou pior nesse mundo, que todos somos iguais, só que graças a Deus eu havia conseguido estudar e tinha um diploma e era isso que me diferenciava deles. Isso bastava, eles me obedeciam, me respeita-vam e me queriam bem. Eu era muito mole de coração, não podia ver uma criança doente. Recordo-me muito do caso de dois alunos, eram dois irmãos que brigavam muito na classe. O menino batia muito na irmã, brigavam o dia inteiro, e observando os dois eu pensava que aquilo não era normal, então chamei a mãe do menino. Expliquei para ela que constantemente a menina estava chorando porque ele batia nela. Contei para ela como era o compor-tamento dele com a irmã, e disse que ele batia muito na menina. Eu sempre prestava bastante atenção na atitude das crianças, e falei para ela que acre-ditava que alguma coisa não estava certa com ele. A mãe decidiu levá-lo ao médico para fazer uma avaliação e ele tinha mesmo um problema. Eu não sei exatamente o que era, mas ele iniciou um tratamento e melhorou muito.

Mais um caso que nunca me esqueço, foi o de outra criança que todo dia tinha dor de cabeça. Eu também tinha muita dor de cabeça, mas eu era velha, ele era criança. Uma criança com tanta dor de cabeça faz a gente desconfiar que algo está errado. Do mesmo modo, chamei a mãe desse outro aluno e pedi que ela levasse seu filho ao médico. Expliquei para ela que ele reclamava de dor de cabeça todos os dias e que eu desconfiava que tivesse alguma coisa errada com o menino. Ele tinha um tumor na cabeça, que tristeza. Ele então tratou, melhorou, ficou bom, só que depois já na fase adulta ele morreu. Isso são coisas que o professor precisa avaliar, as atitudes das crianças precisam ser observadas. Você já pensou, uma criança todo dia de cabeça baixa e eu perguntava para ele: “Todo dia você tem dor de cabeça filho”? “Sempre foi assim”? “Você falava isso para a outra professora”? E ele me respondeu que falava, mas que ela dizia que era “fita” dele. São coisas que o professor precisa avaliar com seriedade, pois, como poderia ser “fita” uma criança todo dia com dor de cabeça? Isso foi mais uma coisa que aprendi com meus pais – observar o que não era natural na atitude das crianças e sempre tentar ajudar. Os pais

Sala de aula

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respeitavam muito os professores antigamente porque não tinha outro meio de educação. Eles nos davam total apoio, então naquele tempo dar aula era um prazer. Pena que a profissão do professor hoje não é mais a mesma. Os alunos quase não os respeitam mais, infelizmente. Eu acredito que isso vem acontecendo porque o mundo abriu as portas, os pais não são respeitados e os professores também não. Tornou-se mais difícil ser educador hoje.

Eu tinha muita amizade com meus colegas professores, porém com a di-retoria não muito. Os diretores tinham o costume de fazer as coisas que eram de lei. E eu não concordava com alguns critérios de mudanças que eles aprovavam. Houve um ano que eles tiraram meus alunos bons, no meio do ano, em agosto, e passaram para outro professor. E pegaram os do outro professor e transferiram para mim. Eu cheguei a fazer um drama por causa dessa mudança. O diretor alegou que fez isso porque era de lei, mas me responda: “Tudo que é de lei é certo”? Tem tanta lei que não é correta. Eu havia trabalhado com essa classe até o meio do ano e a hora que ficou fácil de conduzi-los, vem o diretor e tira os alunos de mim. Então me desentendi com ele, não de brigar, mas não falei amém. Quando eu considerava que eles estavam errados eu questionava.

Como professora primária eu gostava de dar aula para o terceiro e quarto anos, não gostava de dar aula para o primeiro e segundo porque não era minha prática alfabetizar. Eu sempre gostei mais de educá-los civicamente, então, nesse ano, quando eles tiraram meus alunos, os quais eu havia tra-balhado até junho, fiquei brava. Lembro que o diretor ficou bravo comigo e deixamos até de conversar. Talvez, se fosse hoje eu iria dialogar com ele, pedir por favor, não faça isso, vamos ver o que a gente pode fazer, mas naquele tempo eu falei: “Escuta, você está fazendo uma coisa errada”, e o professor falar que o diretor estava fazendo algo errado naquela época, você pode imaginar!

Naquela época continuar estudando não era fácil. Aqui em Cosmópolis só era possível estudar até o ginásio e depois não tinha mais como continuar. A pessoa tinha que ter muito amor no estudo e ir estudar fora. Em geral, quem podia prosseguir com os estudos tinha que pagar escola, pagar viagem, pois a opção mais próxima era Campinas. Era muito difícil. Hoje as pessoas têm tudo mais fácil.

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Inauguração da entidade assistencial Casa da Criança, em 1992.Crédito: acervo pessoal

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Primeira-dama

Meu marido foi prefeito de 1977 até 1982, seis anos, pois na época o mandato foi prorrogado por mais dois. Quando eu descobri que ele iria se candidatar eu disse a ele que detestava política. E sua resposta foi determinada: “Se você não gosta então não se meta, pois eu gosto e vou melhorar minha cidade”. Daí quando ele ganhou a eleição, eu cheguei para Deus e disse: “Senhor, você me deu um cargo que não pedi, mas meu marido pediu e como mulher dele tenho a obrigação de fazer alguma coisa pela minha cidade, só que não sei o que fa-zer, o senhor sabe que eu não sei nada, mas se o senhor me iluminar eu faço”.

No período que fui primeira dama, as mudanças mais importantes foram as creches e a Casa da Criança. Lembro-me que quando falei em abrir creche, fui muito questionada, acharam uma besteira. Eu sabia que muitas mães não teriam como trabalhar sem a creche, pois, onde deixariam seus filhos? As três primeiras creches e a Casa da Criança fui eu quem abriu, com muito sacrifício. A Casa da Criança foi um projeto criado para tirar as crianças da rua. Os pais trabalhavam e a criançada ficava na rua. Eu me preocupava vendo que as dro-gas começavam a se espalhar pela cidade e sabia que essas crianças seriam um alvo fácil. Foi então que decidi abrir essa casa para as crianças terem um espaço proveitoso de lazer, onde pudessem praticar alguma atividade como jogar futebol, aprender a trabalhar na horta, estudar religião e desse modo fugir das drogas. Só que naquele tempo a prefeitura não tinha dinheiro porque não existiam indústrias na cidade, até mesmo a Petrobrás estava começan-do a se instalar aqui na região. Então tive a ideia de inscrever Cosmópolis no programa do Silvio Santos, o “Cidade contra Cidade” e ganhamos um carro. Levei um rapaz que se chama Shasça (Glayton Leite), para uma das provas, um rapaz inteligentíssimo, muito culto. Rifamos o carro para começar a construção da Casa da Criança em terreno cedido pela Prefeitura. Muitas pessoas me criti-caram. Entretanto, eu pensei no futuro das crianças. Achava muito importante tirá-las da rua.

O asfalto foi outra transformação maravilhosa para a cidade. Cosmópolis não tinha asfalto. Quando a gente ia para o cemitério, se estivesse chovendo o coitado do falecido levava até xingo. Era barro puro. O Oswaldo investiu no asfalto da cidade. Ele era muito inteligente, tinha visão de futuro. Outro dia quando fui ao cemitério me lembrei dele – ele me falava assim: “Preciso com-prar mais uma quantia de terra lá pro cemitério, porque daqui a pouco não vai ter nenhum lugar pra enterrar defunto”. E eu respondia “pra que isso, não há necessidade”. Mas ele comprou. O Oswaldo não era um homem que fazia pra

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hoje, ele pensava no futuro. Esse terreno da minha casa ele comprou quando era solteiro, eu nem sabia, aqui era tudo mato praticamente. Quando nos ca-samos morávamos numa casa alugada, e só depois ele me contou sobre seus planos de construir nossa casa. Naquela época, ele fez também o serviço de água para cem mil habitantes. A obra começou na administração do Kiosia e depois ele terminou e até hoje não falta água em Cosmópolis. Ele começou a trazer indústrias para a cidade. A grande dificuldade era a falta de dinheiro, mas ele tentou fazer o melhor. É muito gratificante ver todas essas conquistas. Um serviço de água que ninguém pode reclamar.

A doação do terreno da rodoviária e a construção também foi ele que con-seguiu, só não deu tempo de inaugurar porque estava no final do mandato. Lembro de uma vez que eu o acompanhei para São Paulo. Quem autorizava a instalação das creches era a LBA, Legião Brasileira de Assistência. Ele não tinha pressa de voltar, quando ele precisava resolver um o problema, ele insistia até resolver. E eu fui lá para conversar, buscar ajuda e orientações, pois tinha pouca experiência sobre o funcionamento da creche. Ele foi buscar a assinatura do governador para o terreno que havia recebido em doação. Então quando chegamos ao departamento responsável, ele foi logo dizendo que era de Cosmópolis e que estava lá para buscar o documento com a as-sinatura do governador. O rapaz respondeu que não estava lá. Perguntamos onde estava e ele nos respondeu que se encontrava num outro departa-mento, o qual ficava do outro lado de São Paulo. Já era tarde e eu falei para ele: “Oswaldo, vamos embora, as crianças estão sozinhas em casa”. E ele me respondeu que só sairia de lá com o papel assinado pelo governador. Segui-mos para esse outro departamento e obtivemos a mesma resposta, que o documento também não se encontrava lá. O atendente disse que deveria estar naquele primeiro departamento onde estávamos anteriormente. E o Oswaldo com muita calma disse que lá não estava e que já havíamos estado lá, mas que ele não tinha pressa e que ele podia procurar com calma. E ele se sentou. Faltavam dez minutos para as cinco, horário que eles fechavam. Ele com muita educação pediu ao rapaz que fizesse o favor de verificar onde es-tava o papel assinado, pois não iria embora sem ele. Não demorou nem dez minutos e eles trouxeram o papel. Ele já sabia que funcionário público não vê a hora de terminar o expediente. Com sua educação, paciência e persistência ele conseguiu pegar o documento. Ele me dizia: “Você acha que eu vim de lá até aqui para buscar uma assinatura do governador e depois de todo esse sacrifício eu vou embora sem?”.

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Ele conseguiu trazer o Fórum para nossa cidade. Foi informado que só se conseguisse um prédio adequado, a instalação do mesmo seria permitida. E ele muito inteligente, pediu dinheiro ao Governo do Estado para a constru-ção de uma biblioteca para o setor de educação. A biblioteca, entretanto já existia; embora muito simples, pois eu mesma a iniciara utilizando uma sala da Escola de Comércio. Se ele tivesse pedido o dinheiro para fazer o Fórum eles não teriam dado, mas como ele pediu para a biblioteca eles deram e ele construiu o prédio, instalou a biblioteca que depois se tornou o fórum. E assim ele conseguiu trazer o fórum para Cosmópolis.

Tudo que ele conseguiu foi usando sua inteligência. Ele trouxe o Banco do Brasil, o Banespa, a Caixa Econômica Federal. Ele conseguia tudo com muita insistência, trabalho e graças a sua visão de futuro.

Nunca devemos nos esquecer que o lugar que a gente vive faz parte da nossa vida, então precisamos contribuir com ele da melhor maneira possível.

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Viagem no tempoAmauri de Oliveira

Quando pensamos em viajar, logo nossa mente nos leva para locais diferentes: praias, cidades turísticas, locais apresenta-dos como os mais incríveis. Mas nunca pensamos em viajar no tempo.

