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CAPÍTULO 12
Biocombustíveis: solução ou problema?
12. 1 Os vegetais como fonte de energia
De modo similar às energias solar e eólica, a energia da biomassa
é gerada diretamente pelo Sol. Essa energia se torna disponível
através da sua captação e armazenamento em forma química nos
carboidratos – ou seja, biomassa, conceito que inclui os açúcares,
amidos, óleos vegetais e celulose – graças à fotossíntese das plantas.
Na história da humanidade, a biomassa constitui a grande fonte de
energia para o fornecimento de calor e para a cocção dos alimentos,
por meio da lenha e da queima dos excrementos de animais. Esse
tipo de uso, ainda muito praticado em comunidades rurais da Ásia,
África e América Latina, provocou a destruição da maior parte da
cobertura florestal do planeta. A partir da década de 1970, em
resposta aos altos preços do petróleo, certas espécies vegetais
passaram a ser processadas industrialmente para obtenção de
energia. Assim surgiram os biocombustíveis1, que se dividem em
dois grupos:
1 O uso do termo “biocombustível” é contestado por ambientalistas e movimentos sociais, que chamam
o mesmo produto de “agrocombustível”. A escolha por uma palavra ou outra não é neutra e, no contexto da controvérsia que envolve essa modalidade de energia, expressa uma perspectiva distinta de entendimento da questão. “Biocombustível” se utiliza do prefixo “bio” (vida, em latim) para ressaltar a ideia de um produto “limpo”. Assim, esconde as contradições implícitas na sua produção e enfatiza a ideia de algo “novo”, que supera os antigos meios de gerar energia. É o termo usado pelos governantes e pelas transnacionais. “Agrocombustível” reforça a ideia de que o combustível é obtido por meio do cultivo de vegetais que ingressam no mercado como produtos agrícolas inseridos em uma lógica capitalista. Ou seja, está sujeito às contradições e às disputas do campo, como, por exemplo, a que opõe os modelos do agronegócio e da agricultura camponesa ou familiar. Neste livro, a opção pela palavra “biocombustível” se deve apenas ao fato de que essa é a designação utilizada nos meios acadêmicos e em quase toda a bibliografia disponível sobre o assunto.
a) Etanol – É o álcool combustível, utilizado diretamente para
abastecer veículos automotivos, seja misturado à gasolina
(álcool anidro), seja como substituto da gasolina (álcool
hidratado). O etanol, obtido na sua quase totalidade da
destilação da cana-de-açúcar e do milho, representa
atualmente mais de 90% dos biocombustíveis líquidos.
b) Biodiesel – É um combustível obtido por meio da mistura de
um óleo vegetal com etanol ou metanol (álcool derivado de
petróleo) e a adição de um catalisador, o qual provoca a uma
reação química que provoca separa a glicerina do biodiesel.
Sua comercialização é feita em mistura com o diesel mineral
(um derivado do petróleo) em proporções variáveis. Na
produção do biodiesel, utiliza-se uma ampla variedade de
plantas oleaginosas, entre as quais a soja, o dendê (também
conhecido como palma), a canola, a colza (cultivada no
Hemisfério Norte), o algodão, o pinhão manso, a mamona e o
girassol.
Os biocombustíveis ganharam importância na matriz energética
mundial a partir da dupla preocupação com os riscos de escassez de
petróleo e com a busca de fontes energéticas capazes de substituir os
combustíveis fósseis com uma redução expressiva da emissão de
gases causadores do efeito estufa. O etanol e o biodiesel, como
produtos derivados de plantas, são combustíveis renováveis, por
definição, e podem ser cultivados em boa parte de globo,
especialmente nas regiões tropicais. Sua produção tem crescido em
escala exponencial desde o início da década de 2000, estimulada por
fortes subsídios estatais – sobretudo, nos Estados Unidos e Europa
Ocidental – e pela adoção de planos governamentais que
estabelecem prazos e metas para a mistura de etanol e biodiesel nos
combustíveis convencionais oferecidos no mercado,
respectivamente, a gasolina e o óleo diesel. Nos EUA, os
distribuidores de combustível têm um prazo até 2017 para incluir
uma mistura de 20% de etanol na gasolina que abastece os veículos.
Nos países da União Europeia e no Japão, essa meta é de 10% até
2020. O Brasil é o único país do mundo a passar pela experiência de
utilizar veículos movidos exclusivamente a álcool. Esses carros, que
chegaram a constituir a quase totalidade de frota brasileira, deram
lugar, na atualidade, aos automóveis flex fuel, projetados para se
abastecerem igualmente por etanol e por gasolina, misturados ou
não.
Já o biodiesel foi desenvolvido originalmente na Europa. Por volta
de 1990, pesquisadores austríacos começaram a sementes de plantas
de clima temperado, como o girassol e a colza, para produzir
combustível em escala semi-industrial. Hoje, o maior fabricante de
biodiesel do mundo é a Alemanha, que obtém quase toda a sua
produção a partir da colza. O Brasil, diferentemente dos países
europeus, que dependem de apenas uma ou duas oleaginosas para
produzir biodiesel, podem utilizar pelo menos 18 espécies diferentes
com a mesma finalidade. Ainda assim, 81% do biediesel brasileiro é
obtido com uma única matéria-prima, a soja, que é cultivada por
grandes empresas, entre as quais a gigantesca transnacional ADM
(Archer Daniel Midland), que domina o mercado dos
biocombustíveis nos EUA2.
