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Branca Moreira Alves Jacqueline Pitanguy O QUE É FEMINISMO

Branca Moreira Alves O Que é Feminismo

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O QUE É FEMINISMO é um livro de Bianca Alves. Indicado para pessoas iniciantes no debate.

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Branca Moreira Alves

Branca Moreira Alves

Jacqueline Pitanguy

O QUE FEMINISMO

Editora brasiliense

INTRODUO

difcil estabelecer uma definio precisa do que seja feminismo, pois este termo traduz todo um processo que tem razes no passado, que se constri no cotidiano, e que no tem um ponto predeterminado de chegada. Como todo processo de transformao, contm contradies, avanos, recuos, medos e alegrias.

O feminismo ressurge num momento histrico em que outros movimentos de libertao denunciam a existncia de formas de opresso que no se limitam ao econmico. Saindo de seu isolamento, rompendo seu silncio, movimentos negros, de minorias tnicas, ecologistas, homossexuais, se organizam em torno de sua especificidade e se completam na busca da superao das desigualdades sociais. Esta complementao no implica em uma fuso de tais movimentos, que mantm a sua autonomia e suas formas prprias de organizao. Entretanto, no so movimentos desvinculados entre si, pois as fontes da discriminao no so isoladas. Existem, nesse sentido, conexes significativas entre tais movimentos, que se somam na busca de uma nova sociedade.

Ao afirmar que o sexo poltico, pois contm tambm ele relaes de poder, o feminismo rompe com os modelos polticos tradicionais, que atribuem uma neutralidade ao espao individual e que definem como poltica unicamente a esfera pblica, objetiva. Desta forma, o discurso feminista, ao apontar para o carter tambm subjetivo da opresso, e para os aspectos emocionais da conscincia, revela os laos existentes entre as relaes interpessoais e a organizao poltica pblica.

Conscientizando do fato de que as relaes interpessoais contm tambm um componente de poder e de hierarquia (homens versus mulheres, pais versus filhos, brancos versus negros, patres versus operrios, hetero versus homossexuais, etc.), o feminismo procurou, em sua prtica enquanto movimento superar as formas de organizao tradicionais, permeadas pela assimetria e pelo autoritarismo. Assim, o movimento feminista no se organiza de uma forma centralizada, e recusa uma disciplina nica, imposta a todas as militantes. Caracteriza-se pela auto-organizao das mulheres em suas mltiplas frentes, assim como em grupos pequenos, onde se expressam as vivncias prprias de cada mulher e onde se fortalece a solidariedade. Os pontos de vista e as iniciativas so vlidos no porque se originem de uma ordenao central, detentora de um monoplio da verdade, mas porque so fruto da prtica, do conhecimento e da experincia especfica e comum das mulheres.

Isto no significa que o feminismo no tenha uma organizao. Esta se manifesta nos grupos feministas que se mobilizam em torno da promoo de cursos, debates, pesquisas, campanhas, na formao de centros, editoras, clnicas de sade, SOS, Casas da Mulher, manifestaes culturais e as mltiplas outras formas de expresso e prtica do movimento. Entretanto, o feminismo no apenas o movimento organizado, publicamente visvel. Revela-se tambm na esfera domstica, no trabalho, em todas as esferas em que mulheres buscam recriar as relaes interpessoais sob um prisma onde o feminino no seja o menos, o desvalorizado.

O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma tica em que o indivduo, seja ele homem ou mulher, no tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde as qualidades femininas ou masculinas sejam atributos do ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a emoo, a ternura possam aflorar sem constrangimentos nos homens e serem vivenciadas, nas mulheres, como atributos no desvalorizados. Que as diferenas entre os sexos no se traduzam em relaes de poder que permeiam a vida de homens e mulheres em todas as suas dimenses: no trabalho, na participao poltica, na esfera familiar, etc...

Para a realizao desta proposta no existem respostas prontas, acabadas. Estas se constroem na reflexo e na prtica deste movimento recente e vivo, cujos rumos se orientam a partir da experincia coletiva que se acumula a cada momento.

Neste trabalho procurou-se, em simples pinceladas, recuperar a presena da mulher na histria, traando-se um esboo de sua condio e de suas lutas, pouco estudadas pelas cincias sociais. De fato, a mulher tem sido uma parte silenciosa da memria social, ausente dos manuais escolares e dos registros histricos. Neste esboo, procura de um passado silenciado, abordou-se a condio da mulher na Grcia e em Roma, na Glia e na Germnia, na Idade Mdia e no Renascimento.

Buscou-se tambm registrar as primeiras vozes femininas de insurreio, assim como o sufragismo e as formas contemporneas de organizao do feminismo, suas reivindicaes e seus objetivos.

Herana do Silncio

Que as mulheres aprendam no silncio

A sua sujeio ...

So Paulo Apstolo

Na Grcia a mulher ocupava posio equivalente do escravo no sentido de que to somente estes executavam trabalhos manuais, extremamente desvalorizados pelo homem livre. Em Atenas ser livre era, primeiramente, ser homem e no mulher, ser ateniense e no estrangeiro, ser livre e no escravo. A afirmao de Plato expressa bem esta realidade: Se a natureza no tivesse criado as mulheres e os escravos teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho.

Tendo como funo primordial a reproduo da espcie humana, a mulher no s gerava, amamentava e criava os filhos, como produzia tudo quilo que era diretamente ligado subsistncia do homem: fiao, tecelagem, alimentao. Exercia tambm trabalhos pesados como a extrao de minerais e o trabalho agrcola.

A essa diviso concreta de atividades correspondiam valoraes diversas. O fora de casa, onde se desenvolviam as atividades consideradas mais nobres filosofia, poltica e artes era o campo masculino.

Ao afirmar que os Deuses criaram a mulher para as funes domsticas, o homem para todas as outras Xenofonte, no sculo IV A.C., exprimia um tipo de argumentao naturalista que ainda hoje demarca espaos para os sexos.

Por outro lado, o mesmo Xenofonte, tratando da educao da mulher, revela o quanto social e coercitivo o aprendizado destas funes naturais:

... que viva sob uma estreita vigilncia, veja o menor nmero de coisas possvel, oua o menor nmero de coisas possvel, faa o menor nmero de perguntas possvel.

Estando assim limitado o horizonte da mulher, era ela excluda do mundo do pensamento, do conhecimento, to valorizado pela civilizao grega. Exceo feita das hetairas, cortess cujo cultivo das artes tinha como objetivo torn-las agradveis companheiras dos homens em seus momentos de lazer, a mulher grega no tinha acesso educao intelectual. O nico registro histrico de um centro para a formao intelectual da mulher foi a escola fundada por Safo, poetisa nascida em Lesbos no ano de 625 A.C. Os fragmentos conhecidos de poemas seus, cantando os deuses e o amor, justificam coloc-la entre os grandes nomes da literatura da Grcia antiga.

No que se refere civilizao romana, seu cdigo legal, por sua vez, legitima, com a instituio jurdica do parterfamilias, a quem era atribuda todo o poder sobre a mulher, filhos, servos, escravos, a discriminao da mulher. Entretanto, os discursos com que diferentes culturas tm procurado assegurar a sujeio da mulher, revelam, ao mesmo tempo, a dimenso de sua resistncia.

Assim, no ano 195 A.C., mulheres dirigiam-se ao Senado Romano protestando contra a sua excluso do uso dos transportes pblicos privilgio masculino e a obrigatoriedade de se locomoverem a p. Diante deste protesto assim se manifestou o senador Marco Prcio Cato:

Lembrem-se do grande trabalho que temos tido para manter nossas mulheres tranqilas e para refrear-lhes a licenciosidade, o que foi possvel enquanto as leis nos ajudaram. Imaginem o que suceder, daqui por diante, se tais leis forem revogadas e se as mulheres se puserem, legalmente considerando, em p de igualdade com os homens! Os senhores sabem como so as mulheres: faam-nas suas iguais, e imediatamente elas querero subir s suas costas para govern-los.

Estas palavras expressam com clareza a relao de poder entre os sexos. No de complementaridade e sim de domnio e submisso, de coero e resistncia, que Cato fala. O Direito aparece, assim, nitidamente, como um instrumento de perpetuao desta assimetria, legitimando a inferioridade da posio social da mulher romana.

Desmistificando a idia de que a sujeio da mulher seja um destino irrevogvel, a-histrico e universal, levanta-se a experincia da relao entre os sexos existentes na Glia e na Germnia. Era estas sociedades tribais, cujo regime comunitrio designava s mulheres um espao de atuao semelhante ao dos homens. Conjuntamente, faziam a guerra, participavam dos Conselhos Tribais, ocupavam-se da agricultura e do gado, construam suas casas. As mulheres funcionavam, tambm, como juzas, inclusive de homens. Os cronistas romanos, como Tcito e Estrabo, registram com surpresa a posio da mulher nessas sociedades. Da mesma forma, os cronistas europeus do sculo XVI, chegando Amrica, se surpreendem com a relevncia da posio da mulher entre os Iroqueses e Hurons. Nestas sociedades de caadores e coletores no havia uma diviso estrita entre economia domstica e economia social. Inexistia o controle de um sexo sobre o outro na realizao de tarefas ou nas tomadas de decises. As mulheres participavam ativamente das discusses em que estavam em jogo os interesses da comunidade.

Durante os primeiros sculos da Idade Mdia, enquanto no haviam sido reintroduzidos os princpios da Legislao Romana o que ocorre do sculo XIII em diante as mulheres gozavam de alguns direitos, garantidos pela lei e pelos costumes. Assim, quase todas as profisses eram-lhes acessveis, bem como o direito de propriedade e de sucesso. No que se refere atuao poltica, h exemplos de mulheres da burguesia participando de assemblias, com direito a voto. Em Bigorre (Frana), desde o sculo XI, existiu o sufrgio universal, e as mulheres, quando proprietrias, participavam das discusses dos contratos da comunidade.

