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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 66, mar. 1999 1 · Faz parte dessa sonolência ... legado. Ou seja, a transferência com a psicanálise, que um dia foi transferên- ... O fundo da sala

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EDITORIAL EDITORIAL

Estamos em março e, como diz a música (“Águas de Março”),são as águas que fecham, bem como a promessa que abre.Mas, como os psicanalistas não pautam seu trabalho orienta-

dos por promessas, é o tempo de enunciar os projetos do ano. É otempo que se convencionou recomeçar. Neste ano, a vida institucionalse reorganiza, com a renovação na condução da APPOA. A cada doisanos, procede-se à substituição de um terço da mesa diretiva e tam-bém da função da presidência. Assim, refunda-se o pacto institucional,ampliando-se as responsabilidades nas decisões dos rumos da institui-ção, na medida em que mais colegas passam a participar diretamenteda sua condução. Felicidades à nova direção e que continuemos man-tendo a força de uma vitalidade que é tão particular e tão característicada APPOA.

Como abertura das atividades, estamos propondo recolocar dis-cussões sobre um tema que nunca se esgota, que é bem o cerne denosso trabalho: a transferência. Este Correio é dedicado a ele, bemcomo à Jornada de Abertura, que tem por título “Os destinos da trans-ferência”. A indagação sobre o destino confunde-se com a indagaçãosobre a transferência. Quer dizer, quando você começa uma análise,você se interessa por uma saída, pelo fim. A saída está prescrita naentrada. Só que no meio do caminho você esquece disso. Faz partedessa sonolência admirável que permite o sonhar, que traz ao mundo acriatividade de nossa ignorância mais radical, nessa busca incansávelde um grande intérprete. Faz parte dessa insistência compulsiva defracassar ainda uma vez, na esperança de que a moratória do Outroseja seu caminho de liberdade. A transferência é o paraíso e o infernodos indivíduos cativos. Antes que ela se instale, nas entrevistas preli-minares, o analista pode contemplar sua sabedoria clínica, sabendoantecipadamente, até mesmo prevendo, todos os descaminhos a queas montagens sintomáticas levarão aquele que o está consultando.Depois, nela, nesse “não se sabe”, é o vagar de Ulisses no mar de

Posseidon, enfrentando sua fúria por ter ousado desafiar os deuses.Como na Odisséia, a saída é uma volta. Por paradoxal que pareça,Lacan propõe que é nessas “voltas” que se troca de discurso.

Nos destinos temos também o pai Freud, que Lacan propõe comoretorno. Estaremos nos ocupando de seu texto “Análise terminável einterminável”, em maio, no “Relendo Freud e Conversando sobre aAPPOA”. É um texto do final da vida de Freud, mas não por isso me-nos confiante no valor da psicanálise. A enunciação dos limites de umaanálise, do que fica como resto (ou como “rocha”), não o faz penderpara o lado do fracasso. É desses restos que se relançam, que se trans-mitem, por onde se precisa pensar nos destinos do movimento psica-nalítico, por exemplo.

Também outro acontecimento será a marca deste ano: os dezanos de existência da APPOA, em dezembro. Uma década não é cor-riqueiro de acontecer na vida de uma instituição psicanalítica. Brigas,cisões e desacertos, é o que costumeiramente têm se feito com osrestos das transferências. Que seja possível fazer outra coisa de umainstituição é o que continua pautando nosso caminho.

De resto, deixemos a palavra com Freud e sua citação:“O que de teus pais herdaste, adquire-o para que seja teu (Goethe)De tal maneira, o supereu assume uma espécie de posição inter-

mediária entre o isso e o mundo exterior, reúne em si as influências dopresente e do passado. No estabelecimento do supereu vemos, de cer-ta maneira, um exemplo de como o presente se converte no passa-do...” (Freud, “Compêndio da Psicanálise”. In: Obras Completas. Madrid,Biblioteca Nueva. v. IX).

Com isso, Freud nos indica que a herança é o supereu: ponto departida, ponto de volta, a repetir, a superar. Nem que seja pela indica-ção de que os analistas retomem suas análises a cada cinco anos de-pois de encerradas.

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JORNADA DE ABERTURA/99“OS DESTINOS DA TRANSFERÊNCIA”

CARTEL DO INTERIORA próxima reunião do Cartel do Interior se realizará dia 28 de março,

na sede da APPOA.Na parte da manhã, às 10 horas, será apresentada a produção de

Conceição Beltrão sobre: “A conquista espiritual da América sob o mandatode sustentação do Pai – variações da neurose obsessiva”. A bibliografia esta-rá a disposição na Secretaria a partir de 1 0 de março.

À tarde, às 14 horas, serão discutidas nossas propostas de trabalho,dando continuidade à temática da Neurose Obsessiva.

As atividades do Cartel estão abertas aos membros e participantes daAPPOA e demais interessados.

NOTÍCIAS NOTÍCIAS

PROGRAMA

Manhã – das 10 às 12h- “Chez Lacan” - Transferência e identificação - Lucia Serrano Pereira- Transferência freudiana e metáfora lacaniana - Mario Fleig

Tarde – das 14 às 16h- Tragédia e ironia: o supereu e a criação - Ana Maria Medeiros da Costa- O que podemos fazer para que a transferência seja de trabalho - AlfredoJerusalinsky

CARTEL PREPARATÓRIO PARA O RELENDO FREUDA data do Relendo Freud e conversado sobre a APPOA foi postergada

para os dias 28 a 30 de maio de 1999. As discussões iniciadas no cartel, serãoretomadas a partir do encontro do dia 11 de março, 21h.

Todos estão convidados a participar.

Pensar em destino implica pelo menos em dois caminhos: o sentidoclássico, da tragédia; e um sentido vetorial, de desdobramento no tempo. Dequalquer maneira, o acento temporal ligado à transferência leva, inequivoca-mente, a considerar não somente os rumos das análises individuais, comotambém o que se produziu como história da psicanálise e suas instituições.Uma terceira possibilidade, de igual importância, seria tomar o conjunto deuma obra como relativo aos destinos da transferência e, no que nos concerne,abordar os trabalhos de Freud e Lacan desde essa perspectiva.

Muito já se trabalhou sobre a dimensão do amor de transferência, so-bre sua face de substituição ilusória (necessária) de um saber inapreensível.Talvez mesmo se tenha cultivado as possibilidades que esse amor oferece.Hoje, o acento se modifica e as interrogações se voltam para os rastros desselegado. Ou seja, a transferência com a psicanálise, que um dia foi transferên-cia com um psicanalista em particular, tem destinos – heranças - nem semprereconhecíveis e nem sempre satisfatórios. Será que Freud conseguiu superarcompletamente a transferência com Fliess? Temos uma série de indícios deque isso não aconteceu, nem que seja pela simples lembrança (ainda) donome de Fliess num texto do final de sua vida, e que tem esse título sugestivode “Análise terminável e interminável”.

Também Lacan e sua preocupação com o desenlace, com o ato emsua dimensão de interrupção, de finalização, deixa-nos o trabalho de produziruma experiência que, no seu tempo, teve seus percalços. Na verdade, asheranças nunca são completamente possibilitadoras, porque contém um pa-radoxo difícil de resolver: é onde a esperança de realização torna-se imperati-vo do supereu. O encontro com essa posição do supereu implica uma recusanecessária, recusa que, por outro lado, é também o cerne da repetição.

Nesta jornada estaremos dedicados a transitar por esses caminhos.Temos também o grande desafio de pensar no trabalho da transferência comorecuperação da metáfora, da face criativa que essa dimensão da referência àlinguagem nos traz.

Data: 27 de março de 1999 - 9 horasLocal: Parthenon Piazza Navona Av. Independência, 813 – Porto Alegre

Valores: Associados – R$ 25,00 Estudantes – R$ 30,00 Profissionais – R$ 50,00

Inscrições: Sede da APPOA a partir de 03 de março. Vagas limitadas

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NOTÍCIAS

BIBLIOTECAA fim de ampliar o acervo de textos freudianos, em nossa Biblioteca,

estamos fazendo uma campanha para aquisição de mais uma Coleção dasObras Completas. Convidamos todos a participar, doando ao menos um volu-me. Não deixe de dar a sua contribuição.

Agradecemos desde já as doações recebidas.Comissão da Biblioteca

ROUDINESCO EM PORTO ALEGREInformamos que, nos dias 18, 19 e 20 de abril/99, a APPOA e a Unisinos

estarão promovendo a vinda de Elisabeth Roudinesco à Porto Alegre. As con-ferências ocorrerão em Porto Alegre e na sede da Unisinos, em São Leopoldo.

Maiores detalhes serão divulgados em breve.

MESA DIRETIVA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 1997/98

Presidência - Ana Maria Medeiros da Costa1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira

2a. Vice-Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky1a. Tesouraria - Roséli Maria Olabarriaga Cabistani

1a. Secretária - Ligia Gomes Víctora2a. Secretária - Liliane Seide Froemming

Ana Marta Goelzer Meira, Carlos Henrique Kessler, Enéas Costa de Souza,Gladys Wescheler Carnos, Jaime Alberto Betts, Liz Nunes Ramos, Lúcia Alves Mees,

Lucy Linhares da Fontoura, Margareth Kuhn Martta, Maria Ângela Cardaci Brasil,Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mário Fleig, Robson de Freitas Pereira

e Valéria MachadoRilho.

TESOURARIAAos AssociadosNos últimos anos a APPOA vem reajustando as mensalidades confor-

me os índices da inflação.Porém, em 1999, os valores das mesmas não sofrerão alteração face

à situação econômica atual e à possibilidade de mantermos nossas ativida-des sem aumento nos valores de contribuição dos associados.

NOTÍCIA SOBRE A JORNADA DO PERCURSO

Dias 15 e 16 de janeiro, aconteceu a segunda Jornada do Percurso,que marcou o término do Percurso Turma II.

Esta Jornada, para a Comissão de Ensino, dá um índice dos efeitos doPercurso, que ao nosso ver está a contento, pois conseguimos transmitir algomais que um conhecimento. O nível dos trabalhos mostram que conseguimosajudar a aprimorar um estilo e consolidar uma ética.

Muitas eram as preocupações, quando se constituiu o Percurso deEscola. Afinal, queríamos trabalhar em consonância com o que sabemos so-bre o aprender: ocorre em transferência, depende de que o sujeito se autorizeà posição de investigador, obedece aos critérios individuais e subjetivos deabsorção de conhecimento (para esquematizar parcamante).

Havia muito a ensinar, teorias a desafiar e tecer, kilômetros de literatu-ra a trilhar...não é a transmissão de um dom de bruxo para aprendiz, trata-sede estudo. Estudo não qualquer, estudo em transferência. Estudo movido pelodesejo do saber. Estudo gerador de um discurso que envolva os novos conhe-cimentos e deixar-se envolver por eles.

A segunda jornada consolida e amadurece o que a primeira já apon-tou: estamos realmente podendo transmitir. Não clonamos, nem iniciamosninguém, apenas ensinamos e aprendemos, partilhando a humildade do curi-osos entre professores e alunos.

A mesa estava do outro lado. O fundo da sala de aula torna-se frente.Onde antes se falava, agora estão os que escutam. Dali os ensinantes tive-ram uma lição de “a posteriori”. Escutando e debatendo os exercícios de esti-lo, testemunhando a vivacidade e coerência dos trabalhos, soube-se, só de-pois, que nossos temores serviram, mas não se confirmaram.

Desde esta posição, de muita escuta dos alunos, depois de uma per-curso de tanta fala dos professores, aprendemos que transmissão da teoriapsicanalítica é possível, sim, é possível portanto garantir, ao legado de Freude Lacan, a vitalidade das infinitas retraduções e retranscrições que filhos eleitores dão a uma origem teórica.

Mário Corso

NOTÍCIAS

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mesmo tempo, continuar inconsciente? Com a estrutura moebiana, que rom-pe com a noção de “avesso” e “direito”, Lacan apresentou a resposta. No quediz respeito às relações entre o real, o simbólico e o imaginário, que estavamimplicitamente presentes em Freud, como podem se manter os três registros,ao mesmo tempo unidos e independentes? Através da amarração em cadeiaborromeana. A solução a estes e outros “enigmas” de Freud, Lacan encontrouatravés da topologia.

Lacan deu-se conta de que uma topologia por demais submissa aoimaginário corporal, como a de Freud - “onde se localizam consciente e in-consciente?”, “como representar os sistemas...?”, havia limitado a teoriafreudiana. Nos primeiros esquemas - L, R, e I -, Lacan ainda apostava nessemodelo. A partir do Grafo do Desejo, ampliou a abordagem da topologia,levando-a às últimas conseqüências, não mais como uma ilustração dos con-ceitos, mas como a própria estrutura do real que estava em jogo, e que assimpoderia ser lido, trabalhado, modificado, como um pedaço de tecido que secorta, vira do avesso, costura, prega, transforma...

Noções como fronteiras, vizinhanças, estar dentro e/ou fora, aberto,fechado, bordas, finito e infinito... foram então retomadas para se compreen-derem processos como o traço unário, recalcamento, castração simbólica, onascimento do sujeito, assim como as escolhas da neurose, da psicose ou dasexuação, conseqüentes destes.

As abordagens mais avançadas da topologia dos últimos semináriosde Lacan: Os Nomes-do-Pai, R.S.I., O sintoma, A topologia e o tempo.Responsável: Ligia Gomes VíctoraReuniões mensais, 2ª quarta-feira do mês, às 17h30min

Memórias...Quando Walter Benjamin analisa a obra de Proust, ele a situa não

como um trabalho da lembrança, da reminiscência, mas do esquecimento. Oque quer dizer que a memória em Proust é equivalente ao esquecer. Talvez sepudesse afirmar que todo impulso à escrita traz subjacente uma tentativa decomposição autobiográfica impossível, onde o vivido figura como uma obrainacabada, que a escrita busca substituir ou mesmo suprimir. Assim, se aescrita busca o registro da falta do acontecido, aquilo que ela contempla é a

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO - 1999

SEMINÁRIOS

PORTO ALEGRE

A dimensão trágica da psicanáliseO objetivo deste seminário é discutir a relação entre o trágico e a Psi-

canálise. Partiremos da frase de Lacan: “(...) e a tragédia está presente noprimeiro plano de nossa experiência, para nós analistas (...)” (L’Ethique de laPsychanalyse, Seuil, p.285). E dela o caminho a seguir será, inicialmente,retrospectivo, para resgatar a problemática histórica da tragédia (grega,renascentista, etc.), até chegarmos a contemporaneidade, inclusive exami-nando a idéia de George Steiner de morte da tragédia.

É neste ponto que se insere a questão analítica. A relação Freud -tragédia aparece como um dos pontos substanciais do seminário, para fixar opapel do trágico na constituição da praxis psicanalítica e na formulação etransformação dos conceitos da Psicanálise. Lacan, com suas análises deAntígona e de Hamlet, conduz o tema para culminar nas questões decisivasdo desejo e da ética.

A partir do trabalho clínico e da arquitetura teórica, o trágico da experi-ência psicanalítica pode ser confrontado com as concepções filosóficas deNietzsche e de Clément Rosset e tratar das diferenças entre a cura analítica eo que o último autor chama de cura trágica. O resultado final do seminárioserá a busca de esboçar a originalidade da dimensão trágica da Psicanálise,teórica e clinicamente.Responsável: Enéas Costa de SouzaReuniões quinzenais, quartas-feiras, às 20h30minInício em 05/maio/99

A topologia fundamental de Jacques LacanUma das questões insolúveis que Freud se colocava é a da “dupla-

inscrição” — como alguma coisa inconsciente pode se tornar consciente e, ao

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pontos de articulação do sujeito do inconsciente com o discurso. A experiên-cia nos inclina a considerar como parte da clínica diferencial das psicoses,por um lado, o ponto de aplicação da forclusão (S 1, S 2, a, sujeito barrado, ouseja, constelação do Nome-do-Pai, saber, objeto, sujeito de desejo) e, poroutro, os tempos da forclusão relativos a uma lógica da constituição do sujei-to. Assim, levantamos a tese que há, tanto quanto uma Urverdrängung, umapossível Urverwerfung.

