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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO – PPGE/ME FURB ISSN 1809– 0354 v. 3, nº 3, p. 460-472, set./dez. 2008 O BRINCAR, AS DIFERENÇAS, A INCLUSÃO E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL CHILDREN’S GAMES, THE DIFFERENCES, INCLUSION AND SOCIAL CHANGE Tânia Ramos Fortuna [email protected] RESUMO: Exame da ludicidade desde a perspectiva de sua potencialidade para a promoção da inclusão social e escolar e para a transformação social, com ênfase nas necessidades e possibilidades dos indivíduos com necessidades educacionais especiais. A partir de breve análise dos tempos atuais e sua relação com a diferença, aborda a compreensão e a intervenção sobre as diferenças através da brincadeira. Ressalta o potencial emancipatório da brincadeira e sua contribuição na luta contra a discriminação e a exclusão nas várias esferas da vida. Palavras-chave: Ludicidade – inclusão social – educação inclusiva – transformação social – necessidades educacionais especiais ABSTRACT: This article examines children’s games from the perspective of its potentiality for the promotion of social and educational inclusion and for social change, emphasizing the necessities and possibilities of individuals with special educational needs. Starting from a brief analysis of current times and its relation to difference, the article deals with the comprehension of and intervention on differences through playing. It highlights the emancipating potential of playing and its contribution in the struggle against discrimination and exclusion in several domains of life. Key words: children’s games – social inclusion – social change – special educational needs Nosso ponto de partida Este trabalho foi elaborado, propositadamente, como um libelo, mas às avessas. Ao invés de expor energicamente acusações contra um réu – no caso, a brincadeira -, pretende demonstrar sua singela e, ao mesmo tempo, vigorosa possibilidade para colaborar com nada mais, nada menos do que transformar o mundo, de modo que nele todos possam viver dignamente. Assume, por isso, em muitas passagens, uma tonalidade profética, quase messiânica, dada a ambição nada pequena que possui e a urgência em convencer que o move. De libelo,

BRINCADEIRAS - TÂNIA FORTUNA1228-4147-1-PB[1]

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    O BRINCAR, AS DIFERENAS, A INCLUSO E A TRANSFORMAO SOCIAL

    CHILDRENS GAMES, THE DIFFERENCES, INCLUSION AND SOCIAL CHANGE

    Tnia Ramos Fortuna [email protected]

    RESUMO: Exame da ludicidade desde a perspectiva de sua potencialidade para a promoo da incluso social e escolar e para a transformao social, com nfase nas necessidades e possibilidades dos indivduos com necessidades educacionais especiais. A partir de breve anlise dos tempos atuais e sua relao com a diferena, aborda a compreenso e a interveno sobre as diferenas atravs da brincadeira. Ressalta o potencial emancipatrio da brincadeira e sua contribuio na luta contra a discriminao e a excluso nas vrias esferas da vida. Palavras-chave: Ludicidade incluso social educao inclusiva transformao social necessidades educacionais especiais

    ABSTRACT: This article examines childrens games from the perspective of its potentiality for the promotion of social and educational inclusion and for social change, emphasizing the necessities and possibilities of individuals with special educational needs. Starting from a brief analysis of current times and its relation to difference, the article deals with the comprehension of and intervention on differences through playing. It highlights the emancipating potential of playing and its contribution in the struggle against discrimination and exclusion in several domains of life. Key words: childrens games social inclusion social change special educational needs

    Nosso ponto de partida

    Este trabalho foi elaborado, propositadamente, como um libelo, mas s avessas. Ao invs de expor energicamente acusaes contra um ru no caso, a brincadeira -, pretende demonstrar sua singela e, ao mesmo tempo, vigorosa possibilidade para colaborar com nada mais, nada menos do que transformar o mundo, de modo que nele todos possam viver dignamente. Assume, por isso, em muitas passagens, uma tonalidade proftica, quase messinica, dada a ambio nada pequena que possui e a urgncia em convencer que o move. De libelo,

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    portanto, conserva apenas a veemncia provinda da convico, sendo que esta, por sua vez, sustentada por um profundo e inarredvel compromisso com a luta contra a excluso e a discriminao em diferentes mbitos da vida social e uma ingente e amplamente fundamentada crena na atividade ldica.

