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A. Celestino da Costa (1884-1956) ‘Notas’ de uma Experiência na Administração da Ciência em Portugal Tiago Brandão (IHC, FCSH-UNL) 1 Introdução Figura excepcional, no sentido de que encarna quase na perfeição a imagem de uma primeira geração de ‘homens de ciência’, com activa intervenção pública numa lógia clara de administradores de ciência, Augusto Pires Celestino da Costa (n. 16.04.1884 – † 26.03.1956) 2 teve uma acção marcante durante a primeira metade do século XX, sobretudo em Portugal – embora tenha de facto contactado com as principais figuras da ciência na sua época, da Espanha científica da geração de Santiago Ramón y Cajal, à França de Jean Perrin, circulando até aos 1 Doutorado e investigador do Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC, FCSH-UNL). Tese de doutoramento intitulada A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967-1974). Organização da Ciência e política científica em Portugal . Bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). 2 Augusto Pires Celestino da Costa (1884-1956) – Formado em Medicina pela Escola Médica de Lisboa em 1905, dedicou-se à investigação científica, sendo acompanhado e orientado por Marck Athias. Completou a formação em Berlim, entre 1906 e 1908, assumindo depois a cadeira de Histologia e Embriologia, por altura da criação da Faculdade de Medicina de Lisboa. Em 1929, assumiu a vice-presidência da secção de Ciências da JEN e, em 1934, foi nomeado presidente da Comissão Executiva da JEN, tendo sido ainda o primeiro presidente do Instituto para a Alta Cultura, em 1936. Em 1947 foi temporariamente afastado do ensino, em sequência da vaga de depurações académicas levadas a cabo pelo Estado Novo. A partir dessa altura dedicou quase toda a sua atenção à actividade científica, mantendo-se afastado de funções públicas de maior relevo. No início da década de 50 dirigiu ainda o Instituto de Investigações Endocrinológicas do IAC. Desde cedo se envolveu numa autêntica 'cruzada' pela organização da ciência em Portugal, nomeadamente defendendo a criação de uma entidade que promovesse e apoiasse a investigação científica em Portugal. 1

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A. Celestino da Costa (1884-1956)

‘Notas’ de uma Experiência na Administração da Ciência em Portugal

Tiago Brandão (IHC, FCSH-UNL)1

Introdução

Figura excepcional, no sentido de que encarna quase na perfeição a imagem de uma primeira

geração de ‘homens de ciência’, com activa intervenção pública numa lógia clara de

administradores de ciência, Augusto Pires Celestino da Costa (n. 16.04.1884 – † 26.03.1956)2

teve uma acção marcante durante a primeira metade do século XX, sobretudo em Portugal –

embora tenha de facto contactado com as principais figuras da ciência na sua época, da

Espanha científica da geração de Santiago Ramón y Cajal, à França de Jean Perrin, circulando

até aos Estados Unidos, mantendo estreitos contactos com a Fundação Rockefeller, e

igualmente visitando por diversas vezes capitais da América Latina.

Celestino da Costa, além de cientista e fundador de uma escola portuguesa de investigação

(histofisiologia), foi simultaneamente o apóstolo, o embaixador e reformador da Ciência

portuguesa na primeira metade do século XX. Foi um ‘gestor’ reformador, pelo entendimento

de que era preciso reformar e implementar políticas de organização da ciência. De facto,

enquanto gestor e administrador da Ciência portuguesa, durante os anos de 1920 a 1940,

Celestino da Costa serviu diversas instituições científicas.

Não sendo Celestino da Costa ainda o burocrata da ciência, esteve directa e activamente

envolvido na administração pública da ciência portuguesa, pelo menos a partir de uma visita a

Madrid (1916 – vide Costa 1951, 198; Costa 1918), promovendo a primeira agência

1 Doutorado e investigador do Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC, FCSH-UNL). Tese de doutoramento intitulada A Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (1967-1974). Organização da Ciência e política científica em Portugal . Bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).2 Augusto Pires Celestino da Costa (1884-1956) – Formado em Medicina pela Escola Médica de Lisboa em 1905, dedicou-se à investigação científica, sendo acompanhado e orientado por Marck Athias. Completou a formação em Berlim, entre 1906 e 1908, assumindo depois a cadeira de Histologia e Embriologia, por altura da criação da Faculdade de Medicina de Lisboa. Em 1929, assumiu a vice-presidência da secção de Ciências da JEN e, em 1934, foi nomeado presidente da Comissão Executiva da JEN, tendo sido ainda o primeiro presidente do Instituto para a Alta Cultura, em 1936. Em 1947 foi temporariamente afastado do ensino, em sequência da vaga de depurações académicas levadas a cabo pelo Estado Novo. A partir dessa altura dedicou quase toda a sua atenção à actividade científica, mantendo-se afastado de funções públicas de maior relevo. No início da década de 50 dirigiu ainda o Instituto de Investigações Endocrinológicas do IAC. Desde cedo se envolveu numa autêntica 'cruzada' pela organização da ciência em Portugal, nomeadamente defendendo a criação de uma entidade que promovesse e apoiasse a investigação científica em Portugal.