Se hoje se reconhece que, a partir de Freud, a relação do homem comsi mesmo mudou radicalmente, certamente a relação do homem com a sualoucura, desmascaradamente radical desse “si mesmo”, também mudou defi-nitivamente. Embora essa mudança, a teoria ainda nos reclama respostasmais precisas que orientem hoje nossa intervenção clínica.Responsável: Alfredo Néstor Jerusalinsky, com a participação de convidados,membros do Departamento de Psicoses da APPOA.Reuniões quinzenais, sextas-feiras, às 18hInício em 09/abril/99

CAXIAS DO SUL

A angústia na/da clínica psicanalíticaEste seminário trata das encruzilhadas da angústia na transferência e

os impasses a que se vê sujeito o analista. Para tal, baseando-se no eixofreudiano “inibição-sintoma-angústia” e no tratamento dado por Lacan a issoe às produções correlatas - emoção, perturbação, impedimento, embaraço,acting-out e passagem ao ato, assim como a estruturação fantasmática nosadismo e masoquismo -, pretendemos abordar questões sobre o lugar deanalista, a constituição de uma análise, a transferência enquanto condição eobstáculo para uma análise, as resistências à psicanálise oriundas dela mes-ma, do analista em sua clínica e em sua relação com a instituição psicanalítica.

O acolhimento dos pedidos de participação nesta atividade de estudoe ensino em psicanálise será feito pelos responsáveis por esta atividade:Responsável: Mario Fleig, Cinara Hertzog, Conceição Beltrão, Izabel dal Pont,Margareth Kuhn Martta, Zilmara Simm TononReuniões mensais, terça-feira, às 19h30minInício em 09/março/99

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

memória do lapso, abertura infinita ao campo da representação. É nessa es-pécie de falha no idêntico, própria da memória, onde podemos pensar o fun-damento do conceito de mímesis em Benjamin, onde a memória somente seproduz como semelhança:

“A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com quenos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso dasemelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acon-tecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes, impenetravelmentesemelhantes entre si” (A imagem de Proust. In: Obras Escolhidas. Brasiliense.).

A psicanálise já nos familiarizou a essa espécie de memória que orecalque nos impõe, como o estabelecimento de dois impossíveis: uma im-possibilidade de lembrar e uma impossibilidade de esquecer.

A complexidade da memória está ligada ao fato de que ela abarcatanto um aspecto imaginativo, da lembrança-pensamento; bem como um as-pecto corporal, das sensações e produções fisiológicas; quanto a memóriaem ato, em diferentes formas de ação. Em qualquer um desses três elemen-tos, a face da mímesis, da semelhança, raramente é reconhecida. Isso por-que, na produção da memória, intervém tanto condições de preservação, quan-to de destruição. Esta dupla determinação depara-nos com os limites do quenosso senso comum reconhece como memória. Na interrelação dos elemen-tos destacados acima, não é possível estabelecer uma fronteira definida entrememória e criação.Responsáveis: Ana Maria da Costa, Edson de Sousa, Lucia PereiraReuniões quinzenais, segundas-feiras, às 21hInício em abril/99

Novos apontamentos para a clínica das psicosesO recalque, a denegação, sob suas duas formas fundamentais: a re-

negação e a recusa, e a forclusão constituem as operações lógicas que, mol-dando a inscrição do Nome-do-Pai, determinam a forma das significaçõesque um sujeito é capaz de produzir. Apesar de uma certa condição genéticaou neurológica ser permeável a uma ou outra forma de inscrição, não conse-gue, per se, singularizar uma determinada estruturação psíquica. Além dacontingência duma particular cronologia em cada um, se abre a interrogaçãosobre os efeitos, por exemplo, da incidência da forclusão sobre os diferentes

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

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Problemas da clínica psicanalíticaOnde a transferência faz borda com o conceito, a operação clínica

solicita do analista uma certa invenção. Os riscos de irmos além dos disposi-tivos conhecidos e das intervenções pautadas constituem um dos fundamen-tos, ainda que paradoxal, de nossa formação como analistas. Abrir um espa-ço para o debate destas questões permite que suas conseqüências se desdo-brem em novas aportações, em lugar de constituir-se em acting-out do psica-nalista.Responsável: Alfredo Néstor JerusalinskyReuniões mensais, sábados, às 17h

SALVADOR

Os impasses na formação do psicanalistaSe propõe uma leitura diagonal da produção de J. Lacan, seguindo,

nos seus textos e seminários, as pistas do que nos questiona enquanto psica-nalistas. Até que ponto o conceitual de um ensino nos coloca diante das bor-das da ignorância necessária para que a eficácia da transferência opere suaformação? Até que ponto o domínio imaginário de uma explicação, a posiçãosimbólica de um conceito ao fazer seu limite, nos poupa da emergência doreal na crueza de sua impossibilidade?

Como operar um ensino de modo a que haja transmissão?Responsável: Alfredo Néstor JerusalinskyReuniões periódicas

GRUPOS TEMÁTICOS

PORTO ALEGRE

A direção da curaNeste grupo nos ocuparemos em concluir a leitura e discussão do tex-

to “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Lacan, 1958), inici-ada no semestre anterior.

A partir daí, dentre as inúmeras questões importantes para a clínica

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

SÃO PAULO

A direção da cura em psicanálise de criançasO que nos demanda uma criança quando seus pais lhe demandam

que entregue a outro (o psicanalista) o secreto de seu desejo? A responsabi-lidade desse estranho se situar à disposição das formações inconscientesdesse sujeito infantil, deriva de ser essa, talvez, a única chance de que nãovenha a violentar-se a chave do que ali está se constituindo: o infantil dosujeito. Que a criança procure um sentido (como nos indica Bruno Bettelheim)não nos autoriza, porém, a produzi-lo, a menos que ela mesma esteja na totalimpossibilidade de buscá-lo (no autismo, por exemplo).

Em poucas práticas clínicas se apresenta para nós, os adultos, de ummodo tão dramático, a questão da autenticidade do ser, como ocorre na clíni-ca psicanalítica de crianças. Sua especificidade, derivada da diferente relaçãodo sujeito com o significante - caraterística dessa época da vida -, exige aindado analista uma particular torção nos desdobramentos da transferência.Responsável: Alfredo Néstor JerusalinskyReuniões mensais, segundas-feiras, às 13h30minInício em 13/março/99

Momentos críticos na constituição do sujeitoAqueles que trabalhamos com as formas mais radicais da psicopato-

logia, onde se coloca em questão a possibilidade de advir um sujeito de dese-jo nesse pequeno novo ser, percebemos, independendo da formação especí-fica que nos assiste na nossa condição de terapeutas, a delicadeza dessejogo de imagens e símbolos, que toma a hierarquia de uma inscrição definiti-va. É um jogo que, como no xadrez, reconhece certos tempos e jogadas comocapazes de produzir viradas decisivas. É fundamental para um terapeuta sa-ber reconhecer esses momentos cruciais e sua significação lógica.Responsável: Alfredo Néstor JerusalinskyReuniões mensais, segundas-feiras, às 17h

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Fundamentos psicanalíticos: articulações com a educaçãoA especificidade deste grupo é o campo da educação, numa leitura

psicanalítica. As questões envolvidas vão desde o que se trata do infantil,suas relações com a aprendizagem, os sintomas sociais expressos nas insti-tuições escolares, até as múltiplas relações entre a clínica infantil e a escola.As leituras propostas visam proporcionar fundamentos para a compreensãodos conceitos psicanalíticos e, portanto, referem-se aos textos freudianos quepodem estar nesta articulação com a educação.

O texto proposto inicialmente é os “Três ensaios sobre a sexualidade”,através do qual se pode trabalhar a condição inicial do sujeito e sua estruturaçãoem direção ao objeto sexual, até a puberdade.

A dinâmica do trabalho neste grupo é de que os textos freudianos (e deoutros autores que trabalham nesta intersecção como Millot, Lajonquière, etc.)sejam indicados e trabalhados, na medida em que forem se definindo ques-tões específicas do grupo, a partir da prática educativa, que possam ser to-madas numa leitura psicanalítica. É um grupo aberto a todo interessado nestaintersecção.Responsável: Ângela Lângaro BeckerReuniões mensais, horários a combinar

O eu e o issoNeuroses e psicoses na metapsicologia na década de 20

Proposta cujo objetivo é trabalhar o texto em que se funda a chamadasegunda tópica, O EU E O ISSO, bem como os textos em que aparece comoaplicação para a compreensão da psicopatologia, destacando-se Neuroses epsicoses e A perda da realidade nas neuroses e psicoses. Embora o objetivocentral seja o estudo de O eu e o isso, a disposição de abordar uma metapsicologiada década de 20 obriga a partir do Além do princípio do prazer, tradicionalmenteconsiderado ponto de partida dessa etapa da elaboração freudiana. Grupo tex-tual, então, justifica-se como estratégia de trabalho centrada em pelo menosdois textos longos e difíceis. Longos, difíceis e, é claro, fascinantes.Responsável: Eduardo de Freitas XavierReuniões quinzenais, a definir horáriosInício na 1a semana de abril/99

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

que se situam neste texto, destacamos uma via para o segmento do trabalho:- A posição do neurótico na sua relação ao desejo, o campo das iden-

tificações e a questão da clínica sob transferência.Responsável: Lucia Serrano PereiraReuniões mensais, segundas-feiras, às 10h

A topologia na clínica psicanalíticaComo trabalhar casos clínicos através da topologia; as estruturas, a

transferência, a interpretação, as formações do inconsciente, os conceitos defantasma, desejo, etc.Responsável: Ligia Gomes VíctoraReuniões mensais, 4ª sexta-feira do mês, às 17h30min

Clínica psicanalítica: alguns conceitos fundamentaisDefrontar-se com o início da prática clínica faz gerar inúmeras ques-

tões que o desafio da condução do trabalho coloca. Da mesma forma introdu-zir-se nas primeiras leituras dos pressupostos teóricos da psicanálise trazinterrogações. A pesquisa freudiana, desde o seu início, passa por várias trans-formações no que se refere ao método, à técnica e à construção dos concei-tos. O trabalho deste grupo de estudos visa resgatar os principais pontos daconstrução de alguns conceitos que estruturam o corpo teórico da psicanáli-se, enquanto essenciais à prática clínica e com ela fazendo sua articulação.Este estudo será também orientado por uma releitura a partir das contribui-ções de Lacan em seus Seminários. A trajetória inclui, necessariamente, ques-tões relativas ao início do tratamento (queixa, demanda), aos conceitos detransferência, repetição, identificação, inconsciente e sintoma e aos quadrosclínicos. Pretende-se que a introdução ao estudo destes conceitos possa serarticulado à prática, a partir de exemplos clínicos. É destinado a todos os quese sentem convocados pelo tema e pela discussão e àqueles aos quais aprática clínica psicanalítica e seus pressupostos teóricos suscita interrogantes.Responsável: Carmen BackesReuniões quinzenais, terças-feiras, às 18hInício: 16/março/99

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xão sobre estes à luz do que teoricamente é proposto pela psicanálise e/oupelos psicanalistas.Responsável: Carlos Henrique KesslerReuniões quinzenais, 2ª e 4ª quintas-feiras, 21h

Questões clínicas – a transferênciaEste grupo tem o objeto de trabalhar variadas questões inerentes à

clínica psicanalítica, sendo que o foco neste momento é a relação transferencial.Passando pelos textos freudianos: “Dinâmica da transferência” e “Observa-ções sobre o amor transferencial”, detivemo-nos naqueles capítulos do Semi-nário 1 “Os escritos técnicos de Freud”, que se referem à questão da resistên-cia e, neste ano, vamos iniciar propriamente a leitura do Seminário 8: “A trans-ferência” (1960-61). A dinâmica deste grupo pretende acolher os interessadosna formação clínica e sua metodologia planeja interlocuções sistemáticas comoutros grupos que estejam estudando o mesmo tema, como cartéis e Percur-so de Escola.Responsável: Ângela Lângaro BeckerReuniões quinzenais, segunda-feira, às 16hInício em 15/março/99

Transferência analítica: que amor é esse?Uma vez que todo ser humano é assujeitado à palavra, e que nenhum

pensamento se constrói sem um lugar de endereçamento, se abre um campode relações (discursivas) possíveis e necessárias para que se desenvolva acondição humana. É dessa generalidade fundamental que parte a psicanáli-se, descobrindo os fenômenos da transferência quase que paralelamente aosdo inconsciente.

Mas, se a possibilidade da transferência está dada desde as opera-ções fundadoras do sujeito, o que ela é quando se trata de fins analíticos?Como considerá-la quando é ao analista que se endereça essa fala que buscarecuperar a consistência perdida do corpo, a significação sempre inalcançável,que esperamos encontrar no olhar do semelhante?

Toda transferência analítica aproxima analista e analisante desse an-gustiante ponto de origem, do vazio que a constituição do sujeito deixou e das

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O feminino e sua escuta através dos temposEste visará percorrer a teoria freudiana e lacaniana sobre o feminino,

analisando suas concordâncias e diferenças. O contexto cultural-conceitualde cada teoria e o atual serão abordados, objetivando questionar o mutável eo imutável no que tange à escuta do feminino.Responsável: Lúcia Alves MeesReuniões quinzenais, sextas-feiras, às 15hInício em abril/99

Psicanálise de criançasPoucos territórios demandam tantas explicações quanto o da psicaná-

lise de crianças: interrogações sobre a origem e sobre os mecanismos psíqui-cos que espreitam por trás do desejo de saber o bom destino de todos nós.

Sabemos menos do que gostaríamos, porém deixaremos que algu-mas leituras e casos clínicos nos ponham a falar. Para tanto debruçaremosnossa atenção sobre o tema do sujeito na infância, mais especificamente noque concerne às pulsões e ao narcisismo, à sexualidade e ao Édipo, às fun-ções parentais, aos sintomas de estrutura, à inscrição significante, ao fim dainfância e às estruturas clínicas.

Obviamente a clínica será objetivo e meio destas reflexões, de ondenos remeteremos aos pontos específicos da transferência, do trabalho comos pais, da interpretação, dos sintomas clínicos e da direção da cura.Responsáveis: Ana Marta Meira, Beatriz Reis, Diana Corso, Eda Tavares, MartaPedó e Nilson SibembergReuniões quinzenais, quartas-feiras, às 20h30min

Psicanálise e o contemporâneoAbordagem de textos e autores que vem se debruçando sobre a articu-

lação psicanálise e cultura (textos da APPOA em livros, revista, correio, textosde Calligaris, Otávio de Souza, Jurandir Freire Costa, Luis Cláudio Figueiredo,Joel Birman, etc.).

Ainda, acompanhamento de produções que venham sendo reiviculados/repercutidos pela mídia: jornais, revistas, televisão, cinema, propondo a refle-

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Psicanálise e educaçãoDestinado a professores, psicólogos, pedagogos e demais interessa-

dos em estudar a articulação entre psicanálise e educação. Propõe-se comoum espaço de discussão e pesquisa interdisciplinar, a partir de pressupostosda psicanálise e de textos contemporâneos que trabalhem este tema, propor-cionando subsídios para repensar os impasses atuais da educação.

O professor encontra-se hoje num momento de desamparo: suas cer-tezas, sua experiência, seus conhecimentos já não mais dão conta da com-plexidade das questões com as quais ele se depara na escola. Enfrenta, as-sim, particularidades para as quais não se sente preparado, tais como: afragilização das funções parentais no processo educativo, o inchaço imaginá-rio de nossos tempos, a supremacia do individualismo sobre o coletivo, aabertura da escola para o ingresso de crianças com dificuldades acentuadas,seja da ordem da deficiência (mental ou física), seja da ordem da psicose. Oleque com que o professor tem que trabalhar hoje é de uma diversidade ecomplexidade tais que não se pode esperar da pedagogia apenas a sustenta-ção deste trabalho. É preciso que o professor possa se interrogar desde umoutro ponto de vista que não o estritamente pedagógico, para que sua posiçãode ensinante não se cristalize num lugar de saber, ou num lugar de inoperânciae fragilidade.

A psicanálise contribui com algo importante para este repensar sobre afunção do professor e o ato de ensinar. Aporte que nos parece necessário àpedagogia, tão impregnada de saberes psicologizantes, os quais, nas últimasdécadas, têm levado a uma postura classificatória e rotuladora do desenvolvi-mento infantil e dos chamados “problemas de aprendizagem” (que, via deregra, são atribuídos a uma deficiência, disfunção ou psicopatologia do aluno).

