Bento Prado Jr. analisa Deleuze

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  • 8/4/2019 Bento Prado Jr. analisa Deleuze

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    BENTO PRADO JR. ANALISA DELEUZE1

    O filsofo Bento Prado Jr., professor da Universidade de So Carlos (SP), compartilha de longa data com Gilles Deleuze ointeresse pela obra do francs Henri Bergson. Em sua tese de livre-docncia na USP, defendida em 1964 e publicada em1989 com o ttulo Presena e Campo Transcendental Conscincia e Negatividade na Filosofia de Bergson, Prado Jr. examinava atentativa de superao, pela metafsica vitalista de Bergson, do dualismo entre sujeito e objeto. Dois anos depois, Deleuzepublicaria sua anlise da obra bergsoniana, em vrios pontos coincidente com a tese de Prado Jr. Um novo encontroentre os dois pensadores acontecer na palestra programada para os Encontros Internacionais Gilles Deleuze. Prado Jr.

    examinar aspectos do autor deMil Plats na conferncia intitulada Deleuze: da Histria da Filosofia Filosofia2. Ementrevista por escrito Folha, Prado Jr. analisa em detalhe o projeto filosfico de Deleuze e avalia os significados de suaobra. (Cssio Starling Carlos).

    Folha - Para Foucault, um dia, talvez, o sculo ser deleuziano. Que lugar Deleuze ocupa na filosofia dosculo 20 e que lugar ele deveria ocupar na filosofia futura?

    Bento Prado Jr. - cedo ainda para decidir sobre o lugar de Deleuze na filosofia do sculo 20. Para assimsituar um contemporneo nosso, seria preciso que sobrevossemos nosso tempo e a ns mesmos. A fortiori rigorosamente impossvel antecipar o balano que o sculo 21 far do nosso (Bergson, numa entrevista,recusou-se a responder a algum que lhe perguntava quais seriam os traos essenciais do teatro do futuro eacrescentou que se pudesse antecip-los faria esse teatro, que se tornaria presente; do mesmo modo, se eu

    pudesse antecipar a perspectiva da filosofia do sculo 21, eu a escreveria, trazendo-a para o sculo 20). Dequalquer modo, algo pode ser dito: a obra de Deleuze percorre a contracorrente o movimento dominante dafilosofia na segunda metade de nosso sculo, que se caracteriza pela tecnificao crescente de seusmtodos e pela correspondente evaporao de seu assunto real: como o Deus de Aristteles, essa filosofianon curat sublunaria. Toda sua obra, mesmo os livros consagrados de histria da filosofia, visa, em ltimainstncia, a clarificao de nossa experincia do mundo contemporneo poltica, cincia, arte. Tudo issoguiado pela inteno de detectar a lgica que comanda no limite, o capital- o que se d, nessa experincia,como opacidade e mutilao. A clebre frase de Foucault -foi ele mesmo que o declarou- deve ser entendidacum grano salis: mais do que uma boutade, uma provocao contra os inimigos dessa concepodesmistificadora da filosofia que partilhava com seu amigo Deleuze.

    Folha - O sr. autor de um trabalho sobre Bergson, Presena e Campo Transcendental. Como avalia a

    apropriao que Deleuze faz da obra bergsoniana?

    Prado Jr. - Antes de apropriar-se da filosofia de Bergson, Deleuze escreveu alguns ensaios e um livro sobreBergson como historiador da filosofia (embora seja preciso nuanar, como faremos logo adiante), queseguramente esto entre os mais notveis (elite da elite) da enorme bibliografia consagrada ao autor deMatria e Memria. Devo dizer que meu prprio livro deve enormemente ao pequeno ensaio de Deleuze LaConception de la Diffrence Chez Brgson, de 1956. E acrescento que, se Deleuze tivesse publicado seu LeBergsonisme em 1964 e no em 1966, eu teria perdido o assunto de minha tese. Mas, o que importa que,fornecendo uma interpretao inspirada e rigorosa da filosofia de Bergson, Deleuze a articula com outrasfilosofias (Nietzsche, William James, Whitehead, Hume...), montando um dispositivo de iluminao mtua ecruzada em rede, criando assim o campo de uma nova iniciativa de pensamento. Histria da filosofia efilosofia se entrecruzam, a ponto de se tornarem indiscernveis. Respondendo literalmente a pergunta, essa

    apropriao legtima no s porque enriquece aquele que se apropria, mas tambm porque libera a obraapropriada de leituras viesadas ou pobres, reabrindo os canais para sua compreenso imanente.