Em grande medida, a explosão do interesse internacional pelos
biocombustíveis se deve ao fato de que eles são apresentados pelos
empresários do setor, assim como pelos governos, jornalistas e
acadêmicos favoráveis à expansão dos negócios no terreno da
biomassa, como uma fonte de energia ecologicamente correta, capaz
de compensar, ainda que em escala parcial, a escassez de petróleo,
sem agravar o problema do aquecimento global. O etanol, assim
2 “O sonho acabou?”, Retrato do Brasil, Lia Imanishi, São Paulo, maio de 2008.
como o biodiesel, é considerado um combustível de “emissão zero”,
pois o carbono que libera na sua combustão é equivalente ao que as
plantas usadas como matéria-prima acumulam no seu crescimento
natural. De fato, sua combustão emite volumes de CO2
significativamente menores que a do petróleo ou a do carvão: 60%
menos, no caso do biodiesel, e 70% menos, no do etanol. Mas
quando se leva em consideração o processo produtivo completo dos
biocombustíveis – desde o desmatamento até o consumo
automotivo –, a moderada economia de emissões se desfaz em vista
de mais emissões causadas pelo desmatamento, queimadas,
drenagem de fossas, cultivos e perdas de carbono do solo. Cada
tonelada de óleo de palma produzida resulta em 33 toneladas de
emissões de dióxido de carbono – dez vezes mais que o petróleo3.
..........................................
SAIBA MAIS
Os biocombustíveis de “segunda geração”
Além do etanol e do biodiesel, existem pesquisas para a produção
dos chamados “biocombustíveis de segunda geração”, obtidos a
partir da celulose dos vegetais (palha, grama, madeira, resíduos de
colheitas) e de microalgas existentes no mar. Os defensores dessa
nova fonte de energia a apresentam como uma opção vantajosa em
comparação com os produtos da “primeira geração”. O
biocombustível celulósico, afirmam, não compete com a produção
de alimentos e consome um volume menor de energia de origem
fóssil. Mas esse argumento omite que os resíduos orgânicos são
fertilizantes naturais que servem para nutrir e proteger o solo. Na
realidade, desconhece-se o que ocorreria com o cultivo em larga
escala desses vegetais com fins energéticos e, de qualquer modo,
3 HOLT-GIMENEZ, Eric. “Mitos de la transición de los agrocombustibles”. Revista virtual Redesma, março de 2008,
Madri.
após duas décadas de pesquisas, os cientistas ainda não descobriram
um meio de quebrar as moléculas da celulose para produzir energia
de um modo economicamente viável.
...........................................................................
12.2 A agroindústria brasileira do etanol
O Brasil é o pioneiro na produção de etanol a partir da cana-de-
açúcar, tanto na forma de álcool hidratado quanto na de álcool
anidro, e disputa com os EUA a liderança mundial na fabricação,
exportação e consumo desse tipo de combustível. A produção
brasileira de etanol em 2010 foi de 28,2 bilhões de litros (a segunda
no ranking mundial), dos quais 1,9 bilhões foram exportados4. Cerca
de 45% do etanol produzido em âmbito mundial provem dos
canaviais brasileiros. Das 435 usinas instaladas no país, a Raízen,
formada a partir da fusão entre a Cosan e a filial brasileira da Shell,
é a maior produtora, com 2,2 bilhões de litros de etanol.
A história dos biocombustíveis no Brasil tem como marco
inicial o ano de 1975, quando o governo federal tomou uma série de
medidas para enfrentar os problemas causados pela dependência do
petróleo, importado em mais de 80%. Uma das iniciativas foi a
criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), que procurava
associar o potencial de expansão da agroindústria da cana-de-açúcar
– uma cultura comercial explorada no Brasil desde o tempo colonial
– com a oportunidade gerada pela crise. O objetivo do programa era
substituir uma parcela significativa do consumo interno de gasolina
pelo álcool derivado da biomassa. Para incentivar sua produção, o
governo financiou, com empréstimos subsidiados, a instalação, nas
4 SECCO, Alexandre (editor). Análise Energia – Anuário 2012, p.58. São Paulo: Análise Editorial.
usinas de açúcar, de unidades anexas para destilação de álcool. A
produção cresceu rapidamente nos anos seguintes, atingindo 664
mil metros cúbicos na safra 1976/1977 e, apenas quatro depois, na
safra 1980/1981, um volume cinco vezes maior, de 3,7 milhões de
metros cúbicos. A quantidade de álcool anidro obtida no país era
suficiente para misturá-lo à gasolina na proporção de 15% a 20%5.
A segunda etapa do Proálcool foi lançada em 1980, em resposta ao
segundo Choque do Petróleo, deflagrado pela Revolução Iraniana,
que triplicou o preço desse combustível e elevou a 46% sua
participação na pauta brasileira de importações. O objetivo, dessa
vez, era substituir diretamente a gasolina pelo álcool hidratado. A
indústria automobilística foi chamada a introduzir no mercado
veículos movidos exclusivamente a álcool. Por determinação do
governo, a Petrobras e as distribuidoras privadas criaram um
sistema de armazenamento, transporte e distribuição desse
combustível. A produção alcooleira atingiu um pico de 12,3 bilhões
de litros em 1986-87, superando em 15% a meta inicial do governo
de 10,7 bilhões de litros anuais. A proporção de carros a álcool no
total de automóveis produzidos no país aumentou de 0,46% em
1979 para 26,8% em 1980, atingindo seu ponto máximo em 1987,
com 95%. No conjunto, o programa proporcionou uma economia de
US$ 28,7 bilhões em importações de petróleo, com um investimento
equivalente a US$ 11,7 bilhões.