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portuguesa de política científica (a Junta de Educação Nacional, criada em 1929). Celestino

da Costa foi um cientista, e um cientista que fez escola, sendo por isso frequentemente

recordado pelos seus discípulos. (Morato 1985, 367; David-Ferreira 1985)

De facto, é de reconhecer “a posição chave que ocupou na ciência e na medicina portuguesas”

(Pereira 1985, 356), enquanto investigador e professor de cátedra em histologia e embriologia

pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Importa ter presente como os

médicos assumiram um papel na "direcção mental e social" do Portugal da transição do

Oitocentos para o Novecentos. (Garnel 2002, 213 e s.) Celestino da Costa pertenceu à

chamada “geração médica”, conhecida ainda pela designação simbólica de “Geração de

1911”, geração que preparara e orientara a reforma do ensino superior de 1911 no contexto da

implantação da Primeira República Portuguesa. (Costa 2000, 18 e s.)

Em primeiro plano, pode dizer-se que Celestino da Costa contribuiu para a expansão da

investigação biológica e das ciências naturais. (Costa 1985, 392) Num segundo plano, pode

falar-se, em relação à sua obra, numa “cruzada pela investigação científica”, que teve efeito

por meio de “múltiplas acções”: a) investigação original; b) escritos e discursos de promoção

e defesa de uma reforma simultaneamente educativa e científica, intervenções e textos com

uma lógica e coerência que vai além de meras ‘notas’ ou do simples depoimento de uma

experiência persistente e contínua na administração pública da ciência em Portugal; e c) uma

acção directa no seio de diversas instituições. (Costa 1985, 393) É nessa autêntica cruzada

que Celestino da Costa se tornaria, por exemplo, um interlocutor de António Sérgio, figura de

proa do Grupo Seara Nova. (Costa 1985, 3 e s. e 6)

E hoje o que nos importa, não é a sua produção científica, mas aquela literatura que decorreu

do desempenho de alguns cargos oficiais, ao longo da sua carreira, como vimos

simultaneamente académica, científica e pública. Destaque-se a direcção do Instituto de

Histologia e Embriologia, onde fez escola científica (Amaral 2006, 134 e s.), e, igualmente, a

presidência da Comissão Executiva da Junta de Educação Nacional (1934-1936) e, a partir de

1936, da Direcção do Instituto para a Alta Cultura (1936-1942), onde assumiu decisivo papel

nos primórdios das políticas de ciência no Portugal Contemporâneo.

No âmbito de uma história das políticas de ciência em Portugal, o papel de Celestino da Costa

foi, pode dizer-se, pioneiro. Por um lado, cedo defendeu Celestino da Costa, num ciclo de

conferências em Abril de 1918, a criação de um organismo semelhante à Junta para

Ampliación de Estudios y Investigaciones Cientificas, organismo espanhol de apoio à

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investigação científica criado em 1907. Esteve, portanto, Celestino da Costa no seio de uma

história de antecedentes que conduziram à criação da Junta de Educação Nacional em 1929.

Por outro lado, no contexto da sua acção no seio de organismos como a Junta de Educação

Nacional e o Instituto para a Alta Cultura, Celestino da Costa deixou-nos ainda importantes

documentos que são preciosas peças de política científica, em que se abordam questões como

a atribuição de bolsas de investigação para aperfeiçoamento de vocações científicas nacionais

no estrangeiro, a criação de uma carreira de investigador – independente, do ponto de vista

administrativo e científico, da carreira académica –, a modernização dos laboratórios,

institutos e centros de investigação ou ainda importantes aspectos relativos à articulação do

ensino superior e da investigação científica.

1. O contexto do debate

Antes, porém, Celestino da Costa fez parte de um “grupo de pressão” orientado por ideias de

cultura e de ciência, na sequência do ideário da geração de 70, do século XIX, que propalou a

regeneração da Pátria por via da cultura – uma geração que teve como figura ideal Antero de

Quental3, autor do texto sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. (Quental

1971; Costa 1985, 1 e s.)

É todo um diagnóstico que influenciará uma geração, um diagnóstico que apelava a toda uma

geração o caminho da revolução cultural... Em Agostinho de Campos, por exemplo, se

espelhará ainda esse conjunto de ideias que a chamada geração de 70 (anterior à geração de

Celestino da Costa) vinha defendendo. Por exemplo, sobre o problema da investigação em

Portugal, em concreto, o depoimento Agostinho de Campos4 vale a pena ouvir – figura parda