    Partimos do princpio que pode provir da brincadeira - logo dela, to desqualificada em nossa cultura, indevidamente acusada de ser suprflua e no ser sria e de desviar a ateno dos problemas fundamentais do mundo - a experincia e o aprendizado da transformao social em uma perspectiva emancipatria.

    Nestes tempos marcados por forte discriminao negativa, desigualdade e opresso mais ou menos disfaradas, em que aqueles que ainda tm esperana de uma vida justa so rotulados como ingnuos, nefelibatas ou perigosos manipuladores da boa-f alheia, a brincadeira distingue-se como um lugar de resistncia crueldade do mundo e um modo de praticar a dignidade humana.

    No mundo do faz-de-conta um outro senso de realidade experimentado, impulsionando a confiana na possibilidade de transformao da realidade marcada por novo imaginrio, novos princpios e novos valores gerados na solidariedade, ousadia e autonomia que as atividades ldicas podem comportar.

    Isto conseqncia da interao social plasmada no brincar, que nos lana em direo ao outro, e neste enlace - recordemos o timo da palavra brincar: vinculum, no latim - constitui-nos como sujeitos. Brincando, reconhecemos o outro na sua diferena e na sua singularidade e as trocas inter-humanas a partilhadas podem lastrear o combate ao individualismo e ao narcisismo to abundantes na nossa poca, restituindo-nos o senso de pertencimento igualitrio.

    No toa que justo a brincadeira, em tempos to hostis, possa contribuir para trazer para a realidade a utopia de um mundo melhor, no qual todos estejam includos. Para Morin (2001), por causa das caractersticas dos tempos atuais que o campo esttico-ldico, integrante dos complexos imaginrios, encontra-se em expanso: a destruio de antigas crenas e o avano do niilismo favorecem a emergncia de atividades ldicas. preciso resistir crueldade do mundo, visvel nas relaes predatrias dos homens e entre eles e naquilo que desintegra e separa, lembrando que rir, sorrir, brincar, tambm resistir. Esta forma de resistncia se chama esperana (MORIN, 2000).

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    Os tempos atuais e as diferenas

    A contemporaneidade se caracteriza pela globalizao e valorizao da instantaneidade que, combinada com a ao distncia, confere ao Homem uma eufrica sensao da ubiqidade. Mas, ao mesmo tempo, proliferam novos apartheids sociais, beneficiados pela expanso dos fundamentalismos que, se geram novas formas de identidade social, tambm determinam a ascenso de tribalismos, do que decorre uma sensao de exaltao do localismo. Como arma de duplo fio, esse localismo tanto pode ser uma forma de valorizao das especificidades e singularidades das pessoas e dos povos, quanto pode ser concebido como exotismo ora admirado, ora repelido. O resultado que parecemos pendular repetidamente da sensao de estar em todo lugar, para a sensao de no ter lugar algum para ns, neste mundo.

    Na vida civil, enquanto observa-se um declnio da esfera pblica, da proteo institucional e da poltica nos moldes consagrados, o individualismo e o autocentramento se exacerbam, indo ao extremo da fragmentao do prprio sujeito, instaurando novas formas de subjetivao e, com elas, novas doenas da alma (KRISTEVA, 2002; BIRMAN, 1999). Mas esta nova subjetividade traz consigo tambm um novo pensamento, sobretudo devido ao avano tecnolgico e ao aumento da interao com a mdia eletrnica que, por sua vez, desempenha papel predominante na constituio do universo simblico das grandes massas, transformando no s a forma de perceber o mundo, como tambm determinando novos contedos mentais (CASTELLS, 2002).