Embora tenha alcançado seu objetivo de oferecer uma alternativa
ao petróleo importado, o Proálcool apresentou uma série de
problemas. O programa, ao se sustentar sobre a produção de um
número relativamente pequeno de enormes usinas, contribuiu para
concentrar ainda mais as terras e a riqueza nas áreas rurais, com
destaque para o Estado de São Paulo, que recebeu a maior parte dos
5 FURTADO, André T.; SCANDIFFIO, Mirna I. G. “Álcool no Brasil – Uma longa história”. Scientific
American Brasil, outubro 2006, p. 67.
investimentos. Em sua maioria, os canaviais implantados para a
produção de álcool foram feitos sem cuidados com a preservação
ambiental, provocando o assoreamento de rios, para a diminuição
da biodiversidade e para a redução dos volumes disponíveis de
água. Como assinala o professor Célio Berman, do Instituto de
Eletrotécnica e Energia da Escola Politécnica da USP, os empregos
gerados por esses cultivos, embora numerosos, eram sazonais, com
a utilização da mão-de-obra infantil e feminina em tarefas penosas e
insalubres, durante jornadas prolongadas e com uma grande parcela
contratada por “gatos”, o que dificulta a aplicação da legislação
trabalhista e a melhoria dos salários6. Muitos pequenos produtores
rurais se tornaram nômades bóias-frias após terem as suas terras
absorvidas pelos grandes canaviais.
O receio atual é que, onde quer que se instale, a monocultura do
açúcar venha reproduzir o modelo predatório de exploração que
implementou no estado de São Paulo, o grande polo da expansão do
etanol. O agrônomo Manoel Eduardo Tavares Ferreira, presidente
da Associação Cultural e Ecológica Pau Brasil, de Ribeiro Preto (SP),
explica que, até a década de 1970, a região possuía 22% de cobertura
vegetal nativa. A partir de 1975, quando os usineiros passaram a
receber os generosos benefícios do Proálcool, com financiamentos
estatais a juros negativos e longos prazos de carência, essa área se
reduziu para menos de 3% na atualidade. O eixo da produção
brasileira de cana-de-açúcar se transferiu do Nordeste para São
Paulo, deslocou outros cultivos, como o gado, o tomate e as frutas, e
a concentração da propriedade se acentuou. “A cultura canavieira –
escreve Ferreira – avançou com voracidade sobre os campos de
outras culturas rurais, e, em semelhante intensidade, o domínio das
6 BERMAN, Célio. Energia no Brasil: Para quê? Para quem? São Paulo: Livraria da Física, FASE, 2001, p. 115-
116.
terras destinadas ao plantio da cana passou para as usinas, por força
de aquisição ou de arrendamento”.7
Ele relata que, nos arredores da cidade de Ribeiro Preto, “os
canaviais ocupam mais de 1 milhão de hectares de forma contínua,
com fortes impactos sobre as matas ciliares, a biodiversidade e a
produção de alimentos”. No vizinho município de Bebedouro,
outrora a “capital brasileira da laranja”, o cultivo de cítricos caiu de
80% para 25% em menos de dez anos, substituído gradualmente
pela cana-de-açúcar. Um relatório da Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab) constatou uma queda da plantação de
alimentos em 2,6% em Minas Gerais, 4,1% no Espírito Santo e e 7,6%
em São Paulo – declínio atribuído ao crescimento da cana-de-açúcar
no Sudeste do país. Essas cifras indicam que, ao contrário do que
afirma a agroindústria do etanol, a expansão da cana tem um efeito
direto sobre os cultivos alimentares.
O Proálcool entrou em declínio na segunda metade da década de
1980, pela soma de dois fatores. De um lado, a crise econômica, que
teve como elemento mais saliente o aumento descontrolado da
dívida externa, esgotou a capacidade do Estado de realizar as
elevadas transferências de dinheiro para o setor sucroalcooleiro, na
forma de subsídios. Do outro lado, o chamado “Contra-choque do
Petróleo”, em 1986, que derrubou os preços internacionais dos
combustíveis, também provocou uma queda drástica no preço do
álcool, eliminando os incentivos para a sua produção. O resultado
foi a falta de álcool nos postos no final da década de 1980, o que
comprometeu a credibilidade do programa e chegou a obrigar o
Brasil a importar esse combustível, no início dos anos 908. Nesse
contexto, a produção de carros a álcool no Brasil despencou até
próximo de zero e as usinas de açúcar passaram a buscar o mercado
7 “A queimada da cana e seu impacto socioambiental”, Manoel Eduardo Tavares Ferreira, 22/9/2006,
Adital – Agência de Informação Frei Tito para a América Latina. 8 FURTADO; SACANDIFFIO; 2006, p.68.
externo como alternativa. Em 1990, no governo de Fernando Collor,
o Proálcool foi extinto.
O mercado de álcool combustível no Brasil só voltou a crescer na
década de 2000, impulsionado por uma nova tendência de alta nos
preços dos derivados de petróleo, ao mesmo tempo em que a
desvalorização do real elevou os preços da gasolina. Mas o retorno
do álcool como opção para os transportes enfrentava a desconfiança
dos consumidores, receosos de voltar a adquirir veículos novos a
álcool devido à incerteza de que o preço desse combustível
(estimado em cerca de 70% do preço da gasolina) seria mantido.
Como solução, a indústria automobilística introduziu no Brasil os
carros flex, que podem rodar com álcool ou gasolina em qualquer
proporção.
A produção de carros flex disparou e, no final da década, a quase
totalidade dos veículos novos lançados no Brasil portavam essa
tecnologia. A garantia de um mercado potencial em expansão fez
com que, entre 2002/2003 e 2008/2009, a produção brasileira de
etanol crescesse 110%. Em 2008, o Brasil foi o primeiro país do
mundo a usar mais etanol do que gasolina para alimentar a frota de
automóveis9. Para alimentar essa demanda, o setor sucroalcooleiro
expandiu enormemente o cultivo da cana-de-açúcar, que chegou a
representar mais de um quarto do produto agrícola brasileiro. Ao
mesmo tempo, ocorre um notável crescimento na produção de
etanol destinado à exportação, atendendo a demanda crescente por
combustíveis com baixas emissões de carbono.