Viagem incrível e fantástica que não precisa de máquinas superavançadas e sim de atenção, interesse e respeito por aqueles que já vivenciaram e guardam na memória toda a história acontecida.

Quando me dispus a entrevistar alguém que teria muito mais experiência de vida que eu, a dona Mercedes, não imaginei a riqueza de detalhes, acontecimentos e emoções que des-cobriria.

Tempos que não existem mais, com eventos que nos infl uen-ciam até hoje. Uma visita apenas, para pesquisador, curioso ou amigo, é pouco para o tanto de vivência, experiência e informação que a entrevistada e tantos outros mestres têm.

Conheçam um pouco desta história através desta leitura, e em outra oportunidade, quem sabe, conversando, escutando e interagindo com estes fantásticos guardadores de tesouros.

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“Era uma vidamuito gostosa”

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Meu nome é Mercedes Frungilo. Nasci no ano de 1921. Éramos em onze irmãos na minha família, oito mulheres e três homens. Onze contando com uma que morreu. Minha irmã mais velha morreu de amor, de paixão. Parece brincadei-ra, mas é verdade mesmo. Nós éramos de Conchal e meu pai resolveu mudar para Limeira, onde até comprou casa. Depois disso ele voltou para Cosmópolis, porque essa minha irmã estava muito doente, teve maleita1 e tifo2.

Quando chegamos aqui, ela ainda era noiva de um dentista lá de Conchal. Logo depois ela conheceu um moço aqui da cidade, o José, da família Tavano. Ele trabalhava como telegrafista na Sorocabana e ela se apaixonou por ele. Desmanchou o noivado e começou a namorá-lo. No começo, a mãe dele fez tudo para que o namoro dos dois desse certo, mas depois ela começou a se opor, fazia-o passar de braço dado com outra moça. E minha irmã via isso. E foi indo, foi indo até que ela falou para minha mãe: “Mãe, eu estou enxergando Santa Terezinha e ela está me chamando”. Minha mãe falou: “Ah Maria, que é isso?”. “Está me chamando”, respondeu ela. Quando foi no dia seguinte ela já amanheceu acamada e morreu assim. Minha mãe chamou o médico da família, doutor Féster, que disse que ela não havia morrido de doença e sim de paixão, pois ficou uma mancha preta do lado do coração. Então a gente sempre fala que ela morreu de amor. Ela estava bem, mas foi como uma doença mesmo. Minha mãe sofreu bastante.

Oito meses depois disso morreu o meu pai. Foi um acidente na oficina da Sorocabana. Ele tinha quarenta e dois anos e caiu quando estava pintando o teto. O chefe pediu para pintar o teto de vermelho e meu pai falou: “eu vou”. O chefe disse que iria contratar uma pessoa para fazer esse serviço, mas quando ele saiu meu pai subiu a escada e começou a fazer o serviço. Ele bateu as costas em toda a fiação de alta voltagem, caiu e morreu.

Depois que meu pai faleceu minha mãe teve que cuidar sozinha dos dez filhos. O mais velho tinha dezoito anos. Nessa época ela já tinha a pensão. Meu irmão Alcides Frungilo, que é o pai do meu sobrinho Walter, decidiu que deveríamos nos mudar. Foi uma tristeza muito grande a perda de duas pes-soas na casa. Mudamos e conforme aumentava o número de pensionistas a gente mudava novamente de casa. Quando minha mãe faleceu nós moráva-mos onde é o Roma3 agora. Era uma pensão familiar. Atendíamos oito pro-fessoras e doze moços da Sorocabana. Quando minha mãe ficou viúva ela tinha 39 anos. Criou os filhos com muito sacrifício, trabalhando e labutando.“Era uma vida

muito gostosa”1. Maleita, do latim maledicta (febre maldita). Indisposição, mal estar.

2. Doença infecciosa que apresentava grave comprometimento do estado geral.3. Roma Calçados, na Avenida Esther

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A oficina da Sorocabana tinha muitos funcionários. Só em casa moravam 12 moços. Eram muitas pessoas para almoçar. Minha mãe fazia muitas marmitas, ajudei muito nas entregas. O Dr. Moacir Costa Couto, que morava e trabalhava na Usina Ester, era o mestre de lá, chegou trazendo toda a família. E minha mãe preparava comida para todo mundo. Eram aquelas marmitas enormes.

Eu gostava muito daquele movimento todo. A Sorocabana era um lugar mui-to gostoso para se passear. Vinha gente de Conchal para passar o dia em Campinas e voltava só no final da tarde. Tinha uma árvore, a gente chamava de “arvorão”, era oca por dentro e os namorados sentavam lá para namorar.

Nossa casa vivia cheia de gente. Os quartos cheios de professoras. Tinha noite que chegavam muitos viajantes e eles não queriam ficar em outra pensão, queriam ficar em casa. Minha mãe precisava tirar o colchão da nos-sa cama e colocar no chão na sala. Ela mandou fazer até um biombo para acomodar todos deitados. Mesmo ela dizendo que não tinha mais vaga eles insistiam em ficar lá. Era uma pensão muito gostosa. A gente tinha amiza-de com todas com as professoras. Aprendemos muita coisa. Como éramos crianças, minha mãe nos dava muita educação: “Não responda, faça tudo o que você puder para as pessoas.”

Nossa pensão era uma coisa maravilhosa. Era uma família mesmo. Quando era preciso minha mãe sempre chamava a atenção. Tinha os moços mais ve-lhos, mais responsáveis, e as moças sempre pediam autorização para acom-panhá-los no baile. As professoras que vinham morar na pensão chegavam acompanhadas dos pais, e eles diziam: “dona Rosa, vai ficar sob sua respon-sabilidade”. E minha mãe falava: “mas como?”. E eles pediam para que as filhas obedecessem a Dona Rosa.

Pensão da Dona Rosa

Rosa Guadagnini, a Dona Rosa, e Salvatore Frungilo, pais de Mercedes.Crédito: acervo pessoal

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Lembro-me de um rapaz que se chamava Carmelito e trabalhava na Soroca-bana como telegrafista. Minha mãe sempre falava para ele: “você vai levar as meninas no baile!”. E já avisava para em determinado horário trazer todas elas para casa. E era assim, muita amizade. Nossa casa tinha um salão enor-me e me lembro quando as moças organizaram o baile da “Chita”.

Fizemos muitos bailes na pensão e vinha muita gente de fora. Ninguém nunca faltou com o respeito. A Gazeta Esportiva ( jornal de Campinas) fez uma festa em nossa casa e o pessoal compareceu em peso. Tiraram fotografia da minha mãe, enfeitaram toda a casa, que era enorme, com muita decoração. Depois eles fizeram um jornalzinho falando da minha mãe. Ela apareceu nas fotos no meio de toda aquela moçada. Tínhamos tudo, com muita simplicidade.

No Natal minha irmã pegava todas essas laranjinhas com cabinho, pintava tudo e pendurava. Não tínhamos bola. Não tinha dinheiro e não sobrava. Era “aquela” bonequinha de pano. Minha irmã ganhou uma boneca de papelão, feia pra valer, mas a gente acreditava em Papai Noel. Eu falei: “vamos brincar lá no quintal?” E nós não tínhamos cama para as bonecas, então pegamos uma telha e fizemos a “caminha” de telha e colocamos nossas bonecas para brincar de casinha. Aconteceu que ela esqueceu a dela no sereno. Eu peguei a minha, enrolei e guardei dentro do guarda-roupa, era uma maravilha aque-la boneca. No dia seguinte peguei a minha para brincarmos novamente e ela perguntou: “e a minha, onde está?” Chegamos lá fora e a boneca estava toda enrugada, por causa do sereno. Era de papelão! Ela chorou tanto por causa da boneca. Não tinha como minha mãe comprar outra, não tinha dinheiro.

Quando nós queríamos passear eu sempre carregava essa minha irmã que teve o problema em uma das pernas. Apesar de eu ter voltado a andar de-pois que sarei da paralisia, sempre manquitolei. Então era uma situação muito engraçada, era uma manquitola carregando outra manquitolando. Isso acontecia geralmente quando íamos à matinê do cinema. Tenho muitas saudades!

Todas as minhas irmãs aprenderam um pouco de cada coisa. Só teve uma que não gostava de trabalhar em casa. Ela chamava Dinorá. Ela disse que queria trabalhar fora como empregada. E mesmo minha mãe pedindo para ela ficar, para trabalhar como copeira, ela decidiu ir trabalhar como empre-gada em outro lugar. Minha mãe acabou colocando outra pessoa no lugar dela, pois faltava.

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A minha irmã mais nova se chamava Clér. Meu pai leu esse nome em um romance. Ele lia muito romance. Mas a gente falava Zezé pra ela, por causa daquele moço que minha irmã mais velha morreu de paixão. Ele chamava José. E quando ela nasceu mi-nha irmã falou: “vamos colocar o apelido de Zezé.” Com seis anos ela levou um tombo na calçada, bateu o joelho e ficou com a perna encolhida e até os catorze anos ela andava de muleta. Ela era bem loirinha. Muito ale-gre e sapeca, pegava o baralho das profes-soras e gostava de brincar de ler a “sorte”. Fazia muito essa brincadeira com elas.

Foi muito triste quando essa minha irmã precisou cortar a perna. Minha mãe ficou muito triste. Quando ela estava com catorze anos, o médico de Cam-pinas, doutor Heitor, falou: “dona Rosa eu vou operar a Zezé e ela vai andar. Vai ficar mais curta a perna, mas ela vai andar.” E minha mãe respondeu para ele: “doutor, o senhor vai me desculpar, eu levei ela no especialista em São Paulo e ele falou que não tem jeito mesmo.” Minha irmã colocava gesso a perna esticava, tirava o gesso encolhia. Mas ele insistiu: “eu vou operar e ela vai sarar”. E foi engano dele. Deu gangrena. Ela precisou cortar a perna. Foi onde minha mãe ficou muito triste e acabou morrendo.

Minha mãe era uma mulher muito esperta. Mesmo não sabendo ler nem escrever ia para São Paulo. Quando meu pai morreu o dinheiro dele era rece-bido lá. Ela ia todo mês pegar os juros. Embarcava para São Paulo sem saber ler nem escrever. Sequer assinar o nome ela sabia. Depois de um tempo meus irmãos começaram a incentivá-la e ela aprendeu. Ela falava bastante, era italiana, ficava brava! As pessoas até hoje falam: “a dona Rosa era baca-na!” E era mesmo!

Minha mãe morreu com 54 anos. Todos meus irmãos eram muito bons, mas meu irmão Alcides, pai do meu sobrinho Walter era tudo para nós. Quando ela faleceu ele falou: “vamos vender a pensão.” Minha mãe era a responsá-

Crédito: acervo pessoal

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vel. Ele não podia ficar com essa responsabilidade. Todo mundo tinha medo da minha mãe. Quando precisava chamar a atenção ela chamava mesmo, fosse quem fosse. Ela sempre dizia: “quero respeito na minha pensão! Tem bastante moça.” Vendemos a pensão e fomos morar separados. Fomos em cinco morar com meu irmão Alcides. Quatro mulheres e um irmão. Ele falava: “esses vão morar comigo. Não vou abandonar um filho, uma irmã.”