3 Antero de Quental (1842-1891) – Escritor e poeta, foi figura proeminente da ‘Geração de 70’ e um dos fundadores do Partido Socialista Português (1875) – o seu socialismo era influenciado por Proudhon. Fundou igualmente o Cenáculo, um grupo informal que reunia algumas figuras da literatura portuguesa da segunda metade do século XIX – eg Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Ficou célebre pelo seu envolvimento na Questão Coimbra (1865), sobretudo pela sua controvérsia com António Feliciano Castilho, afirmando-se a partir de então como líder do realismo português frente aos poetas e escritores românticos. Em 1871, junto com Eça de Queirós, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, planeja uma série de ‘Conferências Democráticas’, que eram realizadas no Casino Lisbonense – será na segunda série que apresenta a suas teses sobre as ‘Causas da Decadência dos Povos Peninsulares’ (1871), no fundo sistematizando a leitura da história de Portugal de Alexandre Herculano. Suicidou-se em 1891 devido a uma depressão.4 Agostinho Celso Azevedo de Campos (1870-1944) – Formado em Direito pela Universidade de Coimbra em 1892, dedicou-se ao ensino, primeiro como professor de língua portuguesa em Hamburgo e depois como professor de alemão no Liceu Central de Lisboa. Colaborou em diversos jornais e escreveu sobre pedagogia e literatura, entre outros temas. Já no final da monarquia, foi director-geral da Instrução Pública e vogal do Conselho Superior de Instrução Pública (1906 a 1910). Assumiu depois funções como catedrático de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em 1928 integrou a comissão nomeada por Duarte Pacheco, tendo em vista a elaboração do projecto que deu origem à Junta de Educação Nacional e de cuja direcção fez parte, nomeadamente como presidente da Delegação em Coimbra e vice-presidente da secção de Letras.

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da comunidade político-científica deste período – deixa-nos interessantes e mordazes palavras

sobre aquilo que denominava como o tema da “pobreza da investigação científica”:

«De quando em quando corre a voz de serra em serra:

- Não temos em Portugal investigação científica!

E há logo tanta tristeza à beira-mar, que parece não faltar mais nada senão

pormos alegremente mãos à obra.

Infelizmente fica sempre tudo como de antes. Procuram-se e proclamam-se as

causas – e por aí nos quedamos, sem curar de substituí-las por outras cousas que

produzam efeitos melhores.

As causas más são sempre as mesmas, e há as antigas e as modernas.

Entre as velhas causas figuram sempre na primeira fila os padres, os frades, o

concílio de Trento, a Inquisição, a expulsão dos Judeus, os Braganças, a

Companhia de Jesus.

As causas modernas encerram-se nesta: pagamento miserável aos professores.

Apetece perguntar o seguinte:

1.º - Se daqui por três ou quatro mil anos não tivermos ainda investigação, a

culpa continuará a ser da Inquisição, dos Jesuítas, dos Braganças, etc.?

2.º - Se se decretar que os professores recebem vinte vezes mais do que agora,

passará logo a haver em Portugal investigação por uma pá velha?

Este problema da falta de investigação tem o seu irmão gémeo, que é o famoso

analfabetismo; e os dois manos possuem catorze fôlegos, à razão de sete para

cada um.

Daqui podem concluir-se duas coisas:

Ou que os dois problemas não têm solução: Ou que nós nos contentamos com

falar neles, sem nenhuma capacidade ou nenhuma vontade de os resolver.»

(Campos 1937, 23-25)

E, adiante, Agostinho de Campos explicava mais:

«Confessemos sem hesitar as nossas culpas actuais e máximas: cobiçamos o

diploma, e não a ciência; educamos para o Estado, e não para a Grei; criamos

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em regra as escolas para os mestres, e não para os alunos; quantas menos

superioridades as exornam, mais pressa temos de condecorá-las com o título de

superiores; o honorífico prevalece em nós ao prático e a vaidade à sinceridade;

somos pobres, e adoecemos do delírio de grandezas; queremos ter tudo, em

sonhos; na realidade, contentámo-nos com muito pouco ou quase nada.»

(Campos 1937, 26)

2. Racionalidades do pensamento de Celestino da Costa

De facto, no pensamento de Celestino da Costa, o problema central da investigação científica

em Portugal residia na Universidade. A reforma de 1911, que criou duas novas universidades

em Lisboa e Porto não resolvera o problema, pois o problema não se resolvia por decreto...

(Costa 1918, 9). O problema era, por um lado, que «a investigação científica não contava

entre as missões» (Costa 1939, 1) dos estabelecimentos universitários e demais escolas

superiores, não sendo suficiente a retórica em letra de lei; mas igualmente, por outro lado, era

também a questão de ser necessário organizar uma dinâmica de prática científica no seio da

própria universidade.

De facto, apesar da reforma republicana, que em termos do discurso já filiava a missão da

Universidade à prática científica, a realidade não se havia alterado substancialmente... Logo

em 1918 Celestino da Costa dissera que «A verdadeira reforma tem de ser orientada sobre

bases inteiramente novas, não sobre simples melhoramentos de leis que no fundo conservem

as cousas como estão.» (Costa 1918, 8). Assim, a solução que se propunha era, então, a

criação de um organismo paralelo ao meio universitário que visasse, em particular, a

formação de investigadores, que viriam posteriormente a constituir a base de recrutamento do

corpo docente universitário. (Costa 1918, Costa 1930, Costa 1939)5 Como relembrou

Celestino da Costa em Relatório da Junta de Educação Nacional, o desenvolvimento da

investigação científica, por via do envio de bolseiros ao estrangeiro, tinha como finalidades

preparar os professores universitários, orientando a actividade mental dos professores para

a investigação científica... (Costa 1930, 1)