As autoridades e empresários brasileiros alimentam planos
extremamente ambiciosos para a exportação de etanol. Um estudo
9 SCHUTTE, Giorgio Romano; BARROS, Pedro Silva. “A Geopolítica do Etanol”. Boletim de Economia e
Política Internacional, nº1, janeiro/março 2010, p. 33-44. Brasília: Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas
(IPEA).
elaborado em 2007 pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da
Presidência da República (NAE) vislumbrava a possibilidade de o
etanol brasileiro substituir, até 2025, cerca de 5% de toda a gasolina
consumida no planeta. Para alcançar essa meta, a produção nacional
atingiria 85 bilhões de litros, cinco vezes o volume obtido naquele
ano (18,8 bilhões).10 Dirigentes da União da Agroindústria
Canavieira de São Paulo (Única), principal entidade empresarial do
setor, calculam que a produção brasileira poderá atingir, no mesmo
período, o dobro desse cifra, ou seja, 170 bilhões de litros, o que
significa quase seis vezes o volume produzido em 201011.
A expectativa de lucros milionários no negócio do etanol provoca
dois fenômenos econômicos de grandes dimensões, associados entre
si. O primeiro é a expansão dos territórios brasileiros destinados ao
cultivo da cana-de-açúcar para a produção do etanol. Dados da
Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) revelam que, entre
2000 e 2011, a área ocupada pelos canaviais saltou de 4,8 para 8,1
milhões de hectares. Para alcançar a meta do agronegócio brasileiro
de atender a metade da demanda mundial de etanol até 2025, a
produção de cana-de-açúcar no país terá de passar dos 380 milhões
de toneladas colhidas em 2007 para 1,7 bilhão de toneladas. Esse
salto produtivo implicaria em uma expansão da cultura da cana em
uma área adicional de mais de 21,5 milhões de hectares, segundo os
pesquisadores André Tosi Furtado e Mirna Scandiffio, da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Tal expansão, que
abarcaria inclusive terras que atualmente servem como reserva
ambiental, ocorreria fora do Estado de São Paulo, que é responsável
por cerca de 58% da produção brasileira de cana. Com o
esgotamento do espaço disponível para novos canaviais em São
Paulo, a produção de etanol brasileira tem se deslocado para a 10
“Etanol do Brasil pode substituir 5% da gasolina até 2025, diz governo”. BBCBrasil.com, 22/3/2007. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/03. 11
FUSER, Igor. “O Verde Enganador”, Le Monde Diplomatique Brasil, nº 5, dezembro 2007, São Paulo.
região central do país (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais) e para o Norte-Nordeste (Bahia, Maranhão, Piauí,
Tocantins)12.
O outro fenômeno associada à expansão do etanol no Brasil é o
ingresso maciço de empresas transnacionais no setor
sucroalcooleiro, seja por meio da compra de usinas brasileiras, seja
pela instalação de novos negócios13. A participação de empresas
estrangeiras na agroindústria da cana no Brasil cresceu de 1% em
2000 para cerca de 30% em 2010. Entre muitas outras, operam
atualmente em território brasileiro a Shell (anglo-holandesa), a BP
(britânica), a Louis Dreyfus (francesa), a Bunge (EUA) e a Cargill
(EUA). Juntas essas transnacionais são proprietárias de mais de 100
usinas. A Petrobras também está presente no setor, e com muita
força. A empresa semi-estatal anunciou planos de construir a maior
usina de etanol do mundo, com capacidade de produção de 700
milhões de litros e investimentos de R$ 521 milhões, em parceria
com o grupo brasileiro São Martinho14. “Uma nova característica da
indústria do etanol, se comparada ao Proálcool da década de 1970, é
a aliança do agronegócio com empresas petroleiras, automotivas, de
biotecnologia, mineração, infra-estrutura e fundos de
investimento15”, analisa a especialista Maria Luisa Mendonça.
“Nesse cen{rio, não existe nenhuma contradição desses setores com
12
FURTADO, André T.; SCANDIFFIO, Mirna I. G. “A Promessa do Etanol no Brasil”. Visages d’Amérique
Latine, nº 5, setembro 2007, Poitiers (França), p.109. 13
O caso mais expressivo da desnacionalização do setor foi a fusão, em 2011, da empresa brasileira Cosan, até então a maior usina do país, com a subsidiária brasileira da Shell, formando a Raízen. Essa companhia, com um valor de mercado estimado em US$ 20 bilhões, é uma das cinco maiores empresas no Brasil e está voltada essencialmente para a produção de etanol com a finalidade de exportação. Seu objetivo, anunciado na ocasião da fusão, era elevar o etanol à condição de commodity internacional. Ao divulgar a operação, a Shell afirmou que pretendia criar “um rio de etanol correndo desde as plantações no Brasil até a América do Norte e a Europa”. 14
SECCO, A.; 2012, p.57. 15
MENDONÇA, Maria Luisa. Monopólio da terra e produção de agrocombustíveis. IN: MERLINO, T.; MENDONÇA, M.L. (orgs.), Direitos Humanos no Brasil 2010 – Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, p. 58. São Paulo: 2010.
a oligarquia latifundiária, que se beneficia da expansão do capital no
campo e do abandono de um projeto de reforma agrária.”