Estudos demogrficos revelam que havia na Idade Mdia uma disparidade na distribuio da populao por sexo, com predominncia do contingente feminino adulto. De fato, envolvidos em constantes guerras e longas viagens, ou recolhidos vida monstica, era freqente o afastamento dos homens. Em sua ausncia, as mulheres assumiam os negcios da famlia, sendo-lhes, portanto necessrio entender de contabilidade e legislao, para efetuar com eficincia as transaes comerciais e defender-se em juzo. Historicamente, a maior participao da mulher na esfera extradomstica esteve sempre ligada ao afastamento do homem por motivo de guerras. Tal fato se repetiu inclusive nas duas grandes guerras mundiais deste sculo, quando a mulher participou expressivamente na fora de trabalho.

Na Idade Mdia, a mulher participou tambm das corporaes de ofcios, atuando como aprendiz e, excepcionalmente, por morte do marido, como mestre. O acesso s corporaes significou tambm a possibilidade de receber instruo profissional, direito que ela viria a perder nos sculos posteriores e que seria uma de suas bandeiras de luta. A ascenso da mulher ao cargo de mestre sofria, no entanto, restries. Assim, ela s poderia ocup-lo, quando viva, pelo perodo de um ano, em alguns burgos, ou, em outros, enquanto no mantivesse relaes sexuais com outro homem.

H registros de mulheres exercendo tarefas ditas masculinas, como a serralheria e a carpintaria, apesar de que se concentravam, sobretudo nas profisses femininas como a tecelagem, a costura, os bordados. Participavam do comrcio, ao lado de seus maridos e, frequentemente, permaneciam como comerciantes aps a sua morte. Por outro lado, a indstria domstica ligada principalmente produo de alimentos e tecelagem -, dominada pelas mulheres, era muitas vezes sua principal fonte de renda ou uma complementao necessria do oramento familiar. Podendo, tambm, exercer o direito de sucesso, no era incomum uma herdeira gerir sua prpria renda, ainda que casada. Mulheres economicamente autnomas, comerciantes ou exercendo outras atividades, independente de seu estado civil, aparecem nos anais de corporaes e nos registros administrativos.

Entretanto, o trabalho feminino sempre recebeu remunerao inferior ao do homem. Esta desvalorizao, por outro lado, provocou a hostilidade dos trabalhadores homens contra o trabalho da mulher, pois a competio rebaixava o nvel salarial geral. Assim, em determinados perodos, surgiram restries participao da mulher no mercado de trabalho, como em Londres, no ano de 1344, quando a corporao de alfaiates proibiu seus membros de empregarem mulheres que no fossem suas esposas ou filhas.

No campo da educao, embora minoritariamente, h registros de mulheres freqentando universidades. Assim, em Frankfurt, no sculo XIV, quinze mulheres estudaram medicina e exerceram a profisso, enquanto em Bolonha algumas mulheres formaram-se em Medicina e Direito.

Ainda no sculo XIV, uma escritora francesa, Christine de Pisan, torna-se a primeira mulher a ser indicado poeta oficial da corte. Pode ser considerada como uma das primeiras feministas, no sentido de ter um discurso conscientemente articulado em defesa dos direitos da mulher. Polemizou com escritores de renome na poca, defendendo a igualdade entre os sexos. Afirmou a necessidade de se dar s meninas uma educao idntica dos meninos: Se fosse costume mandar as meninas escola e ensinar-lhes as cincias, como se fazem aos meninos, elas aprenderiam da mesma forma que estes e compreenderiam as sutilezas das artes e cincias, tal como eles.

Viva aos 25 anos, Christine sustentou a famlia: me, dois irmos e 3 filhos, e manteve-se economicamente independente por sua profisso de escritora.

Escreveu o que seria talvez o primeiro tratado feminista: A Cidade das Mulheres, onde afirma serem homens e mulheres iguais por sua prpria natureza. Refuta as generalizaes que imputam inferioridade ao sexo feminino e condena a dupla moral, pela qual o mesmo ato crime quando praticado pela mulher e apenas pequeno defeito quando pelo homem.

Apesar da significativa participao da mulher na vida social e econmica da Idade Mdia, a idia que prevaleceu foi transmitida pelo romantismo da cavalaria: uma mulher frgil e indolente, entretida em bordados e bandolins, espera de seu cavaleiro andante. Esta imagem, que por um lado exclui a grande massa de mulheres at de uma representao simblica, por outro reflete uma viso distorcida do que seria o cotidiano da prpria castel. Existe, assim, uma defasagem entre a posio concreta da mulher na vida cotidiana e a representao simblica de seu papel.

A intensa participao da mulher no mercado de trabalho durante a Idade Mdia no lhe conferia prestgio social posto que, diferena do que acontecer no Renascimento e na Reforma, o trabalho, bem como as artes e o conhecimento cientfico, no eram ento considerados como valores em si, nem tampouco eram instrumentos da ascenso social. O poder, monoplio da nobreza e do clero, baseava-se na posse da terra e na ascendncia espiritural.

Ao fazer este breve relato da posio da mulher na Idade Mdia no se poderia deixar de comentar a perseguio que se abateu ento sobre ela e que ficou conhecida como a caa s bruxas. Neste perodo, essencialmente teolgico, a maldio bblica de Eva acompanharia mais que nunca a mulher. Se bem que exista uma contradio interna no pensamento da Igreja medieval no que concerne posio da mulher, oscilando entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, denegrida, o que prevalece na mentalidade eclesistica da poca e a formao e o triunfo do tabu sexual. Eva responsvel pela queda do homem, e considerada, portanto, a instigadora do mal. Esse estigma, que se propaga por todo o sexo feminino, vem a se traduzir na perseguio implacvel ao corpo da mulher, tido como fonte de malefcios.

A chamada caa as bruxas, verdadeiro genocdio perpetrado contra o sexo feminino na Europa e nas Amricas to pouco estudado e denunciado -, e que se iniciou na Idade Mdia, exacerbando-se no sculo XVI, incio do Renascimento, parte da herana de silncio que recobre a histria da mulher. As milhares de mulheres assassinadas e torturadas (para casa dez bruxas contava-se um bruxo) pouco despertaram a curiosidade dos historiadores. Cabe perguntar: se este genocdio tivesse sido perpetrado essencialmente sobre o sexo masculino, no seria ele objeto de anlises mais profundas?

A Inquisio no perseguiu to-somente a bruxaria. Tambm os hebreus, considerados hereges, foram duramente atingidos pelos tribunais eclesisticos. Esta perseguio, ao contrrio da que se abateu sobre a mulher-bruxa, foi registrada pela histria.

Existe, nessa perseguio s feiticeiras, um elemento claro de luta pela manuteno de uma posio de poder por parte do homem: a mulher, tida como bruxa, supostamente possuiria conhecimentos que lhe confeririam espaos de atuao que escapavam ao domnio masculino.

O prprio discurso cientfico est impregnado deste estigma. Ambroise Pare, mdico e cientista ilustre do sculo XVI, v no organismo feminino a prova da inferioridade da mulher: Porque o que o homem tem externamente a mulher o tem internamente, tanto por sua natureza quanto por sua imbecilidade, que no pode expelir e pr para fora estas partes. Acrescenta que os rgos sexuais femininos tornam as mulheres disformes e vergonhosas quando nuas e, em relao menstruao, afirma: Porque as mulheres so de temperatura fria, em relao aos homens, a sua alimentao no se transforma num sangue bom, tanto que a maior parte se torna indigesta e se transforma em menstruaes, das quais a mulher sadia se purga e se limpa. Franois Rabelais, outro grande mdico, adota idnticas posies, concluindo que o corpo histrico da mulher s pode conduzi-la desordem moral.

O discurso mdico vai de par com o discurso religioso no que se refere a tal perseguio. A medicina, neste momento, passa a instaurar-se como uma instituio masculina que advoga o monoplio do saber e do poder de cura. E o advoga pela perseguio prtica feminina do trato com hervas e do atendimento aos partos. Era a mulher, curandeira e parteira, secularmente encarregada da sade da populao, o principal concorrente a ser eliminado para o estabelecimento da hegemonia da medicina.

Cabe ainda ressaltar que o Tribunal da Inquisio se instaura no sculo XIV, quando profundas transformaes econmicas e polticas desestruturam as bases do modo de produo feudal, no qual, como foi dito, a mulher participava ativamente. Tais transformaes mercantilismo, a formao dos Estados Nacionais, a reintroduo do Direito Romano afastam a mulher da esfera pblica. Ao mesmo tempo, o poder eclesistico que se afirma pela Inquisio essencialmente masculino: progressivamente, a mulher se viu afastada da hierarquia e da atuao nos ritos desta instituio religiosa. Este alijamento no teria sido realizado sem resistncia por parte da mulher. Embora seja difcil recuperar os traos desta resistncia, dado o silncio que recobre este fenmeno, poder-se-ia supor que a busca pela mulher de outras formas de conhecimento e de atuao, castigada como bruxaria, caracterizaria sua revolta.

No que se refere ao discurso inquisitorial a estreita associao que este tribunal estabelece entre bruxaria e mulher se explicita pela atribuio de conotaes nitidamente sexuais aos ritos do sab culto ao demnio: nestes as mulheres copulariam com o diabo. pelo sexo que ela se faz bruxa, sexo este considerado, por natureza, impuro e malfico. Leonard de Vair, inquisidor, assim descreve, em 1583, a menstruao, no livro Trois Livres des Charmes, des Sorcelages et Enchantements:

Mensalmente elas se enchem de elementos suprfluos e o sangue faz exalar vapores que se elevam e passam pela boca, pelas narinas e outros condutos do corpo, lanando feitios sobre tudo que elas encontram.

As milhares de mulheres queimadas no se distinguiram das demais por possurem uma natureza diversa. Elas teriam, to-somente, exercido determinados malefcios que seriam inerentes a qualquer mulher. Era, portanto, a natureza feminina que ardia nas fogueiras que se acenderam pela Idade Mdia e o incio do Renascimento.

Se hoje queimamos as bruxas, por causa de seu sexo feminino.