    As relaes interpessoais contemporneas, por seu turno, tendem a ser marcadas por falta de consistncia (BAUMAN, 2004) e superficial cooperatividade de tal modo que a to propalada defesa da autonomia , freqentemente, apenas um jeito de proclamar no precisar do outro (FRIDMAN, 2000). Disso tudo resulta uma verdadeira corroso do carter, pois as pessoas no so estimuladas a vivenciarem valores tais como lealdade, confiana, comprometimento, integridade e ajuda mtua nas suas relaes (SENNET, 1999).

    Com a globalizao hegemnica, aumenta a excluso. De acordo com Santos (2006), a globalizao um processo atravs do qual um dado fenmeno ou entidade local consegue difundir-se globalmente e, ao faz-lo, adquire a capacidade de designar um fenmeno ou entidade rival como local, sendo o universalismo

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    abstrato, por meio da caracterizao essencialista, seu dispositivo ideolgico por excelncia. O dramtico deste processo que, na prtica, ele nada tem de universal, pois ocorre atravs da imposio de particularismos de um grupo social, muitas vezes pela violncia, gerando a excluso de grandes parcelas de pessoas, situaes e caractersticas que no se enquadram naquele ideal essencializado. Por outro lado, boa parte dos esforos para gerir a excluso redunda em refor-la, como o caso da naturalizao das diferenas: no intuito de reconhec-las, a naturalizao, ao essencializ-las exponencialmente, mais no produz seno a individualizao e o individualismo extremos, que no cabem em lugar algum. A este novo regime social em acelerada expanso Santos denomina fascismo social, cujos processos mantm grandes setores da populao do lado de fora.

    No caso da escola, Goodson (2007) demonstra que no s certos programas no tm contribudo para incluso social, como em seu nome realmente tm alargado e aprofundado a excluso social, criticando-os por entender a incluso como um processo de distribuio educacional mais ampla das categorias educacionais de elite, sem considerar que esta elite se fez, justamente, atravs da excluso social dos outros. Segundo o autor, o malogro da incluso social na escola no acontece apesar dos esforos governamentais, mas exatamente por causa deles: as estratgias educacionais empregadas so construdas sobre alicerces de excluso (GOODSON, 2007, P. 244).

    J Dubet (2003) afirma que a excluso escolar o resultado normal da extenso de uma escola democrtica de massa que proclama ao mesmo tempo a igualdade dos indivduos e a desigualdade de seus desempenhos, situada em uma estrutura social perpassada por mecanismos de excluso. Funcionando cada vez mais parecida com o mercado, a escola, para este autor, integra e ao mesmo tempo exclui cada vez mais. Mas, ao chamar a ateno para o papel autnomo que a escola pode desempenhar na formao de mecanismos de excluso, com a adoo de classes homogneas, por exemplo, que no aumentam muito o desempenho dos melhores alunos, mas enfraquecem o desempenho dos alunos mais fracos, ou com a utilizao de mtodos de ensino ativos que do vantagem queles que conhecem as regras ocultas do sistema, Dubet acende uma centelha de esperana em relao ao seu potencial para a transformao, em detrimento da mera reproduo ou acentuao das desigualdades e da excluso. Retomaremos esta idia mais

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    adiante. Enquanto isto, fiquemos com as palavras de Bustelo, para quem a excluso como a relao entre o todo e a parte na qual uma parte no toma parte (2007, p. 32). Como se v, a relao com o todo permanece, s que de modo inferiorizado.

    Assim, a excluso social, especificamente, no significa desconexo de qualquer forma de vnculo social, mas basicamente excluso de direitos, o que atinge o direito de ter direitos. Abrange o direito de viver e, especialmente para o que interessa aqui, o direito de brincar. Pensamos que precisamente pela defesa do direito brincadeira que podemos alcanar a incluso social e contribuir para promover, ento, a transformao social.