12. 3 O Brasil e a geopolítica do etanol
Dotado de imensas extensões de terras férteis e de um clima
tropical propício para o cultivo da cana-de-açúcar, o Brasil desfruta
de uma posição privilegiada no mercado global de biocombustíveis.
Na comparação com os EUA, a grande vantagem brasileira reside na
opção pelo etanol da cana-de-açúcar, que apresenta um rendimento
energético cinco vezes maior do que o do etanol de milho, cultivado
nas grandes fazendas do Meio-Oeste estadunidense. No processo
produtivo de etanol, o consumo de 1 litro de petróleo em energia
obtém como resultado um volume de etanol a apenas 1,4 litro. No
etanol da cana-de-açúcar, a proporção entre a energia dispendida e a
energia obtida é sete vezes maior: 1 para 10,216. Esse altíssimo
rendimento energético se deve ao elevado teor de sacarose da cana,
bem superior ao existente no milho, e também a uma inovação
tecnológica desenvolvida nas usinas paulistas, que consiste na
utilização dos resíduos sólidos do processo produtivo – a palha e o
bagaço da cana-de-açúcar – para abastecer as caldeiras onde se
fabrica o etanol. Dessa maneira, as usinas atingem um patamar
próximo ao da autonomia energética, poupando eletricidade e
derivados de petróleo. Outra vantagem brasileira em relação aos
EUA diz respeito aos índices mais altos de produtividade agrícola.
Enquanto os milharais estadunidenses geram 3.037 litros de etanol
por hectare cultivado, nos canaviais brasileiros essa proporção é de
6.879 litros por hectare (América Economia 2.4.2006).
16
GOLDEMBERG, José. ”Os limites do etanol de primeira geração”. In: Revista Opiniões. Julho-Setembro 2009, citado por SCHUTTE; BARROS, 2010.
A existência de uma poderosa agroindústria sucroalcooleira e de
um vasto mercado interno – reativado a partir do inicio do século 21
com a introdução dos veículos flex – favoreceram a produção de
excedentes exportáveis de etanol, que tornaram o Brasil o líder
mundial nesse mercado durante a maior parte da década de 2000.
Estima-se que o etanol brasileiro é competitivo no mercado
internacional a partir da cotação de US$ 40 por barril de petróleo
(em 2008, antes da crise econômica global, esse preço atingiu US$
143, e em 4 de maio de 2012 o petróleo estava cotado em US$ 98,5).
As exportações brasileiras de etanol subiram de 606 mil toneladas,
em 2003, para 4 milhões de toneladas, em 2008. Em valores
monetários, isso significa um salto de US$ 158 milhões para US$ 2,4
bilhões, graças ao aumento dos preços17. Essa expansão, no entanto,
se interrompeu a partir de 2009, em consequência da crise
econômica mundial deflagrada no ano anterior. Em 2011, a venda de
etanol brasileiro ao exterior foi de apenas 1,9 milhão de toneladas,
menos de 25% do volume comercializado três anos antes18. E os
EUA voltaram a ser o maior exportador, deixando o Brasil na
segunda posição no ranking. Nas palavras do vice-presidente da
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Luiz Carlos Correia
de Carvalho:
“Vivemos hoje a soma de todos os males. Houve
problemas de clima, de falta de investimento nas
plantações e de falta de planejamento. A crise de 2008
não foi uma marola, mas uma onda gigante para
surfistas profissionais, que surte até agora seus efeitos.
17
INSTITUTO INTERAMERICANO DE COOPERAÇÃO PARA AGRICULTURA (IICA).
Caderno de Estatísticas do Agronegócio Brasileiro, 2008, citado em SHUTTE; BARROS, 2010. 18
SECCO; 2012; p.56.
Com a crise, os produtores e a indústria ficaram sem
recursos para financiar a renovação do canavial.”19
O agronegócio sucroalcooleiro espera superar esse período crítico
com o retorno dos investimentos estrangeiros e, sobretudo, o forte
apoio estatal. Em maio de 2011, a presidenta Dilma Rousseff decidiu
oficialmente que o etanol deixa ser encarado pelas autoridades como
um simples derivado da produção agrícola para se tornar um
“combustível estratégico” para o país, a ser fiscalizado e controlado
pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP)20. No mesmo ano, uma série de medidas foi anunciada para
reduzir os juros e impostos que incidem sobre o setor.
O principal foco de interesse dos exportadores brasileiros de
etanol (assim como das empresas estrangeiras instaladas no setor)
sempre foi o mercado estadunidense. Em 2006, os EUA importaram
2,7 bilhões de litros de etanol, dos quais 64% vieram diretamente do
Brasil e 12% correspondem ao etanol de origem brasileira que é
reprocessado em El Salvador e exportado de lá para os EUA a fim
de se beneficiar das vantagens alfandegárias concedidas aos países-
membros da Área de Livre Comércio Centro-Americana (Cafta, na
sigla em inglês). Outro alvo importante na estratégia exportadora
brasileira é a União Europeia, cujos integrantes adotaram um
conjunto de metas para a substituição do petróleo por combustíveis
renováveis como um dos meios de atingir seus objetivos ambientais.
Apesar das políticas protecionistas vigentes no mercado europeu, as
importações de etanol pela União Europeia quintuplicaram entre
2004 e 2008. O etanol brasileiro responde por 70% dessas
importações.
19
“Produção do etanol tem pior momento em 11 anos”, O Estado de S.Paulo, Chico Siqueira, 28 de agosto de 2011, p. B7. 20
SECCO; 2012; p.58.