5 Em Celestino da Costa, a reforma da educação principiaria sempre pelo ensino superior, pois era a esse nível que se formariam os docentes dos outros graus do ensino, bem como os dirigentes e os técnicos necessários à sociedade. Comum a toda uma geração que leu Ramón y Cajal, a prática da pesquisa científica era a pedagogia central tanto para a formação da figura do investigador e do docente, como do cidadão, do técnico e do dirigente. (Costa 1918, p. 9)

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2.1. A problemática da Universidade

Podemos afirmar que existiu em Portugal uma tradição de reflexão sobre os “fins da

Universidade”. Desde Bernardino Machado6 a Celestino da Costa, passando por Sobral Cid7,

para chegarmos até a figuras interventivas na política portuguesa dos anos 50 e 60, como

Leite Pinto8 e o próprio Galvão Teles9. Há todo um conjunto de reflexões de personalidades

nacionais sobre a questão da Universidade, dos seus fins e do seu papel, e passando

naturalmente pela sua reforma.

Sem querer alongar-me numa exposição exaustiva destas diferentes figuras, lembro as

palavras com que Sobral Cid (em 1907), em sintonia com o ideal ‘humboldtiano’, apontou o

caminho da regeneração da universidade: «assente na dupla base – autonomia corporativa e

livre investigação científica – por forma a desempenhar a sua tríplice função: preparar o

profissional para a carreira, o cidadão para o Estado e o homem para a Ciência.» (Cid 1908,

328)

6 Machado, Bernardino (1851-1944) – Bernardino Machado foi sem dúvida uma das mais importantes figuras da intelectualidade nacional no último terço do século XIX, pertencendo à chamada Geração de 70 e encarnando o ideário dessa intelligentzia que se destacou pelo seu pensamento eminentemente pedagógico. Bernardino Machado teve porém a particularidade de ter sido a figura que maior projecção política teve dentro dessa profícua geração. Com o advento da República, abre-se outra fase da vida política activa de Bernardino Machado. Foi ministro dos negócios estrangeiros, do governo provisório (de 5-X-1910 a 3-X-1911). Foi deputado às Constituintes em 1911 e membro do primeiro Senado da República. Foi presidente do ministério e ministro do interior (de 23-VI a 11-XII de 1914). Em 1912 foi nomeado ministro de Portugal no Rio de Janeiro e mais tarde embaixador. Chamado a Portugal, a fim de organizar governo, foi, em 6 de Agosto de 1915, eleito presidente da República, vindo a ser deposto pela revolução de 8 de Dezembro de 1917, chefiada por Sidónio País. Só em 1925 voltou Bernardino à presidência, de que foi definitivamente apeado pela revolução de 28 de Maio de 1926, seguindo então para o exílio.7 José de Matos Sobral Cid (1877-1941) – Formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, tendo sido professor desta Universidade. Em 1911 foi transferido para a nova Faculdade de Medicina de Lisboa, ficando aí encarregado da nova cadeira de Psiquiatria Forense. Trabalhou no Hospital de Rilhafoles (Manicómio Bombarda) sob a orientação de Júlio de Matos. De 9 de Fevereiro a 22 de Junho de 1914 sobraçou a pasta da Instrução Pública num ministério presidido por Bernardino Machado. Sobral Cid deixou importante obra, em especial no ensino da patologia mental. Foi continuador da tradição psiquiatra de Júlio de Matos e, assim, grande responsável pelo desenvolvimento ulterior da Medicina Mental portuguesa. Além dos inúmeros trabalhos de psiquiatria, também abordou questões do ensino e da cultura.8 Francisco de Paula Leite Pinto (1902-2000) – Pelo seu pensamento e acção, deve ser visto como uma figura central na promoção de uma política científica em Portugal. Tendo sido bolseiro da Junta de Educação Nacional no início dos anos trinta (1929-1934), em Paris, veio a adquirir influência nos circuitos da administração pública do Estado Novo. Devido à sua acção acabou por ser criada, na Presidência do Conselho, em Julho de 1967, a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), organismo que se propunha coordenar a investigação científica nacional. Foi nomeado primeiro presidente desta Junta coordenadora, abandonando a presidência da Junta de Energia Nuclear e depois a Fundação Gulbenkian. Depois de 25 de Abril de 1974 retira-se para França e para o Brasil.9 Inocêncio Galvão Teles (1917-2010) – Foi advogado e professor da Faculdade de Direito de Lisboa. Licenciou-se em Direito em Julho de 1939 e em 1940 doutorou-se em Ciências Jurídicas. Chega a professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, em 1945, após concurso de provas públicas. Foi director da Faculdade Direito da Universidade de Lisboa (1956), procurador à Câmara Corporativa e membro da comissão incumbida da elaboração do novo Código Civil Português. Terá sido membro de uma Comissão Permanente do Instituto de Alta Cultura. Foi ainda advogado principal de Portugal na acção por este intentada contra a União Indiana, no Tribunal Internacional de Justiça, de Haia, sobre a chamada “questão de Goa”. Como Ministro da Educação Nacional (1962-1968) devem-se-lhe algumas importantes iniciativas no quadro da política educativa e científica do País.