Portanto, resgatar o papel educacional do professor, fazendo com queele tenha que pensar o ato de ensinar (e de aprender!) a partir de outro lugar,não é tarefa fácil, nem simples.

Freud considerava “educar” uma das três profissões impossíveis. Istoé: a educação traz no seu bojo algo de uma impossibilidade. Se o professornão puder defrontar-se com a impossibilidade de o aluno corresponder aosseus ideais, sem sentir-se narcisicamente lesado com isto, cairá no terreno daimpotência – seja esta atribuída ao aluno ou a ele próprio.

Na educação o que se transmite não é o conhecimento. Trata-se de

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contradições próprias do inconsciente. Se a aproximação a esse ponto é fun-damental na cura, é também aí que ela se depara com seus limites.

Essa aproximação não se dá com as garantias do uso de uma técnica,que apartaria o analista da falta que está em questão. Não é sem angústiaque o analista se deixa freqüentar e dividir pelas diferentes identificações,propostas no encadeamento discursivo de seu analisante.

O apelo ao amor constituirá um risco sempre presente, servindo o pró-prio amor transferencial aos interesses da resistência, podendo relançar naanálise o impasse subjetivo que pretendia tratar.

Como suportar as vacilações e efeitos contraditórios, peculiares aotrabalho analítico, sem fixar-se ou desconhecer os variáveis pólostransferenciais onde o analista, a cada momento, é situado, e permitir a emer-gência do saber inconsciente? Como sublinhar a ausência, a disjunção, ehabitar o não sabido, quando todo o discurso circundante idealiza a corres-pondência amorosa? É impactante verificar o quão rapidamente o amor setransforma em ódio, com uma violência que será inevitável e proporcional àfalha no saber.

Se o amor transferencial é essencial, ele não basta. A cura exige ou-tras operações, além da fraternidade amorosa.Responsável: Liz Nunes RamosReuniões quinzenais, quintas-feiras, às 19h30min

NOVO HAMBURGO

Introdução a alguns conceitos básicos de psicanáliseEste grupo temático, como seu próprio título indica, tem como eixo a

“Introdução de alguns conceitos básicos de psicanálise”, e é endereçado àque-les que estão buscando uma aproximação com a psicanálise e desejam inici-ar um estudo sobre a mesma.

Temos, como norte do trabalho, o propósito de introduzir mais um es-paço de estudo, transmissão e interlocução em psicanálise, de seus conceitose suas contribuições ao social e ao singular do sujeito.Responsáveis: Eloisa Santos de Oliveira e Débora Salete PivaReuniões quinzenais, quartas-feiras, às 17h30minInício em março/1999

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lítica, tanto do lado do analisante quanto do lado do analista, enquanto nossitua nos limites do desamparo humano. As questões daí decorrentes, comoo problema do Outro e o desejo e sua dialética de alienação e separação, nosremetem para o que seja o ato psicanalítico. Os problemas que se colocamdo lado do analista, que não opera sem pagar um triplo preço (de seu ser, desua palavra e de seu ato), as posições subjetivas possíveis frente ao desam-paro na escuta do outro, e as formas de resistência à coisa psicanalítica,assim como a economia da indagação sobre o bem-fundado do lugar de ana-lista, nortearão nosso trabalho.Bibliografia: J. Lacan, Seminário 10 - A angústiaResponsável: Mario FleigReuniões nas sextas-feiras, às 14h

FOZ DO IGUAÇU

O reconhecimento do valor fálico do sujeito na toxicomaniaResponsável: Silvia Spertino ChagasReuniões semanais, segundas-feiras, às 10h

BRASÍLIA

Fundamentos sobre o desenvolvimento infantil: noções básicas para diagnóstico e tratamento

Responsável: Marilia Macedo Klotz

GRUPOS TEXTUAIS

PORTO ALEGRE

As relações da angústia e as questões da estruturaTomamos como referência o seminário de Lacan: A angústia

(L‘Angoisse) de 1962-63, onde ele estuda os paradoxos da clínica psicanalíti-ca e suas especificidades quanto à estrutura, que é a mesma da linguagem.

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

outra coisa: outra coisa que permitirá o acesso ao conhecimento. Mas não só:a própria constituição psíquica, social e moral será dela resultante.

Estas e outras articulações nos parecem essenciais que sejamaprofundadas com profissionais da área de educação, tanto os que estãodiretamente em contato com as crianças e adolescentes, quanto com os queassessoram esse trabalho. Enfim, são questões pertinentes a todos que estãoenvolvidos com a educação.

Segundo o pensamento de Freud e Lacan, além da leitura de psicana-listas e pesquisadores atuais, como: Lajonquière, Maria Cristina Kupfer, AlfredoJerusalinsky entre outros, é que nos propomos a adentrar neste tema.Responsável: Ieda Prates da SilvaReuniões quinzenais, horários a combinarInício na 2ª quinzena de março/99

SÃO GABRIEL

Sexualidade femininae alguns conceitos fundamentais da psicanálise

Informo que no decorrer deste ano daremos prosseguimento ao gru-po temático: “Sexualidade feminina e alguns conceitos fundamentais da psi-canálise”.

Propomos continuar trabalhando as questões relativas à mulher e àsexualidade, articulando-as com conceitos fundamentais, surgidos através dasindagações dos integrantes do grupo, acerca de: Repressão, Formações doinconsciente, Narcisismo, Pulsão e Repetição.Responsável: Silvia Carcuchinski TeixeiraReuniões quinzenais, segundas-feiras, 18hInício na 2ª quinzena de março/99

SÃO LEOPOLDO

A angústia e a direção da curaTemos por objetivo examinar a função da angústia na clínica psicana-

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alguma coisa e não ocorre nada, pois o que ocorre à linguagem não ocorre aodiscurso. O que “acorre”, o que “se vai” à fenda das duas margens, o interstícioda fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na se-qüência dos enunciados; não devorar, não engolir, mas aparar com minúcia,redescobrir, para ler esses autores, o lazer das antigas leituras.” (O prazer dotexto).

Estamos oferecendo um espaço especialmente dedicado à leitura detextos psicanalíticos de pequena extensão, e sem compromisso de preparoprévio. Leitura e discussão, naturalmente. Textos os mais variados, incluindoautores que sejam, no momento, do interesse dos colegas (co+legère=ler jun-tos) do grupo em questão, ou mesmo a leitura de determinados artigos, cujosassuntos estejam em pauta ou referenciados a algum movimento de estudona APPOA.

Assim, a leitura minuciosa de um escrito, com função de provocar umestudo detalhado, de-talhado, pretende fornecer um leque de possíveis deba-tes em temas por onde circulará a transferência de trabalho, a par com odesejo de aprofundamento teórico, sempre faltante em cada um.

Por outro lado, a leitura e o trabalho em textos psicanalíticos, a partirda originalidade da letra de Freud e Lacan, levam a colocar o leitor num lugaronde, em determinados pontos, esses escritos não constituem sentido. Osequívocos dessa leitura esburacada constituem aquilo a partir do qual cadasujeito estará como que forçado a pensar.

“Nenhum sentido (pas de sens) a verdade desnuda – dirá Lacan -, olugar donde brota a desnudez é o vazio do poço do significante.”

Responsável: Maria Auxiliadora Pastor SudbrackReuniões a combinar

Seminário IV: A relação de objeto e as estruturas freudianas [1956-57]Dando continuidade ao estudo deste Seminário, iniciaremos em março

na referência de Lacan aos conceitos de objeto fetiche, alternância das identi-ficações perversas, fixação na imagem e a função do falo simbólico. A leituradeste texto de Lacan inclui, alternadamente, os textos de Freud trabalhadospor ele neste Seminário, como: “Três ensaios sobre a sexualidade”, “O jovemhomossexual”, “O caso Dora”, “O pequeno Hans” e outros. As questões que

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Enfoca aí a angústia como nó, ponto preciso onde se articulariam cer-to número de termos, que até o presente não haviam podido aparecer sufici-entemente juntos, e que, ao se relacionarem mais estreitamente, cada umdeles ocupará ainda melhor o seu lugar.

Neste seminário irá contrariar as posições anteriores, isto é, que aangústia seria um temor sem objeto. Ele reverterá esta afirmação ensinandoque a angústia não é sem objeto. A questão será definir este objeto. Então, aangústia introduzirá a questão da falta, a busca desse objeto perdido, qualifi-cado por Lacan como causa de desejo, objeto a, sem o qual não há angústia.

Dessa forma, a angústia surge quando a falta vem a faltar (05/12/1962); é a ameaça da presença do seio materno; é a inquietante estranheza –familiaridade (heim); é o Homem dos Lobos vendo-se olhado pelos olhos deseu fantasma na abertura súbita de uma janela; é o que nos impede a palavra.

Na última aula (03/07/1963) explica: A função angustiante do desejodo Outro está ligada ao fato de que não sei que objeto a sou eu para essedesejo. E mais adiante conclui: Não há superação da angústia senão quandoo Outro é nomeado (l’Autre s’est nommé).

É importante salientar que, ao longo desse seminário, Lacan revisa eavança no estudo do esquema ótico, apresentando aí uma nova representa-ção a propósito do objeto a. E mais, além de enfatizar suas posições a respei-to dos impasses da clínica, do problema do symptôme e do fim da análise, vaisublinhar a questão do Outro (A), esse terceiro, não só sempre presente como nosso semelhante, como nosso interlocutor privilegiado, lugar da interroga-ção reenviada. “Que me veux – tu?” que me quer?Responsável: Maria Auxiliadora Pastor SudbrackReuniões quinzenais, quintas-feiras, às 14h15min

Momento de lerIniciemos com Roland Barthes, ao escrever: “Daí dois regimes de leitu-

ra: uma vai direto às articulações do escrito, considera a extensão do texto,ignora os jogos de linguagem; a outra leitura não deixa passar nada: ela pesa,cola-se ao texto, lê com aplicação, apreende em cada ponto do texto o assíndetoque corta as linguagens... leiam atentamente.

Leiam depressa, esse texto torna-se opaco: vocês querem que ocorra

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SÃO PAULO

Seminário XX: Mais, AindaResponsável: Ana Maria da CostaReuniões mensais, 1ª segunda-feira do mês

CARTÉIS

PORTO ALEGRE

A transferênciaIntegrantes: Adriane Souza da Silva Schein, Andréa Giesen Lompa, DeniseTeresinha da Rosa Quintão, Maria Tereza Osvald, Regina de Souza Silva,Thaís Maciel de Mesquita e Sonilda Ibrahim HusseinReuniões semanais, sextas-feiras, às 9h

As relações de objeto (iniciado em março de 1998)Integrantes: Diana Corso, Eduardo Mendes Ribeiro, Mário Corso e RosaneRamalhoReuniões quinzenais, quartas-feiras, às 21h

Brasil 500 anos – redescoberta, memória e invençãoIntegrantes: Alfredo Jerusalinsky, Ana M. da Costa, Conceição Beltrão, Enéasde Souza, Jaime Betts, Ligia Víctora, Liliane Froemming, Lucia Serrano Perei-ra, Maria Ângela Brasil, Maria Auxiliadora Sudbrack, Mario Fleig e Robson deFreitas PereiraReuniões mensais (em datas a serem combinadas)

Cartel do interior - Neurose obsessiva na atualidadeMaiores informações: Margareth Kuhn Martta

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

norteiam os debates giram em torno da compreensão das estruturas do sujei-to, sua condição estruturalmente perversa, suas manifestações na clínica eno social.Responsável: Ângela Lângaro BeckerReuniões quinzenais, terças-feiras, às 18h30minInício em 16/março/99

PASSO FUNDO

Seminário XIEstamos no segundo ano de trabalho conjunto, sendo que para 1999

planejamos estudar um texto apenas, procurando discuti-lo profundamente.Assim, estaremos trabalhando sobre o Seminário XI de Jacques Lacan – Osquatro conceitos fundamentais da psicanálise.Responsável: Marta PedóReuniões mensais, 1 0 sábado do mês, às 14hInício em 03/abril/99

RIO GRANDE

Seminário IV: A relação de objeto e as estruturas freudianas [1956-57]Dando continuidade ao estudo deste Seminário, iniciaremos em março

na referência de Lacan aos conceitos de objeto fetiche, alternância das identi-ficações perversas, fixação na imagem e a função do falo simbólico. A leituradeste texto de Lacan inclui, alternadamente, os textos de Freud trabalhadospor ele neste Seminário, como: “Três ensaios sobre a sexualidade”, “O jovemhomossexual”, “O caso Dora”, “O pequeno Hans” e outros. As questões quenorteiam os debates giram em torno da compreensão das estruturas do sujei-to, sua condição estruturalmente perversa, suas manifestações na clínica eno social.Responsável: Ângela Lângaro BeckerReuniões mensais, horários a combinar

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PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

PERCURSO DE ESCOLA

3ª TURMA – QUINTO SEMESTREEixo-Temático: TransferênciaFREUD: Maria Ângela Brasil e Rosane RamalhoA dinâmica da transferência (Freud, v. XII)Correspondência Freud-Fliess (Freud, v. I)LACAN: Adão Costa e Lucia Pereira1. Aulas do Seminário VIII, A transferência2. Intervenção sobre a transferência (Escritos)TRABALHO EM PEQUENOS GRUPOSCOM TEMA ESCOLHIDO PELOS ALUNOS- Psicanálise de crianças:Alfredo Jerusalinsky, Eda Tavares, Diana Corso e convidados- Psicose:Adão Costa, Maria Auxiliadora Sudbrack, Rosane Ramalho e convidados- Neurose:Liz Ramos, Lúcia Mees, Roséli Cabistani e convidados

4ª TURMA – PRIMEIRO SEMESTREEixo-Temático: O INCONSCIENTEFREUD: Carlos Henrique Kessler e Mário CorsoO inconsciente (Freud, v. XIV)A interpretação dos sonhos (Freud, v. IV)Os chistes e a sua relação com o inconsciente (Freud, v. VII)Psicopatologia da vida cotidiana (Freud, v. VI)LACAN: Maria Auxiliadora Sudbrack e Mario FleigAulas dos seguintes Seminários:O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (Seminário II)A relação de objeto e as estruturas freudianas (Seminário IV)As formações do inconsciente (Seminário V)

Cartel preparatório para“Relendo Freud e conversando sobre a APPOA”

Texto: Análise terminável e interminável. Trabalho de discussão e tradução.Integrantes: Ana Maria da Costa, Ana Marta Meira, Conceição Beltrão, JoséLuiz Caon, Liz Nunes Ramos, Maria Auxiliadora Sudbrack, Mario Fleig, Robsonde Freitas Pereira e Valéria RilhoReuniões de março à maio de 1999Obs.: O texto bilíngüe (português/alemão) encontra-se à disposição na APPOA

Comentários escritos ao seminário “O avesso da Psicanálise”Integrantes: Jaime Betts, Miguel Massolo, Osvaldo Arribas, Robson Pereira eRodolfo Ruffino

EnvelhecimentoInformações com Liliane Froemming e Jaime Betts

Estruturas ClínicasIntegrantes: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli Felippi,Maria Elizabeth da Silva Tubino e Sílvia Carcuchinski TeixeiraReuniões quinzenais, sextas-feiras, às 9hPara maiores informações: Maria Elizabeth Tubino ou Maria Cristina Felippi

NOVO HAMBURGO

Psicanálise de criançasReuniões quinzenais, quintas-feiras, às 19h30minMaiores informações com Ieda Prates da Silva

REUNIÕES TEMÁTICO-CLÍNICASAs reuniões temático-clínicas prosseguirão durante o ano de 1999.

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO

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APRESENTAÇÃO

Aseção temática deste número do Correio da APPOA apresentaum conjunto de textos que se associam ao tema de nossa jorna-da de abertura deste ano.

Observada por Freud desde os primórdios de seu trabalho com ahisteria e experienciada por ele em sua auto-análise com Fliess, a trans-ferência vem sustentando a prática da psicanálise ao longo de sua his-tória. Abordar a transferência remete ao percurso traçado por cada umem sua inscrição no campo da psicanálise. Trata-se do “coração denossa experiência”, diz Lacan na primeira aula do seminário que dedi-cou a este tema. Considerada por ele como um dos quatro conceitosfundamentais da psicanálise, a transferência é constantementeinterrogada, na medida em que alicerça nossa prática clínica e nossavida institucional.

A série de textos que compõe esta seção temática percorrem oconceito de transferência e as questões por ele suscitadas neste mo-mento.