Minha cunhada (esposa do Alcides) era muito boa, um amor. Até hoje acho falta dela. Faz dois anos que ela faleceu. Ela concordou com tudo. É difícil concordar, né? Depois disso, uma irmã foi embora para São Paulo, a mais ve-lha se casou, o moço também casou e fiquei só eu morando com ele. Morei 31 anos na casa dele. Todos os irmãos eram muito bons, mas como esse, era um exemplo de filho e de homem.

Faz poucos dias que uma das minhas irmãs veio me visitar. Ela está com 97 anos. O nome dela é Olga. Ela era muito bonita, com lindos olhos verdes. O padre daqui ficou apaixonado por ela. Chamava padre Oscar4. Ele veio con-versar com minha mãe e falou: “dona Rosa eu queria casar com a Olga, eu tiro a batina”. Minha mãe respondeu: “de jeito nenhum, o que é isso!” Minha mãe obviamente não consentiu e falou para ele mudar de pensão para evitar confusão. E relembrando tudo isso, nós rimos muito! Falei: “até o padre, Olga!”.

Sofremos bastante também. Tinha dia que não tínhamos leite em casa por-que era só para os pensionistas. Às vezes sobrava uma misturinha, comi muita polenta! Minha mãe fazia polenta, jogava na mesa, cobria, cortava e colocava mais café do que leite. E graças a Deus tínhamos saúde. Acho que é por existir harmonia. Minha mãe era muito boa de coração. Se aparecesse um andarilho pedindo comida para ela, ela mandava subir uma escadaria que tinha no fundo. No fundo de casa tinha uma área pequena e uma mesa. Ela colocava a toalha e dizia: “senta aí.” Servia um prato de comida pra ele, se tinha um refresco servia também e uma fruta. Eles agradeciam muito e diziam que ela seria muito feliz porque ninguém fazia assim com eles. As pessoas têm medo de colocar andarilho dentro de casa. Eles saiam agrade-cendo. Perdi a conta de quantos ela ajudou aqui em Cosmópolis!

4. Padre Oscar Ferraz do Amaral chega à Paróquia Santa Gertrudes em 23 de Agosto de 1941, onde permaneceu por quatro anos. Em 18 de Janeiro de 1945 foi transferido para a freguesia do Saltinho. Informações obtidas através do Livro Tombo da Paróquia Santa Gertrudes, citado no livro “Cosmópolis, de Fazenda Funil à Cidade Universo”, de Mano Fromberg, Ana Maria Barbosa e Sérgio Fromberg.

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Eu comecei a trabalhar nos Correios de repente. Eu estava em casa e eles queriam colocar essa minha irmã que tinha sofrido o problema da perna. O prefeito veio conversar com minha mãe. E por ela ser muito nova, minha mãe falou: “vamos pôr a Mercedes no lugar”. E foi onde eu fiquei trabalhan-do trinta e um anos. Eu não sou conhecida como Mercedes Frungilo, mas sim como Mercedes dos Correios. Tive algumas dificuldades por não ter prática e nem estudo. Consegui estudar só até a terceira série.

A agência funcionava em uma sala na pensão da minha mãe. Eu trabalhava até certa hora e fechava. Nesse intervalo ajudava a servir as mesas para os pensionistas. A agência foi melhorando aos poucos. As correspondências eram guardadas em caixas, fazíamos a distribuição do jornal também, pois na época ele vinha pelo correio.

Correios

Cruzamento da Avenida Ester com a Rua Campinas, onde morou a família Frungilo.Crédito: acervo pessoal

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Lembro do dia que conheci o dono da Usina Ester. Tinha um caixote grande que eu colocava as cordas que vinham amarradas no jornal. Ele chegou, sen-tou no caixote, me cumprimentou, conversou comigo, brincou e até contou que o netinho havia arrancado o bolso do paletó dele. Enquanto isso eu con-tinuei trabalhando, chegou mais gente e o cumprimentaram. Foi então que vim saber que estava conversando com o dono da usina.

A dona da Usina, dona Sonja, me mandava buquê de rosas, crisântemos, mandava jabuticaba. Eles tinham um rapaz que sempre vinha buscar a cor-respondência. Eu separava tudo e ele levava. E ele sempre me entregando presentes da Dona Sonja.

O pessoal da cidade tinha que ir até a agência para ver se tinha carta, elas eram organizadas em ordem alfabética em uma prateleira. As cartas chega-vam pela Sorocabana em uma mala enorme, tinha um senhor muito amigo meu, o seu Gothardo Abílio Brega5, que sempre vinha e me ajudava a despe-jar. A mala era muito pesada. Antes de distribuir eu precisava carimbar uma por uma e só depois colocava no lugar. Precisava carimbar a data da chegada para não ter reclamações de atraso.

A agência era muito útil para os contratados da Petrobrás. Aos sábados eles recebiam o adiantamento do salário e no domingo passavam no correio para enviar o dinheiro aos parentes e familiares. Era um pessoal muito simples que chegava aqui na cidade para trabalhar. Naquele tempo o dinheiro era enviado pelo correio através de um envelope lacrado. A gente colocava o dinheiro dentro do envelope, lacrava e ninguém mexia mais. Todo esse pro-cesso era feito na frente da pessoa.

Veio então uma ordem de São Paulo para a agência começar a fechar aos domingos e o pessoal ficou preocupado, pois só tinham o domingo para ir até a agência. Conversei com meu irmão Alcides sobre esse problema, expli-quei a preocupação dos trabalhadores pelo fato de não poderem mais enviar o dinheiro para suas famílias. E ele disse que a decisão seria minha.

5. Maquinista da Sorocabana. Estabeleceu-se em Cosmópolis em 1938 (aposentou-se em 1954), onde permaneceu até seu falecimento, em 09 de Abril de 1981.

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Tive a oportunidade de folgar aos domingos, mas decidi que preferia conti-nuar ajudando aquelas pessoas. Poderia pegar o ônibus no sábado à tarde e ir embora. Tinha parente em Araras, Limeira, Campinas. Continuei atenden-do na agência aos domingos até meio-dia e folgava nas segundas-feiras. As pessoas achavam engraçado eu ter trocado meu domingo pela segunda feira, mas fiz isso por aquelas pessoas que precisavam. Além disso, tinha a entrega do jornal. Aos domingos o pessoal iria ficar sem jornal. A gente tinha amizade, valorizava as pessoas. Não é como agora, que existe muita gente egoísta. Só procura quando há interesse por parte deles. Eu pensei na necessidade daquelas pessoas e no sacrifício que faziam por suas famílias.

Eu trabalhava das oito até onze horas, depois ia para casa, almoçava e retor-nava ao trabalho do meio dia até cinco horas. Quando chegava do trabalho, tomava um banho e ia até a estação esperar o trem passar para pegar a correspondência que o estafeta trazia. Era sempre muito corrido, quase não tinha folga.

O que pude fazer de bem eu fiz, ajudava até os casais de namorados. Eu re-cebia as cartas dos rapazes que os pais não aceitavam e entregava para as moças sem que os pais vissem, torcendo para que aprovassem os namoros. Tinha uma professora chamada Bete, eu sempre recebia as cartas dela e guardava. Eles moravam num sítio e apesar da família dela ter um mensa-geiro que buscava a correspondência, as cartas dela eu sempre guardava e esperava ela buscar. Ela lia a carta e eu guardava. E ela conseguiu que o pai aceitasse o namoro. Ela casou, teve duas crianças e levou a menina para eu conhecer. Ela dizia que eu fui cupido dela! Eu fazia as coisas buscando sem-pre levar felicidade às pessoas.

Era tudo muito simples! Quando me aposentei muita gente me pediu para voltar. Eu sei que se quisesse voltar o lugar era meu, mas decidi que já era hora de parar.

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Mercedes com o amigo Diocelio Franchozo.Crédito: Stephanie Lauria

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Eu manquitolava, sempre manquitolei, e assim mesmo, sempre tive um bom cartaz com os moços que vinham de fora. A gente dançava, brincava. Eu gostava muito de me arrumar. Nunca fui trabalhar de qualquer jeito. Tinha mania de pôr uma flor no cabelo. Eu passava no quintal da minha cunhada, da minha irmã, cortava uma rosinha enfiava no cabelo e ia embora. Eu vivia sempre bem arrumada e as outras moças tinham até inveja pelo fato de eu ter tanto cartaz. Acho que é porque eu também ria muito, tinha muita sim-patia.

Lembro-me do Moraes Sarmento6 que trabalhava na televisão. Ele veio em um dos bailes do Cosmopolitano Futebol Clube. Eu estava conversando com minha irmã que era viúva. Ele chegou e me convidou para dançar. Aceitei e dançamos. Eu tinha o costume de nunca falar meu nome verdadeiro. Con-

Bom cartaz

6. 1922-1998, Campineiro, foi radialista e apresentador de TV, apresentou, entre outros, o programa Viola Minha Viola, da TV Cultura, fazendo viagens por todo o interior do Estado.

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versamos e quando chegou uma certa hora eu disse que precisava ir em-bora porque iria trabalhar no domingo. Menti dizendo que trabalhava como empregada doméstica. E foi muito engraçada a reação dele: “com esse jeito, empregada doméstica?”. Ele achou estranho porque eu tinha unhas bonitas e o cabelo todo arrumado. Em seguida ele se apresentou e disse: “eu sou Moraes Sarmento, muito prazer!”. Na saída do baile ele comentou com o presidente do clube que tinha gostado de mim. O apelido do presidente era Bube, seu nome era Willy Luiz Neumann7. Ele chegou e disse que havia gos-tado de mim, e falou o nome Meire (era o nome que eu tinha inventado). E o presidente disse que eu era a agente postal da cidade e que meu nome era Mercedes. O Moraes Sarmento ficou tão sem graça e me perguntou por qual razão eu havia escondido o nome verdadeiro. Então disse que estava apenas brincando. Sempre fui de brincar. Nunca tive o gênio de ficar emburrada.

7. Willy Luiz Neumann foi presidente do Cosmopolitano Futebol Clube de 27/01/1957 a 19/12/1959. Foi prefeito de Cosmópolis de 1969 a 1973 (sexta legislatura).

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O Carnaval daqui tinha muita fama. Tinha um rapaz, o Jacinto Aun, que cuida-va dos desfi les. Ele fazia os esboços alegóricos, fez uma vez um jacaré com criança sentada dentro da boca, tudo de papelão. Sempre esperávamos algo, a gente sabia que o Jacinto sempre ia “aprontar alguma”. E todo ano ele apron-tava mesmo! Os blocos eram muito bonitos. O bloco do Cosmopolitano Futebol Clube era verde e branco, o Flor de Liz era azul e branco e tinha o da Usina que era vermelho. O carnaval era muito bonito, vinha gente do Rio e de mui-tos lugares passear aqui. Na época nós tínhamos liberdade e podíamos fi car assistindo o Carnaval na rua. Era aquela turma assistindo os blocos passando. Muitos carros e aquela folia! Muitas brincadeiras, palhaços. Era muito diver-tido. Cosmópolis era muito alegre! Uma cidade pequena, mas muito gostosa!

Carnaval

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A cidade naquela época era muito feia ainda. Mas era tranquila. A gente saia para passear à noite, subia e descia a avenida. Gostávamos de andar de braço dado. No cinema a família toda ia às terças, quintas e domingos. Quando eu ia com as amigas, o porteiro já deixava três poltronas reservadas pra gente, ele era muito gentil!