    A contribuio da brincadeira para a incluso e transformao social

    Qual a contribuio da brincadeira para a incluso e transformao social? De um lado, promovemos a incluso social ao garantir o exerccio de um direito fundamental, expresso, inclusive, na Declarao dos Direitos da Criana proclamada pela ONU, em seu princpio quatro, qual seja o direito de brincar. De outro lado, ao (re)instaurar o desejo, o significado e o prazer de ensinar e aprender nas escolas atravs da brincadeira, tambm chegamos incluso social, pois o sucesso escolar assim obtido uma das condies da incluso escolar que , por sua vez , um modo de incluso social. Afinal, a Educao tambm um direito a garantir. Alm do mais, brincando, propiciamos o acesso ao patrimnio cultural da humanidade, particularmente o patrimnio ldico, o que , igualmente, um direito.

    Mas, ateno: Bustelo adverte que a possibilidade concreta que abre a defesa dos direitos para uma prtica emancipatria depende de sua reconceitualizao como direitos sociais, colocados no mbito de uma luta poltica, em detrimento de seu tratamento como direitos meramente individuais, pois uma sociedade igualitria est atada realizao da cidadania social (2007, p. 183).

    Ora, a reconceitualizao dos direitos como sociais poderia levar a opor o plano social ao individual, pressupondo que nenhuma mudana efetiva comea ou termina neste plano. Contudo, o antdoto para este equvoco est em considerar que as grandes revolues, como diz Morin, provm de uma mirade de aes e esforos

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    complementares que, em dado momento, se organizam e constituem uma nova unidade (2000, p. 167). Em outras palavras, a transformao das relaes de poder desigual acontece no varejo, isto , na vida cotidiana de cada um, e no no atacado, no obstante o processo que preside esta tarefa emancipatria ser global no sentido contra-hegemnico -, pois diz respeito a uma tarefa de todos para todos, que deve ocorrer em todo lugar. E, surpreendentemente, pode ser deflagrado atravs de algo concebido como to mido como a brincadeira, haja vista o status desqualificado que experimenta em nossa cultura, embora to poderoso, se considerarmos sua capacidade de tensionar o real, transgredindo-o rumo sua reinveno.

    Na brincadeira somos exatamente quem somos e, ao mesmo tempo, todas as possibilidades de ser esto nela contidas. Ao brincar exercemos o direito diferena e a sermos aceitos mesmo diferentes ou aceitos por isso mesmo.

    Como brincar associa pensamento e ao, comunicao e expresso, transforma e se transforma continuamente, um meio de aprender a viver e de proclamar a vida. Um direito que deve ser assegurado a todos os cidados, ao longo da vida, enquanto restar, dentro do Homem, a criana que ele foi, um dia, e enquanto a vida nele pulsar. Quem vive, brinca.

    Como a brincadeira promove a incluso e a transformao social?

    A brincadeira uma atividade paradoxal: a um s tempo conservadora e transformadora, assim como refora relaes, concepes de mundo, modos de conhecer e viver, tambm os cria e recria. Vem da seu potencial revolucionrio, mesmo quando se tenta confin-la, orden-la, domin-la. Rebelde, ela resiste didatizao, mostrando-se tanto mais encantadora e encantada quanto mais livre e espontnea.

    O humor, como bem assinalou Freud (1927), no resignado, mas rebelde. A brincadeira, de quem ele descende, tambm. Ambos so, no jargo psicanaltico, a um s tempo, libertadores e protetores do ego, sendo, assim, teraputicos porque representam um modo de enfrentar o sofrimento e revolucionrios porque contradizem a ordem, transformando-a e dominando-a, sem que a mente deixe de ser saudvel. O carter revolucionrio advm precisamente do paradoxo que os

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    caracteriza: um gesto saudvel, mas tambm uma forma de se contrapor realidade.