Agradecemos a todos que, de alguma forma, contribuíram comesta edição, na produção de textos, revisão e transcrição.

Uma boa leitura a todos.

Gerson Smiech Pinho

TEXTOS CLÍNICOS: Diana Corso e Liliane FroemmingEstudos sobre a histeria (Freud, v. II)Neuropsicoses de defesa (Freud, v. III)Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa (Freud, v. III)CONTEXTUAL: Francisco SettineriLingüística

EVENTOS 1999 – 10. SEMESTRE

JORNADA DE ABERTURA: OS DESTINOS DA TRANSFERÊNCIAData: 27 de março de 1999Local: Parthenon Piazza NavonaInscrições abertas

RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOATexto: Análise terminável e interminávelData: 28, 29 e 30 de maio de 1999Local: Hotel Laje de Pedra (Canela/RS)

Comissão de Ensino da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, Liz Nunes Ramos,Lúcia Alves Mees, Lucia Serrano Pereira, Maria Ângela Cardaci Brasil,

Mário Corso, Mario Fleig, Marta Pedó, Robson de Freitas Pereira,Rosane Monteiro Ramalho.

PROGRAMAÇÃO DE ENSINO SEÇÃO TEMÁTICA

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outro livro). Sóbrio, nada de luxo. Comum e ao mesmo tempo ímpar,completamente especial. O que é a transferência...

“Quase tudo como Lacan deixou”...Com uma ressalva importante: ao entrarmos no “cabinet” propri-

amente dito fomos alertados – “o divã, esse não. Não é o original. Masesta é uma réplica perfeita!” (não guardei qual foi o destino do divã,parece que foi a leilão). E logo o divã não é o “de verdade”...

Abdulaye segue nos levando e nos falando de seu convívio comLacan, de como a seu ver (e na visão dos Miller também, por suposto)se deram as polêmicas em torno da herança, como foi difícil preservaro consultório da ganância dos filhos que só queriam dividir o dinheiro;de suas hipóteses sobre a doença de Lacan, de seu cotidiano.

Conta, como uma piada, que o identificaram em algumas refe-rências biográficas como tendo sido o motorista de Lacan. E é verdadeque ele o conduzia. A piada é que Abdulaye levava Lacan no seu car-rinho “deux chevaux” (brincando, como se fosse um fusquinha), “sefosse motorista, imaginem se seria esse o carro do Dr. Lacan...” Eleafirmava não ter nenhum problema em ser tomado pelo motorista, mastambém estudava psicanálise, acompanhava o ensino de Lacan.

Nossa visita foi desdobrando-se nessa conversa por um bomtempo. Ele parecia não ter nenhuma pressa, nós muito menos. E foiem uma dessas voltas que, inesperadamente, Abdulaye chorou. Fala-va da doença, do sofrimento e da morte de Lacan. Se emocionava,levando aos olhos o lenço todo amarrotado. Nos tocou, nos surpreen-deu.

Na saída, nos perguntávamos o que tinha acontecido. Seria umefeito das perguntas com as quais o cercamos, das indagações queforam surgindo de todos os lados, desde as mais sérias - afinal, estáva-mos no consultório de Lacan - até as mais bobas, curiosas e bisbilho-teiras: como Lacan fazia isto ou aquilo, onde, de que maneira, comquem? Como aconteceu, como Lacan se viu com tal situação?

SEÇÃO TEMÁTICA

“CHEZ LACAN”

Lucia Serrano Pereira

Onze horas da manhã, janeiro. Formávamos um grupo um pou-co alvoroçado na rua, pelo frio e pela expectativa, reunidosesperando o momento de entrarmos no prédio. As visitas eram

marcadas antecipadamente com Judith Miller, grupos pequenos a cadavez. Era nossa hora. Impacientes, pois nossos colegas que formavamo grupo anterior demoravam. Attendez, s’il vous plait.

Não era fácil esperar para entrar no consultório de Lacan. Elessaem, não queremos saber de conversa, já estamos vendo o pátiointerno, há quem tire fotos junto à árvore – vejam, esta é a árvore dacapa do Seminário 3! (fascínios dos fetiches? E todos psicanalistas?)

Somos recebidos por um homem extremamente simpático, edu-cado e respeitoso, que nos convida a entrar (até que enfim!). Ele seapresenta, é Abdulaye Yerodia. O marido de Glória, que havia sido afiel secretária de Lacan por tantos anos. No álbum “Visages de monpère”, lá está Lacan, a filha, Abdulaye e Glória, a foto do casamento doqual Lacan havia sido testemunha, em 1969. Abdulaye é o nosso anfi-trião do momento, ao mesmo tempo em que vai nos conduzindo aoapartamento, começa a conversa. Conta muitas histórias. Nos apre-senta cada ambiente. Aponta, nas paredes da sala de entrada, os nóscoloridos que Lacan manuseava... “isto não estava assim”, ele explica,esses nós foram enquadrados depois da morte de Lacan, mas no ge-ral” está quase tudo como Dr. Lacan deixou. Nos últimos tempos, Dr.Lacan praticamente não saia daqui, trabalhava, recebia os analisantes,preparava os seminários, fazia as refeições, cabeleireiro, barbeiro, al-faiate, todos. Muita gente vinha vê-lo, falar com ele.”

Poltronas, estantes repletas de livros, como era de se esperar(telas cobrindo as prateleiras, vá que cada um queira examinar um ou

PEREIRA, L. S. “Chez Lacan”.

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No quadro da parede está o esboço que André Masson fez paraLacan, Eros e Psiquê em poucos traços, o destaque para as gotas desangue que ali são ressaltadas. Não é possível desdobrar aqui o recor-rido das questões, mas, em resumo, castração e desejo.

Não se trata em Eros e Psiquê do conjugal ou das relações entreos homens e as mulheres, mas sim das relações entre a alma e odesejo. O que Lacan indica quanto ao quadro de Zucchi é que o artistanessa imagem captou o instante da aparição, de nascimento de Psiquê,essa espécie de “troca de poderes” que faz com que ela ganhe corpo.

O que importa é que ela só começa a viver a partir daí: “nãosimplesmente como provida de um dom inicial extraordinário que a fazigual a Vênus, nem tampouco por um favor mascarado e desconhecidoque lhe oferece uma felicidade infinita e insondável, mas enquantosujeito de um pathos que é, propriamente falando, aquele da alma, nomomento em que o desejo que a cumulou se esquiva e foge dela.”(Seminário - A transferência, p. 226)

Psiquê vai passar por toda uma série de desgraças que serão assuas, diz Lacan, antes que feche o circuito e venha a reencontrar aqui-lo que naquele instante ela quis desvelar e capturar: a figura do desejo.

Se as flores, no quadro, são em tal profusão, é só para que nãose possa ver que por detrás não há nada. “Aquilo que Psiquê está aponto de cortar já desapareceu diante dela.” (pg. 229)

Se o falo, enquanto significante, tem um lugar, é o de fazer asuplência no ponto onde o Outro é constituído por haver, em algumlugar, um significante que falta.

“Quase tudo como Lacan deixou...” A frase de Abdulaye insistia.Possivelmente ia na direção de nos animar, de nos bem acolher, de umnão se preocupem, está quase...

Terminada a visita, já do lado de fora, reconhecemos certo mal-estar. Esse lugar que se preserva quase intacto, sabe-se lá, o mortopoderia entrar a qualquer momento como se ao descer as escadas

SEÇÃO TEMÁTICA

Com certeza essa visita para nós não foi pouca coisa. Saímosafetados, evidentemente por nossa filiação à psicanálise e pela refe-rência à pratica e à transmissão que Lacan operou. Ao mesmo tempo,talvez, pelo retorno que nos vinha de nossas próprias perguntas, que,de alguma forma, desdobrava com certa exuberância todos os recan-tos pelos quais passam os efeitos da transferência.

Houve um momento em que Abdulaye se deteve longamenteconosco. Na biblioteca, que também servia como uma das salas deespera (inevitavelmente marcada pela sobreposição dos fragmentosdos relatos de Pierre Rey e de Jean G. Godin) uma gravura sobre amesa, e um quadro na parede: Eros e Psiquê. A gravura – reproduçãodo quadro de Zucchi “Psiche sorprende Amore”, sobre o qual Lacantrabalha em seu seminário “A Transferência”, na aula que foi intituladana versão em português “Psiquê e o complexo de castração”.

Feliz encontro! Nunca foi fácil acompanhar a descrição minucio-sa do quadro como Lacan propõe em seu seminário, tentando nos daros planos, o jogo de luz, a distribuição dos lugares, os gestos, os traçose ainda o suporte que o quadro de Zucchi toma em “O asno de Ouro”de Apuleyo – a narrativa da trama entre Eros e Psiquê.

Psiquê porta em uma das mãos uma lâmpada de azeite queilumina a cena e, na outra uma navalha. A narrativa de Apuleyo diz desua curiosidade e conseqüências, ela transgride a única proibição: pôrluz, olhar sobre seu amante divino que vinha à noite e partia antes dosol nascer. Eros já havia alertado: vê-lo implicaria a sua perda, e detodos os dons que a cercavam.

A luz e a navalha, para o olhar e para o corte, caso este amantefosse um monstro/serpente, como as irmãs, por inveja, faziam Psiquêacreditar. Ao deparar-se com a beleza de Eros (seu sexo oculto por umbuquê de flores) Psiquê, em sobressalto, corta-se com a navalha. Caisobre Eros uma gota do óleo fervendo que o desperta e o faz sofrer porlongo tempo.

PEREIRA, L. S. “Chez Lacan”.

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Tenho as fotos. Do lado de fora, pois de dentro era proibido.Mas “Chez Lacan”, nunca fui. Tivemos, isto sim, uma experiên-

cia cara, valiosa, interessante no espaço que segue marcado pelo fatode ter sido, um dia, onde Lacan trabalhou. Consultórios e suas salas,só mesmo aqueles por onde transitei, do analista com o qual me anali-sei (e lá não tiramos fotos), dos espaços de supervisão, e por onde hojesigo a prática clínica. Transferências.

“Chez Lacan”, só mesmo no deslizamento da significação dotermo em francês, não o da casa, mas no da obra. “Em Lacan”, em suaobra. Sem que precise ficar intacta.

SEÇÃO TEMÁTICA PEREIRA, L. S. “Chez Lacan”.

pudesse ter se dado conta de que esquecera o charuto aceso. É comose constituísse um espaço intermédio, um tipo de limbo: preservado, eao mesmo tempo não portando ainda as características, os sinais doque já tombou enquanto patrimônio da cultura - livros, cartões etc, tudoo que podemos encontrar nos museus, enter, exit. Indícios que podematé atrapalhar o clima, mas situam que ali algo se concluiu e reinscre-veu-se de outra maneira.

Poder concluir, desatar.Voltando ao hotel encontramos os amigos do pequeno grupo das

9:30 (os que entraram antes). Troca de impressões, mil observações,surpresa: Abdulaye chorou conosco também! Como assim? Não fo-mos os únicos? Mas e ele? Dezesseis anos depois da morte de Lacanse emociona ainda todo o dia?

Aí, Cazuza, será que “faz parte do meu show, meu amor...”?Não importa, se é a cada dia, a cada turno ou a cada visita, show

e/ou verdade, já sabemos do quanto se conjugam. Prefiro ser grata aesses momentos compartilhados com Abdulaye. Ainda bem que é qua-se, Abdulaye.

Concluir tem a ver com poder dispensar as lágrimas que chora-mos na esperança de que o Outro viesse a responder definitivamente.E é sob transferência que se possibilita essa experiência, nos permitin-do de algum modo levar em conta este ponto de ausência: há umafalta no Outro. Há que poder suportá-la.

Interessante que nisso estávamos, em torno do quadro, em umlugar não qualquer. Na biblioteca de Lacan? Talvez nós tenhamos acre-ditado desde a entrada, desde as fotos junto à arvore, que estávamosefetivamente “Chez Lacan”. Não há como fugir da passagem pelo fas-cínio, pelo fetiche/feitiço dos objetos. Só transitando por aí é que pode-mos vir a dispensar alguns lugares. Não teria como ter passado pelaporta do “5 rue de Lille” e dizer não me interessa, não entro, melhor irpara o café da esquina.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Em 1972, Jacques-Alain Miller aceita o desafio e lança-se natranscrição do Seminário XI3, o mesmo que havia marcado a entradade Lacan na École Normale Supérieure. Em um mês, ele redige umaversão a partir de estenografia. Lacan aprova o trabalho e é estabele-cido um contrato pela Seuil, no qual o nome de Lacan aparecia comoúnico autor da obra. A partir de algumas considerações de Lacan apropósito da participação de Miller, é elaborado um contrato definitivo,estipulando que Miller tornava-se co-autor do Seminário, cujo estabe-lecimento ele assegurava, e pelo qual receberia uma remuneração.

Miller determina então uma divisão do conjunto em volumes nu-merados. A ordem de aparecimento das obras obedecia a uma con-cepção “milleriana” da história do lacanismo. Assim, o primeiro semi-nário publicado, em fevereiro de 1973, era o décimo primeiro da lista,ou seja, do ano de 1963-64, que marcava a ruptura de Lacan com aIPA, sua entrada da ENS e seu encontro com o futuro co-autor. Naverdade, o corte em 1963-64 separava a obra de Lacan em duas ver-tentes: uma “anterior a Miller” e outra “posterior a Miller”. Advém daíuma dupla temporalidade - cada ano veria a publicação simultânea dedois volumes: um para o período “pré-milleriano” (1953-1963) e outropara o período posterior. Para o primeiro período, a ordem cronológicaseria respeitada: I a XI; para o segundo período, a ordem seria inverti-da. O seminário mais recente pronunciado por Lacan seria transcrito,retornando até o volume XI.

Tal organização jamais foi completamente respeitada. No anode 1975 são editados o volume I (1953-54) e o volume XX (1972-73).Só três anos depois é publicado o volume II (1954-55). Mais três anosserão necessários para sair o volume III (1955-56). Outro problemasão as publicações, que começam a surgir em 1974, de fragmentos

3 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

SEMINÁRIO DA TRANSFERÊNCIA:DESDOBRAMENTOS E CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS

NA ADMINISTRAÇÃO DE UMA HERANÇA

Ana Maria Gageiro

Ahistória da transcrição dos Seminários é, no mínimo, movi-mentada se quisermos economizar nossos adjetivos. É impor-tante darmos uma breve olhada para os impasses na adminis-

tração desta herança e aqui, mais especificamente, no que concerneao seminário A transferência1, na medida em que se trata de uma he-rança com a qual estamos todos nós lacanianos implicados.

Desde 1953, Lacan encarrega um estenotipista de transcreverseu seminário. Estes textos eram entregues a Wladimir Granoff, quese encarregava da biblioteca da Sociedade Francesa de Psicanálise eos colocava à disposição de seus membros. De 1956 a 59, Jean-BertrandPontalis realiza, com a aprovação de Lacan, resumos de A relação deobjeto, das Formações do inconsciente e de O desejo e sua interpreta-ção2. Solange Faladé propõe o uso do gravador, o que foi feito em1962, além das anotações feitas por numerosos discípulos, que sãoaté hoje fonte de informação excepcional.

Em 1963, uma equipe da clínica de La Borde, sob a direção deJean Oury e Ginette Michaud, trabalha na difusão de centenas de exem-plares dos seminários realizados a partir das gravações. Em 1970, atarefa de transcrição dos Seminários é confiada a Jacques Nassif. AÉcole Freudienne de Paris comprometia-se a pagar-lhe um salário naforma de antecipação de direitos a serem pagos pela Seuil. Nassif en-carregou-se de D’un Autre à l’autre, mas o projeto não teve continuidade.

GAGEIRO, A. M. Seminário da transferência: desdobramentos...

1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 8. A transferência. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.2 A lista das diversas versões dos seminários de que dispomos na biblioteca foi publicada noCorreio n° 59, de julho de 1998.

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SEÇÃO TEMÁTICA

errôneos ou ainda enganar-se quanto a nomes ou noções.A partir de 1978, as Éditions du Seuil decidem processar todos

os divulgadores de textos estenografados. Esses textos eram vendidostanto nas livrarias quanto nas mesas de congressos da EFP.