Apesar de a cidade ser feia, foi um tempo muito gostoso. Tinha um coreto bem simples na praça. A praça era muito frequentada. Foi o doutor Moacir do Amaral, o prefeito na época, que fez a praça. Ele colocou arame farpado e plantou primavera em volta da praça toda. O arame farpado era para segurar as primaveras. A gente então sentava nos bancos, brincava, conhecia todo mundo. De vez em quando vinha uma banda no coreto e tocava. Não tinha esse movimento que temos hoje. Agora a avenida inteira é só de comércio.

Cosmópolis

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Marilei Terezinha Barbosa

Quando soube do projeto do Centro de Memória de Cosmópolis, apesar de morar em Artur Nogueira, me interessei de imediato. Participei da oficina de História Oral e falei com meu tio Guido Landucci sobre a entrevista que queria fazer com ele. Pronta-mente ele concordou em falar sobre os fatos vivenciados duran-te sua juventude, época em que morou na colônia Carandina, no município de Cosmópolis.

Resolvi fazer a entrevista com meu tio Guido porque queria saber um pouco mais sobre a vida do irmão mais velho da minha mãe Catarina Landucci Barbosa e, através das suas histórias, saber também como ele, minha mãe, meus tios e meus avós viviam na colônia Carandina onde eles moraram durante muitos anos. Outra motivação para fazer a entrevista foi o fato da colônia Carandina, que hoje não existe mais, ter marcado muito a minha infância e adolescência, época em que meus avós ainda moravam lá. Fo-ram muitos os domingos, feriados e Natais que eu passei com meus pais e meus irmãos, bem como meus tios e primos na casa deles. Lembro-me com saudades daqueles grandes almoços em família e das brincadeiras com as crianças embaixo das enormes árvores Flamboyants, que enfeitavam as ruas da colônia.

Lembranças daColônia do Carandina

Continua... 61

Ainda me recordo do colorido das flores, da alegria ruidosa das crianças e da tranquilidade daquele lugar. Através destas lembranças também me recordo de várias pessoas que não estão mais entre nós e de outras que não tenho mais contato.

Assim, marquei um dia e fui até a casa do meu tio e tivemos, na verdade, uma conversa em que ele me contou tantos fatos interessantes, que eu não tinha conhecimento, a respeito da colônia Carandina e do dia-a-dia de seus moradores. Fiquei admirada em perceber como a vida, naquela época, era diferente de hoje. O trabalho era muito mais difícil e as condições dos traba-lhadores também, mas eles trabalhavam satisfeitos. Pude perceber como a vida era muito mais simples e tranquila, não havia as facilidades e os meios

Carandina Futebol Clube. Em pé, Miltinho Barra Limpa, Olavo, Zé Camilo, Ermes, Guido, Joaquim.Agachados, Zé Ferreira, Mané Baiano, Zinho, Armandinho, e Geraldo Cantão. - Crédito: acervo pessoal

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de comunicação que temos hoje, mas as pessoas se satisfaziam com aquilo que ti-nham e eram felizes assim. Percebi, espe-cialmente, o grande respeito que as pesso-as tinham pela família, pelos amigos e por todos que conheciam. Os vizinhos eram mais amigos e solidários e se encontravam mais para conversar, praticar esportes e se divertirem juntos. Fiquei admirada quan-do meu tio contou sobre o time de futebol do Carandina, que foi um importante meio de diversão e socialização não só para os jovens como para adultos e crianças. Ele contou que o time venceu vários campe-onatos realizados na região e ganharam muitos troféus, que ficaram expostos na sede da colônia. Ele não sabe com certeza, mas acredita que esses troféus foram pre-servados pela Usina Ester.

Outra coisa que me deixou admirada foi perceber o carinho que os morado-res tinham pela colônia, onde formaram uma comunidade que procurava melho-rar sempre mais as condições de vida e, quando os pais se aposentavam, muitos filhos permaneciam morando no lugar e trabalhando na Usina Ester.

Meu tio Guido, hoje com 84 anos, continua apaixonado por futebol e pelo jogo de bocha com os amigos da terceira idade, grupo que se encontra todas as terças-feiras no Cosmopolitano Futebol Clube. Ele confessou que sente saudades da época que morou na Colônia Carandina e acha que as casas deveriam ser preservadas como um patrimônio histórico do município.

Acredito que assim como eu, através da entrevista, muitas pessoas terão belas recordações da colônia Carandina e as novas gerações poderão conhe-cer um pouco deste singelo lugar e da vida de seus moradores.

Craques do Carandina F.C, Zinho, Joaquim e Guido.Crédito: acervo pessoal

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“Os moradores da Colônia Carandina pareciam uma família só”

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Meu nome é Guido Landucci e tenho oitenta e quatro anos. Meu pai se cha-ma Maineto Landucci e minha mãe Virginia Rodrigues Landucci. Minha espo-sa é a Iraci Bueno Landucci, com quem tenho quatro filhos, Ângela, Neuza, Sônia e José Roberto. Vim morar na Colônia Carandina aos vinte anos; éra-mos nove irmãos. O décimo irmão nasceu no Carandina.

Quando nos mudamos para a Usina Ester primeiramente moramos numa casa no meio do canavial por dois anos, porque não havia nenhuma casa vazia na colônia. Depois, nos mudamos para Americana e só depois viemos para o Carandina. Até então a gente nunca tinha pegado em um podão1 para cortar cana, a gente só tinha trabalhado em fazenda de café. Tivemos que nos acostumar. Trabalhávamos em seis pessoas na Usina Ester: meu pai, eu, e meus irmãos Francisco, Ângela, Clarisse e Catarina. A lida era na roça e os irmãos pequenos ficavam em casa e ajudavam a nossa mãe nas tarefas domésticas.

O trabalho nessa época tinha duas modalidades de serviço, uma era na for-mação de cana-de-açúcar. A gente trabalhava no horário da manhã e minha mãe não precisava levantar tão cedo para fazer o almoço, porque por volta das nove horas da manhã meu pai levava o almoço para quem estava na roça. Quando era a época de safra, mudava o nosso sistema de almoço. Sa-íamos de casa às cinco e meia da manhã, caminhávamos por uma hora até chegar ao serviço, então a gente já levava o almoço de casa.

Como a gente chegava um pouco antes do horário de serviço, a maioria dos trabalhadores já comia uma parte da comida, aproveitando que a marmita ainda estava quentinha, isso às seis da manhã. A segunda parte do almoço era às nove da manhã, com meia hora de descanso. Por volta das 13 horas tínhamos um cafézinho com um pedacinho de pão ou bolo, com mais meia hora de descanso. O corte da cana era o segundo tipo de serviço. Tanto o corte quanto a limpeza da palha eram feitos com o podão, não havia quei-mada da cana para facilitar o trabalho, era tudo manual. Depois de alguns anos é que começaram queimar a palha da cana, mas só um pouco, ainda limpávamos a folha da cana com o podão. O trabalho terminava às 16h30.

1 - Instrumento de lâmina usado para o corte manual da cana-de-açúcar .

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O corte de cana dependia da pessoa. Tinha trabalhador que cortava até três, quatro carros, o que significava 100 feixes. A gente trabalhava direto, mesmo com chuva ninguém parava, só se caísse uma tempestade brava. A folga era só no domingo. Quando chegávamos do serviço, a gente tomava um banho, trocava de roupa e logo jantava, ninguém ficava até tarde na rua. Eram duas colônias próximas, então às vezes alguém saía para bater um papo, mas até nove horas já voltavam para casa. Precisava descansar para o outro dia, pois o trabalho não era nada fácil.

Nessa época a cana era transportada no carro de boi, usando um conjunto com quatro ou seis bois. Tinha o carreiro que conduzia o carro e mais dois ajudantes para carregar a cana na palhada. O carreiro levava até na trilha do trenzinho que vinha da Usina Ester e carregadores levavam a cana nas costas para descarregar no vagão. O trem da Usina tinha dois ramais, um que vinha perto da Colônia do Carandina, chamado de chave dez, e outro ramal que parava para cima do Carandina, a chave oito. Tinha outra parada chamada de Maria Lopes, onde também faziam carregamento e o ponto na Nova Campinas.

O carregamento de cana era realizado por equipes, por exemplo, para cada vagão era uma turma de quatro pessoas. Essa turma fazia o carregamento de cinco vagões. Então se tinham quatro turmas trabalhando, eram vinte vagões que seriam carregados. O maquinista do trem vinha por volta das dez horas da manhã, depois vinha outro às 13 horas e outro no final da tarde. Naquela época a Usina Ester tinha uma cooperativa, onde os colonos e fun-cionários faziam a compra dos mantimentos. A gente fazia uma lista do que precisava, entregava na cooperativa e depois eles iam entregar na nossa casa. Era raro uma família que fizesse suas compras no armazém em Cos-mópolis. Era tudo fornecido pela Usina e as compras eram descontadas no pagamento. Tinha um limite para gastar por mês. Era bom esse esquema porque ninguém gastava mais do que podia.

A comida do dia-a-dia de família pobre era muito simples. Era o básico e uma misturazinha. Naquele tempo a maioria não tinha condições de se vestir bem, de ter um calçado bom... Eram famílias muito grandes, todos trabalha-vam, mas as despesas eram muitas. Era tudo muito simples, mas mesmo assim os filhos ficavam contentes com o que tinham.

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Não me recordo muito bem, mas eram dezenoves casas. Eram grupos de casas (casas geminadas), a divisão da casa era feita por uma parede e em cada grupo moravam duas famílias. Era uma colônia grande e havia uma escola rural. As crianças estudavam ali até o terceiro ano. Havia um campo de futebol e uma pequena sede com um salão de festas.

As casas do Carandina eram todas iguais e todos moravam em condições iguais, não havia inimizade, todos se davam muito bem. Naquela época ti-nha nascente de água e algumas casas tinham poço. O grupo que tinha poço compartilhava a água entre as duas famílias moradoras daquela casa. O poço ficava no local onde tinha a separação dos quintais. Para tomar banho, quem tinha poço pegava água com balde e tomava banho de bacia. Com o passar do tempo a Usina encanou a água dessa nascente (tinha um tanque) e ca-nalizou para as casas. Aí tínhamos água na torneira e no chuveiro! A energia elétrica era fornecida pela Usina também, mas era uma luz fraquinha. Foi desenvolvendo aos poucos.

Colônia do Carandina

Guido visita área onde se localizava a Colônia do Carandina. Crédito: Stephanie Lauria

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Quando morei lá não tinha bar. Um morador, um senhor de idade, que tinha um quartinho reservado e montou um barzinho, vendia guaraná, doces, mas bebida alcóolica era difícil vender, quase não tinha. Também existia um time de futebol bom, mas bom mesmo! Era o Esporte Clube Carandina. No come-ço eu jogava no time dos “aspirantes”, com o passar do tempo comecei a jo-gar como titular, onde fiquei até terminar minha carreira, foram muitos anos. Os jogos sempre aconteciam aos domingos. Jogávamos no nosso campo e também fora, em Americana, Limeira, Campinas e no campo de Cosmópolis. Disputávamos campeonatos amadores. O time ia de caminhão, não tinha ônibus. Todos subiam na carroceria do caminhão! Era muito gostoso! Nessas disputas em cidades da região ganhamos o campeonato duas ou três vezes. As taças ficaram na sede da colônia, penso que elas devem estar com a Usina. O nosso Esporte Clube Carandina era realmente um time bom. Muita gente assistia: pessoas da cidade, bairros vizinhos e muitas moças que gos-tavam de torcer pelos jogadores! Pena que acabou e tudo virou canavial.