Na busca de consolidar sua posição como exportador de etanol, o
Brasil enfrenta dois grandes desafios geopolíticos, na avaliação dos
pesquisadores Giorgio Romano Shutte e Pedro Silva Barros. O
primeiro desafio, segundo eles, é diminuir as restrições à entrada do
produto nos países ricos, potenciais consumidores21. “Os países
desenvolvidos, que já ocupam grande parte das áreas
agriculturáveis, precisam diminuir a emissão de dióxido de carbono,
mas adotam políticas protecionistas para o setor agrícola por
motivos de segurança energética e defesa dos interesses dos seus
agricultores”, escrevem. O segundo desafio envolve a garantia da
existência de um número significativo de países produtores
dispostos e em condições de abastecer o mercado internacional de
etanol com suas exportações. Trata-se de países que, devido às suas
condições naturais e estratégias de desenvolvimento, tendem a se
concentrar na África e na América Central – além do Brasil, é claro.
Isso significa que, do ponto de vista do governo e do agronegócio
brasileiros, a disseminação do cultivo do etanol em outros países –
especialmente, países pobres, dotados de mão-de-obra barata e de
terras onde podem ser instalados canaviais –, longe de significar a
criação de competidores para o biocombustível made in Brazil,
responde à necessidade estratégica de ampliar uma oferta estável de
etanol capaz de garantir o abastecimento dos países capitalistas mais
avançados. Na avaliação de Schutte e Barros,
“os países em desenvolvimento têm interesse em
produzir para exportação, mas isso não pode
comprometer a produção de alimentos e há um déficit de
capital e tecnologia para tal. O Brasil, que representa o
terceiro grupo, é o maior produtor mundial, detém
tecnologia e tem enorme capacidade para expandir a
21
SCHUTTE, Giorgio Romano; BARROS, Pedro Silva. “A geopolítica do etanol”. Boletim de Economia e Política Internacional, nº 1, ano 1, janeiro/março 2010, p. 33-44. Instituto de Política Econômica Aplicada (IPEA), Brasília.
produção sem comprometer a segurança alimentar, mas
os países consumidores não querem ficar dependentes
de um único ou de poucos produtores.”22
Durante mais de uma década, as exportações brasileiras de etanol
para os EUA esbarraram na política protecionista adotada naquele
país como um meio de favorecer os produtores estadunidenses de
milho perante os riscos da concorrência com o biocombustível
brasileiro, produzido com maior eficiência. As autoridades
alfandegárias dos EUA aplicavam uma tarifa de US$0,54 sobre cada
galão de etanol exportado para aquele país23. A essa barreira se
somava o subsídio que os distribuidores recebiam do governo de
Washington para garantir a competitividade do etanol do milho
(US$ 0,45 por galão misturado à gasolina). As medidas
protecionistas que restringiam o acesso brasileiro ao mercado
estadunidense foram revogadas, finalmente, em dezembro de 2011,
quando o Congresso dos EUA entrou em recesso sem renovar a
tarifa de importação e o subsídio ao milho24. Os analistas atribuem
essa mudança ao alto custo do protecionismo, que obrigava o
orçamento público a destinar cerca de US$ 6 bilhões de dólares por
ano em benefício do agronegócio do milho. Para o agronegócio
brasileiro, o importante é que, a partir de 1º de janeiro de 2012, o
biocombustível do Brasil já tem acesso livre aos EUA, pela primeira
vez. O então presidente da Única, Marcos Jank, avaliou que, com a
queda das barreiras, as exportações para os EUA podem subir, em
alguns anos, de 1,5 bilhão para 13,5 bilhões de litros, o que
representa 10% do consumo de combustíveis naquele país.
O fim do protecionismo estadunidense no campo da energia abre
caminho para a plena implementação do programa de cooperação
22
SCHUTTE.; BARROS; 2010. 23
Um galão equivale a 3,7 litros. 24
“Queda de subsídios abre mercado para o etanol brasileiro nos EUA”, O Estado de S.Paulo, Renée Pereira e Denise Chrispim Marin, 24 de dezembro de 2011, p.B1.
energética certado entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e
George W. Bush em março de 2007 no sentido de estimular a
produção de biocombustíveis em países da América Central e do
Caribe com a finalidade de exportá-los paro o mercado
estadunidense. Nesse projeto, os EUA entrariam com o
financiamento da instalação de canaviais e de usinas produtoras de
etanol, enquanto o Brasil forneceria a tecnologia, por meio da
Petrobras e da Embrapa25. Essa parceria, formalizada em um
Memorando de Entendimento entre os dois países, tem como base
uma convergência de interesses no sentido de criar um mercado
internacional estável para o etanol26. Mais tarde, em outubro de
2008, durante a Conferência Internacional de Biocombustíveis
realizada em São Paulo, Brasil e EUA assinaram um segundo
Memorando de Entendimento, ampliando a cooperação para outros
países, incluindo alguns do continente africano. Em uma iniciativa
paralela, Brasil, EUA e União Europeia criaram uma força tarefa
voltada, entre outros objetivos, para o estabelecimento de normas
comuns para o etanol da cana, do milho e da celulosa, com vistas à
criação de um mercado de futuros no negócio dos biocombustíveis,
a exemplo do que já existe para o petróleo.
Em resposta aos esforços conjuntos do Brasil e dos EUA em
difundir os biocombustíveis na América Central, destilarias voltadas
para a produção de etanol foram instaladas em vários países da
região, com destaque para a Guatemala, Honduras e El Salvador.