    Folha - O que significa a exigncia deleuziana de pensar o mundo sob a lgica da mudana, do devir?

    Prado Jr. - Como Bergson (por exemplo, no ltimo captulo deA Evoluo Criadora), Deleuze v na histria dafilosofia o desenvolvimento de uma mesma idia da filosofia, subordinada aos princpios da identidade ouda representao soberana, rompida apenas, segundo ele, em momentos excepcionais (materialismo antigo,

    1 Entrevista a Cssio S. Carlos, Folha de S. Paulo, 2 de junho de 1996.2 Na verdade, a conferncia intitulou-se A idia de plano de imanncia. Cf. Eric Alliez (org.), Deleuze, uma vida filosfica. S. Paulo: Editora 34, 2000.

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    estoicismo, Espinosa, Hume, Nietzsche...). O que h de comum a toda tradio da filosofia a cegueira paraa irredutibilidade do sensvel ao lgico ou ao conceitual (que no pode reabsorv-lo sem resto) para asingularidade do Acontecimento, que no pode ser antecipado, re-conhecido ou (p)re-representado, queconstitui o Ser mesmo do Devir.

    Nessa idia, convergem a idia bergsoniana de heterogeneidade entre as duas multiplicidades (quantitativae qualitativa) e a idia humeana da imaginao como solo do esprito, caos que precede a normalizao e a

    fixao dos princpios que o transformam em natureza humana. Essas duas formas radicais de empirismo(bergsoniana e humeana) levam Deleuze a uma remodelao da Esttica Transcendental que libera osensvel da sua unificao conceitual ou intuitivo-formal, desligando-a da Analtica Transcendental, paralig-la diretamente Crtica da Faculdade de Julgar. O que se exibe assim o sensvel sem conceito, dispersocatica ou Devir enlouquecido. O Devir no antecipvel, domesticvel na recognio do conceito e passa aser o verdadeiro signo do Ser. S a idia de Devir pode devolver, com sua rebeldia representao, aespessura ou a dimenso do Ser -ou do Cosmos sobre fundo de Caos.

    Folha - Qual a importncia da cr;tica deleuziana subjetividade como fundamento?

    Prado Jr. - A crtica deleuziana subjetividade como fundamento menos uma originalidade de sua filosofiado que um ponto pacfico de toda reflexo contempornea de vocao anti-fenomenolgica, da filosofia

    analtica aos famosos desconstrucionismos, passando por todos neo-pragmatismos (o naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemo) e por todos os estruturalismos. O que a distingue, talvez, ver nosujeito fundante (cartesiano, kantiano, husserliano e mesmo hegeliano -conforme Grard Lebrun, em O Avesso da Dialtica , Companhia das Letras, pgs. 254-257) um sujeito essencialmente representativo esubmetido ao regime da identidade, arkhunificadora e sntese prvia da experincia, capaz de exorcizartoda forma de diferena rebelde. Trata-se de inverter a linha do pensamento, para lev-la para algo como umcampo prvio, pr-subjetivo pr-objetivo, donde constituir tanto sujeito como objeto. Contra a Filosofia doSujeito, retomar o movimento da reflexo de Hume e de Bergson (a imaginao de Hume, entendida comocoleo annima -no sistema- de dados ou idias, como conjunto sem estrutura ou centro, coleo semlbum, pea sem teatro, ou fluxo de percepes- ou o campo das imagens do primeiro captulo de Matria eMemria , de Bergson, neutro epistemologicamente, onde ainda no se separaram o para-si e o em-si), deSartre (o Sartre de La Transcendence de l'Ego, que projeta o ego para fora da conscincia, definindo-o como to

    transcendente quanto uma cadeira ou um pedregulho), de William James (o do stream of thought dosPrinciples , que lamentava no poder dizer, como seria necessrio, em ingls, it thinks, como se diz itrains, j que a gramtica do enunciado I think cria a iluso da substancialidade do cogito). No era jNietzsche que via na identidade do cogito ou do sujeito fundador um efeito, apenas, de uma ilusogramatical?