Uma vez por mês tinha baile na sede da colônia. Iam moças, rapazes, casais, toda a vizinhança, bairros vizinhos. Até o pessoal da sede da Usina Ester comparecia. Era bastante divertido, as músicas tocadas eram valsas, sambas, rancheira, aquelas danças mais antigas. O baile começava às nove da noite e seguia até aproximadamente às quatro horas da madrugada. Eu ia ao baile com minhas irmãs. Se alguma moça da família vizinha quisesse ir ao baile, só poderia ir se fosse conosco. Os casais também, as famílias só permitiam que fossem aos bailes se estivessem acompanhados. Os pais tinham essa exigência. Os bailes inicialmente aconteciam na escola, só depois passaram a ser na Sede do Clube, que era na verdade uma parte da casa geminada que foi transformada em um salão, então do lado tinha uma família que morava na casa. Fizemos um barzinho e toda renda ia para o nosso Clube.

O pessoal da colônia parecia uma família só. Tinha muita amizade na forma de viver daquela época, todos se ajudavam. Tenho saudades, porque hoje é bem diferente. Os vizinhos eram companheiros. Se alguém matava um por-quinho, dava um pedaço para o vizinho e vice-versa. A gente repartia, era uma vida mais animada e cheia de amizade.

Morei nove anos no Carandina e depois me mudei para um sítio, cerca de três quilômetros de distância da Colônia. Meus pais e meus irmãos continu-aram no Carandina até a aposentadoria. Como continuei por perto, todos os domingos eu estava no Carandina. Aos domingos jogava bola e nos dias de semana, durante a noite, visitava minha família.

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Aos poucos as famílias foram saindo do Carandina. Meus irmãos ficaram lá até a aposentadoria porque os filhos ainda trabalhavam na Usina. Depois de certo tempo eles conseguiram casa na cidade e se mudaram. Alguns filhos conseguiram emprego na cidade ou na refinaria de petróleo em Paulínia. Aos poucos, a maioria veio embora e as casas foram ficando vazias. A Usi-na começou a demolir essas casas. As poucas famílias que restaram foram transferidas para as colônias mais próximas da sede da Usina. Quando isso aconteceu, aí todas as casas foram demolidas, a sede, o campo de futebol... Isso aconteceu por volta de 1983 ou 1984. A colônia virou um canavial.

Ainda existe um lugar na área, perto de onde morava o Armando Rodrigues, o administrador da colônia, é uma caixa d’água. Perto da casa do Armando tinha a nascente, um tanque de água, umas touceiras de bambu... Quando era domingo, o pessoal ia brincar nesse tanque, na nascente. Hoje o mato tomou conta do lugar, está tudo fechado de campim.

Não existe mais nada, foi uma pena. Acabaram também com outras seções como a Granja, que era muito grande. Tenho lembranças daquele lugar! Na-quele tempo o serviço era pesado, tudo feito com sacrifício, mas a gente se sentia bem. Passamos por perto de onde era o Carandina e lembramos a nossa mocidade, o que a gente viveu, o tempo que trabalhamos, quanta saudade!

Demolição

Em meio ao canavial, ruínas da Colônia Carandina (foto tirada em setembro de 2013).Crédito: Stephanie Lauria

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Bruno Micheletti e Karen Cruz

Participar de uma ofi cina sobre história oral é uma experiência gratifi cante. É reviver o passado sob o olhar do outro! É se emo-cionar com histórias da memória de outrora, muitas vezes es-quecidas com o decorrer do tempo. Nossa jornada começa com viagens que percorrem, além do distanciamento temporal his-tórico, a distância geográfi ca entre a cidade de São Paulo - onde moramos - e a cidade de Cosmópolis.

Durante os anos em que morei em Artur Nogueira, estive por diversas vezes “invadindo” o território cosmopolense. Nas festas do Cosmopolitano Futebol Clube organizadas (ou não) pelos ami-gos do “Tri-Agito”; em compromissos profi ssionais, e até mesmo em pequenos passeios. Esta é a minha relação com a cidade de Cosmópolis, cuja história, inicialmente conheci pelo relato de mi-nha avó materna, que falava sobre o parente de um amigo do meu tio, que tinha sido um dos fundadores da Usina Ester... Histó-ria que inicialmente tive a intenção de resgatar para este registro, mas o destino mostrou outros caminhos e a magia da sétima arte contagiou com grande empolgação o desenvolvimento desta en-trevista, desenvolvida em conjunto com a Karen.

A busca pela Sétima Arte na Cidade Universo

Continua... 71

Foi o radialista J. Machado, de Artur Nogueira, quem me falou pela primeira vez sobre o Valber Kowalesky e sua relação com o cinema. Logo a história nos interessou e João Fernando Chiriato Morais - companheiro cosmopo-lense da minha época de “baladas” - me informou que o grande articulador do cinema de Cosmópolis tinha sido o sr. Hardy Kowalesky, aliás, pai de sua tia, a Susete Kowa-lesky, com quem também conversei antes de falar di-retamente com o nosso entrevistado: Valber Kowalesky, irmão da Susete, filho do Hardy.

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Anúncios do Cine Avenida no jornaldo ACP em edições de 1975.

Crédito: Centro de Memória de Cosmópolis

Valber atendeu Karen, em sua clínica de fisioterapia, manteve-se sentado atrás de uma mesa de madeira, dentro da sala de paredes verdes e janela com persiana branca. A saudade de seu pai, que recentemente falece-ra (2011), pôde ser percebida diversas vezes no decorrer da entrevista, mesmo assim, Valber foi capaz de relem-brar muitos momentos felizes, de fatos marcantes que estão diretamente ligados à história do cinema, não só na cidade de Cosmópolis, mas em toda região, incluindo a cidade de Paulínia, um dos principais polos cinemato-gráficos do Brasil.

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“O cinema era realmente onde você ia pra ver as coisas acontecerem.”

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Meu nome é Valber Kowalesky, sou filho de Hardy Kowalesky e Cecília Spe-ridione Kowalesky. Meu pai, “Seu” Hardy, nasceu no dia 21 de fevereiro de 1929, no Núcleo Campo Sales, bairro conhecido popularmente como “Escola Alemã”, aqui mesmo, na cidade de Cosmópolis. Filho de imigrantes alemães: Guilherme Kowalesky e Guilhermina Kowalesky, ele viveu até os 82 anos, falecendo no dia 3 de outubro de 2011. Eu sou o caçula, minha irmã Susete é cinco anos mais velha e foi a primeira a acompanhar as projeções de meu pai pela região. Desde criança eu também comecei a acompanhá-lo. Costumava ir às exibições dos filmes com ele e às vezes acabava até trabalhando, isso já na adolescência.

Foi no ano de 1951 que meu pai começou a trabalhar com filmes. Tudo teve início quando ele e um amigo, chamado Erdin, compraram uma máquina, um projetor de filmagens, para criar em sociedade a empresa “Cinema Ambu-lante” e logo passaram a realizar as projeções em sítios, fazendas, colônias de imigrantes e bairros por toda a região. Juntos compravam ou alugavam os filmes em São Paulo, direto das grandes distribuidoras norte-americanas e depois traziam os rolos para exibir no projetor. Depois do Erdin, meu pai ar-rumou outro sócio, o Sr. Durval Dias de Arruda, que foi sócio e amigo dele por muitos anos. A empresa continuava com as exibições cinematográficas em toda região! As projeções aconteciam em Paulínia, na fazenda Salto Grande que ficava em Americana, em São Gerônimo, que se eu não me engano fica-va em Americana também... Na Rodhia1, que naquele tempo ainda pertencia a Campinas, em Barão Geraldo e principalmente na Usina Ester2, já numa data mais avançada.

Que eu me lembre, eram transmitidos alguns filmes do “Gordo e o Magro”, o “Vigilante Rodoviário”, “Tarzan”, alguns desenhos e até alguns documentá-rios. As seções de cinema que eram realizadas tanto no Cosmopolitano FC3, quanto no “Cinema Ambulante”, eram mais ou menos assim: tinha de início um desenho, a segunda parte era um jornal, uma espécie de um pequeno documentário que trazia as notícias da semana, com produção de Herbert Richards4 ou de Jhon Manzon. Depois disso vinha o seriado!

1. Rhodia: companhia química internacional com sedena França e presente no Brasil desde o ano de 1919.

2. Usina Ester: usina açucareira ainda em atividade, que se instalou em 1898 na cidade de Cosmópolis e sua história confunde-se com a da própria cidade.

3. Cosmpolitano Futebol Clube: Fundado em 1915, o clube éreferência esportiva, social e cultural na cidade de Cosmópolis.

4. Nascido na cidade de Araraquara no ano de 1923, Hebert Richards fundou em 1950 uma empresa em que produzia e distribuía filmes, inclusive

americanos. Anos depois, sua empresa tornou-se referência no ramo de dublagens de filmes no Brasil. Hebert Richards faleceu no ano de 2009.

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Os seriados prendiam o interesse do pessoal. Quem assistia numa semana, voltava na semana seguinte só para saber o que tinha acontecido. Igualzinho a uma novela! Depois de tudo isso vinha o filme principal. Às vezes, chegava a passar dois filmes na mesma noite. As seções, principalmente no Clube Cosmopolitano, começavam por volta das 19h30 e continuavam até mais ou menos às 23h30.

Os seriados transmitidos antes do filme eram das empresas americanas que distribuíam no Brasil. A principal delas era a RKO - Rádio RKO, que hoje nem existe mais! Eram seriados de gangster. Tinha muita coisa, é uma coisa muito complexa pra você tentar jogar assim de uma hora pra outra, porque durante a semana toda meu pai saía com o projetor, com alguns amigos e iam passar os filmes pela região. Na época tinha até um carro onde ele levava o pesso-al, porque às vezes passava o mesmo filme em mais de um lugar. Então, se tinha uma seção que ia começar na Usina Ester às 19h30 e o mesmo filme ia passar no “Salto Grande” em Americana - dava mais ou menos uns 10 ou 12 quilômetros de distância - então ele começava mais cedo! Quando acabava aqui o primeiro rolo do filme, ele botava no carro e corria pra levar lá pro “Salto Grande”, onde começava a seção mais tarde. Depois ele voltava reco-lhendo os filmes e o pessoal.

Esse carro era um furgão. Um Chevrolet 1936 bem arredondado, e tinha um apelido muito famoso aqui na cidade: era o “Melancia”! Então o “Melancia” foi o carro da época... Famosíssimo! E era nele que meu pai levava o pessoal. Muitos deles acabaram se casando nessas vilas, nesses bairros, na Usina... Iam com meu pai e acabavam “roubando” uma namorada e o pessoal se ca-sava. Tem pelo menos uns quatro exemplos desses aí que eu lembro!

