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8/7/2019 Beauvoir-Literat e Metafisica
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Titulo da edição francesa:
L'existencialisme
et Ia Sagesse des Nations© Les Edlt lons Nagel, Paris
Reservados os direitos pela legislação em vigor
para a Editorial M inolauro
Rua D. Estefânla 46 B-C-O Lisboa 1
Traduç1l.o
Manuel de LimaBruno da Ponte
Orientação gráfica
Correia Fernandes
José Grada
Se está interessado em receber o nosso
. boletim de novidades nacionais e estran-
geiras remeta-nos o postal junto cuja
franquia será paga por' nós.
er-- \,, \
\ \, l , .
Colecção EnsaioI I . . •" , .
o EX ISTENCIAL ISMOE A SABEDORIADAS NAÇÕES
Simone de Beauvolr
?o~"t'rO !Ifl6 6',
t . Minotauro
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11 1 . L ITERATURA E M E TA FlS IC A
Eu lia muito quando tinha dezoito anos; liacomo
só nessa idade se lê, com ingenu'idade ecom paixão. Abrlr um romance era, verdadeira-mente, entrar num mundo, um mundo concreto,temporal, povoado de figuras e de aconteci-mentos sinquleres: um tratado de filosofi'a con-duzia-me para além das aparências terrestresna serenidade de um céu lntemporal. Num ounoutro caso, recordo-me ainda do espanto ver-tlqlnoso que me possuía no momento em quefechava o livro. Depois de ter pensado o uni-verso através de(Spi'no~ ouc&!!!.o perguntava--me: «Como se pode ser suficientemente fútil
para escrever romances?» Mas quando abando-.nava(1ulien ~ ou ct;s;~'U~e~ill:~ parecia--me vão-pe-rder tempo a fabricar sistemas. Ondese situava a verdade? Sobre a terr·a ou na eter-nidade? Sentia-me dividida.
Penso que todos os espíritos que são sensÍ-veis, ao mesmo tempo, às seduções da ficção e
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80 LITERATURA E METAFlSIOA
ao rigor do pensamento filosófico conheceram
mais ou menos esta perturbação; pois, ao fim
e 8'0 cabo, só há uma realidade; . L !: ! . 0 _ seio ~o
_ mundo que p~nsamos o mundo. Se alguns escri-
r
teres escolheram reter apenas um desses dois
aspectos da nossa condição, ergu~doa'Ssim. bar-
1 relras entre a literatura e a filosofia, outros,
I pelo contrário, procuraram desde há muito ex-
primi-Io na sua totalidade. O esforço de con-
ciliação a que hoje se assiste situ;;e na sequên-
~ia de uma longa tradição, responde a uma exl-gênci'a profunda do espírito. Porque suscita,então, tanta desconfiança? ~--
I: necessário recon hecê-lo, as ~~P.le'ssões:
«romance metafísico», «teatro de ideias», podem
dêspertar'alguma inquiétação. Cert~mente uma
obra significa sempre alguma coisa: mesmo
aquele que procure mais dellberademenre re-
cusar todo o sentido, manifesta 'ainda essa
recusa; mes os adversários da literatura filo-
s6fica sustentam com razão que a significação
d; um romance ou de uma peça de teatro não
deve, mais que a de um poema, poder tradu-zir-se em conceitos abstractos; senão, para quê
construir uma aparelhagem fictíóa à volta de
ideias que seriam expressas com maior econo-
mia e clareza numa linguagem directa? O ro-
mance s6 se [ustlflca se é um modo de comu-
nicação irredutível a qualquer outro. Enquanto
LITERATURA E METAFlSIOA 81