Diz Jacques Sprenger, inquisidor e terico da demonologia, que publica, no final do sculo XV, um manual de base do caador de bruxas, o Malleus Maleficarum, no qual se remete aos textos sagrados para comprovar a inferioridade feminina. Afirma assim que:

A mulher mais carnal que o homem; vemos isto por suas mltiplas torpezas... Existe um defeito na formao da primeira mulher, pois ela foi feita de uma costela curva, torta, colocada em oposio ao homem. Ela , assim, um ser vivo imperfeito, sempre enganador.

Ao longo do sculo XVI se sucederam demonlogos lanando sobre a mulher a suspeita de satanismo. Um destes, Nicolas Remy, se jactava de haver mandado queimar 900 bruxas. O advento do protestantismo no significou uma queda nesta perseguio. Ao contrrio, tanto Lutero quanto Calvino aderiram mesma, apoiados na Bblia. Segundo alguns autores chegaram-se mesmo a se estabelecer uma competio entre as duas religies no que se refere caa as bruxas.

Jules Michelet, em Sobre as Feiticeiras, transcreve nmeros estarrecedores: por ordem de seu bispo, a cidade de Genebra queimou, no ano 1515, em apenas 3 meses, nada menos que 500 mulheres; na Alemanha, o Bispado Bamberg queima de uma s vez 600, e o de Wurtzburgo, 900. As confisses eram extradas sob tortura e mesmo contra qualquer evidncia, como afirma Michelet:

O processo simples. Comear por utilizar a tortura para as testemunhas ... Extrair ao acusado, custa de sofrimentos, qualquer confisso ... Uma feiticeira confessa ter roubado do Cemitrio o corpo de uma criana ... Desenterram-no e l o encontram dentro do caixo. O Juiz porm resolve, contrariando o que os olhos lhe dizem, que se trata de uma aparncia, um engano do Diabo ... Ela queimada.

No apenas as instituies da Inquisio e da medicina condenam a mulher. Discursos de intelectuais e humanistas, como Jean Bodin, tambm a estigmatizam como inferior e impura, contribuindo para a justificao ideolgica de sua desvalorizao.

No perodo renascentista, a posio da mulher sofre um retrocesso. Durante o feudalismo, era maior o seu espao de atuao poltica, posto que esta se realizava sobretudo a nvel comunal. A formao dos Estados Nacionais e o processo de centralizao do poder vai de par com o afastamento da mulher da esfera pblica.

Por outro lado, a reintroduo da legislao romana implicou numa reduo dos direitos civis da mulher. Surgem ento restries ao seu direito de adquirir bens por herana, reger seus prprios bens e representar-se na Justia.

Se durante a Idade Mdia a mulher atuou em praticamente todas as profisses, a partir do Renascimento determinadas atividades vo gradativamente tornando-se do domnio masculino, ao mesmo tempo em que as Corporaes de Ofcio se fecham participao feminina. justamente durante este perodo, quando o trabalho se valoriza como instrumento de transformao do mundo pelo homem, que o trabalho da mulher passa a ser depreciado. Alijada concretamente de determinadas profisses, tece-se tambm toda uma ideologia de desvalorizao da mulher que trabalha.

A pergunta que se coloca se, diante deste quadro, as mulheres deixaram de trabalhar. Tal no ocorreu, j que as necessidades materiais de sobrevivncia sempre exigiram que o fizessem.

A desvalorizao do trabalho feminino, traduzida concretamente na atribuio de menor pagamento mo-de-obra feminina que masculina, encontra sua lgica no processo de acumulao de capital, onde a superexplorao do trabalho da mulher (e do menor) cumpre funo especfica.

No houve portanto um afastamento da mulher da esfera de trabalho e sim formas prprias de sua incluso na mesma. Ela totalmente alijada de determinadas atividades, tal como o fabrico de cerveja, de velas, e os ofcios de serralheria e fundio. Ainda que permanea de forma significativa em determinados ramos de produo, como a indstria da seda e txtil em geral (em 1790 a mo-de-obra ocupada na indstria de l na Frana se distribua da seguinte forma: 45,6% de mulheres, 35% de crianas e 19,3% de homens), desempenha as atividades menos qualificadas e de mais baixa remunerao. Diante de tais empecilhos a sua participao no mercado de trabalho adquire faceta peculiar: a partir do sculo XVII e sobretudo no sculo XVIII contingentes cada vez maiores de mulheres passam a realizar trabalhos a domiclio, contratadas por intermedirios. Este tipo de trabalho ainda hoje largamente exercido pela mo-de-obra feminina, particularmente na indstria de confeco.

Vai de par com a valorizao da idia de trabalho ocorrida neste perodo, o respeito nascente pela cincia e a preocupao com a aquisio do conhecimento. No entanto, ao mesmo tempo em que se desenvolve a instruo masculina em vrios nveis, a educao da mulher sofre revezes, tanto no campo do preparo profissional, quanto no da formao intelectual. No se tem registro de mulheres freqentando universidades at meados do sculo XIX. Desaparecem as mulheres mdicas, cirurgis, advogadas. A obstetrcia, como um ramo do conhecimento cientfico ao qual s os homens tinham acesso, vem retirar das mulheres o monoplio da profisso da parteira, secularmente seu.

Ao mesmo tempo em que o ensino pblico e privado se expande na Europa, a defasagem entre o nmero de escolas masculinas e femininas enorme: em 1970, na Diocese de Rouen, por exemplo, a relao entre escolas para meninos e para meninas de 4 por 1. Tal defasagem se d no somente em termos quantitativos como tambm no que se refere qualidade do ensino ministrado. O currculo das meninas enfatizava o aprendizado das prendas domsticas e sua escolarizao no as preparava para o ensino superior, que, alis, sequer lhes era acessvel.

No de se estranhar, portanto, que as primeiras vozes de contestao feminina que a histria moderna registra se dirijam justamente contra a desigualdade sexual no acesso educao e ao trabalho.

O FEMINISMO COMO MOVIMENTO POLTICO

Primeiras vozes

Na Amrica o sculo XVII, que antecede a Revoluo, impregnado por idias de insubordinao e por mudanas concretas na organizao social do pas. Acelera-se o ritmo da atividade manufatureira, criam-se novas formas de organizao do trabalho, expande-se o comrcio. Vive-se, enfim, os primrdios do capitalismo, em um marco ideolgico impregnado pelas idias religiosas do puritanismo e pelo respeito crescente razo e cincia enquanto formas fundamentais de conhecimento.

neste contexto que surge a figura de Ann Hutchinson, uma das primeiras vozes de insurreio feminina que a Histria Americana registra. Profundamente religiosa, Ann congregou em torno de si uma comunidade que se reunia para ouvir as suas pregaes. Afirmava que o homem e a mulher foram criados iguais por Deus, contrariando assim os dogmas calvinistas da superioridade masculina.

Acusada de: Ter sido mais um marido que uma esposa, um pregador que um ouvinte, uma autoridade que um sdito (...) e de ter mantido reunies em sua casa, ... um fato intolervel diante de Deus e imprprio para seu sexo, foi condenada, em 1637, ao banimento. No sculo XVII, a idia de igualdade de direitos para a mulher, mesmo que to-somente a nvel do religioso, era ainda intolervel.

Marcado pela intensa participao das massas na esfera poltica, o sculo seguinte o sculo das revolues. As idias de liberdade do cidado frente ao arbtrio do Estado e a conscincia de que esta s se constri com a participao do indivduo na esfera poltica, se afirmam enquanto princpios da ideologia liberal, que encontram, na propriedade privada, sua base material.

Nos Estados Unidos, a luta pela libertao fez do princpio bsico da igualdade a expresso primeira de sua Declarao de Independncia: Todos os homens foram criados iguais. Temendo que o conceito de homem contido na Declarao abarcasse to-somente o sexo masculino, Abigail Adams escreve a seu marido, John Quincy Adams, lder da Guerra da Independncia, uma carta em que reivindica sejam estendidos a seu sexo aqueles direitos:

... Espero que no novo Cdigo de Leis ... vocs se lembrem das mulheres e sejam mais generosos que seus antepassados. (...) Se no for dada especial ateno s mulheres, estamos resolvidas a nos rebelar e no nos consideraremos obrigadas a cumprir leis, diante dos quais no temos nem voz, nem representao.

A resposta sarcstica de John Quincy Adams vem reafirmar a no incluso do sexo feminino (e de outras minorias) na idia de igualdade definida pela Declarao de Independncia:

Quanto ao seu extraordinrio Cdigo de Leis, eu s posso rir. Nossa luta, na verdade, afrouxou os laos de autoridade em todo o pas. Crianas e aprendizes desobedecem, escolas e universidades se rebelam, ndios afrontam seus guardies e negros se tornam insolentes com seus senhores. Mas a sua carta a primeira intimao de uma outra tribo, mais numerosa e poderosa do que todos estes descontentes (...) Esteja certa, ns somos suficientemente lcidos para no abrir mo do nosso sistema masculino.

O discurso de John Quincy Adams revela, com inusitada clareza, os limites da ideologia liberal conforme delineada naquele sculo de ascenso da burguesia. Ficavam excludos da idia de igualdade, de forma irreversvel porque em nome do sexo e da raa, fatores biolgicos insuperveis as mulheres, os negros, os ndios. A este contingente discriminado, adicionava-se tambm o homem branco de baixa renda, cuja excluso no era no entanto irremedivel j que, teoricamente, poderia ascender financeiramente e ter direito ao voto.

Na Frana, neste mesmo sculo marcado por revolues, a mulher, que participa ativamente ao lado do homem do processo revolucionrio, no v tambm as conquistas polticas estenderem-se ao seu sexo. neste momento histrico que o feminismo adquire caractersticas de uma prtica de ao poltica organizada. Reivindicando seus direitos de cidadania frente aos obstculos que os contrariam, o movimento feminista, na Frana, assume um discurso prprio, que afirma a especificidade da luta da mulher.