    Mas isto no quer dizer que seu potencial emancipador seja auto-realizvel, independentemente de seu contedo e das condies em que ocorre. bem verdade que podemos jogar para destruir o adversrio ou competir com ele, como verdade que podemos roubar no jogo e produzir mgoas nos outros, de brincadeirinha, pois foi sem querer. Contudo, a mgica da brincadeira que mesmo o dano desferido a algum ou algo, quando mantido no plano da brincadeira, incuo de brincadeira. Graas atividade simblica que a constitui, capacitando-a a estimular a funo representativa, o deslocamento e a simbolizao dos impulsos, em detrimento da atuao, o dano como se fosse, e, assim, tanto a integridade dos jogadores quanto a brincadeira est preservada.

    Ao propiciar a vivncia de sentimentos como inveja, rivalidade, cime e raiva em relao aos companheiros no jogo tornados adversrios, ela enseja a oportunidade de aprender a regul-los, enfrentando a frustrao. E, mesmo quando a competio se exacerba, a cooperao ainda predomina, proporcionando o aprimoramento da relao interindividual atravs da solidariedade que lhe intrnseca. Como cada jogador apenas uma das partes, existindo seu comportamento em funo do outro, para que haja jogo preciso operar com, isto , cooperar, sendo esse outro fundamental.

    Todavia, a tica que a caracteriza, mantendo os jogadores relativamente protegidos no interior do seu campo de fora, no impermevel virulncia do contexto no qual transcorre e que pode degener-la, destruindo-a. Na verdade, se este contexto influencia a brincadeira, para o bem e para o mal, tambm pode ser indiretamente por ela influenciado. Da mesma forma que a escola, marcada brasa pelas relaes de produo (de riquezas) e reproduo (nas quais a escola distribui escalonamentos e oportunidades), e, mesmo assim, ou exatamente por causa disto, desempenha um papel autnomo na formao dos mecanismos de excluso, como mencionei acima, citando Dubet (2003), a brincadeira pode mudar o mundo este mundo to discricionrio e injusto no qual ela por vezes se asfixia e se perverte transformando, com a criatividade que lhe prpria, estratgias de sobrevivncia em fontes de resistncia, inovao e prazer.

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    Porque o ato de brincar mltiplo e no nico, supondo tempos diversos e propondo estados e movimentos em direo experincia da introspeco e do isolamento e da extroverso e da cooperao, favorece a emergncia das diferenas, das quais se beneficia, diversificando-se continuamente e adaptando-se s necessidades especficas e momentneas dos jogadores.

    As tentativas de definir com demasiado rigor ludicidade, brincadeira, jogo e brinquedo esbarram em sua polissemia de aspecto cambiante e fugidio, como se furta-cor, demonstrando que a complexidade e a extrema vitalidade do ato de brincar/jogar se estendem tambm ao seu campo conceitual, insubordinado padronizao lingstica. Para Huizinga (1938), as diferenas lingsticas existentes decorrem do valor social que tem a prpria ao de brincar em cada sociedade. No Portugus repetimos, de certa forma, o que o Ingls faz com as palavras game e play, sendo que esta ltima, tal como Spielen, no Alemo, jouer, no Francs, e jugar, no Espanhol, abrange muitos significados, que vo de brincar at interpretar uma pea musical ou teatral, podendo ser verbo transitivo ou intransitivo. Huizinga observa que em algumas culturas a abstrao de um conceito geral de jogo foi muito tardia, sendo a ausncia de uma palavra indo-europia comum para o jogo um indicador do carter tardio do surgimento de um conceito geral de jogo. O termo de maior abrangncia ludus, de origem latina, que remete s brincadeiras, jogos de regras, competies, recreao e s representaes teatrais e, inclusive, litrgicas, como consta no Dicionrio Etimolgico de Cunha (1982); dele deriva o termo ldico, que significa tanto brincar como jogar.

    Polissmicas, brincadeira e jogo insistimos - so atividades paradoxais: brincando ou jogando, ao mesmo tempo em que se constri a conscincia da realidade, vivencia-se a possibilidade de transform-la, e na contradio entre a liberdade e a submisso s regras, os limites entre a realidade e os desejos so experimentados, gerando um espao de aprender fabuloso e incerto.