o filósofo, o ensaísta, comunicam ao leitor uma
reconstrução lntelectuai da sua experiência, é
essa própria axperlência, tal como se apresenta
antes de qualquer elucidação, que o romancista
pretende reconstltulr num plano imaginário~
mundo real, o sentido~ yrrLobje<;to-'!.§2 é 'Jm
co,n~~reensív~_ pel~ ~~endime!'to puro:é_o oºJectQ.~nqu'ant-o ~~ nos desvela na rela-
ção global que mantemos com ele e que é---- . -1!cção, emoção, sentimento; pede-se aos roman-
cistas para evocarem essa presença de carne eosso cuja complexidade, cuja riqueza sinqular
e infinita, ultrapassa qualquer interpretação
subjectlva. O teórico quer constranger-nos a
aderir às ideias que a coisa, o acontecimento,
lhe sugeriram. Esta docilidade intelectual re-pugna a muitos espírltos. Querem salvaguardar
a liberdade do seu pensamento: pelo contrério,
agrada-Ihes que uma ficção imite a opacldede,
a ambiguidade, a imparcialidade da vida; sub-
jugado pela história que lhe é contada, o leltor
reage aqui como perante os acontecimentos vivi-
dos. Comove-se, aprova, indigna-se, por um mo-vimento de todo o seu ser, antes de formular
j u ízos que arranca de si mesmo sem que tenha-
mos a presunção de lhos ditarmos. ~ isso queconfere valor a um bom romance. E J;p ê; m it e lefectua-; expe;iê~cj;;-tã~ completas, tão inquieJ J
tanteCOmo as experiências vivides. O leitor6 - - -
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82 LITERATURA E METAFlSlCA
interroga-se, duvida, toma partido e essa ela-
boração hesitante do seu pensamento constitui
um enriquecimento que nenhum ensino doutri-
nal pode da substituir.
Um verdadeiro romance não se <jeix·a, por-
tanto, reduzir a fórmulas, nem mesmo relatar;
não poderMs d'est~~a~ o seu sentido como não
podemos isolar um sorri·so de um roStõ:Em b-ora~f€Üo de paIa~-ex'i s te como os c l ; jec-tos do mundo que ultrapassam tudo o que se
possa dizer com palavras. E , sem dúvida, aqueleobjecto foi construfdo pelo homem e esse ho-
mem tinha um desfgnio; mas a sua presença
deve estar bem escondida, senão essa operação
mágic·a que é a subjugação romanesca não
poderie cumprir-se; do mesmo modo que. '0
sonho se desfaz em pedaços se a menor percep-
ção se revela como tal ao que dorme, do mes-
mo modo a crença 'imaginária desvanece-se
quando se pensa em confronté-le com a reali-
dade: não se pode admitir a existência do ro-
mancista sem negar a dos seus heróis.
Ser-se-é então tentado a levantar uma pri-meira objecção contra o que se chama comfrequê;;cra-;-i,~trusão da filosofia no romance:
qualquer ideia cmuito clara, qualquer t ; ; e , qual-quer doutrina que se tentasse elaborar através
de uma ficção destruírlem nela imediatamente
o seu efeito, pois denunciariam o autor e fariam-
LITERATURA E METAFlSlCA 8~
-na aparecer, ao mesmo tempo, como ficção.
Mas este argumento não é lntelramente deci-
sivo; é tudo urna questão de destreza, de tacto,
de arte. De qualquer modo, fingindo eliminar-
-se, o autor trapacei'a, mente; quando mente
suficientemente bem, dissimulará as suas teo-
rias, os seus planos; permanecerá invisível, o
leitor deixar-se-é apanhar, a trapaça resultará.