O furgão Melancia levava o Cine Ambulante para sítios, Colônias da Usina Ester e outros pontos da cidade e região.Crédito: Acervo da família

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O Rodolfo Rizzo era um dos amigos que acompanhava meu pai. Não era mui-to frequente, mas ele ia principalmente às transmissões do Cosmopolitano. O Rodolfo é um grande historiador aqui da cidade e sabe muita coisa! Mas voltando ao “Cinema Ambulante”, tinha época que você tinha que ter dois projetores ou mais, e as telas que eram usadas nos sítios, fazendas, eram sempre feitas de pano branco. Também já tinham os salões de clube que ofereciam uma parede onde era possível exibir os filmes, mas tudo isso era transportado de forma ambulante mesmo! A gente ia, montava e quando acabava a seção tinha que desmontar tudo e ir embora. Era uma espécie de circo, um circo com uma forma menor. Foi uma época muito boa! As pessoas esperavam ansiosas pelas exibições.

Por exemplo, na segunda-feira, a seção era na Usina Ester, na terça-feira numa colônia chamada “Carandina” que nem existe mais. Na quarta-feira outra colô-nia chamada “Cachoeira” e na quinta-feira, as exibições aconteciam na colônia “Saltinho”, que, aliás, é a única colônia da Usina Ester que ainda existe! Na sexta-feira a exibição era na colônia da “Granja” e nos Sábados e Domingos, normalmente em Paulínia, na Rhodia, em “Salto Grande” e tudo mais... Esse filme era o mesmo durante a semana toda, mas tinham pessoas que acom-panhavam o filme. Iam, por exemplo, segunda-feira na Usina, quarta-feira na “Cachoeira”, que era próxima, ou vinham da “Granja” para o “Carandina”, isso tudo à noite, e de bicicleta! O pessoal gostava, né? Outra coisa era que nor-malmente a cadeira, o pessoal trazia de de casa, porque não tinha! O filme era exibido muitas vezes ao ar livre.

Quando chovia, acho que o pessoal assistia na chuva mesmo viu, porque não interferia em nada. Um fato engraçado acontecia na colônia da “Cachoeira”, lá, quando chovia, o filme era passado no estábulo, junto com as vacas e os cavalos... então o público era diferenciado. Na Usina Ester já tinha um “clube-zinho”, uma sede que não era muito grande, e na sede da Colônia Carandina também. O pessoal gostava!

A família trabalhava junto, minha mãe normalmente era a bilheteira. Era como um circo, né? O pessoal trabalhava pra fazer acontecer. Em relação a ingresso, não se cobrava em todo lugar. Nas colônias e normalmente na Usina Ester, as seções eram gratuitas. A Usina bancava as exibições.

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Em 1974, meu pai assumiu o “Cine Avenida”, que estava sem ninguém, tava abandonado. Tinha ficado inativo de 1969 até o ano de 1973 e na época per-tencia a uma empresa de São Paulo. O “Cine Avenida” foi o primeiro cinema de Cosmópolis, e o primeiro nome era “Cine Jahú”. Inicialmente era um consórcio entre um grupo de 16 ou 17 sócios, dentre eles estava a Usina Ester. A Usina Esther tinha uma parte, pra você ver como era uma coisa difícil de ter um cine-ma na cidade! Foi inaugurado em 1919 e eu lamento muito porque foi mais um prédio histórico da cidade que deixaram derrubar. Na época, eu até falei com os responsáveis, pedi pra que preservassem, mas não houve acordo com o proprietário. Eu lamento muito, principalmente agora que estão fazendo esse trabalho de resgate da história de Cosmópolis. O Cine Avenida tinha muita história! Assim como a Escola Alemã, era um dos poucos prédios históricos da cidade. Pena que aconteceu com ele o mesmo que aconteceu com a estrada de ferro da Sorocabana e a Estação de Trem, que também deixaram demolir...

Eu acho que Cosmópolis tem que começar a pensar nessas coisas, eu sei que tem gente pensando, mas não se pode mais admitir isso. Não tem mui-to mais coisa antiga pra derrubar. O prédio do Cine Avenida era um prédio histórico e lá poderia ter sido construído o que nós não temos aqui, um cine teatro. Um prédio com condições, desde que reformado adequadamente por pessoas capacitadas, de se fazer um teatro e até novamente um cinema comercial. Os espaços que nós temos aqui, nos auditórios das escolas, são muito bons, mas não podem ser usados comercialmente, você não pode trazer uma peça de teatro e cobrar ingresso. O “Cine Avenida” oferecia tudo isso, além de uma história rica.

Filmes brasileiros e estrangeiros eram exibidos no Cine Avenida, assumido por Hardy em 1974. Crédito: Reprodução

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Poucas pessoas, poucos cosmopolenses não foram naquele cinema, pelo menos uma vez para paquerar, para namorar ou simplesmente para ver um filme. Muitas histórias, muitas famílias cosmopolenses se formaram ali, o início do namoro, muitas vezes era no cinema!

Nos anos de 1930/1940 o cinema era muito popular e continuou sendo de-pois, nos anos 1950, principalmente pelos clássicos do pós-guerra. O mundo do cinema americano se desenvolveu muito e os temas apareceram mui-to depois da guerra. Teve muito tema novo, romance da guerra, filme de guerra, continuaram os bang-bangs que sempre existiram, as comédias... Naquela época existiam atores fantásticos! Nos anos 60, quando a televisão estava começando a entrar nos lares brasileiros, o cinema ainda era mui-to importante porque poucas famílias tinham TV. Os aparelhos de televisão proliferaram só depois dos anos 70. Mesmo assim, nos anos 70 e 80, quando a gente ainda tinha o “Cine Avenida”, a programação da TV era muito pobre, não tinha muita coisa, então o pessoal ainda gostava de buscar a namorada – não era todo mundo que tinha carro – e ir ao cinema.

Nos domingos, nós tínhamos duas seções. Era muito comum na segunda seção a fila virar a esquina, eram mais de 50, 60, 100 metros de “fila de gente” para entrar na segunda seção. Isso porque era uma época em que o cinema tinha grandes nomes, inclusive brasileiros como “Mazzaropi” e até “Os Trapalhões”. Foi a época das “Pornochanchadas” brasileiras, além de alguns grandes clássi-cos do cinema como “Inferno na torre”, “O exorcista”, “O tubarão” e “007”. Eram filmes que atraiam o pessoal, você não via isso na televisão. Não era como hoje que você entra em qualquer computador e vê tudo. Todo mundo queria ver as atrizes famosas dos anos 50, 60 e 70. Marlene Dietrich, Débora Kerr, Brigitte Bardot, todos ouviam falar e queriam ver na tela grande! O cinema era realmente aonde você ia pra ver as coisas acontecerem. Nessa época do Cine Avenida eu fui bilheteiro, fui porteiro, só não vendi bala... fui até lanterninha no cinema, fui de tudo e foi bom! Na época, a família toda trabalhava.

O cinema também era bem mais barato que hoje em dia. Essa parte comer-cial aconteceu mais no Cine Avenida e no “Cine Mútuos Socorros” que meu pai também tomou conta. Um pouco antes do Cine Avenida meu pai ficou no Mútuos Socorros de 1971 a 1974 e o nome completo deste cinema era: “Clube Sociedade Beneficente de Mútuos Socorros”, que hoje é a atual “So-ciedade Dançante dos Veteranos de Cosmópolis”, o Clube dos Veteranos! Foi lá, que durante muitos anos funcionou um cinema e meu pai chegou a ser o responsável. Teve até uma passagem interessante, que aconteceu - eu acho

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- em 1973 ou 1972. Eu era bilheteiro nessa época, e nós exibimos o filme Romeu e Julieta, então, o Cine Avenida que nessa época era o concorrente, não funcionou naquele dia por que não foi ninguém lá! Ficou vazio e até os operadores do Cine Avenida desceram para o “Mútuos Socorros” para assistir o filme. Na época, dois cinemas na cidade era algo difícil, né? Então eles fe-charam lá e vieram assistir com a gente o filme. O ingresso não era tão caro, devia custar no máximo, uns R$10,00 de hoje.

Os filmes mais exibidos eram os estrangeiros, mas houve uma época em que o Concine5 exigia que se passasse, acho que durante um terço do ano, os filmes nacionais. O cinema nacional não era muito aceito depois das por-nochanchadas. O Mazzaropi sempre foi muito bem, “Os Trapalhões” e alguns outros filmes tinham público mesmo, todo mundo gostava de ver. Mas a época das pornochanchadas teve muita venda de ingresso... “Dona Flor e seus dois maridos” foi o primeiro filme que ficou sendo exibido quase uma semana. Ficou em cartaz quase uma semana! Naquela época o filme era exibido no máximo por dois dias seguidos. Não tinha público pra ficar em cartaz, e o povo que vinha pro cinema sempre queria ver outro filme. Nos anos 60 o Cine Avenida funcionava quinta, sábado e domingo - com matinê no domingo. O “Mútuos Socorros” era de quarta, sábado e domingo ou sexta, não me lembro bem.

Depois que meu pai assumiu o Cine Avenida, exibíamos filmes a semana toda. Quarta e quinta era um filme, sexta e sábado outro e domingo e se-gunda estreava mais um cartaz! Na terça a gente folgava, mas quando o filme era muito bom, também tinha seção e então, passávamos o mesmo filme domingo, segunda e terça. Tinha muita gente que voltava para assistir o mesmo filme duas vezes. Como eu já falei, o cinema era o que o pessoal tinha para ver de diferente, a televisão não oferecia muita coisa.

Além do cinema, o meu pai também teve outros empregos. Ele trabalhou desde cedo na lavoura, no sítio dos meus avós. Já na juventude, perto dos seus 18 anos ele veio para a cidade trabalhar na estrada de ferro Sorocabana. Trabalhou como ferroviário, auxiliar de escritório, auxiliar de almoxarifado e até mecânico de manutenção. Depois, foi também chofer de praça, numa época em que os táxis eram bem requisitados. Trabalhou muito nessa área

5. O Conselho Nacional de Cinema (Concine) foi um órgão gestor do cinema brasileiro criado em 1976 e extinto em 1990.

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e fez muita corrida de táxi para São Paulo, Aparecida do Norte... Naquele tempo, fazia casamento, velório, batizado, tudo era com o táxi. Naquela época não ti-nha tanto carro, então o pessoal dizia: “Óh, vai casar tal pessoa!” e logo o pai da noiva ia ao ponto de táxi e falava: “Olha, eu preciso de três táxis para levar o padrinho, a madrinha, a noiva e num sei quem...” O resto ia a pé, ia com o que tinha, não era todo mundo que tinha carro antigamente. A dificuldade era gran-de. Em Campinas, meu pai trabalhou na Cinemato-gráfica Campineira, que era uma empresa de distri-buição de filmes. Lá ele era comerciário! Trabalhou também na TV Excelsior, no canal 10 de Campinas, fazendo filmagens para as propagandas comerciais.

Foi mais ou menos em 1954/55 que o sócio do meu pai, Dorival Dias Arruda comprou uma filmadora 16 mm e meu pai realizou algumas filmagens, como por exemplo, fez algumas coberturas de festas do Cos-mopolitano FC, o jogo no Estádio do Pacaembu em São Paulo e na viagem do time para Poços de Caldas, no estado de Minas Gerais.

Depois, durante muitos anos, de 1968 até mais ou menos 1976, meu pai realizou inúmeras filmagens para a prefeitura de Paulínia. Eu acredito que deve ter mais de 50 horas de filmagens. Trabalho que ele fazia registrando as inaugurações, as obras, tudo que Paulínia começou a fazer porque esta-va crescendo muito! Um detalhe pitoresco é que ele filmou a instalação da pedra fundamental da Refinaria do Planalto (atual REPLAN - Refinaria de Paulínia) no ano de 1969. Estava presente o presidente Médici6. Na época, Laudo Natel7 era o governador do estado de São Paulo. Esse acervo hoje é da prefeitura de Paulínia!