É em torno da revista Littoral que se cria, em 1983, uma asso-ciação destinada a transcrever os seminários de Lacan. Ela publica umboletim Stécriture5, que reproduz várias sessões do Seminário VIII (Atransferência). Esta transcrição era uma versão da estenografia com adevida correção dos erros. Eram respeitadas as normas universitárias:notas, aparato crítico, indicação das variantes. O trabalho rompia como método milleriano, possuía certo peso de estilo, demasiados comen-tários; mas era mais confiável do ponto de vista científico que o deMiller. Os autores haviam infringido a lei ao comercializarem o boletimpara reembolsar seus gastos. Foram processados judicialmente pelaSeuil e pelo executor testamentário. No final de 1985, foram condena-dos. Miller ganha a batalha jurídica e triunfa. Declara à imprensa quedoravante é o único intérprete da fala lacaniana. Mas o processo movi-do contra Stécriture havia revelado publicamente que o herdeiro legíti-mo não era o único conhecedor dos textos lacanianos.

Neste processo, Philippe Sollers defende a causa de Stécriture.Laurence Bataille também apoia os adversários de seu cunhado.François Wahl intervém igualmente no processo, mas em favor de Miller.

A partir de 1991, o antigo Le Champ Freudien tornou-se ChampFrudien sob a direção de Judith e Jacques-Alain Miller. Dentre as publi-cações daquele ano estavam os seminários A transferência (VIII)6 e Oavesso da psicanálise (XVII)7. Esta publicação do Seminário VIII, seis

5 É a expressão utilizada por Lacan ao referir-se ao fato dos seminários serem estenografados.Palavra-valise que é a associação de sténographie (estenografia) a écriture (escrita).6 LACAN, Jacques. O seminário, livro 8. A transferência. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.7 LACAN, Jacques. O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar,1992.

dos seminários mais recentes (vol. XXII, XXIII, XXIV) na revista Ornicar.Após a morte de Lacan, nada mais permanece da organização prome-tida para a transcrição dos seminários. Eles passam a ser transcritosem ordem dispersa e sem periodicidade: o volume VII (1959-60) é pu-blicado em 1986 e o volume VIII (1960-61) em 1991, juntamente com oXVII (1969-70).

É interessante chamar a atenção para o significante estabeleci-mento. Depois de maio de 1968, chamava-se estabelecimento o atopelo qual um militante decidia trabalhar em fábrica e tornar-se um “es-tabelecido”. Nas fábricas de automóveis, esse termo também designaa mesa de trabalho em que o operário antigo retoca as portas antesdelas passarem à linha de montagem.

Segundo Roudinesco4, “se François Wahl havia conseguido, comseu trabalho de editor, fazer dos Escritos um acontecimento fundadorde longa duração, Jacques-Alain Miller, ao estabelecer o Seminário,obteve um resultado bem diferente. Jamais a edição dos Escritos sus-citou a menor controvérsia. Quando Miller lança a Lacan o desafio deuma possível transcrição, ele já era o representante de uma leituramilleriana de sua obra. Não um editor, como Wahl, mas um sujeitoinvestido de uma herança ideológica e familiar, e logo em seguida deum título contratual de co-autor.”

Desde o início, Miller opta em fazer do Seminário uma leituradestinada às massas - à nova geração psicanalítica pós-maio de 1968.O Seminário nesta via é editado sem nenhum suporte que permitissecaptar suas múltiplas significações: sem notas, sem índices, sem apa-rato crítico, sem bibliografia. Miller raramente corrige os erros cometi-dos por Lacan. Assim, deixa Lacan atribuir a Musset ou a Hugo cita-ções de Balzac ou de La Rochefoucauld, empregar conceitos gregos

GAGEIRO, A. M. Seminário da transferência: desdobramentos...

4 ROUDINESCO, Elisabeth. Lacan. Esboço de uma vida, história de um sistema de pensa-mento. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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de Miller, Cherki não cedeu mais direitos para traduções deste seminá-rio à espera da reedição com as correções. Com exceção do editorbrasileiro, que já havia iniciado a tradução a partir das provas. Portan-to, a edição que temos do seminário não contém nem as correções deMiller.

Se pensarmos a posição de Lacan frente ao ensino e à transmis-são, onde este não se colocava como um facilitador do texto ou da fala- o que produzia como efeito a convocação ao trabalho, à indagação,aos desdobramentos -, aplicando o rigor da psicanálise para além doconsultório, na transmissão e na vida institucional. Nesta via de pensa-mento, com os Seminários, Lacan continua provocando estes efeitos.No entanto, se pensarmos que o que pode, legalmente, circular comotexto é exclusivamente uma versão, a do gerente legal da obra deLacan, passamos a duvidar da autoria do texto e concordar com o queRoudinesco10 diz à esse respeito: “François Wahl havia sido o editor deJacques Lacan, Paul Flamand o de Françoise Dolto; Claude Cherki éobrigado a admitir, queira ou não, que, para conservar o ‘nome-do-pai’em seu catálogo, a Seuil é hoje a editora de um possuidor de direito:Jacques-Alain Miller”.

tamento produzidos pela televisão, compara as narrativas

10 ROUDINESCO, op. cit., nota 4 supra.

anos após o caso Stécriture, foi tomada como provocação, pois Millernão fez nenhuma alteração a partir da transcrição proibida. Aconteceque, desta vez os erros foram logo identificados, já que todos podiamcomparar a versão Stécriture com a versão Seuil. A polêmica tomouamplitude excepcional na imprensa. Uma petição, assinada por inte-lectuais e psicanalistas, solicitava que o conjunto das versões existen-tes do Seminário fossem depositadas na Biblioteca Nacional para livreconsulta. A petição reclamava também um inventário completo dasnotas de trabalho8.

Em setembro de 1991, a equipe de Stécriture faz publicar, sob otítulo A transferência em todas as suas errata9, a lista dos erros conti-dos no Seminário VIII: ela abrangia as omissões, as homofonias (saintsd’ex-voto) [santos de ex-votos] em vez de seins [seios]), as homofoniasaproximativas (restitue em vez de substitue), os erros com palavrasestrangeiras (um homme em vez de um hawk ), as decifrações incorre-tas da estenografia (hâtérologie [pressologia] em vez de hâte en logique[pressa em lógica], as referências errôneas e os erros cometidos porLacan: ao todo, 587 erros. O dossiê era tão estarrecedor que Millerreconheceu pelo menos a quarta parte dos erros e, pela primeira vez,foi forçado a uma revisão do Seminário para a reimpressão e as diver-sas traduções.

Em 1992, Claude Cherki, então presidente da Seuil, concedeentrevista à Elisabeth Roudinesco, na qual refere as dificuldades deadministrar uma obra póstuma, sobretudo quando se trata de obra oral.Coloca-se favorável à publicação mesmo com erros. Comenta aindaque, à propósito do Seminário VIII, Miller foi espontaneamente falar-lhe das críticas que lhe fizeram sobre a transcrição. Admitiu que haviaerros, que deveriam ser corrigidos numa próxima reedição. A pedido

8 Petição publicada em Le Monde, 14/01/91.9 ARNOUX, Danièle et alli. Le transfert dans tous ses errat. Paris, EPEL, 1991.

GAGEIRO, A. M. Seminário da transferência: desdobramentos...

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o objeto suposto saber, que é a mola-mestra das sucessivas revolu-ções industriais. Tornamo-nos, a partir daí, cada vez mais objetos denossas ferramentas tecnológicas. Os únicos objetos dignos de obser-vação e capazes de produção de saber cientiífico são aqueles traduzíveisem “bits” de informação impessoal e generalizável.

A inspiração subjetiva do cientista, que tem o estalo da hipóteseque se ajusta aos fatos que se repetem, dadas as mesmas condições,instrumentos e metodologia de observação, deve ser rigorosamenteexcluída e o saber assim produzido, a partir desta operação de forclusãodo lugar da subjetividade do cientista, deve ser generalizável. O objetosuposto saber advém no lugar do sujeito deletado, apagando seu ras-tro, excluíndo as referências simbólicas que designam seu lugar. Umalinguagem sem fala só é possível se o lugar de enunciação do sujeito éforcluído. Desta forma, o discurso científico evita cuidadosamente oscaminhos incertos da subjetividade, abandonando qualquer interroga-ção sobre a significação dos fatos e objetos na vida do sujeito. O dis-curso dominante da ciência busca escotomizar a falta desejante - ouseja, a castração - pela via da redução do desejo a uma objetividadebioquímica, genética, desligada da significação.

Lacan enfatiza que se há algo correlativo ao desenvolvimentodo discurso da ciência é a psicanálise, e que esta não teria a menorcondição de ter sido construída por Freud se não fosse o triunfo dodiscurso científico, que consiste precisamente em recortar as coisas aonível do significante que tem por função significar alguma coisa. Elecomenta, neste sentido, que o discurso da ciência é finalista em seufuncionamento, uma vez que tudo tem um fim determinado2, uma sig-nificação específica, sem margem para mal-entendidos ou equívocose que o que ainda não está determinado hoje, será possível amanhã.

2 LACAN, J. Du Discours Psychanalytique. Conferência em Milano, 12 de maio de 1972 (nãopublicado).

TRANSFERÊNCIA EM TEMPOS DEOBJETO SUPOSTO SABER

Jaime Alberto Betts

Qual a relação entre a dominância do discurso da ciência e ainvenção da psicanálise por Freud, faz pouco mais de cemanos? Quais são as relações entre estas e o discurso do capi-

talista, proposto uma única vez por Lacan? Onde está o saber reconhe-cido como válido hoje em dia? O que faz com que um saber seja reco-nhecido como tal? E como fica a transferência analítica em meio atudo isso?

O racionalismo materialista da era industrial coloca o objeto emprimeiro lugar. Como a ciência se propõe como uma linguagem semfala 1 , é possível o mito da correspondência biunívoca entre significantee significado, sem margem para mal-entendidos. Isto implica o pressu-posto de que há uma correspondência absoluta entre percepto e obje-to, reproduzível, qualquer que seja o observador, seguindo-se umamesma metodologia nas mesmas circunstâncias. A proposição lingua-gem sem fala é o significante Um que comanda o discurso da ciência efaz trabalhar aos demais significantes que vêm depois. Para se obede-cer, é preciso que haja algum saber. E, uma vez que o lugar do sujeitoda fala está excluído, resta que o saber fica suposto aos objetos.

Esse reducionismo imaginário da ciência ao real do objeto induzà pressuposição do saber ao objeto, ou seja, de que o saber vem doobjeto, do qual se fazem leituras lógico-dedutivas a partir das observa-ções. O sujeito suposto autônomo da razão desloca a suposição dosaber para o lado do objeto e o discurso que funda, o científico, institui

BETTS, J. A. Transferência em tempos de objeto suposto saber.

1 LACAN, J. Seminário II - O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio deJaneiro, Zahar, 1985.

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promessa se renova sob o impulso da terceira revolução digital, quecria a miragem do gozo virtual, da saúde perfeita e da inteligênciaartificial, com infinitos objetos personalizados ao máximo segundo aspreferências de cada consumidor e ao alcance da ponta dos dedos viainternet, o shoping virtual.

A sociedade de consumo massificada, gerada pelo discurso docapitalista, propõe, como remédio para a inevitável incompletude im-posta pela condição humana da castração, os objetos descartáveis,fomentando a ilusão de que a substituição infindável do objeto usadoou perdido pelo novo poderia solucionar esse mal-estar, decorrente denossa falta em sermos completos e auto-suficientes.

Surge o marketing como discurso especializado em detectar asprincipais tendências que a preferência dos consumidores está toman-do e, nesta borda do real, na borda onde a ausência do objeto idealpoderia deixar o sujeito em falta, diante de seu desejar, é proposto umnovo objeto. Este é apresentado num determinado cenário que induz oconsumidor a crer que ele será o que o objeto promete. Em função docontexto em que é apresentado e pelos traços de que assim o objeto setorna portador, permite a quem o consome identificar-se e acreditar seraquilo que o modo de apresentação do objeto propõe, exponenciandoo potencial de arrolhar a falta pela via do somos o que temos.

Outra forma dominante do discurso do mestre moderno, segun-do Lacan, é o discurso universitário, onde o outro é abordado comoobjeto pelo saber em posição de agente, procurando desta forma pro-duzir um sujeito para o saber des-subjetivado do mestre. A maioria daspsicoterapias, inclusive as ditas de insight, toma o amor de transferên-cia na sua vertente imaginária de sugestão, no sentido de que o terapeutasabe o que é melhor para seu paciente e lhe sugere qual seria o seubem, assim como a melhor forma de obtê-lo no mercado de objetos,indicando-lhe desta forma como deve ser e quais objetos possuir paraser amado.

Isso possibilitou a Freud formular que não há finalismo, que o discursodo analista permite o corte ao servir-se do jogo significante, não parasignificar alguma coisa, mas precisamente para nos enganar sobre oque há para significar, para nos servirmos do fato de que o significanteé sem sentido, outra coisa que a significação, para nos apresentar umsignificante enganador (signifiant trompeur) que introduza o sem senti-do lá onde o excesso de sentido neurotiza.

A instância da letra aqui pode ser entendida como uma estruturamoebiana, onde real e simbólico se articulam por uma torção que es-creve uma borda do real. Em A Instância da Letra ou a Razão depoisde Freud, Lacan demonstra como a instância da letra é a própria barraresistente à significação, que separa significante e significado, dandoconsistência à descoberta freudiana da divisão subjetiva.

A biologia molecular, por exemplo, reduz a instância da letra aoregistro do real e a apenas quatro letras: a de adenina, c de citosina, gde guanina e t de timina. Ou seja, os quatro elementos que compõe afita de DNA, cuja combinatória define nosso genótipo, nosso potencialponto de partida real como seres humanos. O discurso da genéticadefine que genoma mais interação com o meio ambiente é igual aofenótipo humano, ou seja, o genótipo se expressa em função de suainteração com o meio ambiente externo e objetivo - “eu fora”- confor-me a probabilidade estatística de determinado complexo genético tersua característica expressa. Assim, o sujeito do fenótipo é o sujeitocartesiano da razão dessubjetivada. Sua expressão maior se dá nomito do self made man, no ego autônomo capaz de fazer escolhas,senhor de si e seu destino, promovido pelo individualismo modernocapitalista e democrático.

Embora a promessa formulada pela revolução industrial de umasociedade organizada pela razão e instrumentalizada pelas grandesinvenções, na qual todo mal-estar estaria resolvido, tenha fracassado,como todos podem constatar, a esperança é a última que morre. A

BETTS, J. A. Transferência em tempos de objeto suposto saber.

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acrescentar que também pode ocorrer a perda imediata, onde se podedeixar de ser o que se tem também de forma instantânea, o que ocasi-onalmente é motivo de suicídio e mais freqüentemente de alguma for-ma de psicossomatização. A “consumoterapia” é uma das formas atu-ais de evitação da castração, entupindo-se desta forma a casa de obje-tos - e o orçamento doméstico com dívidas - que freqüentemente nemchegam a sair dos armários.

A bolsa de valores, nome muito sugestivo, apóia-se no conceitomitológico do mercado como algo apolítico e amoral, sustentado pelanoção de um sujeito racional e utilitarista, capaz de fazer escolhas. Oque esconde o fato de que a relação dos profissionais que aí trabalhamestá completamente atravessada por outro tipo de subjetividade, quepode tomar muitas formas, dentre elas a de um amor, paixão ou víciopelo mercado, ou até mesmo uma forma de misticismo em relação às“forças superiores”, que fazem de determinado operador um “sortudo”.6

Se a ciência é uma linguagem sem fala, o sujeito, ao falar, perfu-ra os sentidos estabelecidos com um saber que ele enuncia sem sabê-lo. Freud aprendeu com seus mestres, Breuer (segredos de alcova -leito conjugal), Charcot (sempre a coisa genital) e Chrobak (penisnormalis, dosim Repetatur), uma concepção que eles transmitiram sempossuí-la propriamente, ou seja, a concepção da etiologia sexual dasneuroses por um lado e por outro a concepção da transferência sexual,terna ou hostil. Levando isso em consideração ao escutar suas pacien-tes, Freud recolheu deste modo o que o discurso da ciência exclui,concebendo a transferência como um processo que se constitui pelafala endereçada ao analista, e o que assim se transfere sobre a pessoado analista é um saber sexual inconsciente sobre o objeto, produzido

6 MÜLLER, L. H. Mercado exemplar: a bolsa de valores como modelo cultural de relações.Apresentado no Congresso da APPOA O Valor Simbólico do Trabalho e o Sujeito Contem-porâneo. Porto Alegre, 19 a 22 de novembro de 1998.