Mas é precisamente aqui que muitos leitores
se irritam com razão. Admitindo que a arte
implica o artifício, portanto uma parte de máfé e de mentire, repugna-Ihes a ideia v d e se
deixarem enganar. Se a leitura fosse apenas um
divertimento gratu'Íto poderia situar-se o debate
no plano técnico; m~s se se deseja ser «aea-
~~_uJ!l.._~ce, nã2--1.3l.E~..!l~....2:9t:,a
m~atar qJ.gWlJas~ho~s; espera-se, vlrno-]o, supe-
ra-r no plano imagi·nário os limites sempre muito
estreitos da experiência realmente vivida. Ora
isso exlqe que o romancista participe ele próprio
nessa investigação para a qual convida o leitor:
se prevê de antemão as conclusões a que ela
deve levar, se faz lndlscretarnente pressão sobre
ele para lhe arrencar a sua adesão a teses pre-
-estabelecidas, se apenas lhe concede uma ilusão
de liberdade, então a obra literária não passa
de uma mistificação lnconqruente: o romance Isó se reveste do seu valor e da sua dignidade
quando constitui para o autor como para o lei-
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84 LITERATURA E METAFlSICA
tor u~a descoberta viva. ~ essa exiqêncle que
se exprime de uma maneira romântica e um
tanto irritante querido se diz que o romance
deve escapar ao autor, que este não deve dispor
das personagens mas que, pelo contrário, estas
devem impor-se-lhe. De facto, mau Q'rado os
abusos de linguagem, todos sabem que as per-
sonagens não visitam o quarto do escritor para
lhe impor as suas vontades; mas não preten-
demos que elas sejam fabricadas, a priori, à
custa de teorias, fórmulas, etiquetas; não que-remos que a intriga seja uma pura maquinação
que se desenrola mecânicamente. Um romance
_n~2 é um objecto manu~cl~'[ª9.2 e é mesmopejor~tivo -dizer-;Ue é fabricado; -sem - dúvida,
no sentido llteral da palavra, é absurdo preten-
tender que um herói de romance é Iivre, as
suas reacções, irnprevisfvets e mister iosas ; mas,
na verdade, ~~ I~b..erdade _gy_e ~e admira naspersonagem de Dostoievskl, por exemplo, é
a~yr6prio romenclsta em rei-ação ao~ -~pr óprios pro [ectos: e a opacidade dos aconte-
cimentos que evoca manifesta a resistência queencontra no decurso do próprio acto criador.
Do mesmo modo que uma verdade científica
encontra o seu valor no conjunto de experiên-
cias que a fundam e que resume, do mesmo
modo a obr-a de arte envolve a experiência sin-
gular de que é o fruto. A experiência científica
LITERATURA E METAFlSICA 85
é a confrontação do facto, quer dizer da hipó-
tese considerada como verificada com a ideia
nova. De uma maneira análoga, o autor deve
sem cessar confrontar os seus desígnios com
a realização que esboça e que, prontamente,
reage sob-re eles; se quer que o leitor acredite
nas invenções que propõe, é necessário, em pri-
meiro lugar, qu-e o romancista creia nel-as com
suficiente força para Ihes descobrir um sentido
que se reflectirá na ideia primitiva, que sugerirá
problemas, saltos, desenvolvimentos imprevis-tos. Assim, no futu-ro e à medida que a história (se desenrola, vê surqir verdades de que não
conhecia antecipadamente o rosto, questões ele
que não possui a solução: int~C?ga-se, t~m2..
PaI!! 92, corre riscos; e é com espanto, que, 110
fim-da sua criação, consider-ará a obra reali-
zada, da qual ele próprio não poderá fornecer
a tradução abstracta pois, de um só golpe, ela
ganhará conjuntamente o sentido e a carne.
Então, o romance aparecerá como uma autên-
tica aventura espirltual. ~ essa autenticidade
que distingue uma obra ve-rdadeiramente gr;ande
de uma obra simplesmente hábil, e o maior
talento, a destreza mais consumada não pode-
r-iam substituí-Ia. Se o romance metafísico esti-
vesse reduzido a imitar de fora essa caminhada
viva, se trapaceasse o_lel!.2!~ em vez c ;t e . _ estabe-
lecer com ele uma comunicação verdadeira en-.--- -
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86 LITERATURA E l~ETAFISICA
volvendo-o numa lnvesflqação que o autor em-
preendeu por sua própria conta, então seria
com certeza necessário condené-lo.Certamente, não se satisfazem as exigências
da experiência romanesca se nos llmltermos a
mascerer com um revestimento flctíclo, mais ou
menos colorido, uma armadura ideológica pre-
viamente construída. Repudiar-se-é o romance
ilfilos6fico se definirmos a filosofia como um
sistema completamente constituído e bastando-
,-se a si próprio. Com efeito, é no decurso daedlficação do sistema que a aventura espiritual
será vivida. O romance que se prop'yj§l~ iJ ~-
tré-lo não fará mais do que explorar sem risco
e s~m verdadeira invenção as riquezas fixadas;
será Imposslvel introduzir essas rígidas teorias
na ficção sem prejudicar o seu livre desenvol-
vimento; e não se vê em que uma história
imaginária poderá servir ideias que já teriam
encontrado o seu modo próprio de expressão:
pelo contrário, só poderia dlmlnuf-las, empo-
brecê-Ias pois a ideia ultrapassa sempre, pela
sua complexidade e pela multiplkidade das suasaplicações, cada um dos exemplos singularesem que se pretenda encerrá-la.