    Folha - Que lugar esta crtica ocupa naa formulao de uma tica e de uma poltica?

    Prado Jr. - No campo da tica e da poltica, criticar o sujeito auto-fundante (a autonomia moral, por exemplo,no sentido kantiano) significa denunciar a heteronomia por sob a aparncia da autonomia. Mais uma vez Nietzsche a chave (ou o principal instrumento) da operao deleuziana. No fundo, autonomia seria umaforma sublimada da heteronomia ou de interiorizao de um poder (Lei ou Senhor) externo outranscendente. Do ponto de vista poltico, significa, talvez, a mais perfeita expresso do esquerdismo na suavertente anarquista. E poderia uma filosofia, cuja vocao essencial a de instaurar uma metafsicaanarcntica, exprimir-se politicamente de maneira diferente? As crticas endereadas poltica de Deleuzeso muitas e diferentes. Alguns nela vem, a despeito da alergia deleuziana pela dialtica, o ressurgimento, revelia do autor, da fraseologia dos jovens hegelianos de esquerda (Max Stirner, por exemplo). Outros, maiscruis, nela vem uma verso dramatizada e descabelada das posies radicais, mas muito bem comportadas(mais ticas que polticas), de um Alain: o indivduo ou o cidado contra os poderes. Crtico particularmenteduro, Vincent Descombes aponta sobretudo para o que seria o pseudo-marxismo de Deleuze (que, todavia,em Conversaes, reafirma seu marxismo), j que, depois de descrever os efeitos destrutivos do capitalismo...ele envia polidamente a luta de classes para o museu (em Le Mme et l'Autre, Ed. de Minuit, pg. 208).

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    No me cabe desempenhar o papel de juiz, entre os acusadores e os advogados de defesa. Mas possolembrar, pelo menos, que o que h de mais vivo, hoje, no marxismo parece tambm ter remetido ao museu,pelo menos, a idia da organizao da luta de classes, com a reconhecida falncia da idia do proletariadocomo classe universal. E, se no estou completamente enganado, Deleuze no estaria assim, hoje, em to mcompanhia.

    Folha - Quais as implicaes da teoria das multiplicidades e do conceito de virtual para a reformulao dos

    conceitos de conhecimento e de verdade?

    Prado Jr. - Os conceitos das multiplicidades (sublinhemos o plural) e de virtualidade so essenciais paraevitar dois escolhos em que o pensamento pode encalhar, segundo Deleuze. Ou duas concepesaparentemente rivais da filosofia, mas que partilham uma mesma epistemologia e uma mesma ontologia, jque fazem do conhecimento um ponto terminal em que o pensamento atinge seu repouso final, sem resto, nasua coincidncia com um objeto fixo desde sempre, que sempre esperou, bem comportado e em silncio, aluz que finalmente o revela tal qual , idntico a si mesmo. Fenomenologia e filosofia analtica, viso deessncia ou circunscrio lgico-funcional de estados-de-coisas parecem partilhar essa espcie de otimismoepistemolgico e ontolgico, que identifica pensamento e conhecimento. A exposio mais clara das idiasde pensamento, conhecimento e verdade est presente em O Que a Filosofia? (Ed. 34), onde a filosofia definida na tenso que a liga e a separa da cincia e da arte. No se trata de privilegiar nenhum dos ngulos

    do tringulo assim definido, mas de mostrar a peculiaridade da relao que cada um deles estabelece com averdade. O que o livro nos oferece a compreenso do que h de vertiginoso na filosofia mas tambm, eseguindo o mesmo mmovimento de pensamento, do que h de vertiginoso na cincia e na arte. Filosofia,cincia e arte so planos irredutveis, mas podem ser explorados segundo uma mesma estratgia; sinstncias da instaurao filosfica, correspondero instncias simtricas da instaurao artstica e cientfica;plano de imanncia da filosofia, plano de composio da arte, plano de referncia ou de coordenao dacincia; forma do conceito, fora da sensao e figuras estticas, funes e observadores parciais (op. cit.,pg. 277). Mas preciso sobretudo marcar o principal alvo polmico do livro, que a concepo da filosofiacomo anlise lgica da linguagem. Ao que Deleuze responde com a afirmao do carter no-proposicionalda lngua da filosofia. Ao contrrio da proposio ou da funo proposicional, necessariamente remetida aum estado-de-coisas real ou possvel, ou ainda a um referente externo, na linguagem da filosofia o conceitono se reporta a nada que lhe seja exterior, ele se pe a si mesmo e , assim, auto-referente. O estilo da