Todos tentam evitar a castração à sua maneira, e as três moda-lidades preferenciais da modernidade decorrem do imperativo que fun-da o capitalismo: acumular, consumir e excluir. Esta última, a exclusãosocial, dá lugar a diferentes sintomas sociais, em que o sujeito buscauma referência simbólica paterna, da qual se sente privado, através doato delinquente de apropriação indébita, com ou sem violência diretaao outro, buscando obtê-la através do objeto do qual se apropria ou atémesmo destrói, no vandalismo do “já que não se pode ter legitimamen-te, destrói-se.”

Lacan diz que a crise, não do discurso do mestre, mas do discur-so capitalista, que é seu substituto, está aberta, pois a inversão entreS1 e Sujeito barrado faz com que as coisas andem muito rapidamente.O problema, segundo ele, é que a consumação é maior que o consu-mo, o que torna o sistema insustentável.3 O discurso capitalista, aorecalcar as relações de produção S14, coloca o sujeito agente do dis-curso em contato direto com os objetos e plus de gozar que ele faz osaber do outro produzir.

A crise do capitalismo digitalizado e globalizado se faz sentircom o terremoto econômico dos “tigres” asiáticos e o colapso da eco-nomia russa. Em recente entrevista à revista Veja (6/1/99), o mega-investidor George Soros enfatiza que não se pode deixar o mercadocorrer solto, pois ele se torna o tirano cego que termina matando comsua voracidade sem limites ao próprio sistema que o sustenta. Enéasde Souza enfatiza que o que o discurso do capitalista moderno possibi-lita é a realização imediata do capitalismo financeiro. O gozo do lucroé imediato: pode-se ser o que se tem de forma imediata5. Há que se

BETTS, J. A. Transferência em tempos de objeto suposto saber.

3Texto citado na nota anterior.4 SOUZA, Enéas. O discurso capitalista. Apresentado no Congresso da Associação Psica-nalítica de Porto Alegre O Valor Simbólico do Trabalho e o Sujeito Contemporâneo. PortoAlegre, 19 a 22 de novembro de 1998.5 cf. nota anterior.

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tanto, diferenciar o sujeito, seus objetos e o objeto causa do desejo.Por outro lado, Lacan circuscreve o conceito de transferência de

um ponto de vista estrutural e não fenomenológico ou descritivo. Sedefinirmos a linguagem como estrutura, ela se caracteriza como o quefaz discurso para um sujeito a partir da castração, fundando e organi-zando para o sujeito sua modalidade de laço social.7 A castração aquié, tanto para homens, quanto para mulheres, a evidência de que há nos“finalmentes” um real impossível de simbolizar, que se repete na trans-ferência, mas que poderá vir a ter recortadas suas bordas simbólicas,diluindo a alienação do sujeito às promessas de recobrimento dessereal pelas ilusões que o amor aos objetos propõe. Neste contexto, devi-do à presença real do analista - e não tanto por sua pessoa - a transfe-rência é um sintoma da fala e na demanda que o analisante dirige aoanalista se veicula seu desejo inconsciente.

A presença real do analista está diretamente ligada ao desejo doanalista. É comum que as pessoas achem que é muito fácil ficar aliouvindo o que as pessoas tem a dizer e pouco ou nada falar. Elassupõem, evidentemente, que o analista esteja tão pouco implicado emsua escuta quanto elas se colocam vazias em suas falas. O que fazcom que a presença do analista seja real, possibilitando o ato psicana-lítico, é o que Lacan denominou o desejo do analista. É sustentado poreste desejo de pura diferença que ele suporta sua própria afânise noato da interpretação da imparidade subjetiva em jogo na transferência.É neste sentido que o analista paga com palavras e também com seuser. A transferência é assim a atualização da realidade do inconscientee não uma atualização da realidade do objeto. A transferência é umdiscurso onde o assujeitamento do sujeito ao significante de sua de-manda se transfere em subjetivação disto que causa seu desejo.8 No7 STRYCKMAN, N. e outros. O conceito de transferência. In: Dicionário de Psicanálise Freude Lacan. Bahia, Ágalma, 1994.8 Op. cit., p. 277.

na análise pela rememoração e repetição. O sujeito fala sem saber oque está dizendo.

Para Lacan, este saber sexual, por ser insabido, é do grandeOutro e, via transferência, supõe-se esse saber ao grande Outro comosujeito. O grande Outro é suposto saber e também sujeito suposto aosaber. É por isso que um analisante pode considerar que seu analistapouco ou nada sabe e assim mesmo seguir se analisando, pois o saberinconsciente na verdade é do Outro. Nos fins das análises, após umasuficiente redução do imaginário de que o Outro é sempre revestido,torna-se possível constatar que o sujeito que o Outro é suposto ser emsuas Demandas, mais ou menos imperativas, nada mais é do que umlugar topológico, de onde o sujeito recebe sua própria mensagem sobforma invertida. O que antes era Demanda do Outro passa a ser odesejo do sujeito que pode advir nesse lugar.

O que a regra analítica da associação livre faz é capturar o sujei-to e fazê-lo trabalhar, interrogando o significante, o funcionamento dalinguagem, sua relação com o grande Outro. Afinal, numa análise, osujeito é o analisante e não o analisado. Ser analisado é uma das for-mas de se perpetuar a relação de reificação que os discursos científicoe capitalista impõem: mesmo ao falar, o sujeito é remetido à sua condi-ção de objeto de análise de um outro. O sujeito é realienado no amorde transferência, adaptado ao que deve ser ou ter para ser amado peloOutro. Em outras palavras, readapta-se o sujeito aos seus sintomas eobjetos, resintonizados com o sintoma social. A mensagem em buscade um intérprete que retorna do recalcado nas formações sintomáticasé desconsiderada e mandada de volta ao remetente inconsciente semter sido decifrada. Na conferência mencionada anteriormente, Lacanse pergunta sobre que futuro terá a psicanálise neste contexto de gozo,onde múltiplas formas de psicoterapia (PSychoTérapie - PESThErapie),fazendo uso do semblante, buscam adaptar o sujeito às formas de gozoinstituído e seus objetos descartáveis de consumo. É fundamental, por-

BETTS, J. A. Transferência em tempos de objeto suposto saber.

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DEMANDA E TRANSFERÊNCIA HOJE*

SEMINÁRIO DITADO EM MAIO/98

Alfredo N. Jerusalinsky

Transcrição: Marcia RibeiroRevisão: Gerson Pinho

Hoje vamos falar da estrutura da demanda e do que nela podeter mudado da época freudiana em relação a atualidade, se éque algo mudou. Faremos inicialmente um percurso para ana-

lisarmos o que sabemos que tem mudado nela: o ponto de vistaconceitual. Isto sabemos que mudou, porque para Freud a demandanão é um conceito “duro” da teoria; enquanto que para Lacan sim.

Chamamos conceito duro àquele que define a consistência dateoria, ou seja, sua consistência ou inconsistência afeta a consistênciaou inconsistência da teoria. É um conceito que atravessa muitos teoremase demonstrações e muitas hipóteses de trabalho. Então, o consideramosum conceito nodal. Se ele falha, se é mal entendido, a compreensão, aelucidação, o exercício mesmo da teoria falham. Nós temos na psica-nálise alguns, talvez um pouco mais de uma dúzia de conceitos duros.Digo talvez, porque não há concordância sobre este aspecto.

Lacan escreveu “Os quatro conceitos fundamentais da psicaná-lise”, onde encontramos quatro conceitos duros. Depois, houveram ou-tros que escreveram acerca dos doze conceitos fundamentais de Lacan.Houve um epistemólogo que escreveu sobre o que ele considerava osoito conceitos fundamentais da psicanálise, etc. Dependendo também dotipo de leitura que venha a se fazer, há mais ou menos conceitos duros.

Há um certo consenso de que há, pelo menos, alguns conceitosduros da teoria psicanalítica, que todo mundo vê-se obrigado a reco-

ato analítico, a interpretação recorta o significante que constitui o sujei-to, representando-o para outros significantes, indicando-lhe assim umlugar na rede de significações que organizam a cultura e abrindo-lhe apossibilidade de passar da posição de assujeitado ao desejo do Outroao de sujeito do desejo.

Finalizando, os objetos são em função do que seja a posição dosujeito na cultura. Ao falar dos mesmos, ao queixar-se deles, do quan-to não lhe satisfazem completamente, e com as várias manobras quefaz em suas demandas de ser amado, o sujeito revela como evita acastração de advir nesse lugar de sujeito do desejo e assumir comopróprio o lugar possível do semi-dizer de suas verdades sobre como astrês categorias de falta de objeto - frustração, privação e castração - seenodam e o causam.

SEÇÃO TEMÁTICA JERUSALINSKY, A. N. Demanda e transferência hoje.

* Esta transcrição é de uma aula do seminário, de 08/05/98, que foi revisada pelo autor.

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início da suspeita de que a ciência pode não vir a ser uma aliada dapsicanálise. Até o fim da década de 20, Freud confiava fortemente -em seu texto “O futuro de uma ilusão”, por exemplo - que a ciência iaser uma aliada da psicanálise na luta contra a religião. Ele começa asuspeitar que a ciência pode ser uma fonte de resistência e formula-aem pelo menos três lugares. No texto “Além do princípio do prazer”, elese interroga acerca de quanto a condição biológica pode impor certoslimites ao saber, ou seja, certos limites ao conhecimento ou à adapta-ção. Por mais esforço que o homem venha a fazer para objetivar oconhecimento, isto teria um limite. Haveria uma certa fonte deirracionalidade na condição biológica. Ele formula também esta sus-peita no texto “O mal-estar na cultura”. Ali ele formula a tese de quenada escapa à controvérsia entre pulsão e civilização, ou seja, não háformulação humana que possa escapar a essa dialética. E, também, nosseus escritos sobre a guerra, onde levanta a suspeita de que a inteligên-cia, leia-se então ciência, pode ficar a serviço da pulsão de morte.

É interessante tomarmos conhecimento de que há um escrito deLacan pouco divulgado, que se chama “A psiquiatria inglesa e a guerra”.Talvez seja o escrito menos lacaniano de Lacan. Neste escrito, Lacanretoma essa tese de Freud, da inteligência a serviço da pulsão de morte.

Demanda nos pós-freudianos (kleinismo e psicologia do ego)Dizíamos que, embora a demanda não ocupasse como conceito

central as preocupações de Freud, houve alguns autores que se ocu-param dela em termos fundamentalmente técnicos, desde o ponto devista de como se constitui uma demanda de análise, uma solicitação,ou como ela pode ser reconhecia. Para eles, a questão da demanda seconfunde com solicitar análise. Este assunto da demanda fica obscure-cido durante toda uma época, que vai desde a morte de Freud até osurgimento do lacanismo. O pensamento psicanalítico prevalente, sejana versão kleiniana, seja na versão da psicologia do ego, passou aconsiderar que a neurose e o sofrimento psíquico eram causados pela

JERUSALINSKY, A. N. Demanda e transferência hoje.

nhecer, porque vale-se deles para dar fundamento ao seu trabalho otempo todo, ou quase todo. Ou seja, os conceitos de repetição, recalque,transferência, pulsão, desejo, demanda e inconsciente - conceito, esteúltimo, duro por excelência. Jacques Lacan acrescenta a eles,Significante, objeto a, Grande Outro, Real, Simbólico, Imaginário, Nome-do-Pai, Fantasma (correspondente, de certo modo, à Fantasia originá-ria e fantasia fundamental de S. Freud), forclusão, sinthome esymptôme, entre os que podemos considerar como aportes fundamen-tais.

Para Freud, a demanda não é um conceito que ocupa o centrode sua preocupação. Por exemplo, em “Psicanálise leiga” (1926), quandoFreud fala com um interlocutor imaginário e é interrogado acerca doque se requer para uma análise, responde: que o paciente venha efale. Quando Freud se faz perguntar se é necessário que acredite napsicanálise, ele diz: não, não precisa. Para Freud, a pré-condição parao estabelecimento de uma demanda analítica era muito pouco, ele nãoestava preocupado com isto. Por que Freud não estava preocupadocom isto? Vamos formular algumas hipóteses. Ele considerava que, seviesse a demonstrar a eficácia curativa da psicanálise, a demandaadviria por si só. Se alguém padecesse de um sofrimento que a psica-nálise pudesse curar, então, logicamente, demandaria psicanálise parasua cura. Este é um modo de pensar que expressa uma confiançaexcessiva na racionalidade social. Na verdade, Freud propõe algumasformulações ultra-racionalistas, onde as coisas viriam a se impor pelasua própria lógica. No andar dos tempos, ele vai ter que reconhecerque as coisas não são tão fáceis assim. Há isto que se chama resistên-cia, não somente no paciente, mas no discurso social, e isso faz obstá-culo à demanda. Assim, ele começa a se preocupar com a demanda,não sob este nome, mas sob a problemática da resistência. Como po-deria vir a se configurar uma demanda endereçada à análise, tantoindividualmente considerada como socialmente, na medida em que oque opera espontaneamente é uma resistência ao inconsciente. É o

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mento, desse estado nirvânico - que tem permitido a alguns deduzir alium psiquismo fetal paradisíaco -, esse acontecimento do nascimentoprovoca uma sobrecarga do instinto de morte2, produz um desajusteque conduz a instalação primordial de uma estrutura esquizo-paranóide,que, por ser fragmentadora e persecutória, instala o objeto numa posi-ção inicialmente desajustada. O processo de desenvolvimento psíqui-co e construção subjetiva consistiria em ir corrigindo estes desajustes,ou seja, chegar a um certo equilíbrio entre a pulsão de vida e a pulsãode morte, entre as introjeções e as projeções, que permitisse uma es-pécie de investimento mais ou menos equilibrado. Isto seria a cura. Acura analítica kleiniana está calcada em cima deste conceito funda-mental. Este esquema - simplificado, mas rigoroso – permite ver quetanto uma como outra corrente apontam, na direção da cura, em recu-perar o ajuste entre o sujeito e o objeto. É claro que a dinâmica de umacura e de outra não é a mesma, não somente pela origem, mas pelasformações psíquicas que vão estar em jogo. Para a psicologia do ego,são as formações psíquicas do ego que devem prevalecer e fortalecer-se. Portanto, há uma aposta maior no domínio da racionalidade e nocontrole dos afetos. Essa vertente aponta a cura na direção de capaci-tar o paciente a dominar seus afetos e mecanismo sintomáticos. Osterapeutas dessa corrente são completamente explícitos a este respei-to. Nos textos de Hartmann, por exemplo, o princípio fundamental decura é que o sujeito deixe de ser escravo de seus afetos. Hartmannseria para a psicologia do ego o mesmo que Melanie Klein, para ateoria das relações objetais: o autor primordial. O livro de Hartmann aoqual estou me referindo se chama “Psicologia do ego”.

A questão da demanda fica obscurecida, durante toda esta épo-ca, pela posição que prevalece na psicanálise a respeito do lugar doobjeto. Vocês compreenderão que, se estamos falando que a psicaná-lise desta época se orienta para a recomposição de um ajuste entre o

inadequação do objeto, por um desajuste do sujeito em relação ao ob-jeto, e que a direção da cura consistiria em produzir esse ajuste. Sinte-ticamente considerada, a questão era esta, tanto para os kleinianoscomo para a psicologia do ego. É claro que, tanto no que concerne àsorigens deste desajuste, como ao caminho da cura, uma e outra ver-tente não pensam a mesma coisa. A psicologia do ego pensa haver umajuste originário, e este desajuste passa a ser secundário. Portanto, setrataria de uma espécie de readaptação, de recuperação da adaptaçãooriginária. É por isto que a psicologia do ego considera que o desenvol-vimento produzido automaticamente é adaptado. Há as funções autô-nomas do ego e se elas não vierem a ser atrapalhadas, funcionarãobem e, então, haverá uma adaptação ao objeto. O conflito neuróticointerfere nessa adaptação, desadaptando o sujeito, e é ele que impedeque as funções do ego funcionem de um modo autônomo. É por istoque a psicologia do ego não se enfrenta com as formas psicoterápicasque apelam à consciência. Por isso, Freud suspeitou - com fundadasrazões - que a versão americana da psicanálise se apresentava poucoconsistente do ponto de vista de sustentar o inconsciente como umconceito duro da teoria.1

Para Melanie Klein este desajuste ao objeto é originário. Nãohaveria um ajuste originário. Esta desproporção entre o interior e oexterior em termos instintivos, essa ruptura, que se produz no nasci-

1 S. Freud sustenta o ponto de vista de que, inicialmente, as funções egóicas sãoindiferenciadas e não autônomas – sendo por isso que as pulsões parciais tomam conta, demodo polimorfo e fragmentador, da atividade do pequeno sujeito. Se para a psicologia do ego– e para Anna Freud - o desenvolvimento das funções egoicas é originariamente autônomo ese desenvolve adequadamente na medida em que vier a conservar sua autonomia, para S.Freud o único desenvolvimento concebível dessas funções é o que advêm dos desdobra-mentos dos conflitos psíquicos de separação, identificação primária (alienação),sadomasoquismo primário, e do Complexo de Édipo (confronto do sujeito com a lei, quearticula a posição de seu desejo). Por isso temos proposto a denominação de funçõesimaginárias do eu (1989) já que elas não são autônomas, e se diferenciam enquanto “apa-relho” à partir dos conflitos gerados na relação do sujeito com o Outro, como conseqüênciados cortes que se operam na função especular.