Em primeiro lugar, notemos que, deste ponto
de vis~e':~se.ia íevado a repudiar o romance
psicol6gico de que, no entanto, ninguém p~
hoje-e;,; discutir a validade. Também existe
. .~tJ
LITERATURA E METAFISICA 87
uma psicologia teórica e soe o romance psicoló-
gico fosse dedicad~ustr~r. Ribot, Bergson ouFreud, seria, de facto, completamente inútil; fpoder-se-ia pretender que o~l?r:netidos
ao carácter que o autor escolheu para eles, às
leis psicolóqlcas que é obrigado a respeitar,Pe~de;'tõd-;-~ liberdade e toda a opacidade.
Se não se lhe levantam tais objecções é porque
se sabe que a psi,co logia não _ é _e~sencialmente
uma disclplíne especial e estranha à vida; toda
a-;;pe-;'iênci~a hu~a':;-a.-tem uma certa dim~são-- _ . ' ." ,----sicológica; e enquanto o teórico salienta e SiSO)tematiza num plano abstracto essas siqnifica-
ções, o romancista evoca-as na sua singularidade
concreta;;~quanto disdpulo de Ribot, Proust
aborrece, não nos ensina nada; mas Proust,
romancis ta autêntico, descobre verdades para
as quais nenhum teórico do seu tempo propôs
o equivalente abstracto.
!: de um modo análogo que importa conce-
ber a relação do romance e da rnetaffslca:
Em primeiro lugar, a metafísica não é um sis-
tema; não se «faz» metafíska como se «faz»
matemática ou física. Na realidade, «fazer»
metafísica é «ser» meteflsico, é reallzar em si
a atitude metafísica que consiste em pôr-se na
sua tota lidade em face da totelldade do mundo.
Todos os acontecimentos humanos possuem,
pera além dos seus contornos psicolóqlcos e
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88 LITERATURA E METAF'lSIOA
socrars, uma siqnlflceçêo metafíska pois que,
através de cada um deles, o homem empenhou-se
sempre inteiramente num mundo completo: e,
sem dúvida, não há ninguém que se não tenha
descoberto em qualquer momento da sua vida.
Em particular, acontece com frequência às crian-
ças que ainda não es\tã'Oancoradas no seu
pequeno universo experimentarem com espanto
o seu «estar-no-mundo» como experimentam o
seu corpo. Por exemplo, é uma experiência
metafísica essa descoberta da «ipseidade» des-crita por Lewis Carroíl em Alice no País das
Maravilhas, por Richard Hughes em Ciclone na
Jamalea: a criança descobre concretamente a
sua presença no mundo, o seu abandono, a sua
Iiberdade, a opacldsde das coisas, a resistência
das consciências estranhas; através das suas
alegrias, trlstezas, resignações, revoltas, os seus
medos e as suas esperanças, cada homem realiza
uma certa situação metafísica que o define
muito mais essencialmente do que qualquer das
suas aptidões psicológicas.