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Celestino da Costa, por seu lado, colocava claramente a criação de ciência no centro da

equação, ao falar sobre o problema da reforma da universidade portuguesa. Desde logo, a

reforma da universidade segundo o modelo alemão era o eixo da reforma educativa.

«É necessário animá-las de espírito científico e dar-lhes os recursos

necessários. (...)

Temos de encarar o ensino superior por uma forma inteiramente diferente da

que tem sido a norma. O professor deve ter em vista o trabalho científico e

orientar nesse sentido o seu ensino. (...)

Assim encarado, o ensino superior é a base do progresso dos povos. Sem ele

não pode haver o ensino técnico em boas condições, nem um perfeito ensino

secundário.» (Costa 1918, 36)

No essencial a reforma da universidade passava por “animá-las de espírito científico” – além

da importante questão dos recursos materiais. Outro aspecto era o lugar central que a reforma

universitária teria em todo o sistema educativo, pois era a partir da formação de professores

na “prática da investigação científica” que se criariam “os mestres do ensino” secundário e

primário e, igualmente importante, do ensino técnico.

«A Nação deve compreender a importância primacial que esse ensino pode ter no

seu desenvolvimento. Sem ensino superior será impossível formar os mestres do

ensino liceal, sem ensino superior não terá bases sólidas o ensino técnico. O

problema do ensino superior deve ser uma questão nacional visto que interessa à

solução da maior parte dos problemas nacionais. (...)» (Costa 1918, 9)

Mais dizia:

«As reformas têm de começar de cima porque são as Escolas Superiores as que

formam os mestres do ensino secundário influindo portanto na formação dos do

ensino primário e porque é no ensino superior que se devem fazer muitos dos

futuros mestres das Escolas Técnicas, mesmo das Superiores. Pretender reformar

o ensino primário e o secundário sem ter um bom ensino superior é um erro

social e político de consequências funestas para a causa do ensino. (…).» (Costa

1918, 88)

Segundo Celestino da Costa, a ausência deste ‘espírito’ e sobretudo a ausência de uma

dinâmica de investigação científica no seio da Universidade tinha determinadas

consequências:

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«A única maneira de aprender uma ciência é a prática da investigação científica.

O processo de estudar sobre livros, até os virar, à maneira coimbrã, de ler

revistas sobre revistas dá uma cultura mnemónica e teórica, descuidando a

habilidade técnica e as qualidades de observação. Quem estuda só assim fica

ignorante no domínio dos factos, só conhecidos por descrição alheia, sem os

elementos indispensáveis de critério para julgar das descobertas que os outros

fizeram, (...)» (Costa 1918, 43)

A ideia de Celestino da Costa, e da geração médica de 1910, era que a prática científica era

por si só formativa, mas formativa para desígnios concretos, como o prestígio do país, a

formação de técnicos e a formação de professores para os diversos graus e ramos do ensino.

Para esta geração, a ciência era uma prática de pesquisa e não apenas a transmissão dogmática

de resultados dessa pesquisa. Os desígnios da investigação em Celestino da Costa eram então

os seguintes:

«Impõem-no: 1.º o prestígio do país que deve ter o seu lugar entre os povos

civilizados e mostrar-se capaz de estudar e explorar os recursos do seu vasto

império colonial; 2.º a necessidade de preparar os técnicos que dirijam as suas

indústrias e explorações e exerçam as várias profissões que requerem sólida e

especializada preparação científica; 3.º a necessidade, também, de preparar os

futuros professores do ensino superior (e de outros ramos) os quais além de saber

ensinar os elementos de ciência devem ser seus estudiosos e capazes de a fazer

progredir» (Costa 1939, p. 8 e s.)

O chamado ethos (o conjunto dos valores, da ética e dos hábitos) inerente à prática da

investigação encontra-se presente em toda uma geração de médicos portugueses que leu e

absorveu Santiago Ramón y Cajal. Com efeito, este é um aspecto que já encontramos também

em Celestino da Costa, onde a Universidade devia garantir não só a formação de docentes

para os outros graus do ensino, mas sobretudo que esses docentes se deviam formar na

condução de pesquisa científica.

Na esteira de Ramon y Cajal (1897)10, reconheceu-se uma ética inerente à prática da

investigação científica, e se não era explicita essa interpretação que viria a colocar em relação

cultura científica e formação individual, elaborando-se já sobre o tipo do investigador e até

dos técnicos para a indústria – retirando-se consequências de tipo de uma formação cultural,

10 Lido por toda uma geração, é em Santiago Ramón y Cajal que originalmente encontramos muitas aspectos do pensamento de Augusto Celestino da Costa.

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como em Jaspers ou em leituras mais ideológicas como Leite Pinto e Galvão Teles,

eminências do regime autoritário português dos anos 50 e 60.