JERUSALINSKY, A. N. Demanda e transferência hoje.

2 Utilizo a palavra instinto porque este conceito kleiniano parece estar mais do lado do instintodo que da pulsão.

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formos seguir os preceitos freudianos, deveríamos desconfiar da nar-rativa e do pragmatismo como uma versão da psicanálise: o inconsci-ente tem pouco a fazer ali.

Lacan e a estruturaO que Lacan introduz, nas considerações sobre a demanda, que

permite tirar esta questão desse lugar obscuro que a colocou toda estaépoca da psicanálise?4

O que Lacan introduz neste termo, que o transforma num con-ceito? O primeiro é que o diferencia de desejo. Para poder diferenciá-lo de desejo se requer que o objeto falte. A falta é uma condição de serdo objeto, não é que contingentemente falte, mas que a falta fica enun-ciada como uma necessariedade lógica da constituição do sujeito. Nãohá sujeito sem o objeto, sendo ele faltante. O que quer dizer que quan-do o objeto está, sujeito não há. É a partir desta condição do objeto quese torna distinguível uma forma da falta de outra forma da falta. Umaforma é o desejo, outra é a demanda. Lacan vai distinguir isto clara-mente no Seminário 4 e vai formalizá-lo no Seminário 5.5 Neste último,ele distingue três formas da falta que vai designar como: d - desejo, D- demanda e delta.6. Este último é um conceito que ele vai abandonar

4 Estamos mencionando o kleinianismo e a psicologia do ego. Como anotação a parte vocêsvão ver que é muito raro encontrar nos textos kleinianos considerações densas, importantessobre a demanda. E nos textos kleinianos que se produziram até a década de 50, inclusive,ou seja, até o momento em que ainda existissem nos textos lacanianos, não tinha a influênciasuficiente para obrigar a pensar certas coisas. Nestes escritos a gente não vai encontrar apalavra demanda em um lugar relevante e, raramente vai encontrar. Não é a mesma coisaque acontece com os textos kleinianos atuais onde, ninguém sabe porque, a palavra deman-da e as questões sobre a demanda começam a ocupar um lugar importante. A demanda deanálise, e a demanda é tanto aquilo que caracteriza o endereçamento do sujeito a uma certaversão do objeto. Seguramente, porque não se consegue mais se subtrair à problemáticaque sobre este termo Lacan colocou.5 As relações de objeto e as estruturas freudianas e As formações do inconsciente.6 É interessante que ele designe as três formas da falta com a mesma letra, escritas dediferentes maneiras, porque é um indicador de que se trata da mesma categoria de análise.Ou seja, é um resguardo da coerência teórica.

sujeito e o objeto, é porque considera isto possível - modo de conside-rar as coisas que, logicamente, acaba protelando qualquer interroga-ção sobre a questão da demanda. Qualquer demanda, agora entendi-da em termos lacanianos, seria justa, viável, desejável; não seria umaquestão, um problema, mas seria algo a ser satisfeito. Nós temos umanova versão desta proposta, totalmente organizada e atualizada nopragmatismo. O pragmatismo considera legítima qualquer demanda,mas não nos termos ingênuos kleinianos ou hartmanianos, mas comoum conceito forte, considerada em termos de discurso, de lógicadiscursiva. Uma demanda que é interpretada no seu valor lingüístico,contextual e contemporâneo, mas que é – a princípio - consideradalegítima e é para ser satisfeita. A cura, no pragmatismo, se ocupa cen-tralmente dos equívocos da demanda. O sujeito não se dá conta deque, no lugar em que ele pensa estar demandando, na verdade estádemandando outra coisa, mas uma vez esclarecida, é para satisfazer. 3

Essa corrente não considera, também, a inviabilidade do ajuste entre osujeito e o objeto. Por estas vias, a demanda não tem nenhuma chancede transformar-se num conceito forte, num conceito duro. Ela carecede importância, ela não forma parte senão, digamos, do aspecto maismanifesto do processo psíquico, de sua superfície. O que requer é umaboa administração, alguns recursos técnicos. O pragmatismo necessi-ta de um modo de interpretá-la, de acordo com os princípios da lingüís-tica, não como Lacan toma a lingüística, face à sua condição deestruturante do inconsciente, mas a lingüística como reveladora de umacerta riqueza semântica. Por vias bem próximas a estas anda a aposta– de Paul Ricoeur - na narrativa como fundamento de uma cura. Ainterpretação da narrativa revelaria o que está verdadeiramente na de-manda deste sujeito.

Pela mesma razão que Freud desconfiou que a psicologia doego era pouco consistente como versão da psicanálise, nós, hoje, se

3 Neste ponto se adverte a proximidade da concepção terapêutica com a reflexão filosófica dopai do pragmatismo, William James.

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senta o desejo e outro a demanda. O que permite a passagem de um aoutro é, justamente, a transformação que a demanda opera sobre a pulsão.

Este é o fundamento teórico do que agora quero dizer, que meparece necessário como fundamento para que se entendam as trans-formações a que vou me referir e que, penso, estão presentes na ques-tão da demanda, desde a época de Freud até agora.

Se quiserem ler mais sobre esta questão, sobre esta passagemda demanda ao desejo e do desejo à demanda, articulado com as trans-formações da pulsão, procurem no Seminário 9. (As identificações, au-las 11, 12 e 13).

As transformações das pulsões são possibilitadas pelas formasda demanda. Por isso, a demanda se transforma em um conceito forte,porque é uma espécie de articulador das transformações da pulsão. Noinício, costumávamos ler equivocadamente Lacan neste ponto7.

7 O engano de leitura que nos fazíamos é o seguinte: nós líamos a equação do Seminário 5a partir do resumo de Pontallis. Lendo as coisas de um resumo, fica-se induzido por esteresumo. Quando vemos o original transcrito, nos damos conta do equívoco. Nós considerá-vamos que o primeiro andar desta equação era ligado ao desejo, o segundo à demanda e oterceiro à necessidade. E que a necessidade, por estar expressa por um delta, era da ordemdo real. O equívoco a partir daí se estabelece, porque então, realmente, a demanda não temnenhum papel fundamental. É por isso que a questão do imaginário, do ideal e da demanda,durante bastante tempo, nas leituras que fazíamos de Lacan, nas interpretações que fazía-mos, faziam um grande contraste com o que Lacan conferia de importância a este termo.Então, tendíamos a desprezar o imaginário e o valor da demanda como articulador. É por issoque insistimos em ler os textos originais, ainda que sejam mais difíceis. Na verdade, a partirdesta interpretação equivocada passávamos a ler outros textos de Lacan e não entendíamosnada. Que queria dizer, então, que a necessidade não é da ordem do real, como ele diz em“As Formações do Inconsciente”?

como conceito forte, mas vai reeditá-lo de diversas maneiras. Inicial-mente, ele define este conceito (no Seminário 5) como aquilo que obri-ga o humano a entrar em relação com o significante. É uma condiçãoconstitucional na condição de ser do humano, que não lhe permite ou-tra via senão o significante como acesso para lidar com a falta. Então,é uma forma da falta radical, insolúvel, e que não tem outra dinâmica,outro percurso, a não ser confinar o sujeito. Ele vai dizê-lo depois, emseu escrito “Ciência e verdade”, deste modo. O sujeito não pode senãoentrar pelo desfiladeiro do significante, não há outro caminho, é o úni-co que ele tem. Ou entra neste, ou não é sujeito, não se constitui.

d ————-à S a —— ——à i (a) ß——— m

D ————à A d —— ——à s (A) ———à I

———-à S D —— ——à S(A) ß——— Φ

Esta equação é um pouco mais complexa, estou simplificando aequação das ‘Formações do Inconsciente’, para torná-la mais legívelpara o que precisamos agora.

O que ele diz é que estes três termos constituem uma equação,ou seja, não é cada um deles uma equação. Como vocês sabem umaequação que tem três termos operacionais só se resolve operando si-multaneamente os três. Não é possível primeiro resolver um, depoisoutro, não é uma proposta de uma psicologia do desenvolvimento. Éuma equação. O que interessa para nós aqui é que, nestas três diferen-ciações da falta, o objeto aparece ligado à pulsão, à necessidade e aodesejo. Esta diferenciação do estatuto da falta - pulsão, necessidade edesejo - é o que dá à demanda um estatuto particular, que a liga na suaposição de ideal do outro, em uma posição de dobradiça entre a pulsão eo desejo, num lugar de articulação entre a pulsão e o desejo. É assim queLacan vai topologizar esta equação no duplo toro, onde um deles repre-

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Fig. 1

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S1 S2

(S <> a) D(A)

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fazemos um corte, temos o objeto a. Se faço um corte, corto um disco.Se o toro é oco, o que eu tenho neste disco? Nada. Mas imaginarizo,pela borda que tracei, um objeto. Ou seja, a borda me permite projetarali uma certa versão do objeto, circunscrever o real num pequeno a,como um pequeno pedaço do real. Só que Lacan depois vai dizer,quando eu imagino estar produzindo um corte, na verdade o que estoufazendo é isso, eu penso que as cordas do corte se cruzam, mas é impos-sível passar pelo mesmo lugar. Porque se realmente se cruzassem eusairia do lugar e retornaria exatamente ao mesmo. E ele diz que, nopercurso significante, é completamente impossível eu sair de um pontosignificante e retornar exatamente a este mesmo ponto. Dito de outromodo, o que eu posso cortar no rosto, para formular ali a boca e, então,colocar ali o objeto pequeno a, do oral - o peito - na verdade não ficacircunscrito, ele acaba se derramando, extravasando no real todo.

É por isso que as tentativas de produzir um objeto ajustado fra-cassam. Eu não posso apostar a cura em produzir o ajuste a um objeto.A qual objeto? É isto que Lacan introduz: o máximo que posso fazer éproduzir este corte, orientado pela demanda do Outro. É ali que a questãoda demanda se transforma num modulador da pulsão. É de acordocom o olhar do Outro, o modo como o Outro modula, no sentido deadequar, o percurso ao qual eu tenho que responder através de umideal, que vai ordenar o corte do objeto. Dito de um modo mais sim-ples, clinicamente, uma mamãe de acordo com o ideal que ela tiver éali que ela corta em pedaços o corpo da criança. A criança será umagrande ginasta ou uma grande bailarina, de acordo com o modo comoa mãe corte o pé e o braço dela. É por isto que Lacan diz que nossocorpo não é mais do que uma espécie de salame fatiado pelossignificantes. Ele diz que os significantes não respeitam nossa anato-mia, eles fatiam nosso corpo de acordo com esta demanda do Outroque opera este corte. E, neste espiral, vai desenhando cada um dospontos desta corda que, curiosamente, vai se operando a passagematé que um deles coincide com o lugar que um toro se enlaça a outro.

Vocês considerem, aqui, o seguinte: que cada um dos pontosdesta face, deste pedaço, na verdade é um ponto tangencial de umpercurso de corte do toro, ou seja, o toro vai se cortando. Então, quan-do eu termino de cortar em espiral o toro e o outro toro, eles ficamcomo um anel de Moebius cortado pela beira, com várias torções. Poristo é que Lacan escolhe esta figura topológica, porque mostra que astransformações da pulsão vão se operando, passo à passo, numa ca-deia significante, que vai produzindo um corte no real. Por isso Lacandiz que o real é um buraco sem fundo, na verdade sem bordas. Qualseria a borda deste buraco? Na verdade, o buraco é tudo que rodeia otoro, embora imaginemos que ele está situado no centro do “pneu”. Otoro é o modo que o sujeito imagina fazer limite ao real, encerrandouma parte dele dentro de si mesmo, mas sobra todo o resto. Então, se

JERUSALINSKY, A. N. Demanda e transferência hoje.

(em elipse helicoidal)

S1

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Fig. 2

Fig. 3

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ra a demanda do Outro não é banal, e se explica porque as mudançasna configuração da demanda do Outro tem uma eficácia tão brutal nasversões que o sujeito tem da realidade na história. Como explicar que,sendo nossa constituição praticamente a mesma há cinco mil anos,tenhamos formulado tantas versões diferentes da realidade? Isto seexplica porque a demanda do Outro configura as coisas de um modoextremamente poderoso na constituição do pensamento do sujeito, nomodo do sujeito saber e conhecer.

Isso nos permite perceber a importância do conceito de deman-da e como influi nas inclinações da constituição do sujeito, e as particu-lares versões de sua relação com o objeto a partir das posições que ademanda do Outro situa. É por isto que Lacan diz que, por mínimo quese toque a relação do sujeito com o significante, é ali que muda o cursoda história. Porque é neste ponto onde o significante é expressão dademanda do Outro.

O lugar do divãSerá que o divã é um artifício criado por Freud para poder boce-

jar nas costas dos paciente? Penso que Freud, em seus escritos técni-cos, é um pouco modesto na fundamentação do divã, até diríamos umpouco tímido. Ele alega a insuportabilidade de sustentar o olhar dospacientes, durante tantas horas por dia. Quer dizer que ele se vê, em-bora não fundamente isto desde o ponto de vista teórico, diante de umimpasse, da impossibilidade de sustentar o olhar na prática da psicaná-lise. O olhar é uma forma primitiva do schifter. Schifter é uma partículaque, no campo lingüístico, é indicadora da posição do sujeito do discur-so, nem sempre do sujeito do inconsciente, mas indicadora da posiçãode um sujeito do discurso. É claro que as criancinhas muito pequenasnão têm a distinção da letra, embora tenham a possibilidade de distin-ção do som. Uma coisa é ter a possibilidade de perceber a diferença desom, outra coisa é a diferença de letra. Ali o som tem estatuto de letra,

Este joguinho topológico, que parece uma espécie de brincadei-ra, tem importância porque ele escreve o que acontece. Escreve o realda estrutura, o que se passa com o sujeito. Ele pensa que está fazendouma coisa, mas na verdade está fazendo outra e, passou de uma coisaa outra, sem se dar conta. O que quer dizer passou da demanda aodesejo sem se dar conta? Quer dizer algo muito simples. Que ele pas-sou de solicitar de que lhe seja necessário um certo pedaço de carne -o exemplo não é escolhido ao acaso -, que ele imagina que está lhefaltando num certo lugar e que é portanto, de uma certa natureza decarne - por exemplo filé mignon -, e, de repente, o que lhe falta é umateta, e ele não sabe como passou do filé mignon à teta, ou vice-versa.Esta passagem, isto que opera esta possibilidade de deslocamento, jáque o objeto como tal não é solúvel na pulsão - nos vários sentidos dapalavra solúvel -, de encontrar solução e de ser dissolvido pela pulsão,é o que faz presença e ausência incessante. Então, o único que podefazer o sujeito é exercitar esta passagem, este deslocamento. Passarde uma versão a outra, tomado no significante. Onde o sujeito exercitaa tentativa de se relacionar com o objeto a em função do fantasma querepresenta. Se vocês forem ver o grafo da subversão do sujeito, vãover que o fantasma deriva da demanda do Outro. No aprés-coup dademanda do Outro o que reaparece é o fantasma. Este fantasma estáconstituído justamente por esta articulação. Portanto, é ali que a de-manda passa a ser um conceito forte da teoria.