Há uma tomada original da realidade meta-
ffslca e, tal como em ps'icologia, há duas manei-
ras d ivergentes de a explicitar. Pode fazer-se
um esforço pare elucidar o sentido universal
numa linguagem abstracta: assim se e laborarão
teorias em que a experiência metaffsica se e.n-
contrará descrita e mais ou menos sistemati-
LITERATURA E METAF'lSIOA 89
zada sob o seu aspecto essencial, portanto in-
temporal e objectivo. Se, para além disso, o
sistema assim construído afirma que esse
aspecto é o único real, se considera sem impor-
tância a subjectividade e a historlcidade da
experiência, exclui evidentemente qualquer outra
manifestação da verdade. Seria absurdo lma-
gi·nar um romance aristotélico, espinozista ou
mesmo leibnitziana, pois nem a subjectividade
nem a temporal idade têm um lugar real nessas
metafísicas. Mas se, pelo contrário, uma fHo-sofia retém o aspecto subjectivo, singular e
dramático da experiência, contesta-se a si mes-
ma na medida em que, enquanto sistema intem-
porei, não dá o lugar devido à sua verdade
temporal. Assim, enquanto afirma a realidade
suprema da Ideia de que este mundo não é
senão uma degradação enganosa, Pia tão não
sabe que fazer dos poetas, exclui-os da sua
repúbl ica; mas quando, descrevendo o movi-
mento dialéctico que conduz o homem para a
ideia, integra na realidade o homem e o mundo
sensível, Platão experimenta a necessidade de
se fazer ele próprio poeta. Situa nos campos
em flor, à volta de uma mesa, à cabeceira de
um moribundo, na terra, os diálogos que mos-
tram o caminho do céu inteligível. Do mesmo
modo, em Hegel, na medida em que o espfrito
ainda não se cumpriu mas está em vias de se
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90 LITERATURA E METAF1SIOA LITERATURA E METAF!SIOA
cumprir, é necessário, para contar adequada-
mente a sua aventura, conferir-lhe uma certa
espessura carnal; na Fenomenologia do Espírito,
Hegel recorre a mitos literários tais como Don
Juan e Fausto, pois o drama da consciência
Infeliz só encontra a sua verdade num mundo
concreto e histórico.
Quanto mais vivamente um filósofo sublinha
o papel e o valor da subjectividade, mais será
levado a descrever a experiência metafísica sob
a sua forma singular e temporal. Não só Kier-
kegaard recorre como Hegel a mitos literários,
mas em Temor e Tremor recriou a história do
saorlfício de Abraão sob uma forma que toca
a forma romanesca e no Jornal de um Sedutor,
revela, na sua singularidade dramática, a sua
experiência original. Encontraremos mesmo
pensamentos que 'não poderiam exprimir-se
sem contradição de uma manelra categórica;
assim, para Kafka que deseja pintar o drama
do homem encerrado na sua imanência, o ro-
mance é o único modo de comunicação pos-
sível. Falar do transcendente, mesmo que fossepara dizer que é inacessfvel , ser ia já pre tender
ascender até ele, uma vez que uma nerretlva
imaginária permite respeitar esse silêncio que
é o único adequado à nossa ignorância.
Não é por acaso que o pensamento existen-
cialista tenta exprimir-se hoje, ora por tratados
91
teóricos, ora por ficções: mas sim porque é um
esforço para conciliar o objectivo e o subjectivo,
o absoluto e o relativo, o intemporal e o his-
tórico; pretende encontrar a essência no cora-
ção da exis tência; e se a descrição da essência
releva da filosofia propriamente dita, só o ro-
mance permitirá evocar na sua verdade com-
pleta, sinqular, temporal, o brotar original da
existência. Não se trata aqui, para o escritor
de explorar no plano literário verdades previa-
mente estabelecidas no plano filosófico, mas
sim de manifestar um aspecto de experiência
metafíska que não pode manifestar-se de outro
modo: o seu carácter subjectlvo, singular, dra-
mático e também, a sua ambiguidade; pois que
a real idade ,não é definida como apreensfvel
apenas pela inteHgênda, nenhuma descrição in-
telectual poderia expressá-Ia adequadamente.
É necessário tentar apresentá-Ia na sua lnteqrl-
dade, tal como se revela na relação viva que é
acção e sentimento antes de se tornar pensa-
mento.
Mas vê-se agora que a preocupação filosó-fica está longe de ser incompatível com as exi-
gências do romance. Este não manterá menos
um carácter de aventura espiritual, por se ins-
crever numa vlsão metafísica do mundo. De
qualquer modo, já não duvidamos actualmente
da falsa objectividade naturalista, sabemos que
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92 LITERATURA E METAFlSIOA
todos os romancistas têm a sua visão do mundo,
e é até nessa medida que eles nos interessam
O ponto de vista metafíslco não é mais estreito
do que qualquer outro, pelo contrário, é mesmo
por seu intermédio que podem concilia-r-se os
pontos de vista psicológico e social que fracas-
sam tão frequentemente ao reunirem-se e que,
tomados isoladamente, são incompletos. Que
não se pretenda mais que uma personagem de-
fin-ida pela sua dimensão metafísica: angústia,
revolta, vontade de poder, medo da morte, fuga,s'ede de absoluto, sej-a necessàriamente mais
rígida, mais fabricada do que um avaro, um
poltrão, um ciumento, que traços psicológicos
car acter lzem. Tudo depende aqui da qualidade
de imaginação e do poder de invenção do autor.