Especialistas e movimentos sociais criticam essa política,
argumentando que a substituição de cultivos tradicionais pela cana-
de-açúcar representa um risco para a produção de alimentos e a
25
ALEMÁN BENÍTEZ, P{vel. “Los agrocombustibles y su impacto en la relación de los Estados Unidos
con América Latina y el Caribe”. Cuadernos de Nuestra América, nº 43-44, Vol. XXII, janeiro-dezembro 2009,
Centro de Estudios sobre América (CEA), La Habana. 26
SCHUTTE; BARROS, 2011.
própria sobrevivência de comunidades rurais27. Um relatório da
organização humanitária ActionAid sobre a expansão dos canaviais
e das plantações de dendê para a produção de biodiesel na
Guatemala aponta um agravamento dos conflitos agrários e da
concentração da propriedade fundiária, na medida em que os
pequenos agricultores são convencidos a vender suas terras aos
investidores.
12.4 O impacto socioambiental dos biocombustíveis
A compreensão do papel dos biocombustíveis no mundo
contemporâneo deve ir além das considerações econômicas para
focalizar também os efeitos sociais e ambientais da sua produção e o
modelo de desenvolvimento em que se insere a opção por esse tipo
de cultivo, adotado em larga escala por muitos países latino-
americanos, asiáticos e africanos. No plano ambiental, as grandes
plantações destinadas à produção de insumos energéticos
reproduzem os impactos negativos que costumam acompanhar em
todos os lugares a agricultura praticada com base no monocultivo,
com a utilização de fertilizantes e agrotóxicos nocivos à
biodiversidade, à qualidade dos solos e da água e à saúde dos seres
humanos28.
No Brasil, os porta-vozes do agronegócio sucroalcooleiro afirmam
que os problemas ambientais ocorridos na época do Proálcool já
foram superados. Um deles, por exemplo, diz respeito ao vinhoto –
27
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS.
Agroenergia – Mitos e Impactos na América Latina. São Paulo, Recife, 2007. 28 HOUTART, François. El escándalo de los agrocombustibles para el Sur. Quito, Panamá: Ediciones La Tierra,
Ruth Casa Editorial, 2011, p.114.
líquido mal-cheiroso, altamente poluente, que resta como
subproduto da destilação da cana-de-açúcar. Para cada litro de
álcool, são produzidos cerca de 12 litros de vinhoto. Por muito
tempo, esse resíduo foi jogado nos rios e nos córregos, destruindo a
maior parte da sua flora e fauna. A situação mudou na década de 70,
ao se descobrir nele um excelente fertilizante, desde então usado nos
próprios canaviais. Mas o vinhoto, conduzido por dutos aos
enormes tanques onde é armazenado, deve ser submetido a
cuidados extremos – o menor acidente pode causar uma
contaminação com sérias consequências para os cursos de água. Há
ainda um limite para a sua absorção pela lavoura de cana, como
lembrou o engenheiro Francisco Alves, professor na Universidade
Federal de São Carlos, em entrevista à edição brasileira do Le Monde
Diplomatique. “Os excessos do vinhoto penetram na terra, afetando o
lençol fre{tico, ou são levados pela chuva até rede hidrogr{fica”,
explica. “Em grande quantidade, trazem um risco ainda mais grave,
pois os canaviais se concentram na zona onde se forma o Aquífero
Guarani, a bacia que abastece todo o Cone Sul29.”
Também persistem graves problemas sociais na produção da
cana-de-açúcar. As condições de trabalho nos canaviais são
extenuantes. Os trabalhadores são remunerados por quantidade de
cana cortada e não por horas trabalhadas. Para receber pouco mais
de um salário mínimo por mês, é necessário cortar mais de 10
toneladas por dia. Para isso, são necessários 30 golpes de facão por
minuto, durante oito horas de trabalho por dia. A extrema
exploração do trabalho nos canaviais causa sérios problemas de
saúde e até a morte de trabalhadores, por exaustão30. Todos os anos,
são registrados casos de trabalho quase escravo. A substituição do
corte manual da cana pela mecanização da colheita tem melhorado
as condições de trabalho em muitas usinas, mas também provoca a
29
FUSER; 2007. 30
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS; 2007.
demissão de milhares de trabalhadores pouco qualificados, que
ficam sem alternativa de emprego.
Outro ponto polêmico envolve a destruição das florestas tropicais
brasileiras: o cultivo de vegetais destinados à produção de energia
teria alguma culpa pela devastação da Amazônia e de outras áreas
importantes de biodiversidade¿ Para os defensores do etanol como
um biocombustível “limpo” (isto é, inofensivo do ponto de vista
ambiental), a resposta é negativa, uma vez que a produção de etanol
na Amazônia está proibida por lei e a superfície ocupada pelos
canaviais é relativamente pequena diante da gigantesca extensão
territorial do país. De acordo com o Ministério da Agricultura
Pecuária e Abastecimento, a lavoura utiliza 63 milhões hectares, dos
quais 7 milhões para cana. Cerca da metade é usada na produção de
açúcar, a outra (3,6 milhões de hectare) para etanol (31). Ocorre que,
com os projetos para ampliar em até dez vezes a produção atual a
fim de dar conta das possibilidades exportadoras, as superfícies
cultivadas devem crescer em uma escala colossal.
Nesse contexto, é válido duvidar da versão, difundida pelo
governo e pelos empresários do etanol, de que os novos canaviais se
limitam |s {reas previamente ocupadas por “pastagens
degradadas”. Na realidade, a expansão dos canaviais, impulsionada
por investimentos externos milionários, exige terra de boa
qualidade, com acesso fácil às fontes de água e nas imediações de
rodovias. A recuperação de áreas deterioradas, a fim de torná-las
produtivas, requer muito tempo e gastos elevados, enquanto a
lógica do agronegócio, em qualquer lugar do planeta, está voltada
para o retorno rápido do capital, com um mínimo de riscos. Como já
ocorreu com a soja, nas décadas de 1980 e 1990, o atual crescimento
do etanol se dá pela incorporação de novos territórios, e não pela
31
Dados citados em SCHUTTE e BARROS, 2010.
recuperação de áreas improdutivas. O impacto socioambiental vai
além do uso da terra, envolvendo também o acesso à água – um
recurso que se torna cada vez mais escasso, no mundo inteiro. Cada
litro de etanol produzido dentro da usina, em circuito fechado,
consome 12 litros de água, em média. Esse volume não inclui a água
utilizada no cultivo que, no caso das monoculturas irrigadas,
consomem muito mais32.