Então, quando passamos a discutir o que se demanda numa aná-lise, a pergunta é pertinente. Considerada desde o ângulo kleiniano e dapsicologia do ego é uma bobagem. Se perguntar isto desde o ângulolacaniano é completamente pertinente. Quer dizer que introduz um viésde análise de uma das peças operatórias fundamentais das formações doinconsciente, que tem a ver com o deslocamento e a condensação, coma metonímia e a metáfora, e que deriva, fundamentalmente, da relaçãocom o outro (seja na sua posição de grande ou de pequeno outro)

Assim consideradas as coisas, é fácil ver que o modo como ope-

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lapsos em relação ao sujeito em questão - como se sabe, essenciaisem um processo de análise para que as formações inconscientes ve-nham à tona. Trata-se de suspender a implicação do sujeito em ques-tão, para que o sujeito possa falar sem se saber de antemão implicadono que fala.

Segunda questão em relação ao divã: se trata de uma inequívo-ca aposta em ato da valorização da palavra acima do escópico, ouseja, denotar no dispositivo o quanto nós confiamos que a estrutura dosujeito está perfilada no campo da língua. Embora haja uma inscriçãoque contém a marca escópica, ela fica subordinada à ordem da letra.Trata-se da suspensão da manifestação que seria prevalente, do olhar,se este olhar permanecesse como tal. Por isso, a função do olhar, queé considerada na interpretação analítica, é tomada na dimensão dapalavra. Não é que façamos recusa a esta marca primordial, mas quea consideramos redesenhada, submetida à ordem da letra.

Vocês já devem estar suspeitando para onde me dirijo: o queacontece quando a demanda do Outro opera fundamentalmente atra-vés do olhar e não da letra? O que iria acontecer? O que nós podería-mos dizer é que se trataria de um convite a que o sujeito pratique umaaderência à forma literal em que o objeto se faz presente na demandado Outro. Seria constranger, então, a possibilidade deste deslocamen-to, colocar o sujeito para que ele permaneça numa forma particulardesses giros.

Isso ao que me refiro pode ser tomado desde o ângulo da cultu-ra, mas nos levaria a uma série de dúvidas e interrogações, que pode-ríamos rapidamente responder, se levarmos em conta o que a práticada experiência psicanalítica nos ensinou. A saber, o quanto o modocomo os pais olham para sua criança perfila nelas uma particular ver-são do objeto, ou seja, o quanto o olhar dos pais pode convocar a umaaderência de uma versão única do objeto. Este é o mecanismo pormeio do qual os pais incorporam as crianças à cultura de seu tempo.Ou seja, imprimindo neles só seu apelo de olhar, e os professores tam-

quer dizer, é indicador da posição de quem fala. Há pesquisas muitorecentes que mostram que uma criança, aos seis meses, diferencia aposição da letra. Tanto que, mesmo que utilizemos a musicalidade comque a mãe costuma lhe falar, se a mãe fala numa língua estrangeira, apartir dos seis meses, a criança não prestará mais atenção. Quer dizer,dá-se conta de que estão lhe falando numa língua que não é a dela,embora ainda não saiba e não domine esta língua. Isso quer dizer que,aos seis meses, a criança diferencia a letra, porque desde o ponto devista dos sons, musicalmente, são muito parecidos. Mesmo os sonsque constituem uma língua são basicamente iguais a de outra, só queestão ordenados de modo diferente. A criança reconhece que esteordenamento não lhe diz respeito. É um indicador claro e inequívoco,não do ponto de vista condutista ou comportamentalista, mas desde oângulo psicanalítico como um indicador inequívoco de que há umadiferenciação de letra, embora ela não saiba ainda o que quer dizer.Uma criança muito pequena, de menos de seis meses, não reconhecea diferenciação da letra, portanto, não pode se ver representada naimplicação do que o Outro diz pela posição da letra e pelo olhar. Ouseja, a função escópica é indicadora, além da musicalidade da língua,da posição do sujeito implicado no fantasma.

Então, a primeira questão a considerar sobre o divã é que elesustente uma forma primordial do indicador do schifter, uma forma tãoprimordial e inscrita de um modo tão marcante que o sujeito, se olhadopelo outro, não pode se safar ao que é dito. Tanto que, se eu começo afalar de um fulano qualquer e olho para ti, elogiando-o, daqui a poucotu vais estar vermelho, porque vais pensar que estou te elogiando. Se,ao contrário, eu criticá-lo, tu vais ficar ofendido. Estes schifters aconte-cem nas relações cotidianas, tanto que a gente apela, deliberadamenteinclusive, a este recurso do schifter inscrito de um modo tão primordial.

Então, primeira consideração, o que Freud suspende é uma for-ma primordial do schifter, da qual o sujeito não poderia se safar, e queimpediria as associações livres, ou seja, restringiria a possibilidade dos

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seus pais invadem o local. Os pais, se são sensatos, chegam até apedir desculpas quando impensadamente chegam a abrir a porta. Deque seriam culpados? Seriam culpados de obrigar as crianças a aderirde modo literal a sua demanda, ou seja, a constranger qualquer formade deslocamento desta demanda para o campo do desejo. É por istoque as crianças, constantemente vigiadas, têm dificuldade de estruturarseu desejo, tem dificuldades justamente de fazer esta passagem.

O que acontece, então, quando toda a sociedade passa a olhar otempo todo? Há uma praxis social que se ordena o tempo todo nestaprevalência do escópico. E, de repente, no meio deste mar escópicoaparece um loco - loco nem tanto de loucura como de lugar -, onde sesitua uma função que o primeiro que faz é suspender o escópico. Osujeito não pode senão se estranhar e se sentir completamente perdidoporque ele foi criado, articulado, estruturado, num lugar, num mundo,onde a demanda do Outro é estabelecida no constrangimento e ade-rência à sua versão do objeto. De repente alguém lhe diz não, veja só,você tem que imaginar sozinho, pior ainda, nem responde às suas per-guntas. Ou seja, quando colocado em questão, no divã analítico, osujeito diz “bom, pelo menos vou perguntar”, e o outro responde com osilêncio. Claro que é uma forma radical de colocar em questão esseordenamento do discurso onde a mira se endereça à satisfação dademanda. Questionamento de que o homem possa vir a encontrar suafelicidade no mundo dos objetos.

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bém. O professor está olhando para os alunos, os alunos tem obriga-ção de olhar para ele, e olhar para o objeto cuja versão ele dá noquadro negro. Aonde estaria a potência desta transmissão, se não fos-se nos fundamentos da estrutura que estamos examinando?

Uma coisa é colocar em prática o constrangimento da criança,para que ela fique referida, inequivocamente, a uma versão da deman-da do Outro, que se torna imprescindível para que ela se articule nodiscurso. Mas, outra é colocar a criança, então, neste constrangimen-to, submissa a este imperativo, que é o que se pede numa escola enuma família - que ela seja disciplinada, que faça caso, que obedeçaas ordens. As avaliações psicológicas são numeradas e avaliadas empontuação para ver quantas ordens a criança obedece. Os testes sãoisto, ainda que não sejam integralmente ordens proferidas, têm a for-ma discursiva de uma ordem. No fundo são ordens, pois se espera quea criança responda. Isto é, não respondendo a criança está fora deordem, então tem pontos a menos. Nós sabemos que uma criançaavaliada vale mais ou vale menos para o sistema de conhecimento, deacordo com as tantas ordens que ela é capaz de cumprir.

Agora, uma coisa é submeter a criança a um constrangimento, aum constrangimento, diria, promissor, transitório, porque a criança nãosabe e tem que saber. Agora imaginemos uma generalização desteconstrangimento, cujo exemplo mais acabado da literatura ficcionalseria ‘1984’, de Orwell. Ou seja, este constrangimento, onde aparente-mente o sujeito goza de uma absoluta liberdade, o único que aconteceé que tem alguém olhando o tempo todo. Depois ele pode fazer qual-quer coisa, porque ninguém lhe diz o que tem de fazer a cada passo,mas ele vai sofrer as conseqüências do que fizer, porque o outro estáolhando. Todo mundo sabe o quanto as crianças, ao chegarem a umacerta idade - cinco ou seis anos -, fecham a porta para brincar a sós enão querem ser olhadas, ou seja, procuram suspender este olhar; e oquanto elas se ofendem quando, de modo imprevisto e desrespeitoso,

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RESENHA

a “possível banalização da tragédia humana frente ao contato diretodas crianças com as imagens digitalizadas”. Artur da Távola aborda otema imaginário, televisão e criança, através da análise da obra deMonteiro Lobato. Fiel ao conceito de “videoteratura”, a literatura daimagem via TV – termo cunhado por ele mesmo - Távola demonstra,ao longo do texto, o quanto Lobato entendia as necessidades imagina-tivas dos pequenos, presenteando-os com “bonecas de pano e sabugosde milho (...) ricos para a criatividade das crianças exatamente porqueincompletos como forma, em permanente fazer-se”. O jornalista e se-nador ainda enfatiza o aspecto “ensinativo”- alusão ao melhor estilosubversivo da etimologia lobatiana - das narrativas lúdicas, pois, se-gundo ele, é “nas aventuras, nas brincadeiras e nas reinações que osvalores éticos e culturais vão sendo construídos na criança leitora”. Noúltimo escrito desta primeira parte, Beth Carmona solicita, aos produto-res de programas infantis, uma reflexão mais cuidadosa sobre suasproduções, a fim de que a abordagem da criança na televisão sejafeita de uma forma mais ética, sem tanto “apelo ao sensacionalismo eà espetacularização”.

Na segunda seção, intitulada “A participação da TV na constru-ção da visão de mundo das crianças”, a prof. Ana Lúcia de Rezendediscute as raízes sócio-antropológicas do assistir televisão, procurandover na TV não só uma “babá eletrônica”, mas uma forma atual de trans-mitir “regimes simbólicos e correntes míticas”. Pedrinho Guareschi alertapara o perigo presente nas transmissões televisivas. Ele destaca a ne-cessária preocupação com a exposição excessiva das crianças, visto o“papel que este meio de comunicação (...) desempenha na criação e namodelagem da cosmovisão das pessoas”. Cláudia Dalla Verde, em umbelo texto sobre a ficção e o encantamento produzidos pela televisão,compara as narrativas televisivas às narrativas dos contos de fadas. Aroteirista da TV Cultura/SP reconhece na programação televisiva uma“porta de entrada para magia em nosso cotidiano”. Márcia Leite propõe

TELEVISÃO, CRIANÇA,IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO

PACHECO, Elza Dias (org.). Televisão, criança, imaginárioe educação: dilemas e diálogos. São Paulo, Papirus, 1998.160 p.

Sabemos que os debates sobre os efei-tos dos meios de comunicação nasrelações sociais já não produzem mais

o mesmo impacto de décadas atrás. Épocaem que os acalorados argumentos deapocalípticos e integrados davam o tom àmaior parte das discussões. Entretanto, asquestões que cercam o tema continuam asuscitar interesse e, atualmente, juntam-se à propalada discussão so-bre o papel das novas tecnologias de comunicação na subjetivação dohomem contemporâneo. Nesse sentido, a iniciativa do LAPIC1 em reu-nir especialistas de diferentes áreas para um diálogo interdisciplinar,sobre a relação das crianças com o imaginário televisivo, merece nos-so interesse.

Dividido em três partes, além da introdução, o livro que reúne ostrabalhos apresentados no 1° Simpósio Brasileiro de Televisão, Crian-ça, Imaginário e Educação, em 1996, na ECA-USP, nos traz um pano-rama abrangente do tema.

No texto que abre a sessão intitulada “A relação TV/criança: onascimento de uma nova cultura”, Elza Dias Pacheco discute as diver-sas transformações sociais ocorridas no cotidiano do século XX e seusefeitos para a construção do imaginário infantil. A autora questiona osefeitos provocados pela invasão da digitalização, pois preocupa-se com

1 Laboratório de Pesquisa sobre Infância, Imaginário e Criança – ECA/USP

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na possibilidade da criança “separar nitidamente (...) o que é ficção doque é realidade”. Segundo a autora, tal diferenciação livra a criança de“maiores influências”. Aqui nos perguntamos: o que significa a “nítidaseparação entre realidade e ficção”? Será que, por ser “fictício”, umproduto cultural, deixa de produzir menos marcas nos sujeitos que comele interagem? Ora, não podemos deixar de lembrar que Freud, já em1908, constatava que as crianças utilizam o faz-de-conta, tanto quantoelementos da realidade “concreta”, para sua construção psíquica.

Encerrando a última seção e o livro, Sérgio Capparelli, escritor ejornalista, gaúcho por opção, analisa cuidadosamente a emergência dopúblico infantil como consumidor de produtos culturais. Esta análise étecida à luz da história do desenvolvimento do capital e sua lógica deexpansão no Brasil. Para o autor, a crescente especificação da produ-ção cultural dirigida às crianças é efeito da influência da segmentaçãopresente na lógica capitalista.

Enfim, “Televisão, Criança, Imaginário e Educação”, ao reunirestudiosos de diferentes áreas e especialistas, tanto da recepção comoda produção televisiva, sinaliza uma concepção não cartesiana da játão polemizada relação da criança com a televisão. Resulta, portanto,uma coletânea de textos pautada pela diversidade nas colocações dosautores. Diversidade essa que revela a natureza complexa e interativada questão em estudo, em relação à qual não se pode conjugar nadamenos do que as vicissitudes das crianças, das narrativas televisivas eda sociedade como um todo.

Roselene Gurski Kasprzak

RESENHA

uma reflexão sobre as dicotomias que, ao longo do tempo, nortearamas discussões acerca do tema televisão e produção social. Dentre elas,a polêmica entre integrados e apocalípticos ou entre linguagemaudiovisual e linguagem escrita. Ela sugere que o tom dicotômico des-tas discussões deixava de fora a dialética necessária à análise do pa-pel da televisão, na construção da visão de mundo de adultos e crian-ças. Dificultando, em sua opinião, a percepção de que a TV é só maisum dos elementos sociais que participa desta construção. Para finali-zar essa segunda parte, Rosa Maria Fischer, professora da Faced -Ufrgs, analisa a construção de um discurso sobre a infância na TV bra-sileira, a partir da noção foucaultiana de redes discursivas de poder. Aautora questiona o quanto os meios de comunicação e o próprio consu-mo de bens não estariam consolidando-se como lugares de reconheci-mento de pertença e de cidadania mais eficientes que outras instânciassociais. Ainda destaca a tendência da cultura contemporânea em cons-truir uma “noção de infância não infantil”. Apesar disso, não deixa dereconhecer “a presença de programas e discursos que representamuma saudável resistência nas produções televisivas (...) pois apostamnuma infância realmente infantil, valorizando sobretudo a ficção e omundo da fantasia (p.114)”.

A última seção do livro é dedicada às “Produções infantis nocotidiano da TV brasileira como amplos espaços de marketing”. Naabertura desta seção, Walter Drüst clama por uma programaçãotelevisiva que ensine a criança a pensar por si só, que lide com o coti-diano de “forma fantástica”, isto é, que não mostre uma realidade idea-lizada e falsa, mas que trabalhe com o imaginário infantil como “sonhovivenciando a realidade”. Na seqüência, Maria Thereza Rocco, exaltaa crescente autonomia e independência do telespectador infantil a par-tir da prática do zapping - mudança constante de canal. Para ela, ozapping revela a presença de filtros e mediações no processo da re-cepção televisiva. Acrescenta que o poder desses filtros expressa-se

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Olavo Bilac, 786 CEP 90040-310 Porto Alegre - RSTel: (051) 333 2140 Fax: (051) 333 7922 e-mail: [email protected]

Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.

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Integrantes: Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam,Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher, Maria Aparecida Loss,

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Hora20h

20h30min21h20h21h

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AGENDA

AtividadeReunião da Comissão do Correio daAPPOACartel da Jornada de AberturaReunião da Mesa DiretivaReunião do curso de francêsCartel preparatório para “Relendo Freud eConversando sobre a APPOA”Cartel sobre o EnvelhecimentoAssembléia GeralJornada de Abertura

Cartel do InteriorProdução de Conceição Beltrão“A conquista esperitual da América sob omandato de sustentação do Pai - variaçõesda neurose obsessiva”Cartel do InteriorPropostas de trabalho - Neurose obsessiva