Sobretudo, é necessário não pensar que .a luci-
dez intelectual do escritor o leve a perder a
densidade, a riqueza embíqua do mundo. Cer-
tamente, se se ju'lga que, através da massa
colorida e viva das coisas, ele apercebe essên-
cias dessecadas, pode recear-se que nos ofereça
um universo morto, tão estranho ao que nós
respiramos como uma fotografia de raio X é
diferente de um corpo humano. Mas esse receio
só é fundado em relação aos filósofos que ; sepa-
rando a essência da existência, desdenham da
aparência em benefício da realidade escondida:
mas estes não são tentados' a escrever roman-
LITERATURA E METAF1SIOA 95
ces; pelo contrário, quanto àqueles para quem
a aparência é realidade, a existência, suporte
da essência, o sorriso indiscernfvel de um rosto
sorridente, o sentido de um acontecimento do
próprio acontecimento, é só pela evocação sen-
sível, carnal do domínio terrestre, que a sua
visão pode exprimir-se. Muitos exemplos de-
monstram que nenhum destes argumentos é
válido a priori. Os Irmãos Karamazov o le
Soulier de Satin desenrolam-se no quadro deuma metafísica cristã. É o drama cristão do
bem e do mal que se enreda e desenreda. Sabe-
-s'e sobejamente que isso não entrava nem' as
reacções dos heróis nem o desenvolvimento da
lntrlça e que o mundo de Dostowievski como o
de Claudel são mundos car-nais, concretos; é
que o bem, o mal, não são noções abst ractas;
só. se co~cretizam nos actos bons ou maus que
os homens cumprem, e o amor de Dona Prou-
heze por Rodrigo não é menos sensual, menos
humano, menos perturbante porque ela põe emjogo, através dele, a salvação da sua alma,
Na verdade, são muito frequentes os l eitores
que se recusam a participar sinceremente na
experiência em que o autor tenta envolvê-Ios:
não lêem como exigem que se escreva, receiam
correr riscos, aventurarem-se; antes mesmo de
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94 LITERATURA E METAF18IOA
abrirem O livro, atribuem-lhe chaves e, em vez
de se deixarem prender pela histór!a, procuram
sem cessar traduzi-Ia; matam esse mundo ima-
ginário que deveriam vivificar e lamentam-se de
que lhe tenham dado um cadáver. Assim, um
crítico russo, contemporâneo de Dostoievski
acusava Os Karamazov de ser um tratado de
filosofia dialogado e não um romance. Blanchot
diz muito profundamente, a propósito d eKafka, que ao lê-Io se compreende sempre de-
masiado ou demasiado pouco. Creio que estanota pode aplicar-se a todos os romances meta-
flsicos em geral; mas essa hesitação, essa parte
de aventura, o leitor não deve tentar iludi-Ia;
que não esqueça que a sua colaboração é neces-
sária, pois o próprio do romance é preclsernente
apelar para a sua liberdade.
Honestemente lido, honestamente escrito,
~Im romance metaf lsico provoca uma descoberta
da existência de que nenhum outro modo de
expressão poderia fornecer o equivalente; longe
de ser, como se pretendeu por vezes, um desvioperigoso do género romanesco, parece-me, pelo
contrário, na medida em que é conseguido, a
realização mais perfeita pois se esforça por
apreender o homem e os acontecimentos huma-
nos nas suas relações com a totalidade do
mundo, pols só ele pode ter êxito no que fra-
LITERATURA E METAF1SIOA 95
cassa a pura literatura como a pura filosofia:
evocar. na sua unidade viva e na sua funda-
menta l ambiguidade viva, esse destino que é o
nosso e que se inscreve de uma s6 vez no tempo
e na eternidade.