*

Deste modo, face aos problemas expostos, do ensino superior e à necessidade de afirmar um

lugar para a Ciência a esse nível, emergiu então a exigência de criação de um organismo

independente da Universidade, da burocracia e da política, colocado paralelamente à própria

Universidade, que, por seu lado, devia também tolerar a existência de centros e institutos de

investigação, criados na sua órbita mas dependentes de um órgão autónomo de organização e

política científica. (Costa 1918, 68)

Abriu-se aliás aqui um debate sobre o modelo de organização da ciência, como se comprova

pela as reacções negativas da própria Universidade face à existência deste tipo de agência de

política científica. Lembremos o próprio Agostinho de Campos, que falara em «Tolerar o

inevitável: que as escolas superiores continuem a ser (como têm sido e as exige o ambiente

social) estabelecimentos de preparação para as carreiras utilitárias. E entregar a função

investigadora e criadora de ciência a institutos especiais, escrupulosamente dotados de

pessoal, largamente dotados de material de trabalho» (Campos 1937, 26). A esta posição

contrapôs-se, com efeito, a posição de outros que entendiam que era à Universidade que se

deviam conceder esses recursos e a autonomia desejável para conduzir a sua própria

organização científica.

2.2. Idiossincrasias do ‘homem de ciência’

Ao olhar os seus mestres, por exemplo, Celestino da Costa procurava o ideal do cientista,

‘sempre indiferente à política’ e ‘estranho às intrigas’, laborando desinteressadamente pelo

avanço e alargamento do património da ciência e da humanidade, e em honra do seu próprio

povo (citando Brachet – Costa 1948, 147), esse ‘amor pela ciência’ e a “vontade de a fazer

progredir pelo trabalho dos portugueses” (Costa 1935, 10).

O ideal de relação com a política perpassa também na apreciação de Celestino da Costa

relativamente ao seu mestre, por exemplo:

«Foi essa época de considerável agitação política neste país. Athias nunca se

ocupou de política, nem militou em qualquer partido; embora, como bom

patriota, se interessasse pela marcha das coisas. Sentiu, porém, grande desgosto

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com o assassino do Rei D. Carlos, que tivera ocasião de conhecer pessoalmente

quando fora, com França, convidá-lo para Presidente honorário da Sociedade de

Ciências Naturais, ficando encantado com a grande inteligência do soberano, boa

cultura naturalista, conhecimento das coisas da ciência – como é infelizmente

raro encontrar nos homens de Estado –, bom senso e interesse sincero pela dita

Sociedade e pelas ciências naturais. Mas este sentimento de Athias era

meramente de ordem pessoal e sem qualquer significação política.» (Costa 1948,

156)

Curiosamente – e não por acaso –, esta idiossincrasia do ‘homem de ciência’ e, no fundo, da

própria Ciência, encontrava sintonia com o alinhamento da revista brasileira Ciência e

Cultura, nos anos 50, que pertencia à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

(SBPC), que se definia então ‘sem cor política ou religiosa’.

No momento desse texto de Celestino, publicado no Brasil, nesse período significativo do

segundo pós-guerra, de facto, no momento em que este artigo surge na revista da SBPC, o

discurso era não só de defender o cientista como o principal responsável pelo progresso, como

por exemplo em Walter O. Cruz11, do Instituto Oswaldo Cruz, veicular este entendimento de

que «... a predominância (de um povo) entre as civilizações dependerá do modo de se

considerar ou não (o cientista) como o principal artesão do progresso.» (Valla & Silva 1981,

24) Todavia, pessoalmente fica visível, por exemplo, que este ‘cientista herói’ não é tanto

presente em Celestino da Costa como naquilo que se pode perceber da revista brasileira

Ciência e Cultura...

De resto, este ideário propalado publicamente pela comunidade de pesquisa brasileira, neste

período do segundo pós-guerra (1949-1955), em que se criaria, por exemplo, o CNPq (1951),

voltava a coincidir com outra noção que vimos em Celestino da Costa e sua geração em

Portugal, em particular a ideia de apresentar o Brasil perante o cenáculo das demais nações

cultas. (Valla & Silva 1981, 18)

11 Walter Oswaldo Cruz (1910-1967) – Médico e pesquisador, aprendendo com Carlos Chagas, no Instituto Oswaldo Cruz. Um dos fundadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1949, esteve igualmente envolvido na campanha de criação do Ministério da Ciência brasileiro e da Universidade de Brasília, em 1960. Foi também mentor da Reforma Universitária de 1962 e 1963. Foi vítima de perseguições durante a Ditatura Militar (1964).

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Os anos 50 marcaram sem dúvida uma época de maior fôlego do internacionalismo científico.