6. O general Emílio Garrastazu Médici esteve como presidente daRepública entre os anos de 1969 até 1974, durante parte do regime militar.

7. A construção da refinaria REPLAN teve início em 1969 e inaugurou em 1972. Laudo Natel, por sua vez, foi Governador do estado pela segunda vez de 1971 a 1975. Por

isso acreditamos que Laudo Natel esteve presente na Inauguração da mesma, e não no lançamento da pedra fundamental que deve ter ocorrido em meados de 1969.

Os rolos de filmespara exibição eram comprados

por Hardy em São Paulo.Crédito: Acervo da Família

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Aqui em Cosmópolis, a Câmara Municipal fez um trabalho que reuniu grande parte do acervo do meu pai. São DVDs que incluem filmagens do Cosmopoli-tano FC, grandes festas, filmagens esporádicas da cidade e principalmente as festividades de aniversário de Cosmópolis. Tudo filmado mais ou menos entre os anos de 1966 até 1973/74. Tem um material muito grande e já está tudo em DVD. São pelo menos uns cinco ou seis DVDs repletos dos trabalhos do meu pai. Já o acervo original está com a prefeitura! Durante alguns anos meu pai guardou esse acervo, eu não sei se está nas coisas dele ainda, mas ele tem um acervo de filmes, longa metragens, pedaços de filme, inclusive ele exibiu esse material no “Cine Cosmo8“, dois meses antes de seu falecimento. A prefeitura também tem fotos da época, acho que até mais do que eu.

Hoje é muito fácil, qualquer celular tira a foto que você quiser, mas para você reunir um grupo de pessoas pra tirar uma foto ou pra fazer uma filmagem, com a dificuldade que você tinha antigamente... Era muito mais difícil! Pra você ter uma ideia, esses filmes da década de 60, 70, até início de 80, quan-do não existia ainda a gravação por “videotape”, se bem que até existia, mas só nas televisões! Nas emissoras de TV, já tinha o “videotape”, mas não no cinema! Então precisava usar o filme de 16 mm. Você filmava com eles aqui, a maioria dos filmes iam para o Canadá para ser revelado e só depois é que voltavam para o Brasil. Eram 15 dias, ida e volta! Às vezes até mais do que isso, para depois você poder exibir. Então, geralmente, não havia condição nem de editar o filme, mas registrava a história. Meu pai registrou e está guardada!

Meu pai, além de trabalhar comercialmente com filmagens e exibições tam-bém tinha a parte que ele gostava muito, que era a de filmar coisas da nossa família! Tem muita coisa da família que ele filmou. Sempre que sobrava uma pontinha de filme ele “ia lá” e filmava os netos. Isso foi muito legal! Essa filmadora de 16 mm ele vendeu já tem um bom tempo, mas a máquina de exibição dos filmes de 16 mm nós temos até hoje. É uma máquina antiga, mas uma máquina muito boa da “RCA Victor”, porque hoje eu não sei se tem algum projetor novo de 16 mm, deve ter, mas a gente ainda tem o antigo, conservado e guardadinho.

Meu pai sempre teve uma vida ligada à sociedade cosmopolense, seja atra-vés do cinema, através da sua participação no Cosmopolitano Futebol Clube. Ele foi diretor de futebol, foi colaborador, conselheiro e é um dos Sócios Beneméritos do Clube Cosmopolitano, graças ao trabalho que fez em prol do

8. Cine Cosmo – 1ª Mostra de Audiovisual de Cosmópolis.

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clube. Na sede antiga do Cosmopolitano meu pai fazia exi-bições às segundas-feiras! Não tinha outra coisa na cida-de, então todo mundo vinha pra seção de cinema no clube e isso aí também dava algum retorno financeiro, tanto pra ele quanto para o Cosmopolitano.

Em 2011 aconteceu uma mostra de cinema onde meu pai foi homenageado, acho que foi importante porque a mos-tra iniciou um processo e tudo que se inicia tem que ter continuidade, e coincidiu até com uma das últimas coisas que ele fez. Eu acho que foi importante, e eu acho ainda, que meu pai, junto com o Guilherme Hasse que foi o fo-tógrafo da cidade, foram as duas pessoas que mais regis-traram a história de Cosmópolis. O cinema foi sua grande paixão!

Hardy, a esposa Cecília e os filhos Susete e Valber.

Crédito: Acervo da Família

Hardy Kowalesky e Antônio Rodolfo Rizzo durante projeção no 1º Cine Cosmo, realizado em Agosto de 2011. Crédito: Secretaria de Cultura de Cosmópolis

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Aprendendocom as históriasCarolina Vieira

Na entrevista com o José Pedroso, que nos recebeu muito pronta-mente, pude escutar um relato cheio de detalhes, de alguém que tem uma memória invejável. Dizem que a memória é constituída daquilo que escolhemos lembrar. Depois dessa entrevista, tive a impressão que o senhor Pedroso não deixa nada cair pela viela do esquecimento! Nessa conversa ele relembrou diversos acon-tecimentos de sua vida e do cotidiano da cidade, sempre com o olhar vivo e entusiasmado. Jamais imaginaria que aquela tarde de conversa seria uma boa viagem ao tempo, numa Cosmópolis muito diferente dessa atual, mas que nos ensina muito e nos faz compreender melhor sobre o lugar que vivemos. Espero que o leitor possa também aprender com esse relato!

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“Com dez anos comecei a absorveras histórias da cidade”

José Pedroso da SilvaSt

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Sou filho de Benedito Pedroso da Silva e Rosalina do Espírito Santo. Nasci em Mairinque, na região de Sorocaba, em 09 de Março de 1939. Minha família morava nessa cidade, onde meu pai atuava como ferroviário na central da Estrada de Ferro Sorocabana.

Nessa época minha mãe estava doente do pulmão e sabendo da situação, os amigos do meu pai disseram que o clima de Cosmópolis seria muito bom para a cura dela, visto que o clima de Mairinque era frio. Com essa esperança de cura, meu pai pediu transferência pra Cosmópolis, onde também havia a Estrada de Ferro Sorocabana.

Chegamos a Cosmópolis em março de 1946. Infelizmente minha mãe não re-sistiu e faleceu em 26 de Maio do mesmo ano. Depois disso meu pai voltou trabalhar no setor da Sorocabana em Santos, como maquinista. Ficamos so-zinhos em Cosmópolis, eu e mais quatro irmãos, a Benedita Antônia (Benê), Hilda, Alice e o caçula João, que tinha apenas dois anos. Eu tinha seis. Assim seguimos o nosso destino. A Benê era a mais velha e com treze anos teve que deixar a escola para cuidar dos irmãos.

Não tínhamos ninguém para nos orientar e acompanhar. Comecei ir à escola porque via as crianças indo, e curioso, fui descobrir para onde elas iam todos os dias. Comecei a frequentar a escola e não entendia porque a professora dava bilhetinho para casa, o recado era sempre para arrumar um uniforme, que eu não tinha. Algumas pessoas quando souberam dessa situação se compadeceram e me deram o uniforme.

Segui o estudo e completei o primário com onze anos no Grupo Escolar de Cosmópolis, esse nome mudou posteriormente para Grupo Escolar Rodrigo Octávio Langaard Menezes, através de um projeto de Lei. Essa escola situa-va-se na Rua Dr. Campos Salles, depois passou a funcionar como Escola de Comércio Municipal de Cosmópolis, depois escola Dr. Moacir do Amaral.

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Mesmo estudando, com oito anos comecei a trabalhar como aprendiz de sapateiro na sapataria do seu Guilherme Catosi. Contei com a ajuda de sa-pateiros que me apoiaram muito, como o Sérgio Rampazzo, e também outro personagem ilustre de Cosmópolis, o Joel Mariano. Iniciei o aprendizado da profissão e nesse mesmo período consegui uma caixa de engraxar sapato. O meu ponto de trabalho como engraxate era no bar do Santo Rizzo.

O bar do Santo Rizzo era o QG (Quartel General) da sociedade e da política da cidade. Tudo o que se passava na cidade era reunido dentro do próprio bar, ali aconteciam todos os fatos, reuniões, causos e fuxicos! Como sempre tive memória boa, captava tudo e fui conhecendo a história de Cosmópolis através do bar do Santo Rizzo. Ali eu sabia de tudo que acontecia, pois na Avenida Esther se dava toda a movimentação da cidade. Tinha muitos bares, alfaiataria, sapatarias...

Com dez anos comecei a absorver todas as histórias, quem era cada pessoa, quem fazia o quê. Por exemplo, o delegado Dr. João, escrivão Marcolino, car-cereiro Vazolé. Eu sabia de todo mundo, e sempre engraxando sapato! Ali eu tive meu grande amigo, o seo Santo Rizzo, pai do Rodolfo Rizzo. Ele sempre falava: “Pedrosinho, se você não engraxar direito, vou avisar o prefeito!” En-tão eu ficava engraxando sapato com ainda mais capricho! O pessoal ficava com dó de mim, eu com a calça rasgada, camisetinha furada e engraxando sapato... Com esse trabalho de engraxate, na loja eu poderia comprar cader-no, lápis... Naquela época o Grupo Escolar tinha uma espécie de “caixa” para pessoas pobres e necessitadas, mas eu não tinha direito por conta do meu pai que trabalhava na Sorocabana, no entanto, ele havia nos deixado.

Um belo dia apareceu o Antônio Faceli, funcionário da prefeitura, e falou: “Pedrosinho, o prefeito quer falar com você”. Pensei “meu Deus do céu, o prefeito quer falar comigo!”. Lembrei logo das chamadas do seo Santo Rizzo, de que se eu não engraxasse direito ele chamaria o prefeito. Então fui com a caixinha de sapato e do lado o funcionário da prefeitura, a caixa tremia nas costas, fiquei com medo! Cheguei à prefeitura, subi a escada e cheguei até o prefeito, que era o Dr. João Guilherme Paz Hermann, um homem sisudo, bo-

Engraxando sapatos

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Certa vez encontrei um colega com quem eu jogava futebol, e então o con-videi para uma partida e ele me disse que não iria porque precisava ir à aula de admissão. Eu perguntei o que significava “aula de admissão” e ele explicou que era uma prova para entrar no Ginásio, com início das aulas no ano seguinte. Quis saber como eu poderia fazer o mesmo, mas ele disse que não daria tempo, pois ele estava se preparando há seis meses para a prova. Mesmo assim fui conversar com a professora Dona Santa, que morava na Rua Ramos de Azevedo. Fui à noite, quando todos os alunos estavam em aula. Conversei com ela e fui alertado sobre o pouco tempo para estudo que eu teria até a data da prova, mesmo assim ela me emprestou um livro de história e pediu que eu voltasse no dia seguinte para avaliar meu desem-penho. No outro dia estudei o livro enquanto trabalhava na banquinha de sapateiro, batendo sola de sapato e lendo ao mesmo tempo. Percebi a minha facilidade para decorar. Quando foi no dia seguinte a professora quis tomar os pontos de história e eu falei tudo. Ela me deu mais dois livros e pediu que eu voltasse depois. Então ela me disse que eu poderia fazer o “madureza”1, um curso que faz tudo em um ano, sendo que o Ginásio durava quatro anos.