As mulheres revolucionrias francesas dirigem-se Assemblia, peticonando a revogao de institutos legais que submetem o sexo feminino ao domnio masculino. Reivindicam, assim, a mudana da legislao sobre o casamento que, outorgando ao marido direitos absolutos sobre o corpo e os bens de sua mulher, aparece-lhes como uma forma de despotismo incompatvel com os princpios gerais da Revoluo Francesa. Em 1789, apresentam Assemblia Nacional um documento no qual afirmam:

Destrustes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades das honrarias e, sobretudo, de sentar-se entre vs, a metade dos habitantes do reino. (...) Destrustes o cetro do despotismo ... e todos os dias permitis que treze milhes de escravas suportem as cadeias de treze milhes de dspotas.

Neste perodo, so publicadas inmeras brochuras sobre a situao da mulher, abordando os temas do trabalho, da desigualdade legal, da participao poltica, da prostituio. Esta atingia em Paris cifras assustadoras. Segundo registros, no final do sculo XVIII, para cada 5 mulheres solteiras, uma era prostituta.

Olympe de Gouges, escritora j conhecida na poca, por sua defesa dos ideais revolucionrios, sentindo-se profundamente decepcionada ao constatar que estes no incluam preocupaes com relao situao da mulher, publica, em 1791, um texto intitulado Os Direitos da Mulher e da Cidad, no qual afirma:

Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir o meu sexo? (...) Ele quer comandar como dspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. (...) Esta Revoluo s se realizar quando todas as mulheres tiverem conscincia do seu destino deplorvel e dos direitos que elas perderam na sociedade.

Parafraseando o discurso revolucionrio, diz:

A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. (...) Esses direitos inalienveis e naturais so: a liberdade, a propriedade, a segurana e sobretudo a resistncia opresso. (...) O exerccio dos direitos naturais da mulher s encontra seus limites na tirania que o homem exerce sobre ela; essas limitaes devem ser reformadas pelas leis da natureza e da razo.

O discurso de Olympe de Gouges no uma crtica aos princpios fundamentais do liberalismo. Ao contrrio, esta profundamente imbudo destes princpios e em nome do direito natural que exige sejam estes estendidos ao sexo feminino. Este discurso, que prope a insero da mulher na vida poltica e civil em condio de igualdade com os homens, tanto de deveres quanto de direitos, ser repetido durante todo o sculo XIX pelas feministas, na sua luta pelo sufrgio.

Olympe de Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793. A sentena que a condenou acusava-se de ter querido ser um homem de Estado e ter esquecido as virtudes prprias a seu sexo.

A ampla participao da mulher na vida pblica durante o perodo revolucionrio redigiram manifestos, mobilizaram-se em motins contra a carestia, participaram dos principais eventos da Revoluo, formaram clubes polticos reprimida por um decreto de 1795, da Assemblia Nacional, que a circunscreve ao mbito domstico:

Decreta-se que todas as mulheres se retiraro, at ordem contrria, a seus respectivos domiclios. Aquelas que, uma hora aps a publicao do presente decreto estiverem nas ruas, agrupadas em nmero maior que cinco, sero dispersadas por fora das armas e presas at que a tranqilidade pblica retorne a Paris.

Fecha-se assim, formalmente, o acesso da mulher participao na esfera pblica, de acordo, afinal, com as prprias idias de Rousseau principal idelogo da Revoluo para quem o mundo masculino seria, por natureza, o mundo externo, e o feminino, o mundo interno. Segundo Rousseau, a mulher deveria ser educada e encontrar sua realizao natural e colocar-se a servio do homem, desde a infncia at idade adulta:

Toda a educao das mulheres deve ser relacionada ao homem. Agrad-los, ser-lhes til, fazer-se amada e honrada por eles, educ-los quando jovens, cuid-los quando adultos, aconselh-los, consol-los, tornar-lhes a vida til e agradvel so esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes deve ser ensinado desde a infncia (Jean Jacques Rousseau).

Na Inglaterra Mary Wollstonecraft, defensora dos princpios rousseaunianos de respeito aos direitos naturais do indivduo, porm, levando estas idias de libertao s suas ltimas conseqncias destaca-se como uma das mais relevantes vozes da histria do feminismo. Denunciando as idias de Rousseau com relao mulher escreve, em 1792, um livro intitulado Defesa dos Direitos da Mulher. Nele, contesta que existam diferenas naturais no carter ou na inteligncia de meninos e meninas. A inferioridade da mulher, segundo ela, adviria unicamente de sua educao. Prope, portanto, que se oferea s meninas idnticas oportunidades de formao intelectual e desenvolvimento fsico que as existentes para os meninos.

Para que a humanidade seja mais perfeita e feliz, necessrio que ambos os sexos sejam educados segundo os mesmos princpios. Mas como ser isso possvel, se apenas a um dos sexos dado o direito razo? ... preciso que tambm a mulher encontre a sua virtude no conhecimento, o que s ser possvel se ela for educada com os mesmos objetivos que os do homem. Porque a ignorncia que a torna inferior ....

No sculo XIX, a consolidao do sistema capitalista trar conseqncias profundas tanto para o processo produtivo quanto para a organizao do trabalho como um todo, e para a mo-de-obra feminina, em especial. O sistema de produo manufatureira e, posteriormente, fabril, o desenvolvimento tecnolgico e a introduo cada vez mais significativa da maquinaria, vo afetar o trabalho feminino, transferindo para as fbricas tarefas antes executadas a domiclio, e aumentando enormemente o contingente feminino da mo-de-obra operria.

Compartindo com o homem as terrveis condies de trabalho vigentes naquele perodo, como jornadas de 14, 16 e at 18 horas, as mulheres (assim como os menores) sofrem ainda uma superexplorao advinda das diferenas salariais. Em Paris, os salrios femininos eram em mdia de 2,14 francos e os masculinos de 4,75; na Alemanha, na indstria do papel, os homens ganhavam de 18 a 20 marcos, e as mulheres, de 9 a 12; em Massachusetts, na indstria de calados, os salrios variavam de 37 dlares para as mulheres a 75 para os homens. A justificativa ideolgica para esta superexplorao era de que as mulheres necessitavam menos trabalho e menos salrios do que os homens porque, supostamente, tinham ou deveriam ter quem as sustentasse.

A deteriorao da formao profissional feminina, que vinha se processando a partir do Renascimento, vem delegar-lhe, em geral, as tarefas menos qualificadas e mais subalternas da produo fabril.

Por outro lado, a desvalorizao da fora de trabalho da mulher acarretava um rebaixamento do nvel salarial geral. Desta forma, movimentos operrios do sculo passado repudiaram o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, fechando-lhes as portas dos sindicatos recm-formados, vendo-as como concorrentes desleais.

Lderes operrias como Jeanne Deroin e Flora Tristan afirmavam a necessidade de que a mulher se educasse e se organizasse para defender seus interesses, procurando fazer com que as organizaes operrias masculinas compreendessem que estes eram comuns a toda a classe trabalhadora.

Jeanne Deroin, operria francesa autodidata, escreve em 1848 um Curso de Direito Social para as Mulheres, no qual pretende apontar s prprias mulheres a passividade por elas assumida:

A mulher, ainda uma escrava, permanece em silncio. (...) Subjugada pelo domnio masculino, ela nem sequer aspira sua prpria libertao; o homem que deve libert-la.

Lutando para que homens e mulheres se consagrassem em torno da sua condio operria comum, Jeanne elabora um projeto de uma Unio das Associaes de Trabalhadores, precursor da idia das futuras Federaes e Centrais Sindicais. Ao promover reunies para realizao desta Unio, Jeanne e seus companheiros foram presos. Apesar de ocupar posio de liderana naquele movimento, seus companheiros pedem-lhe que a oculte da opinio pblica, a fim de no desmoralizar o nascente movimento por uma liderana feminina. Jeanne dobra-se ao preconceito que tanto combatera, no assumindo a autoria do projeto.

Contempornea de Jeanne Deroin, destaca-se a figura de outra lder operria. Flora Tristan, que publica, em 1843, um trabalho intitulado Unio Operria. Planejava a criao de centros de organizao e educao moral, intelectual e tcnica do operariado, a que chamam Palcio dos Trabalhadores. Lutou, ainda, em 1844, pela organizao de uma Internacional do Trabalho. Em uma carta dirigida ao lder socialista Considrant, Flora reconhece ter todos contra si: Os homens, porque reivindico a emancipao das mulheres; os proprietrios, porque reivindico a emancipao do proletariado.

No sculo XIX, caracterizado pelos movimentos reivindicatrios e revolucionrios, estruturam-se as bases da teoria socialista. A partir da anlise das relaes de produo do sistema capitalista, entende-se a condio da mulher como parte das relaes de explorao na sociedade de classes. Neste sentido destaca-se a contribuio de dois autores: Friedrich Engels (A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado) e August Bebel (A Mulher sob o Socialismo). Engels baseia-se em estudos de relaes familiares em sociedades primitivas efetuados por antroplogos como Lewis Morgan. Contrapondo estas sociedades, em que a propriedade comunal, em que no existe aparelho de Estado e que seriam regidas por laos de parentesco matrilineares, s sociedades capitalistas, conclui que a base da inferiorizao da mulher encontra-se no surgimento da propriedade privada. Desta forma, o casamento e a sujeio da mulher surgiriam como garantia para a transmisso da propriedade (herana).

Apoiando-se nos argumentos de Engels, Bebel equipara a sujeio da mulher da classe operria no sistema capitalista, j que a causa comum: o surgimento da propriedade privada. Afirma assim que o poder de uma classe sobre a outra terminar e, com ele, terminar tambm o poder do homem sobre a mulher.

Atravs de uma luta constante por seus direitos, as mulheres trabalhadoras romperam o silncio e projetaram suas reivindicaes na esfera pblica.O avano das lutas operrias congrega homens e mulheres nas organizaes sindicais. Com eles as mulheres participaram das greves e, como eles, foram vtimas da represso. O dia 8 de maro, depois proclamado Dia Internacional da Mulher, faz parte desta histria de luta.