Quanto à Amazônia, o aumento dos cultivos de biocombustíveis
representa um fator de devastação, embora de forma indireta. A
floresta amazônica, de fato, não é uma região açucareira. O efeito
sobre o desmatamento acontece por meio da instalação de fazendas
de criação de gado, que avançam, destruindo florestas na
Amazônia, na medida em que são deslocadas do Centro-Oeste
brasileiro a partir da expansão dos canaviais e das plantações de soja
– o principal cultivo utilizado na produção do biodiesel –, muito
mais lucrativas. “O setor do {lcool diz que só planta em terras já
devastadas, mas h{ um desmate indireto na Amazônia”, afirmou o
biólogo Ricardo Machado, da Universidade de Brasília, em
entrevista33. A destruição da pequena agricultura pela concentração
das terras também provoca impacto ambientais, já que uma parcela
significativa dos camponeses deslocados pelo avanço do
agronegócio se converte em posseiros que se instalam ilegalmente
na Amazônia, enquanto outros se incorporam às favelas urbanas.
Sem dúvida, o dano ambiental mais direto da expansão dos
biocombustíveis se manifesta no Cerrado, que já perdeu mais de
50% do seu bioma original, segundo dados do Ministério do Meio
Ambiente. Por sua paisagem ressequida, menos exuberante que a
das florestas tropicais, o maior ecossistema do Centro-Oeste
costuma ser encarado com certo desprezo, o que facilita que seja 32
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA; REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS; 2007. 33
“Plantações de eucalipto e cana-de-açúcar no Cerrado empurram gado para a Amazônia”, O Estado de S.Paulo, Leonencio Nossa, 5 de maio de 2012, p.A20.
destruído impunemente. No entanto, trata-se de uma região que
abriga mais de 10 mil espécies de plantas (das quais 4.400 são
endêmicas, ou seja, só ocorrem lá), 847 espécies de pássaros e quase
trezentas de mamíferos. Ali se situam importantes mananciais de
água. O Cerrado está desaparecendo mais depressa do que a
Amazônia, em um processo de destruição impulsionado pelas
plantações de soja, nas décadas de 1980 e 1990, e que se intensificou
desde 2000, com a introdução dos canaviais e das plantações de
eucalipto para a produção de celulose.
O problema está longe de se restringir ao Brasil. Em outras partes
do mundo, como o Sudeste Asiático, as plantações de dendê
(também chamado de palma) para o biodiesel são a causa
primordial de perda de florestas. Na Indonésia, um país com um
dos maiores índices de desmatamento do mundo, o governo está
levando adiante um plano para expandir a produção do dendê em
16,5 milhões de hectares, o que põe em risco praticamente toda a
área de florestas. Na Malásia, o maior produtor mundial de óleo de
dendê, 87% das florestas já foram devastadas. De acordo com um
relatório publicado em 2008 pelo Banco Mundial, as mudanças no
uso dos solos, tais como o desmatamento para produzir
biocombustíveis, representam um risco muito maior para o
aquecimento global do que a redução das emissões de carbono com
o consumo do biodiesel obtido dessa forma34.
Uma dimensão muito preocupante do recurso aos biocombustíveis
como alternativa ao petróleo é o seu impacto negativo sobre a
produção de alimentos. No mundo inteiro, essa nova modalidade de
uso da terra incentiva os proprietários rurais – pequenos, médios e,
principalmente, grandes – a substituir os cultivos tradicionais pelas
plantas que constituem a matéria-prima do etanol e do biodiesel.
Essa disputa é responsável, entre outros problemas, pelo aumento
34
BANCO MUNDIAL, Informe sobre el Desarrollo Mundial. Washington: Banco Mundial, 2008.
dos preços da água e da terra, que encarece ainda mais os alimentos
e favorece a concentração das propriedades rurais nas mãos dos
fazendeiros mais ricos. Nos EUA, o maior produtor mundial de
milho, parcelas cada vez maiores da colheita dos milharais estão
sendo destinadas às usinas de etanol, em prejuízo do consumo
humano e das granjas de criação de aves e suínos. O resultado é a
alta dos preços dos alimentos, que ocorre em escala mundial –
impulsionado, também, por outros fatores, como a ação dos
especuladores nos mercados futuros de commodities. O México
sentiu fortemente esse problema em 2006, quando o aumento das
exportações de milho para abastecer o mercado de etanol nos EUA
causou um aumento de 100% no preço das tortillas, que representam
o principal alimento da população.
Na opinião na maioria das entidades ambientalistas e de grande
parte dos cientistas dedicados ao estudo das fontes renováveis de
energia, a aposta em uma corrida desenfreada para a produção
mundial de biocombustíveis como substituto do petróleo e do
carvão é um erro que pode conduzir a consequências catastróficas.
A verdadeira solução para o atual impasse energético, nessa linha
de raciocínio, passa por reconhecer que a melhoria das condições de
vida e o aumento do uso de energia não são, necessariamente,
sinônimos – e, o mais importante, por mudar os padrões de
consumo da sociedade contemporânea, que se mostram cada vez
mais incompatíveis com o bem-estar da humanidade e, no longo
prazo, com a própria sobrevivência do planeta tal como nós
conhecemos.