    filosofia mais da ordem da poiesis que da aletheia. Mais uma vez, assim, distinguimos pensamento deconhecimento. E da verdade se poder dizer que ela refratada de modos diferentes nos planos diferentesda cincia, da arte e da filosofia.

    Folha - O que significa para a filosofia a prooposta deleuziana de subverso do paradigma transcendente,dominante deste Plato? Qual a relao desta proposta com a chamada morte da metafsica? Em resumo,para Deleuze, o que significa pensar?

    Prado Jr. - evidente que significa, antes de mais nada, retomar a iniciativa (e mesmo sua linguagem e seuspersonagens conceituais), mas sobretudo significa transformar Nietzsche em personagem conceitual desua prpria filosofia. Como se Nietzsche fosse tambm uma espcie de Zaratustra de Deleuze, mobilizado naguerra contra as formas contemporneas da filosofia da identidade e da repetio. Nietzsche dizia que amorte de Deus no se consumaria enquanto mantivssemos nossa crena na gramtica. Deleuze diria, talvez,que a metafsica da identidade no ter morrido enquanto se acreditar que a anlise lgica da linguagem omtodo da filosofia.

    Folha - Deleuze teve em Foucault seu mais desttacado interlocutor. Porm, aps a morte de Foucault, eleprops a superao de um dos momentos da analtica do poder formulado no conceito de sociedadedisciplinar. Em seu lugar, sugeriu o novo conceito de sociedade de controle. Em relao a que formas depoder visveis, hoje, pertinente aplicar o conceito deleuziano?

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    Prado Jr. - Esta questo claramente respondida por Deleuze no Post-Scriptum de Conversaes. No setrata, propriamente, para Deleuze de opor-se a, ou de criticar, o conceito de sociedades disciplinares.Trata-se de apontar para uma transformao da sociedade contempornea, apoiando-se justamente nasanlises de Foucault e em continuidade com elas. Segundo Foucault o modelo do confinamento, que seesboa nos sculos 18 e 19, em substituio ao que chama de sociedades de soberania, culmina no incio dosculo 20. A sugesto de Deleuze de que esse modelo comea a sofrer transformaes depois da SegundaGuerra Mundial, quando o confinamento substitudo pelo esquema do controle. Eu cito: A famlia um

    interior em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional etc. Os ministros competentes nocessam de anunciar reformas supostamente necessrias. Reformar a escola, reformar a indstria, o hospital,o Exrcito, a priso; mas todos sabem que essas instituies esto condenadas, num prazo mais ou menoslongo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, at a instalao das novas foras que seanunciam (op. cit., pg. 220). Essa idia de uma sociedade de controle mas agora sou eu quem pergunta-n&atildde;o seria ela parecida com a idia frankfurtiana da sociedade administrada?

    Folha - O pensamento de Deleuze frequuentemente criticado por seus opositores como irracionalista e, svezes, rotulado de ps-modernista. preciso defender Deleuze destas acusaes?

    Prado Jr. - Irracionalismo um pseudo-conceito. Pertence mais linguagem da injria do que da anlise.Que contedo poderia ter sem uma prvia definio de Razo? Como h tantos conceitos de Razo quantas

    filosofias h, dir-se-ia que irracionalismo a filosofia do outro. Ou, pastichando uma frase de mile Brhier,que na ocasio ponderava as acusaes de libertinagem, poderamos dizer: On est toujours l'irrationalistede quelq'un (Sempre se o irracionalista de algum). No, no necessrio defender Deleuze dessaacusao, qual certamente no lhe ocorreria dar resposta. Basta sorrir. Quanto questo do ps-modernismo, a atribuio -at onde posso perceber- cabe mais a Lyotard (que a transformou em cavalo debatalha em sua polmica com os alemes) do que a Deleuze.

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