Em 8 de maro de 1857 as operrias da indstria txtil de Nova Iorque empreenderam uma marcha pela cidade, protestando contra seus baixos salrios e reivindicando uma jornada de trabalho de 12 horas. Violentamente reprimidas pela polcia, muitas tombaram presas e feridas. Passados 51 anos, no mesmo dia 8 de maro, em 1908, ainda na cidade de Nova Iorque, operrias novamente saem s ruas denunciando as mesmas condies degradantes de trabalho e acrescentando s suas reivindicaes a exigncia de legislao protetora do trabalho do menor e o direito de voto s mulheres. denncia da sua situao enquanto trabalhadoras acrescentam a denncia de sua excluso da participao nas decises pblicas enquanto cidads.

O movimento sufragista

O sculo XIX se caracterizou por duas frentes de luta do operariado: a luta por melhores condies de trabalho (salrio, reduo da jornada, repouso semanal, condies de higiene), e a luta pelos direitos de cidadania (o direito de votar e ser votado sem o critrio censitrio e a reivindicao de remunerao para os cargos do Parlamento, posto que, como estes no eram retribudos, somente os que tinham altas rendas poderiam desempenh-los).

O sufrgio universal foi uma das principais conquistas dos homens da classe trabalhadora no final do sculo passado, consolidada, depois de muita luta, por reformas legislativas que eliminaram o voto qualificado por renda.

A luta pelo sufrgio universal, pela ampliao dos direitos da democracia, no inclua, no entanto, o sufrgio feminino. Esta foi uma luta especfica que abrangeu mulheres de todas as classes. Foi uma luta longa, demandando enorme capacidade de organizao e uma infinita pacincia. Prolongou-se, nos Estados Unidos e na Inglaterra, por 7 dcadas. No Brasil, por 40 anos, a contar da Constituinte de 1891.

Mobilizou, nos momentos de pice das campanhas, at 2 milhes de mulheres, o que torna esta luta um dos movimentos polticos de massa de maior significao no sculo XX. Apesar disto, merece dos livros de Histria, quando no o silncio, apenas uns poucos pargrafos ou uma nota de p de pgina.

Iniciou-se o sufragismo, enquanto movimento, nos Estados Unidos, em 1848. Denuncia a excluso da mulher da esfera pblica, num momento em que h uma expanso do conceito liberal de cidadania abrangendo os homens negros e os destitudos de renda.

No sculo XIX, naquele pas, a luta pela abolio da escravatura mobilizou parcelas significativas de mulheres que, at ento, no havia, de forma to massiva e organizada, participado da esfera poltica. A conscientizao da submisso do negro trouxe-lhes, ao mesmo tempo, uma medida de sua prpria sujeio.

Apesar de ser sempre difcil estabelecer momentos iniciais para acontecimentos que fazem parte de processos histricos, cabe, no entanto, destacar a Conveno dos Direitos da Mulher convocada em Sneca Falls, no ano de 1848, como um dos marcos iniciais do movimento sufragista americano. Nesta Conveno foi redigida uma parfrase da Declarao da Independncia dos Estados Unidos, iniciando-se com a frase Acreditamos serem estas verdades evidentes: que todos os homens e mulheres foram criados iguais ....

Depois de intensos debates, foi aprovada, nesta conveno, uma moo que afirmava ser o dever de toda mulher americana a luta pelo sufrgio.

Desde ento repetiram-se as Convenes, os abaixo-assinados, as peties ao Congresso Nacional e s Assemblias Estaduais, para a reforma das Constituies Federal e Estaduais a fim de se permitir o direito de voto mulher. O movimento, que abrangeu 3 geraes numa luta incansavelmente retomada, adquiriu, nos ltimos anos da campanha, uma feio violenta, tendo as sufragistas sofrido inmeras prises. Somente em setembro de 1920 foi ratificada a 19 Emenda Constitucional, concedendo o voto s mulheres, terminando assim uma luta iniciada 72 anos antes.

Na Inglaterra, em 1865, John Stuart Mill apresenta ao Parlamento um projeto de lei dando o voto s mulheres. No ano seguinte, funda-se em Manchester o Comit para o Sufrgio Feminino.

Neste pas, a luta pela conquista do voto processou-se de forma semelhante americana, tendo no entanto se revestido em sua etapa final de caractersticas mais violentas.

O esforo para a organizao das diversas atividades era imenso: campanhas de mobilizao da opinio pblica, busca de apoio de parlamentares e partidos, passeatas, atos pblicos, abaixo-assinados. Todo este trabalho esbarrava frequentemente na indiferena e galhofa da maioria dos legisladores, obrigando a um eterno recomear da luta a cada nova legislatura.

Em 1903 funda-se, tambm em Manchester, a Womens Social and Political Union que, abandonando gradativamente estes mtodos tradicionais de atuao, passa a adotar, pressionadas pela prpria violncia do governo, uma prtica mais agressiva. As sufragistas interrompiam os comcios eleitorais perguntando aos candidatos se dariam voto mulher. Presas por desordem pblica, eram recolhidas na qualidade de presas comuns (e no polticas). Iniciou-se assim uma srie de prises e greves de fome em protesto. O Governo d ordem par que sejam alimentadas fora, por um mtodo doloroso introduo pela narina de um tubo de borracha at o estmago que constitua verdadeira tortura.

Por volta de 1913 o movimento sufragista ingls se divide nas suas tticas de luta, entre as pacifistas e as chamadas suffragettes que, radicalizando cada vez mais sua atuao, passam a efetuar atos de dano propriedade e bens materiais como forma de chamar a ateno para a causa.

O que as mulheres reivindicavam era to-somente um direito defendido, em tese, pelas idias liberais, e recusado, na prtica, por um governo composto pelo prprio partido liberal. S o alcanaram em 1928, como conseqncia de uma luta que se estendeu por mais de seis dcadas.

A luta pelo voto feminino no Brasil no teve as caractersticas de movimento de massas, como ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra. Iniciou-se bem mais tarde, em 1910, quando a professora Deolinda Daltro funda, no Rio de Janeiro, o Partido Republicano Feminino, com o objetivo de ressuscitar no Congresso Nacional o debate sobre o voto da mulher, que no havia sido retomado desde a Assemblia Constituinte de 1891.

Em 1919 Bertha Lutz funda a Liga pela Emancipao Intelectual da Mulher, posteriormente denominada Federao Brasileira pelo Progresso Feminino, organizao que levar adiante a luta pelo sufrgio.

As principais tticas utilizadas pela Federao so a do lobbying (presso sobre os membros do Congresso) e a divulgao de suas atividades pela Imprensa, para a mobilizao da opinio pblica. Em 1927, graas influncia do Presidente do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, este Estado inclui em sua Constituio um artigo permitindo o exerccio do voto s mulheres. A partir da intensifica-se a mobilizao das mulheres, que requerem, em todo o Pas, seu alistamento eleitoral, provocando acirrados debates jurdicos.

O direito ao voto foi sendo alcanado paulatinamente nos Estados. Desta forma quando, em 1932, Getlio Vargas promulga por decreto-lei o direito de sufrgio s mulheres, este j era exercido em 10 Estados do Pas.

Se o movimento sufragista no se confunde com o feminismo ele foi, no entanto, um movimento feminista, por denunciar a excluso da mulher da possibilidade de participao nas decises pblicas. Uma vez atingindo seu objetivo o direito ao voto esta prtica de luta de massas estava fadada a desaparecer. H assim uma desmobilizao das mulheres. Entretanto, o questionamento da sua discriminao prossegue, incorporando outros aspectos que configuram a condio social da mulher.

PARA ALM DO VOTO:

O MOVIMENTO FEMINISTA ATUAL

Sexo e cultura: o masculino e o feminino

Os anos de 1930 e 1940 representaram um perodo em que, formalmente, as reivindicaes das mulheres haviam sido atendidas: podiam votar e ser votadas, ingressar nas instituies escolares, participar do mercado de trabalho. O sistema social e poltico (tanto o capitalista quanto o socialista) absorvera, de alguma forma, estas conquistas, que implicam no reconhecimento de sua cidadania.

Nestas dcadas ocorre um refluxo na organizao das mulheres. Nos pases em que ocorre a ascenso do nazi-fascismo este refluxo pode ser tambm compreendido pelo forte esquema repressivo que abafava quaisquer outras formas de contestao social. Este perodo marcado pela preparao e pela ecloso de uma nova guerra mundial. Assim, a afirmao da igualdade entre os sexos vai confluir com as necessidades econmicas daquele momento histrico. Valoriza-se, mais do que nunca, a participao da mulher na esfera do trabalho, no momento em que se torna necessrio liberar a mo-de-obra masculina para as frentes de batalha. Tal processo se d, em particular, nos pases diretamente envolvidos no conflito, em especial os EUA e a Inglaterra.

com o final da guerra e o retorno da fora de trabalho masculina, que a ideologia que valoriza a diferenciao de papis por sexo, atribuindo condio feminina o espao domstico, fortemente reativada, no sentido de retirar a mulher do mercado de trabalho para que ceda seu lugar aos homens. As mensagens veiculadas pelos meios de comunicao enfatizam a imagem da rainha do lar, exacerbando-se a mistificao do papel da dona-de-casa, esposa e me. Novamente o trabalho externo da mulher desvalorizado, tido como suplementar ao do homem.

Simone de Beauvoir, escrevendo no final da dcada de 1940 o livro intitulado o Segundo Sexo, uma voz isolada neste momento de transio. Denuncia as razes culturais da desigualdade sexual, contribuindo com uma anlise profunda na qual trata de questes relativas biologia, psicanlise, ao materialismo histrico, aos mitos, histria, educao, para o desenvolvimento desta questo. Afirma ser necessrio estudar a forma pela qual a mulher realiza o aprendizado de sua condio, como ela a vivencia, qual o universo ao qual est circunscrita.

Simone de Beauvoir estuda a fundo o desenvolvimento psicolgico da mulher e os condicionamentos que ela sofre durante o perodo de sua socializao, condicionamentos que, ao invs de integr-la a seu sexo, tornam-na alienada, posto que treinada para ser mero apndice do homem. Para a autora, em nossa cultura o homem que se afirma atravs de sua identificao com seu sexo, e esta autoafirmao, que o transforma em sujeito, feita sobre a sua oposio com o sexo feminino, transformado em objeto, e visto atravs do sujeito.