Vida escolar

Foto oficial da formaturaCrédito: Acervo pessoal

nachão: “vamos logo que eu preciso engraxar meu sapato, tenho uma reunião urgente em Campinas”. Quando ouvi isso fiquei aliviado. Engraxei o sapato, cuspi no pano para lustrar. Ele perguntou quanto era e eu disse “não é nada não”, eu estava tão nervoso! Ele me deu uma gorjeta e eu voltei para casa. Esse foi o primeiro susto que eu tive! Fui crescendo, tra-balhando sempre em sapataria, me tornei um profis-sional, conseguia fazer calçados, sapatões e botinas.

1. Equivalente ao supletivo

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Falei que não conseguiria fazer por conta do trabalho. Fiz a admissão e pas-sei com a nota sete, entrei no Gepan no período da manhã. Era uma dificul-dade porque eu tinha que trabalhar para sobreviver, era uma lista grande de material escolar e livros para comprar. Para conciliar o trabalho com a escola eu comecei a trabalhar durante a noite. Conversei com o dono da sapataria, o senhor Guilherme Catosi, e ele me arrumou uma banquinha com bastante material: taxinhas, pregos, sola, e a levei para casa. No Gepan era obrigató-rio fazer educação física depois da aula, o que consumia mais tempo, eu saía desesperado para trabalhar depois! Eu gostava de futebol, aproveitava e jogava bola. Chegava em casa, tomava banho e ficava batendo sola, fazendo sapato até onze horas da noite. E assim foi esse período.

Outra maneira para ajudar na compra dos livros era o trabalho como garçom nos bailes de carnaval do Cosmopolitano Futebol Clube, já que coincidia com o período de férias na escola. Enquanto meus amigos estavam dançando, eu trabalhava! Trabalhava durante quatro noites e então conseguia comprar o material escolar, fiz isso durante quatro anos, de 1958 a 1961. Fomos a pri-meira turma de formandos do Gepan.

Convite da primeira turma de formandos do GepanCrédito: Acervo pessoal

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Entre os homens da turma do Gepan, eu era o mais velho e o José Honorato Fozzati, um pouco mais novo que eu, estava sempre me acompanhando. Nós fizemos um baile em julho no período de férias escolares e o resultado foi tão grande, que com o lucro conseguimos arrecadar o dinheiro para pagar vários custos do Baile de Formatura. Contratamos o Biriba Boys (banda), a Floricultura Campineira (decoração) e ainda sobrou dinheiro para todos os alunos viajarem por uma semana em Poços de Caldas (MG). Infelizmente, não participei da viagem, pois com a conclusão do Ginásio fui chamado para trabalhar em Campinas a partir de 2 de janeiro de 1962. Foi uma escolha di-fícil: viajar e perder o emprego ou trabalhar e não viajar. Escolhi a segunda opção. Essa parte foi uma experiência tão positiva que nós criamos uma fa-mília. Queira ou não nós mudamos a cultura de Cosmópolis naquele período. Fui chamado para trabalhar na Usina Ester e ficava difícil ir estudar em Cam-pinas. Foi criada em Cosmópolis a Escola de Comércio em 1964 e eu terminei os últimos meses em Cosmópolis. Tenho o privilégio de dizer que sou da pri-meira turma de formandos do Gepan, da primeira turma da Escola de Comér-cio de Cosmópolis. Fiz o curso técnico em contabilidade e depois fui estudar administração de empresas na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

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José Pedroso recebe o diploma de conclusão do ginásio ao lado da irmã Benedita Antônia Fontana das mãos do então Secretário da Educação do Estado de São Paulo José Bonifácio Coutinho NogueiraCrédito: Acervo pessoal

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Trabalhei por dezoito anos na Usi-na Ester na parte de escritório, no setor fi nanceiro, como caixa... O chefe do escritório gostava que os funcionários passassem por várias funções para aprender diferentes tipos de serviço.

O primeiro mercadinho de Cosmó-polis era de minha propriedade. Fi-cava na Rua Baronesa na esquina com a Rua Expedicionários. Certa vez eu e minha esposa estávamos voltando da missa e nós passamos nesse local e ela comentou que ali seria uma boa localização para um açougue. Ela sugeriu o negócio e eu complementei a ideia com a proposta de montar uma mercea-ria junto com açougue. E fi zemos isso. O negócio foi tão bom que construímos o Supermercado Ba-ronesa, hoje Supermercado Davi-nha. Ficamos por um bom tempo com o negócio, vendemos o mer-cado, mas mantivemos o prédio. Hoje o mercado é tocado pelos meus netos, proprietários do Su-permercado Davinha.

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A Avenida Ester era dividida, era a parte alta e a baixa. Essa divisão era feita pela linha de trem da linha Sorocabana, passava entre a Praça do Coreto e a Praça do Relógio. A linha era controlada por um funcionário da Sorocaba-na, o Mano Paixão. Ele ficava numa guarita e toda vez que o trem passava ele abria e fechava a porteira. As pessoas que moravam na parte baixa da avenida se sentiam discriminadas, muitas não tinham trabalho fixo, traba-lhavam de pedreiro, açougueiro no matadouro, entre outras funções. A única pessoa que sobressaía nessa região e que comandava politicamente era o seo Orlando Perucci, filho do Antônio Perucci. Eles tinham um bar, conheci-do como Bar da Barroquinha, que era o ponto de encontro da parte baixa. Todos os acontecimentos, principalmente políticos, se davam ali. Era um bar movimentado, pois ficava perto da Estação da Sorocabana, todos que tran-sitavam na área passavam pelo Bar.

Na parte de cima o QG era aonde eu engraxava sapato (Bar do Santo Rizzo), onde também era uma central de informações, fofoca, onde as pessoas se encontravam. Havia ali um chalé do jogo do bicho, que naquela época não era proibido. As donas de casa iam lá jogar. E assim acompanhamos o cres-cimento da cidade e as histórias dos moradores.

Eles chamavam os moradores da parte baixa de “pessoal da biquinha”, pois nessa parte tinha a famosa “Biquinha”, onde tinha seis nascentes de água, numa área de propriedade da Sorocabana, que fez uma casa com maquiná-rio para bombeamento dessa água das biquinhas para o reservatório da Es-tação da Sorocabana, onde era feito o abastecimento das máquinas. Nesse local as lavadeiras se concentravam, enquanto lavavam as roupas falavam de assuntos da cidade, era a central de fofocas.

A Biquinha serviu muito para o fotógrafo Guilherme Hasse. Ele ia até lá para revelar as fotografias, pois o filme precisava ficar imerso na água. Ele morava na Avenida Ester, na esquina com a 7 de abril. Levava uma hora para tirar uma foto. O pessoal ficava sem paciência, querendo ver logo, e o Guilherme fazia os retoques e as artes finais lá na Biquinha mesmo. Às vezes a pessoa estava com pressa para retirar a fotografia e perguntavam para ele “a minha foto está pronta?”. Ele respondia que a foto estava na água e as pessoas estranhavam. Na verdade a filha dele havia levado a foto lá na Biquinha. São histórias!

Baixa e alta Avenida Ester

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Nessa mesma localização (Barro-quinha) havia um armazém bastan-te famoso na cidade, o Armazém do Paquito, um espanhol que ficou na história de Cosmópolis. Um fato engraçado era a maneira de anún-cio usado pelo comércio. Tinha uma pessoa que fazia serviço de som, o Chico Coimbra, um morador da anti-ga Colônia do Carandina, uma seção da Usina Ester que não existe mais. Ele ficava no campo de futebol do Carandina e só fazia propaganda do Armazém do Paquito. Ele dizia: “você tem que comprar no armazém do Paquito, porque lá vocês vão en-contrar bacia para menino de alumí-nio, pente para mulher de tartaruga, gaiola para passarinhos de arame, meias para senhora de seda, botinas de homem de elástico”, ele mistu-rava as coisas, trocava a ordem das palavras. Não se sabia se o homem ou a botina eram de elástico!

Armazém do Paquito

Às vezes muitos clientes se surpreendiam com as fotos produzidas, pois não ficavam satisfeitas com o resultado e reclamavam. Para evitar esse tipo de constrangimento, Guilherme Hasse colocava na frente do seu Atelier a se-guinte frase: “fotógrafo não faz milagre, cada um é o que é”.

Os alunos viveram uma noite de gala. José Pedroso e a irmã Alice Blumer no salão de baile da festa de formandos.Crédito: Acervo pessoal

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Amauri Gonçalves de OliveiraAtor, professor, escritor e principalmente contador de histórias. Histórias inventadas e histórias tão belas e verdadeiras como a contada neste livro. Abençoados aqueles que recontam através dos tempos os acontecidos e mais abençoados os incríveis he-róis destes acontecimentos.

Bruno DominguesMestrando em Comunicação na UNIP. Formado em Jornalismo e em Marketing na mesma instituição, teve sua pesquisa de Inicia-ção Científica premiada em 2012. No interior, criou o site Agito-Artur em 2002 e participou da “Comissão de Artes Visuais e Au-diovisuais” do Conselho Municipal de Cultura de Artur Nogueira no biênio 2009-2010.

Carolina VieiraTenho 22 anos, 18 morando em Cosmópolis. Quis participar da oficina Baú de Memórias para conhecer mais a minha cidade, onde estudo e trabalho. Foi uma experiência ótima conhecer es-sas histórias e aprender com elas.

Autores

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Eliezer Barbosa Sou professor da rede municipal de ensino, formado na área de tecnologia, busco através da observação aprender, ajudar e a caminhar um caminho onde possamos juntos guardar aquilo que foi, viver aquilo que é e construir aquilo que virá. Os nossos pas-sos podem nos levar aonde queremos, viver é mais do que exis-tir é compartilhar um pouco de si com o mundo e nessa interação caminhar, em companhias que nos enriquece e nos faz enxergar que somos capazes de ir cada vez mais longe.

Karen CruzKaren Cruz cresceu na cidade de Mogi Mirim. Ingressou no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas em 2012, participando das exposições “Invisto” e “ECARTE”, além dos ENE-ARTEs 2012 e 2013. Voltou para São Paulo no mesmo ano, como aluna do Centro Universitário Belas Artes. Atualmente tem inte-resse em fotografia analógica.

Marilei Terezinha BarbosaMarilei Terezinha Barbosa, 56 anos, nascida no dia 24 de agosto de 1957 no município de Artur Nogueira, hoje cidade de Enge-nheiro Coelho. Formou-se no Ensino Médio, fez cursos técnicos e trabalha há mais de 10 anos como jornalista. É casada, mas está separada, tem dois filhos, uma neta e reside em Artur Nogueira.

Walter FrungiloNasci em Cosmópolis em um sábado, dia 19 do mês de janeiro do ano de 1946. Vivi como criança a vida que viviam as crian-ças naqueles tempos. Fui bancário, programador de computador, analista de sistemas, auditor de projetos de engenharia, funcio-nário público na Prefeitura de Cosmópolis na área da Cultura, e finalizei minha carreira profissional como professor de inglês em 2003 com vontade de continuar, mas, sem as condições físicas em ordem. Terminei a carreira por onde deveria ter começado. Ensinar foi a coisa mais gostosa que fiz na minha vida!

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Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Programa de Ação Cultural 2012.