    No obstante o surgimento de neologismos como ludismo e ludologia, que tentam abranger a totalidade dos fenmenos ldicos, o fato que a palavra jogo, associada a movimento em diversas lnguas, parece reagir com mobilidade indmita e zombeteira aos esforos de fix-la em uma definio estanque, monoltica. Por isso mesmo, temos preferido utilizar as palavras jogar e brincar como equivalentes,

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    fazendo o mesmo com as palavras jogo e brinquedo, atentos mais ao que tm em comum, do que aquilo que as pode, em certas circunstncias, distingui-las.

    A brincadeira estimula a formao do lao social atravs da histria contida nos jogos e brincadeiras e expressa pelos companheiros de jogo. Implica regras, permitindo a vivncia dos limites, das referncias, constituindo-se, por essa via, continente. O patrimnio ldico, para se realizar como brincadeira, exige compartilhamento, o que, por sua vez, requer um terreno comum no qual os jogadores consigam se entender. As regras, como o que une e comum na brincadeira, organizando as especificidades do jogo e dos jogadores, so um instrumento de promoo da inteligibilidade mtua. Este conceito caro a Santos (2006), pois por seu intermdio o autor divisa a possibilidade de uma globalizao contra-hegemnica a fazer frente aos processos hegemnicos de excluso. Aqui aplicada, a inteligibilidade mtua experimentada nos jogos de regras assegura a possibilidade de participao e pertencimento, a partir das singularidades de cada um, em um contexto entendido como justo, porque abarcando a todos, da mesma forma.

    Ao incentivar a considerao no apenas dos prprios interesses, mas igualmente os do grupo, a brincadeira propicia o aprendizado da sociabilidade alargada. Ter que esperar a sua vez, conter a impulsividade e pensar antes de agir ensina a lidar com a necessidade de gratificao imediata, permitindo aprender a ajustar os meios aos fins. Supondo constantemente a superao do egocentrismo intelectual para ocorrer, ela estimula o desenvolvimento cognitivo ao mesmo tempo em que promove espontaneamente a educao moral.

    Uma brincadeira tanto mais atraente, menos por basear-se em materiais caros e coloridos ou ter estmulos abundantes, e mais por ser instigante, provocante, desafiadora, dando lugar ao (fsica e mental) e permitindo a experincia da ordem, desordem e reordenao. De novo, a diversidade apangio da brincadeira. O mundo dos brinquedos e da brincadeira mgico, nele cabendo todas as idades, estados de esprito, tendncias, necessidades, habilidades e competncias fsicas, scio-afetivas e cognitivas, no porque exista um brinquedo sob medida para cada um, mas porque a brincadeira transforma cada brinquedo em brinquedo de todos.

    A brincadeira apia-se no dilogo entre os estilos de vida. No busca a homogeneidade, esta quimera frustrante; ao contrrio, baseia-se em uma

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    comunicao entre pessoas, grupos e culturas que podem se influenciar mutuamente, rompendo o paroquialismo e garantindo a polivalncia cultural, cognitiva, comportamental.

    So nossas diferenas que podem nos fazer vencer e perder em um jogo, mas o pressuposto de que todos comeamos este jogo em condies de igualdade potencial que nos permite jogar, juntos, o mesmo jogo. At mesmo as pessoas ditas diferentes so, elas mesmas, muito diferentes entre si. Afinal, se h algo que nos iguala o fato de sermos todos, irretorquivelmente, diferentes. Essa nossa maior riqueza coletiva, afirma Jacquard (1988) do ponto de vista da biologia, mas que vale tambm para o mundo social: a nossa diversidade.