A anlise de Simone de Beauvoir constitui um marco na medida em que delineia os fundamentos da reflexo feminista que ressurgir a partir da dcada de 60. assim que Betty Friendan, apoiando-se nos postulados tericos do estudo de Beauvoir, recolhe nos Estados Unidos uma srie de depoimentos de mulheres de classe mdia que corresponderiam ao ideal da rainha do lar.

Neste trabalho, publicado sob o ttulo A Mstica Feminina, detecta o que chamou de o mal que no tem nome e que se traduziria por uma frustrao constante e indefinida. Afinal, por que se queixavam aquelas mulheres, em suas cozinhas modernas, com seus carros na garagem, seus filhos saudveis, sua segurana econmica? Como encaixar esta insatisfao na auto-realizao que, teoricamente, deveriam sentir? Como conviver com uma frustrao que se torna mais evidente quando, em sua maturidade, a mulher v os filhos seguirem seu prprio caminho e a dimenso do vazio de suas vidas se alargar? Para Friedan, o papel tradicional da mulher que esta insatisfao questiona. Paralelamente a esses depoimentos, analisa a veiculao, pelas revistas femininas do ps-guerra, da ideologia que se oculta sob a mistificao da feminilidade e que prope como realizao plena da condio feminina a dedicao exclusiva vida domstica.

No final dos anos sessenta j estavam dados os primeiros passos na construo de uma teoria feminista. Kate Millet publica o livro Poltica Sexual, em que analisa historicamente as relaes entre os sexos, afirmando que o sistema patriarcal um sistema universal de dominao prevalente em todas as culturas, e que penetra as religies, leis, costumes de todas as civilizaes. Prope-se a fazer uma anlise poltica das relaes de sexo. Aborda, neste sentido, aspectos ideolgicos, biolgicos, sociolgicos, econmicos, antropolgicos e psicolgicos da condio da mulher no patriarcalismo.

Nesta mesma poca Juliet Mitchell publica A Condio da Mulher. Busca formular uma teoria que permita compreender tanto os aspectos gerais da discriminao de sexo quanto a sua especificidade nas diferentes classes sociais. Faz um histrico dos escritos sobre a mulher, afirmando em sua anlise que a liberao dever se dar nos quatro nveis que caracterizam a discriminao: as esferas da produo, da reproduo, da sexualidade e da educao.

No Brasil, tambm neste momento, Heleieth Saffioti publica A Mulher na Sociedade de Classes, em que faz uma anlise da condio da mulher no sistema capitalista, afirmando que esta no decorre unicamente das relaes econmicas, posto que se verifica tambm dentro da autonomia relativa das outras estruturas. O livro retraa a evoluo histrica da condio da mulher no Brasil. Trata-se de um trabalho pioneiro do ponto de vista da contribuio das cincias sociais ao estudo da mulher neste pas.

A partir da dcada de 60, o feminismo incorpora portanto outras frentes de luta pois, alm das reivindicaes voltadas para a desigualdade no exerccio de direitos polticos, trabalhistas, civis -, questiona tambm as razes culturais destas desigualdades. Denuncia, desta forma, a mstica de um eterno feminino, ou seja, a crena na inferioridade natural da mulher, calcada em fatores biolgicos. Questiona assim a idia de que homens e mulheres estariam predeterminados, por sua prpria natureza, a cumprir papis opostos na sociedade: ao homem, o mundo externo; mulher, por sua funo procriadora, o mundo interno. Essa diferenciao de papis na verdade mascara uma hierarquia, que delega ao homem a posio de mando.

A poltica, o sistema jurdico, a religio, a vida intelectual e artstica, so construes de uma cultura predominantemente masculina. O movimento feminista atual refuta a ideologia que legitima a diferenciao de papis, reivindicando a igualdade em todos os nveis, seja no mundo externo, seja no mbito domstico. Revela que esta ideologia encobre na realidade uma relao de poder entre os sexos, e que a diferenciao de papis baseia-se mais em critrios sociais do que biolgicos. Como afirma Simone de Beauvoir, no se nasce mulher, torna-se mulher. O masculino e o feminino so criaes culturais e, como tal, so comportamentos apreendidos atravs do processo de socializao que condiciona diferentemente os sexos para cumprirem funes sociais especficas e diversas. Essa aprendizagem um processo social. Aprendemos a ser homens e mulheres e a aceitar como naturais as relaes de poder entre os sexos. A menina, assim, aprende a ser doce, obediente, passiva, altrusta, dependente; enquanto o menino, aprende a ser agressivo, competitivo, ativo, independente. Como se tais qualidades fossem parte de suas prprias naturezas. Da mesma forma, a mulher seria emocional, sentimental, incapaz para as abstraes das cincias e da vida intelectual em geral, enquanto a natureza do homem seria mais propcia racionalidade.

Esta naturalizao que inferioriza um dos sexos um argumento tambm utilizado pelas teorias racistas. Os negros, os ndios, seriam por natureza inferiores e, como tal, deveriam ser mantidos sob comando, alijados da participao poltica, econmica e social. Da mesma forma, os tericos da discriminao de sexo apelam para a natureza da mulher para justificar sua posio social subalterna. Sendo ela, por natureza, um ser frgil e dependente, legitima-se a assimetria sexual. Este reducionismo biolgico camufla as razes da opresso da mulher, que fruto na verdade de relaes sociais, e no de uma natureza imutvel. O novo debate feminista demonstra que a hierarquia sexual no uma fatalidade biolgica e sim o fruto de um processo histrico e, como tal, pode ser combatida e superada. Sendo Histria, e no natureza, passvel de transformao.

No entanto, o discurso que afirma a naturalidade da discriminao est de tal forma internalizado, que difcil prpria mulher romper com a imagem de desvalorizao de si mesma por ela introjetada. Ela aceita como natural sua condio de subordinada. V-se, assim, atravs dos olhos masculinos, incorporando e retransmitindo a imagem de si mesma criada pela cultura que a discrimina.

A luta contra a discriminao implica, assim, na recriao de uma identidade prpria, que supere as hierarquias do forte e do fraco, do ativo e do passivo. Identidade esta em que as diferenas entre os sexos sejam de complementaridade e no de dominao. Em que fora e fraqueza, atividade e passividade no se coloquem como plos opostos definidores do masculino e do feminino, e sim como parte da totalidade dialtica, contraditria, do ser humano.

Sexo e poltica: as formas de organizao

O movimento feminista atual levantou a questo dos fundamentos da assimetria sexual, analisando a produo, internalizao e reproduo da ideologia de discriminao. Voltou-se, do mesmo modo, para a recuperao das formas de resistncia desenvolvidas pelas mulheres em diferentes culturas e que resultam muitas vezes no estabelecimento de formas alternativas de exerccio do poder. Tem sido relevante neste campo a contribuio da antropologia, que, analisando culturas especficas, procura descobrir que outras formas de exerccio de poder so desenvolvidas pelas mulheres apesar de seu afastamento da esfera formal de poder. Tal perspectiva importante porque supera o simplismo de anlises que colocam a mulher na condio nica de vtima passiva ao longo da histria.

A dcada de 60 caracterizou-se por intensa mobilizao na luta contra o colonialismo, a discriminao racial, pelos direitos das minorias, pelas reivindicaes estudantis. Estes movimentos ampliaram o campo do poltico, alargando a compreenso das contradies sociais para alm do estritamente econmico, revelando a existncia de outras formas de exerccio do poder. Tais movimentos trazem o individual para o campo do poltico, tornando-o coletivo, demonstrando que o ser social no se esgota na experincia de sua classe. No apenas por relaes sociais de produo que o indivduo est impregnado, mas tambm por relaes de sexo, raa, instncias estas que tambm se concretizam numa distribuio desigual de poder.

neste momento histrico de contestao e de luta que o feminismo ressurge como um movimento de massas que passa a se constituir, a partir da dcada de 70, em inegvel fora poltica com enorme potencial de transformao social.

Surgem assim inmeras organizaes que atuam como ncleos congregadores de grande nmero de mulheres. Desenvolvem atividades permanentes grupos de trabalho, pesquisas, debates, cursos, publicaes e participam das campanhas que levaram milhares de mulheres s ruas por suas reivindicaes especficas.

Frentes de luta

Apesar de que as frentes de luta do movimento feminista variam de acordo com o momento histrico e as caractersticas scio-econmicas e polticas do pas em que se desenvolvem, alguns temas tm sido levantados de forma generalizada por constiturem reivindicaes bsicas das mulheres. Estes podem ser agrupados grosso modo em algumas categorias:

Sexualidade e Violncia

Sade

Ideologia

Formao Profissional e Mercado de Trabalho

Sexualidade e violncia

A conteno exercida sobre a sexualidade da mulher a primeira forma de limitao de sua potencialidade. Apoiando-se no dado biolgico, a cultura enfatiza e supervaloriza a funo de reproduo, que passa a se confundir com a prpria essncia do ser mulher.

A segurana da paternidade depende do controle da atividade sexual da mulher. Este controle se atualiza em tabus e proibies sexuais que cercam o corpo feminino, impregnando a experincia concreta de vida da mulher. Sua referncia, seu modelo, no a liberdade, e sim a conteno. Em nome da hora da mulher estabelece-se um duplo modelo de moral, pelo qual se define sua sexualidade atravs da limitao, enquanto que a do homem definida pelo desempenho. A virgindade, a castidade, a passividade sexual, a carga de tabus e preconceitos, constituem os principais elementos socializadores da sexualidade feminina. V-se esta ainda submetida a orientaes governamentais, que decidem sobre o corpo da mulher, restringindo ou expandindo a sua reproduo atravs de polticas demogrficas. Assim, durante o nazi-fascismo incentivou-se a funo procriadora da mulher, que deveria dar muitos filhos ptria. Da mesma forma, manipula-se seu corpo com campanhas de contracepo, quando a poltica econmica assim o exige.