Por exemplo, Carlos Chagas Filho12 em determinado momento dissera mesmo, na linha do

que Celestino da Costa também poderia argumentar:

«...a Ciência não é humana nem desumana, não é moral nem amoral, é apenas

um instrumento criado pelo poder do homem e posta ao seu serviço. É preciso em

nossos dias evitar que a ciência se torne uma arma do governo ou um braço das

potências econômicas. É preciso que haja um livre comércio de idéias e dos

descobrimentos científicos como da poesia e da música.» (cit. In: Valla & Silva

1981, 25)

Fosse ou não uma posição mais ou menos elitista, a circunstância aqui no Brasil era

semelhante àquela que preocupou Celestino da Costa toda a vida: “a pesquisa é aceita em

nossas universidades (...) como um atividade subsidiária, mais ornamental do que

fundamental.” (palavras de Carlos Chagas Filho cit. In: Valla & Silva 1981, 25)...

Apesar da percepção possivelmente ‘elitista’ e eventualmente alheada, ficava no editorial da

revista Ciência e Cultura uma outra visão partilhada com Celestino da Costa. Isto é, uma

noção de que a ciência não devia ser apenas importada:

«Para muitas pessoas altamente situadas nas administrações dos países da

América Latina, ciência... deve ser importada de centros mais inteligentes e

industriosos... será mais cômodo, ou mais barato adotarmos a atividade

colonial... em troca de hortaliças e matéria-prima bruta... deixamos ao abandono

problemas vitais que só poderiam ser resolvidos desde que se (implantasse) no

país o verdadeiro espírito da investigação científica...» (cit. In: Valla & Silva

1981, 16)

Já Celestino da Costa, dizia em termos que se aproximavam desta leitura, ainda tão actual:

«A nossa indústria, apesar dos seus progressos, não passou ainda da fase de

imitação de assimilação do que vem do estrangeiro, faltam-lhe os laboratórios de

investigação, únicos capazes de fazer surgir uma nova descoberta, um novo

método uma nova indústria e os laboratórios que uma ou outra mantêm não

12 Carlos Chagas Filho (1910-2000) – Filho de Carlos Chagas (1878-1934), médico sanitarista do Instituto Oswaldo Cruz que estudou a doença de Chagas. Especializado em medicina biológica, com carreira científica e académica, assumindo a direcção do Instituto de Biofísica. Veio a participar do Conselho Deliberativo do recém criado CNPq, em 1951. Será ainda representante do Brasil na UNESCO, parte do Comité de Pesquisa da Organização Pan-Americana de Saúde (1962-1963) e presidente do Comité Especial das Nações Unidas para Aplicação da Ciência e Tecnologia ao Desenvolvimento. Em 1966 foi embaixador do Brasil junto da UNESCO e em 1965 a 1967 foi presidente da Academia Brasileira de Ciências.

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passam de modestas oficinas de ensaios e verificação, onde apenas se procuram

soluções imediatas com rendimento assegurado. (...) conformando-se os seus

engenheiros com aplicar o que lá fora se faz de melhor, condenando assim a

indústria nacional, em matéria de invenção, a uma situação parasitária.

Esperemos que um dia os nossos industriais se resolvam a promover as pesquisas

científicas sobre os mesmos princípios em que qualquer ciência deve ser

estudada, isto é com mira na descoberta de novos princípios, de novas verdades,

embora sempre atentos ao que for sendo susceptível de aplicação prática; nunca

porém com este único objectivo, o que paralisa a investigação original (...)»

(Costa 1951, 205)

O recurso à ciência de facto tem relação com o grau de conservadorismo dos produtores, mas

depende igualmente da vantagem comparativa com outros métodos de rendibilidade. A

história da indústria, de facto, tem mostrado que a mudança tecnológica é apenas um dos

factores do crescimento industrial (localização, capacidade de produção, financiamento,

escolha dos fornecedores de equipamento, formação de pessoal, etc.). Evidentemente que ao

sector privado nunca interessou investir em pesquisa enquanto a relação com os custos de

produção não o justificasse... Isto é: a produtividade resulta de um coeficiente da produção em

função dos factores de produção (capital, investimento, matérias primas, o problema da

normalização, o clima social, as relações humanas, o ensino técnico, etc., etc.)... sendo a

inovação tecnológica e a invenção tecno-científica apenas um destes factores... Parece então

evidente que os países de capitalismo periférico tenham conseguido engendrar outras formas

criar mais valia relativa que não por meio da inovação...

ConclusõesRecapitulando, este sentido de intervenção pública e cívica, quase romântico e

tendencialmente idealista, encontrava-se já presente nesta ‘geração médica’ – por exemplo,

Marck Athias, mestre de Celestino da Costa, estivera envolvido na Liga de Educação

Nacional, uma iniciativa de Reis Santos e José de Magalhães. (Costa 1951, 197) A Liga foi

uma agremiação de várias individualidades do escol activo da sociedade portuguesa, cujo fim

seria integrar Portugal na civilização moderna. (Costa 1948, 157)13

13 A sua actuação limitou-se a promover conferências e sessões de estudo. Segundo Celestino da Costa, no seio da Liga de Educação Nacional relançou-se mesmo a ideia de uma Universidade em Lisboa... (Costa 1948) Como disse Celestino da Costa, se não alcançou resultados práticos, lançou certas ideias... (Costa 1951, 197)

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O que parece então marcar esta primeira geração de administradores de ciência é i) uma

espécie de idealismo romântico, donde decorre ii) defesa de uma certa neutralidade do

‘homem de ciência’ e, por consequência, iii) um insistente distanciamento relativamente à

política, não obstante iv) uma crítica moderada relativamente ao alheamento do Estado e,

acima de tudo, v) uma visão esclarecida, simultaneamente crítica e construtiva sobre a

organização da ciência e os mecanismos de promoção da investigação científica e

consequentes políticas de ciência, apelando inclusive à cultura histórica.