    Qualquer semelhana entre a brincadeira, tal como descrita por ns, e as novas formas de sociabilidade, de subjetividade e mesmo a nova epistemologia caractersticas da globalizao contra-hegemnica propugnadas por Santos (2006) no mera coincidncia. Cremos que a brincadeira pode ensejar a vivncia de relaes na escola e na sociedade mais justas, mais humanas, mais solidrias, concorrendo para a construo de um novo padro de relaes locais, nacionais e transnacionais, baseadas simultaneamente no princpio da redistribuio (igualdade) e no princpio do reconhecimento (diferena), como Santos preconiza para enfrentar a expanso do fascismo social em um mundo globalizado.

    Para este autor, a luta pelo princpio da igualdade deve ser conduzida de par com a luta pelo princpio do reconhecimento da diferena. Acreditamos que, na brincadeira, o primeiro princpio alcanado por meio do segundo, da mesma forma que o segundo alcanado atravs do exerccio do primeiro.

    Ponto de chegada

    Se os tempos atuais parecem conspirar contra o avano e a prpria sobrevivncia da humanidade, abrigam tambm uma nova viso da razo que identifica a existncia do no-racional entre o irracional e o racional, postulando um justo lugar para o imaginrio, o emocional, os sentimentos, o sensvel, as fantasias, o sonho... Enfim, para tudo o que constitui a vida imaginria das pessoas, inclusive e especialmente a ludicidade.

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    Estes novos tempos demandam insistentemente uma racionalidade mais plural, atravs da qual o conhecimento pode voltar a ser uma aventura encantada (SANTOS, 1987, p. 36). A epistemologia do jogo tudo tem para tornar o processo de conhecer encantador, porque implica uma concepo de conhecimento como construo resultante da interao, na forma de um processo que se realiza de corpo inteiro e com o outro quer concreto, quer interiorizado -, acionado pelo desafio e pela surpresa, produzindo fascnio e arrebatamento. Porque implica sempre um dilogo com o no-eu, a tica do brincar, tal como defende Machado (1998), o impede de ser narcsico. A brincadeira implica o reconhecimento do outro, pois ocorre no espao "entre" os indivduos: o espao da iluso, que tambm o espao do jogo, como demonstra a etimologia da palavra iluso que, originria do latim illusione, produz in lusio, isto , em jogo. Colocando em jogo as diferenas, torna-se, por fim, o espao da incluso e da transformao social. Um espao mvel e dinmico, propcio ao soerguimento de tendas, mais do que de edifcios - para empregar a metfora proposta por Baptista, quando convida a refletir sobre os sentidos da incluso e sobre o ato educativo, ao aludir s possibilidades de uma montagem que contemple as diferenas, constituindo-se em contnuas transformaes (2006, p. 93)

    Por tudo isto, e fazendo coro a Oliveira (2001), chegamos concluso que o universo ldico pode ensejar um estreitamento de solidariedade, camaradagem, participao na vida do outro e responsabilidade social pelo projeto coletivo de suas / nossas vidas, podendo concorrer para o estabelecimento de uma cultura solidria. Esta cultura emerge medida que as interaes sociais se fundam numa base comum, na qual os participantes se voltam uns para os outros, compondo um campo mutuamente compartilhado. Estabelece-se, portanto, uma rede de influncias em que responsabilidades e direitos so construdos por meio de prticas, costumes e crenas inspirados em bases igualitrias. So novas formas de vida que podemos fazer viver pelo brincar.

    TNIA RAMOS FORTUNA Possui graduao em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1985) e mestrado em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1990). Atualmente professora assistente da rea de psicologia da educao da

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    Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde criou e dirige o Programa de Extenso Universitria Quem quer brincar? (www.ufrgs.br/faced/extensao/brincar). Autora de dezenas de textos sobre Jogo e Educao, tem proferido palestras e cursos no Brasil e exterior sobre o assunto. Realiza, atualmente, seus estudos com vistas ao Doutoramento, sob orientao da Profa. Dra. Merion Campos Bordas, na UFRGS, sobre a formao ldica do educador.

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