O movimento feminista denuncia a manipulao do corpo da mulher e a violncia a que submetido, tanto aquela que se atualiza na agresso fsica espancamentos, estupros, assassinatos quanto a que o coisifica enquanto objeto de consumo. Denuncia da mesma forma a violncia simblica que faz de seu sexo um objeto desvalorizado. Reivindica a autodeterminao quanto ao exerccio da sexualidade, da procriao, da contracepo. Reivindica, tambm, o direito informao e ao acesso a mtodos contraceptivos seguros, masculinos e femininos. Prope, principalmente, que o exerccio da sexualidade se desvincule da funo biolgica de reproduo, exigindo dessa forma o direito ao prazer sexual e livre opo pela maternidade. Neste sentido, advoga o aborto livre, e a ruptura com os moldes tradicionais em que o desempenho sexual da mulher vem sendo encerrado. A proposta do movimento feminista no a utilizao do aborto como mtodo contraceptivo, e sim como ltimo recurso ao qual as mulheres devem ter seu direito assegurado, no sentido de garantir que a maternidade seja o resultado de uma opo consciente e no de uma fatalidade biolgica.

Sade

Diretamente relacionado questo da colocao da mulher como sujeito de sua sexualidade, o movimento feminista voltou-se para o campo da sade, onde prope uma reapropriao do conhecimento do corpo. O desconhecimento da mulher sobre seu corpo gera uma alienao, uma perda da capacidade de controle sobre suas funes, tais como a menstruao, a reproduo, as relaes sexuais, o controle da natalidade, a menopausa, etc.

Pioneiro neste sentido foi o trabalho realizado em 1971 por um Coletivo de Mulheres de Boston, intitulado Nossos Corpos, Ns Mesmas: em linguagem simples e com ilustraes didticas, fornece informaes a respeito da anatomia e da fisiologia da mulher. Trata tambm do controle da natalidade, do aborto, da gravidez, parto e ps-parto, da menopausa, de doenas venreas. O livro traz, ainda, depoimentos de mulheres a respeito da vivncia de sua sexualidade: relaes hetero e homossexuais, bem como sobre os diversos aspectos da maternidade.

Esta frente de luta tem-se concretizado no apenas atravs de publicaes diversas, voltadas a compartir com a mulher este saber, mas tambm pela criao de clnicas de sade e grupos de auto-ajuda, em que a mulher informada e mobilizada para participar dos aspectos relacionados a seu corpo, sua sade.

Ideologia

Circunscrevendo a sexualidade feminina e determinando uma posio social inferiorizada para a mulher, existe todo um conjunto de idias, de imagens, de crenas, que legitima, perpetua e reproduz a hierarquizao de papis sexuais. Mascara, dessa forma, o seu contedo cultural em nome de aspectos naturais que se fundamentam na biologia.

O movimento feminista vem travando uma luta no sentido de denunciar os conceitos de masculino e feminino na sua oposio de superior e inferior. Esta hierarquizao entre o masculino superior e o feminino inferior uma construo ideolgica e no o reflexo da diferenciao biolgica. Esta diferenciao no implica em desigualdade.

A mesma ideologia que interdita o exerccio da sexualidade feminina, restringe as potencialidades do desenvolvimento da mulher, colocando-a, na prtica, numa posio desigual frente ao homem. Essa ideologia transmitida, desde muito cedo, pela famlia, escola, meios de comunicao, religio, literatura e outros agentes socializadores.

O movimento feminista procura, portanto, atravs de uma nova ao pedaggica, demonstrar como os livros didticos reproduzem a imagem tradicional da mulher e confirmam a diferenciao de papis tanto no lar quanto na esfera profissional: a mulher costura ou cozinha ou varre, o homem l o jornal; a mulher enfermeira ou secretria, o homem, mdico ou executivo. Demonstrar como as histrias infantis tambm reproduzem os papis diferenciados: a mulher passiva, espera que o homem, ativo, a salve; passivamente dada em casamento como prmio, sem que se cogite de sua vontade. Demonstrar como a publicidade refora esta diviso sexual dos papis sociais, alm de manipular o corpo da mulher enquanto objeto de consumo. O que se procura, em suma, denunciar, desvendar e transformar a construo social da imagem da mulher.

A prpria mulher desenvolve um papel importantssimo, enquanto me e professora, na transmisso desses valores tradicionais e, portanto, na sua perpetuao. Dessa forma, a superao do machismo na educao tem sido uma das principais metas do movimento feminista.

Formao profissional e mercado de trabalho

No to-somente na circunscrio ao mbito domstico que se atualiza a ideologia da feminilidade. Ela ultrapassa a porta da casa e se verifica tambm no tipo de formao e de atividade profissional da mulher. Demarca assim espaos femininos e masculinos no mundo externo. Determinadas carreiras ou funes seriam prprias mulher, na medida em que se adequariam sua natureza. No Brasil, por exemplo, o trabalho profissional da mulher concentra-se, majoritariamente, no setor de prestao de servios. Quer seja como empregada domstica, onde ela substitui outra mulher nas tarefas que seriam especficas ao seu sexo, quer seja nos servios de escritrio, no magistrio, na enfermagem, ela cuida, serve, atende, ensina. Tambm na atividade fabril, ela exerce frequentemente tarefas que exigem maior pacincia, mincia, imobilidade, sacrifcios que supostamente seriam melhor suportados pela mulher, tendo em vista suas qualidades intrnsecas. Um exemplo a grande utilizao da mo-de-obra feminina na indstria eletrnica, nas tarefas de maior preciso. A esta demarcao de funes corresponde uma desvalorizao de tarefas e uma diferenciao de nveis salariais entre homens e mulheres. Acrescentem-se ainda os obstculos que se contrapem sua ascenso profissional, resultando na ausncia quase completa de mulheres exercendo cargos de chefia, quaisquer que sejam as esferas de atividade.

Diante desse quadro, o movimento feminista tem colocado como bandeiras de luta: para funes iguais, salrios e direitos iguais; igualdade de oportunidades no acesso ao mercado de trabalho e ascenso e aprimoramento profissional. Todas essas bandeiras so parte do processo de conscientizao da mulher de seu prprio valor e da necessidade de que ela se coloque como agente da sua liberao.

Neste momento de busca e de transformao, em que os papis sociais-sexuais no esto ainda reformulados, as mulheres se vem assoberbadas pelo duplo papel que passaram a cumprir, assumindo com o homem o sustento da famlia, mas no partilhando com ele os encargos domsticos. verdade que j se vem tentativas individuais de estabelecimento de uma nova relao homem-mulher, mas estas experincias so ainda isoladas, no constituindo uma prtica social generalizada. Neste sentido, a luta estende-se tambm para a superao da dupla jornada de trabalho, que obriga a mulher a acumular os encargos profissionais e os de dona-de-casa. Reivindica-se, assim, basicamente, a diviso com o homem dos encargos domsticos; a criao de creches nos locais de moradia e de trabalho, e de servios pblicos que facilitem a realizao destas tarefas.

No que se refere ao trabalho domstico, uma srie de estudos vm colocando em questo as anlises tradicionais que afirmam ser o trabalho realizado na esfera domstica no produtor de valor social.

Grupos de reflexo

O movimento feminista atual trouxe ainda uma nova ttica de luta, surgida da prpria especificidade do movimento de mulheres. So os chamados grupos de reflexo ou de auto-conscincia, grupos pequenos e informais, constitudos unicamente por mulheres. Esta ttica desenvolveu-se espontaneamente. Surgiu pela necessidade de se romper o isolamento em que vive a maior parte das mulheres nas sociedades ocidentais, nuclearizadas em suas tarefas domsticas, em suas experincias individuais vividas solitariamente. A mulher constitui assim um espao prprio para expressar-se sem a interferncia masculina, para compreender-se atravs de sua voz e da voz de suas companheiras, para descobrir sua identidade e conhecer-se. Nestes grupos a mulher descobre que sua experincia, suas dificuldades, frustraes e alegrias no so isoladas nem fruto de problemas unicamente individuais mas, ao contrrio, so partilhadas por outras mulheres. A descoberta dessa experincia comum, a transformao do individual em coletivo, forma a base do movimento feminista. Partilhando com outras suas vivncias, a mulher reconhece a sua fora e conscientiza-se da dimenso poltica de sua vida particular. A definio da esfera domstica como mbito especfico do feminino e como espao no poltico, passa a ser questionada. Desmistifica-se a diferenciao entre o pblico e o privado, o poltico e o individual. Se o que era aparentemente individual e isolado se revela, na verdadae, como uma experincia coletiva, concretiza-se a possibilidade de luta e de transformao.

Seguindo os passos pioneiros de Simone de Beauvoir, so publicadas nestas duas ltimas dcadas inmeras obras feministas que analisam a especificidade da opresso da mulher, denunciando a totalidade e a generalidade da assimetria sexual para alm das diferenas de classe, raa, cultura, gerao.

necessrio esclarecer que esta perspectiva no implica em negar a relevncia de tais caractersticas na conformao do comportamento e da viso de mundo dos indivduos. O que ela enfatiza que a discriminao de sexo, mesmo que verificando-se diferentemente segundo a classe social, a raa, a cultura, ou a gerao, uma constante que se sobrepe e perpassa estas determinantes.

Grupos organizados

A partir da dcada de 60 multiplicaram-se os grupos organizados, que congregam as atividades do movimento feminista em torno de pontos comuns de ao. Tais grupos surgiram inicialmente nos Estados Unidos, e em seguida na Europa. Estas organizaes, que muitas vezes divergem quanto ao enfoque terico do feminismo, tm, em comum, o fato de se colocarem de forma autnoma frente aos partidos polticos. Isto porque a luta da mulher tem um cunho especfico que ultrapassa os limites das diferentes correntes polticas. O que no implica, no entanto, que o movimento feminista no atue ao lado daqueles partidos que tambm denunciam as desigualdades sociais e se propem a super-las. O movimento feminista trouxe para o interior dos partidos polticos a questo da mulher.