Ao longo da sua longa carreira foram muitas as instituições que serviu. E nas instituições que

serviu a sua personalidade marcou pelo seu espírito reformador. Embora, ao comparar com

António Sérgio, por exemplo, nas sua tácticas, virando coerentemente uma estratégia,

Celestino da Costa não era um intelectual mas um homem de acção determinado. (Baptista

2001) Desse reformismo e desse seu papel na administração da ciência em Portugal

encontramos um estilo, claramente distinto de outro que se afirmará no segundo pós-guerra:

essa inclinação para um estilo casuístico de administrar os assuntos públicos da organização

da ciência...

Como refere no texto que vos passei, Celestino da Costa prezava um estilo que se recusava “a

erigir sistemas, a promulgar regulamentos definitivos, mantendo-se num terreno experimental,

em que o progresso é contínuo, mas lento por vezes, por isso mais seguro” (Costa 1951, 198).

Estamos a falar de um ideal de ‘gestão’, de um aparato de organização da ciência claramente

“nas mãos de sábios experimentados que já tinham estabelecido uma sólida tradição” e,

igualmente, “com um mínimo de burocracia e um máximo de eficiência prática”... (Costa

1951, 199)

De facto, o pressuposto de Celestino da Costa era outro: a organização da ciência de Celestino

da Costa tinha em mente, sobretudo, despertar e suportar ‘vocações científicas’; a principal

finalidade da política científica de Celestino da Costa era a formação avançada dos recursos

humanos e, em rigor, não propriamente o ‘fomento’, como na altura se entendia, o

desenvolvimento económico, da produção (dos processos e produtos)...

Por aqui se compreende o frequente apelo de Celestino da Costa para se «proteger os

investigadores, melhorando-lhes as condições de vida e fornecendo-lhes os meios materiais

de que precisam para os seus estudos» (Costa 1939, 9), denunciando o problema da

remuneração do investigador como sendo um dos mais graves, senão o mais grave da

problemática da organização da ciência – propondo para tal a implementação do sistema de

13

Tiago Brandão, 04/12/14,
JFDF faz referência a uma carta de A. Sérgiover seu espólio?
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remuneração diferencial e mesmo de um estatuto do investigador paralelo à carreira docente

(ie o ‘full-time system’)... (Costa 1951, 204; Rollo et al. 2012)

Por fim, apesar de apelar à neutralidade do homem de ciência, ao seu distanciamento

relativamente à militância política, Celestino da Costa em alguns momentos não deixou de

fazer uma crítica moderada aos políticos e ao Estado...

Celestino da Costa desabafava, em 1935, momento de homenagem a Marck Athias e na

passagem que referia os 3 anos que o seu mestre estivera à frente da JEN:

«O momento actual é pouco propício à carreira científica; não lhe são favoráveis

nem as condições nacionais, nem as internacionais. A ciência não disfruta em

certos países do prestígio necessário para se impor; dir-se-ia que a consideram

como cousa de luxo, perfeitamente dispensável. Os que entre nós já estão em fase

adiantada da carreira prosseguem com maior ou menor dificuldade na senda

iniciada, mas não ousam chamar os novos para o seu lado, receosos de lhes

criarem condições de vida miseráveis. Têm falhado várias tentativas de estimular

a vocação científica e a Junta de Educação Nacional não tem podido exercer

satisfatoriamente sua missão de promover a investigação científica.» (Costa 1935,

9)

E mais admitia:

«A actividade científica exerce-se hoje com maiores dificuldades do que nos

primeiros anos em que Athias ensinava na Faculdade. Desfizeram-se ilusões,

apagaram-se esperanças.» (Costa 1935, 10)

Foram aliás alguns os trechos e episódios em que o muito moderado Celestino da Costa não

deixara de fazer um comentário ou observação mais crítica e talvez por isso em 1947 tenha

sido temporariamente afastado do ensino, em sequência da vaga de depurações académicas

levadas a cabo pelo Estado Novo.14 A partir dessa altura dedicou quase toda a sua atenção à

actividade científica, mantendo-se afastado de funções públicas de maior relevo, mas

percorrendo vários países em conferências e reuniões científicas, nomeadamente na América

Latina.15

14 Diário do Governo, II.ª Série, n.º 138, 18 de Junho de 1947.15 Por exemplo, em 1950 visitou pela primeira vez o Brasil, durante dois meses (Costa 1950), nomeadamente o Instituto de Biofísica, e em 1951 nova vinda ao Brasil, para dar um Curso de Embriologia em São Paulo e no Rio de Janeiro, bem como dar uma série de conferências em Curitiba, Portalegre, Montevidéu e Buenos Aires.

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