Nestas duas dcadas de intensa atuao o feminismo alcanou o status de um movimento de massas. Formando uma conscincia a respeito da importncia da transformao da condio da mulher, legitimou, desta forma, o debate em torna da questo, antes relegado a um plano marginal, tanto a nvel do poltico quanto do cientfico.

Algumas conquistas foram alcanadas. Sem pretender fazer um balano completo, pode-se destacar a legalizao do direito ao aborto nos Estados Unidos e vrios pases europeus; o estabelecimento de uma proporo mnima de mulheres em cargos do funcionalismo pblico e universidades nos Estados Unidos; a proliferao de departamentos de ensino e pesquisa universitrios voltados para o estudo da condio da mulher.

Uma experincia importante desse movimento tem sido a de concretizar a solidariedade entre as mulheres atravs da formao de centros de apoio, que adquirem as mais variadas feies, baseados fundamentalmente no trabalho voluntrio. Multiplicam-se, desta forma, espaos culturais livrarias, editoras, cursos, exposies de arte, simpsios, congressos, etc. que buscam a divulgao e o intercmbio da produo feminina em seus vrios aspectos. Criaram-se tambm Casas da Mulher, onde se desenvolve um trabalho de apoio (jurdico, mdico, psicolgico, cultural) e de conscientizao; clnicas de sade, onde a mulher encontra um atendimento ginecolgico e obsttrico voltado para a aquisio de um conhecimento de sua biologia, de sua sexualidade; centros de socorro (SOS- Violncia) onde a mulher, vtima de violncia fsica, encontra um suporte imediato.

Nestas duas dcadas houve uma significativa expanso da literatura cientfica e de fico a respeito da mulher. Multiplicaram-se os jornais e revistas, panfletos e outras publicaes feministas.

Para a grande parte das sociedades ocidentais o movimento feminista constitui hoje uma realidade e uma inegvel fora poltica.

Entretanto, talvez a fora maior, mais importante e menos aparente do movimento feminista esteja na semente de questionamento e de reivindicao que surge na conscincia das mulheres que, vivendo anonimamente o seu cotidiano, vm tentando transform-lo e recriar a sua relao com o mundo, com os companheiros, com os filhos, consigo mesmas.

O feminismo no Brasil

Depois de alcanado o direito ao voto, em 1932, houve tambm no Brasil um perodo de refluxo do movimento de mulheres, no apenas por caractersticas intrnsecas a este, mas tambm pela prpria conjuntura poltica que, a partir de 1937, incio do Estado Novo, impediu qualquer tipo de mobilizao popular de cunho reivindicatrio.

A partir de 1945 a democratizao dos pas incluiu um nmero significativo de mulheres nas campanhas nacionais, tais como a da anistia, a do petrleo e pela paz mundial. Alm disso, as mulheres se mobilizaram tambm nas Associaes de Bairro. Estas atividades no tinham no entanto um cunho propriamente feminista, mas marcavam, de qualquer forma, a presena da mulher na esfera pblica.

A partir de 1964, poca tambm de desmobilizao pelo golpe militar, no h espao para a organizao de movimentos populares. Algumas mulheres, no entanto, participam dos movimentos organizados de oposio ao regime, bem como das manifestaes e atos pblicos. , entretanto, num movimento especfico a luta pela anistia que sua presena na esfera pblica mais significativa. Em 1975 foi fundado em So Paulo o Movimento Feminino pela Anistia, que liga sua origem a movimento semelhante de 1945, e que primeiro levantou esta bandeira aps 1964. Em 1975, Ano Internacional da Mulher, promovida no Rio de Janeiro, por um grupo de mulheres, com apoio da ONU e da ABI, uma semana de debates sobre a condio feminina. Deste encontro foi fundado, neste mesmo ano, o Centro da Mulher Brasileira, no Rio de Janeiro e em So Paulo, que constitui um marco no sentido de se propor a atuar enquanto organizao especificamente feminista. Pouco depois, so editados dois jornais feministas: Brasil-Mulher (Londrina e posteriormente So Paulo) e Ns Mulheres (So Paulo). So tambm formados nesse momento grupos de reflexo.

Nestes primeiros anos o avano do feminismo foi lento e acompanhou a luta pela ampliao do espao democrtico no Pas. No final da dcada de 70 o feminismo, enquanto movimento organizado, expande-se consideravelmente, pela criao de novos ncleos em outros Estados, pelo surgimento de diversos grupos com enfoques e formas diferentes de atuao. Nos anos de 1980 e 1981 inmeros grupos foram formados por todo o Brasil, o que demonstra a vitalidade deste movimento. Surge em So Paulo o Mulherio, jornal que vem preencher a lacuna deixada pela suspenso da publicao do Ns Mulheres e do Brasil-Mulher. Os grupos dedicam-se s mais variadas tarefas: reflexo; publicao de folhetos sobre sexualidade, direitos da mulher, sade; pesquisas; grupos de estudos; cinema; teatro; SOS contra a violncia; Casa da Mulher, etc ...

semelhana do ocorrido nos Estados Unidos e Europa, tambm aqui os grupos feministas se colocam como organizaes autnomas, isto , sem vinculao formal com qualquer partido poltico.

Apesar de ainda no terem sido alcanadas mudanas seja na estrutura jurdica (no Brasil, o Cdigo Civil de 1916, inspirado no Direito Romano, identifica o status civil da mulher casada ao dos menores, silvcolas e alienados tornando-a portanto civilmente incapaz. Esta legislao esteve em vigor at 1962, quando foi revogada pela Lei 4121/62): modificao da condio subordinada da mulher casada, legalizao do aborto, e outras; seja na criao de infra-estrutura social de apoio me e criana; creches, escolas, sade; seja quanto aos direitos da mulher que trabalha: profissionalizao, igualdade salarial, acesso a cargos de responsabilidade o movimento feminista tem-se mobilizado em torno destas questes, trazendo a pblico este debate e denunciando a condio inferiorizada da mulher.

Uma das frentes de luta do feminismo no Brasil tem sido tambm a denncia da desvalorizao da mulher, manifesta nas mais variadas expresses da nossa cultura. A violncia fsica de que vtima freqente a mulher atualiza da forma a mais evidente esta desvalorizao. Assim, em todo o Pas, mulheres vm-se organizando em grupos de denncia a tais violncias e de apoio s suas vtimas. Tm sido fundadas, em diversos Estados, Casas da Mulher e SOS-Violncia, bem como grupos que desenvolvem trabalhos ligados preparao para o parto, centros de cultura, etc.

Nos ltimos anos ocorreu um recrudescimento da pesquisa sobre a condio da mulher, com a publicao de livros, artigos e revistas a este respeito.

Com a ampliao do espao democrtico surgem novas esferas de atuao. Embora sem um cunho especificamente feminista, no se pode deixar de mencionar a participao da mulher em Associaes de Bairro, de Donas-de-Casa, Clubes de Mes, etc., que marca a presena feminina na esfera pblica e significa uma conscientizao para seus problemas especficos e suas potencialidades.

O feminismo se constri, portanto, a partir das resistncias, derrotas e conquistas que compem a Histria da Mulher e se coloca como um movimento vivo, cujas lutas e estratgias esto em permanente processo de re-criao. Na busca da superao das relaes hierrquicas entre homens e mulheres, alinha-se a todos os movimentos que lutam contra a discriminao em suas diferentes formas.

INDICAES PARA LEITURA

1. Sullerot, velyne, A Mulher no Trabalho, Rio de Janeiro, Ed. Expresso e Cultura, 1970. A autora traa uma histria do trabalho da mulher, da Antiguidade at a poca atual. Trata-se de obra voltada para as lutas, conquistas e derrotas da mulher no mercado de trabalho.

2. Moreira, Alves, Branca, Ideologia e Feminismo, Petrpolis, Ed. Vozes, 1980. O livro retraa a histria do movimento sufragista nos Estados Unidos e no Brasil, comparando a ideologia do sufragismo e do feminismo atual.

3. Rosaldo, Michelle, Z. e Lamphere, Louise, Mulher, Cultura e Sociedade, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979. Trata-se de uma coletnea de textos antropolgicos onde, tanto atravs de resultados de pesquisas de campo quanto de anlises de aportes tericos da antropologia e da sociologia, discutida a categoria mulher em seus vrios desdobramentos: sexualidade, trabalho, poder.

4. Fundao Carlos Chagas, Cadernos de Pesquisa, n 15, So Paulo, Dezembro de 1975. Nmero especial sobre a mulher, dedicado a discusses sobre educao, e trabalho.

5. Saffioti, Heleieth, Emprego Domstico e Capitalismo, Petrpolis, Ed. Vozes, 1978. Atravs de uma pesquisa realizada em Araraquara, So Paulo, a autora analisa a condio scio-econmica e a ideologia da empregada domstica e da dona-de-casa.

6. Fundao Carlos Chagas, Vivncia, So Paulo, Ed. Brasiliense, 1980. Coletnea de textos que abordam questes relativas condio da mulher nos meios de comunicao, na sexualidade, na histria do Brasil ...

7. Belotti, Elena, Educar para a Submisso: O Descondicionamento da Mulher, Petrpolis, Ed. Vozes, 1975. A autora analisa o papel da educao na conformao da identidade social de meninos e meninas.

8. Grupo CERES, Espelho de Vnus, So Paulo, Ed. Brasiliense, 1981. A primeira parte do livro apresenta depoimentos de mulheres de diferentes idades e nveis scio-econmicos sobre etapas marcantes do ciclo de vida da mulher: menstruao, defloramento, gravidez, parto, menopausa. A segunda parte consiste em uma anlise destes depoimentos.

9. Maria Valeri Junho Pena: Mulheres e Trabalhadoras: Presena Feminina na Constituio do Sistema Fabril. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1981. A autora analisa a dinmica da mo-de-obra feminina no sistema fabril desde a sua constituio, no final do sculo XIX at a dcada de 1950. Articula esta dinmica no s lgica do capitalismo industrial mas tambm ao patriarcalismo.